1. Resenha histórica da ACV
O termo ACV (Avaliação do Ciclo de Vida), ou em inglês, "Life Cycle Assessment" (LCA) foi utilizado pela primeira vez nos Estados Unidos da América (EUA) em 1990. A designação histórica para estes estudos ambientais do ciclo de vida, utilizados nos EUA desde 1970, era REPA (Resourse and Environmental Profile Analysis) (Hunt & Franklin 1996).
Um dos primeiros estudos quantificando as necessidades de recursos, emissões e resíduos originados por diferentes embalagens de bebidas foi conduzido pelo "Midwest Research Institute" (MRI) para a Companhia Coca-Cola em 1969. Este estudo nunca foi publicado devido ao carácter confidencial do seu conteúdo, sendo no entanto utilizado pela companhia, no início dos anos setenta como um “input” nas suas decisões sobre embalagens. Um dos resultados interessantes do trabalho da Coca-Cola foi demonstrar que as garrafas de plástico não eram piores, do ponto de vista ambiental, do que as de vidro. Anteriormente, os plásticos tinham a reputação de um produto indesejável em termos ambientais, tendo o estudo REPA demonstrado, que esta reputação era baseada em más interpretações (Hunt & Franklin 1996).
No final de 1972 o mesmo instituto (MRI) iniciou um estudo nas embalagens de cervejas e sumos, encomendado pela "U.S. Environmental Protection Agency" (USEPA), o qual marcou o início do desenvolvimento da ACV como se conhece hoje (Guinée 1995). A intenção da USEPA era examinar as implicações ambientais da utilização de embalagens de vidro reutilizáveis em vez de latas e garrafas não reutilizáveis, porque na altura as garrafas reutilizáveis estavam a ser rapidamente substituídas por embalagens não-reutilizáveis. Esta foi de longe a mais ambiciosa REPA até à altura, tendo envolvido a indústria do vidro, aço, alumínio, papel e plástico e todos os fornecedores daquelas indústrias, tendo-se caracterizado mais de 40 materiais. Após o conhecimento dos resultados deste estudo, toda a gente assumiu que uma garrafa reutilizável seria claramente melhor (Hunt & Franklin, 1996).
Após um longo período de baixo interesse público em ACV, em 1984 o Laboratório Federal Suíço para Teste e Investigação de Materiais (EMPA) publicou um importante relatório com base no estudo "Balanço Ecológico de Materiais de Embalagem" (OFEFP 1984) iniciado pelo governo, que tinha como objetivo estabelecer uma base de dados para os materiais de embalagem mais importantes: alumínio, vidro, plásticos, papel e cartão, chapas de lata (Fink 1997). O estudo também introduziu um método para normalizar e agregar emissões para o ar e para a água utilizando os limites impostos pela legislação para aquelas emissões e agregando-as, respetivamente nos chamados "volume crítico de ar" e "volume crítico de água". De alguma forma, esta filosofia de avaliar os impactes ambientais foi mais tarde desenvolvida e refinada por Ahbe et al. (1991) no relatório Metodologia dos Ecobalanços (Methodologie des Ecobilans sur la base de l'optimisation écologique), no qual é proposto o cálculo de ecopontos. Na Holanda a abordagem dos volumes críticos era simultânea e independentemente desenvolvida por Druijff (Guinée 1995).
A partir de 1990 houve um notável crescimento das atividades ACV na Europa e nos EUA, o qual é refletido no número de workshops e outros fóruns que foram organizados principalmente pela SETAC (Society of Environmental Toxicology and Chemistry). Através dos seus ramos na Europa e EUA a SETAC desempenhou um papel fundamental em reunir profissionais, utilizadores e investigadores para colaborarem no melhoramento contínuo da metodologia ACV. Os relatórios dos primeiros workshops SETAC ilustram os desenvolvimentos metodológicos e de terminologia que ocorreram no início dos anos noventa (SETAC 1991). Para responder a uma necessidade crescente na orientação de ACV, particularmente na Europa onde ela era mais utilizada, as organizações Europeia e Norte Americana da SETAC planearam e conduziram em 1993 em Sesimbra-Portugal o "workshop - Code of Pratice" (SETAC 1993). Este documento pode ser visto como o "mais alto denominador comum" entre as posições Americana e Europeia na metodologia ACV (Gabathuler 1997).
Em 1992 foi formada a Sociedade para a Promoção do Desenvolvimento de Ciclo de Vida (SPOLD), com a missão de juntar recursos, para acelerar o desenvolvimento da metodologia ACV como uma abordagem de gestão aceite para ajudar na tomada de decisão (Hindle & Oude 1996).
A Organização Internacional para a Normalização (ISO) criou em 1992 um comité técnico (TC 207/SC 5) tendo em vista a normalização de um número de abordagens de gestão ambiental, incluindo ACV (Tibor & Feldman 1996).
A década de 90 pode ser caraterizada pela convergência das atividades desenvolvidas pela SETAC na harmonização dos métodos ACV e das atividades de normalização levadas a cabo no seio da ISO. Foi também durante este período que se deu um considerável crescimento nas atividades de investigação tendo os seus resultados sido publicados nas principais revistas científicas que iam sendo criadas, tais como: Journal of Cleaner Production (criada em 1993), The International Journal of LCA (1996), Journal of Industrial Ecology (1997) e outros.
A partir do ano 2000 foram inúmeras as organizações internacionais e regionais criadas e os recursos disponíveis para a ACV são numerosos e o seu número não para de aumentar. Por exemplo, o Programa Ambiente das Nações Unidas (UNEP) e a SETAC lançaram, em 2002, uma parceria internacional para o ciclo de vida, conhecida como ‘‘Life Cycle Initiative’’ (UNEP/SETAC 2012), para permitir que os utilizadores em todo o mundo ponham o pensamento ciclo de vida efetivamente em prática. Em 2005 a Comissão Europeia promoveu a ‘’European Platform on Life Cycle Assessment’’ (EC 2016) com o objetivo de melhorar a credibilidade, aceitação e prática da ACV nas empresas e organismos públicos, fornecendo dados de referência e recomendando métodos para estudos ACV. Nos EUA foi criado o ‘’The American Center for Life-cycle Assessment (ACLCA)’’ (https://aclca.org/) uma organização sem fins lucrativos que resultou da parceria entre o ‘‘Institute for Environmental Research and Education (IERE)’’ e a agência governamental EPA.
Um cronograma histórico mais pormenorizado das atividades de ACV nos Estados Unidos é apresentado por Reed (2012). Heijungs & Guinée (2012), chamaram ao período da ACV compreendido entre 1970 e 1990 ‘’décadas de conceção’’, ao período entre 1990 e 2000 a ‘’década da normalização’’ e de 2000 até 2010 a ‘’era da elaboração’’.
À medida que os métodos ACV se disseminavam foram sendo desenvolvidas ferramentas informáticas (software e bases de dados) de apoio aos estudos ACV. Apresentam-se a seguir algumas bases de dados e ferramentas de modelação que cumprem um conjunto de requisitos para serem considerados pontos de partida apropriados para um novo profissional de ACV (Hollerud & Bowyer 2017):
Bases de dados para ACV:
‘‘U.S. Life Cycle Inventory Database’’ - foi criada a partir de uma parceria entre o ‘‘National Renewable Energy Laboratory’’ (NREL) e o ‘‘Athena Institut’’ e o seu desenvolvimento começou em 2001, tendo sido publicada pela primeira vez em 2003. Web site. [Online 15 janeiro 2018] URL: https://www.lcacommons.gov/nrel/search;
‘‘CPM LCA Database’’ - foi desenvolvida em 1995 pelo ‘’Swedish Life Cycle Center (CPM)’’. Web site. [Online 15 janeiro 2018] URL: http://cpmdatabase.cpm.chalmers.se/About Database.htm;
‘‘European Life Cycle Database’’ - foi criada pelo ‘’European Platform on Life Cycle Assessment’’, e publicada pela primeira vez em 2006, com o objetivo de fornecer dados de base gratuitos para ACVs centradas no mercado Europeu. Foi descontinuada em 29 de junho de 2018. Web site. [Online 15 janeiro 2018] URL: http://eplca.jrc.ec.europa.eu/ ?page_id=126. Ferramentas de modelação ACV:
‘’ecoinvent’’ - A ‘’ecoinvent Association’’ é uma organização sem fins lucrativos fundada por iniciativa conjunta do ‘’TH Domain’’ e o ‘’Swiss Federal Offices’’. A primeira versão, ecoinvent 1.01, foi lançada em 2003 e a mais recente versão, ecoinvent 3.5, foi lançada em 23 de agosto de 2018. Uma característica única da ‘’ecoinvent’’ é ser uma base de dados de ICV (inventário do ciclo de vida) e de AICV (avaliação de impacte do ciclo de vida). Web site. [Online 15 janeiro 2018] URL: https://www.ecoinvent.org/.
‘‘GaBi’’ - é uma ferramenta informática (serviço-completo), que dispõe de bases de dados e um programa de computador para ajudar na execução da ACV. É uma das ferramentas ACV, pagas, mais utilizadas em todo o mundo (mais de 10000 utilizadores), oferecendo mais de 8000 processos cobrindo uma vasta variedade de indústrias. Web site. [Online 15 janeiro 2018] URL: http://www.gabi-software.com/international/index/.
‘’SimaPro’’ - É uma das duas ferramentas ACV, pagas, mais utilizadas em todo o mundo, desenvolvida pelo ‘’PRé Sustainability’’, e à semelhança da ‘‘GaBi’’, é uma ferramenta informática serviço-completo. Web site. [Online 15 janeiro 2018] URL: https://simapro.com/.
Nos EUA os primeiros programas de computador desenvolvidos foram o TRACI (Tool for the Reduction and Assessment of Chemical and Other Environmental Impacts) pela EPA (Bare et al. 2003) (https://www.epa.gov/chemical-research/tool-reduction-and-assessment-chemicals-and-other-environmental-impacts-traci) e o GREET (Greenhouse gases, Regulated Emissions, and Energy use in Transportation) em 1996 pelo DOE (U.S. Department of Energy’s) (https://greet.es.anl.gov/).
A ‘’Life Cycle Initiative’’ da UNEP/SETAC identificou cerca de 200 bases de dados para ACV em todo o mundo (setor nacional, comercial e industrial) e a ‘‘European Platform on Life Cycle Assessment’’ apresenta, uma breve descrição de 34 bases de dados no seu website http://eplca.jrc.ec.europa.eu/ResourceDirectory/faces/databases/databaseList.xhtml, (consultado em 1 de fevereiro de 2019).
À medida que os estudos ACV iam sendo cada vez mais bem elaborados, ao mesmo tempo, outras abordagens ciclo de vida foram aparecendo tais como: custo do ciclo de vida ‘‘life cycle costing’’ (LCC) (Estevan & Schaefer 2017) e avaliação social do ciclo de vida ‘‘social life cycle assessment’’ (S-LCA) (Sala et al. 2015, UNEP/SETAC 2009). Em conjunto, estas abordagens convergem numa outra mais abrangente que é a avaliação da sustentabilidade do ciclo de vida ‘’life cycle sustainability assessment’’ (LCSA) (UNEP/SETAC 2011), que irá ter no futuro a atenção da comunidade científica e das agências internacionais, pois ela fornece os princípios orientadores para tornar a produção e o consumo mais sustentáveis.
As normas relacionadas com ACV, publicadas até ao momento, encontram-se listadas na Tabela 1.
Número / Ano | Título | Tipo |
---|---|---|
ISO 14040:1997, 2006 | Principles and framework | Norma internacional |
ISO 14041:1998a | Goal and scope definition and inventory analysis | Norma internacional |
ISO 14042:2000 a | Life cycle impact assessment | Norma internacional |
ISO 14043:2000 a | Life cycle interpretation | Norma internacional |
ISO 14044:2006b | Requirements and guidelines | Norma internacional |
ISO 14045:2012 | Eco-efficiency assessment of product systems -- Principles, requirements and guidelines | Norma internacional |
ISO 14046:2014 | Water footprint -- Principles, requirements and guidelines | Norma internacional |
ISO/TR 14047:2003 | Examples of application of ISO 14042 | Relatório técnico |
ISO/TR 14047:2012 | Illustrative examples on how to apply ISO 14044 to impact assessment situations | Relatório técnico |
ISO/TS 14048:2002 | Data documentation format | Especificação técnica |
ISO/TR 14049:2000 | Examples of application of ISO 14041 to goal and scope definition and inventory analysis | Relatório técnico |
ISO/TR 14049:2012 | Illustrative examples on how to apply ISO 14044 to goal and scope definition and inventory analysis | Relatório técnico |
ISO/TS 14071:2014 | Critical review processes and reviewer competencies: Additional requirements and guidelines to ISO 14044:2006 | Especificação técnica |
ISO/TS 14072:2014 | Requirements and guidelines for organizational life cycle assessment | Especificação técnica |
ISO/TS 14073:2017 | Water footprint -- Illustrative examples on how to apply ISO 14046 | Relatório técnico |
a Atualizada em 2006 e fundida na 14044. b Substituiu 14041, 14042 e 14043
O Instituto Português da Qualidade (IPQ), através da Comissão Técnica CT 150/SC 005 publicou (traduziu para português) as Normas ilustradas na Tabela 2, relacionadas com ACV.
Número / Ano | Título | Tipo |
---|---|---|
NP EN ISO 14040:2005,2008 | Princípios e enquadramento (ISO 14040:2006) | Norma internacional e Portuguesa |
NP EN ISO 14044:2010 | Requisitos e linhas de orientação (ISO 14044:2006) | Norma internacional e Portuguesa |
NP EN ISO 14046:2017 | Pegada da água. Princípios, requisitos e linhas de orientação (ISO 14046:2014) | Norma internacional e Portuguesa |
DNP ISO/TR 14047:2015 | Exemplos ilustrativos de como aplicar a ISO 14044 a situações de avaliação de impactes (ISO/TR 14047:2012) | Relatório técnico |
DNP ISO/TR 14049:2016 | Exemplos ilustrativos de como aplicar a ISO 14044 à definição do objetivo e âmbito e ao inventário (ISO/TR 14049:2012) | Relatório técnico |
2. Futuro para a ACV
A ACV é ainda uma área de investigação ativa em termos de metodologia e de aplicações práticas. Um dos principais desafios futuros da ACV é a sua maior integração com as outras abordagens de ciclo de vida, nomeadamente:
Gestão do Ciclo de Vida “Life Cycle Management (LCM)”- cuja integração nas operações empresariais é semelhante à das normas ISO 9000 e 14000, na medida em que favorece uma abordagem cíclica PDCA (Plan, Do, Check e Act) de planear, fazer, verificar e agir, proporcionando assim uma base para uma melhoria contínua;
Avaliação Social do Ciclo de Vida “Social Life Cycle Assessment (SLCA)” - é um método que pode ser usado para avaliar os aspetos sociais e sociológicos dos produtos, os seus impactes atuais e potenciais, positivos e negativos, ao longo do ciclo de vida. Os principais destinatários e utilizadores são as políticas públicas e as empresas;
Avaliação da Sustentabilidade do Ciclo de Vida “Life Cycle Sustainability Assessment (LCSA)” - refere-se à avaliação de todos os impactes ambientais, sociais e económicos negativos e benefícios nos processos de tomada de decisão para produtos mais sustentáveis, ao longo do seu ciclo de vida. LCSA = LCA + LCC + SLCA;
Pegada de Carbono “Carbon footprint (CF)” - é uma medida das emissões diretas e indiretas de gases com efeito de estufa (GEE) associadas a todas as atividades no ciclo de vida do produto;
Pegada de Água “Water footprint (WF)” - é um indicador ambiental essencial para todas as atividades no ciclo de vida do produto.
Esta integração foi já iniciada, tendo constituído mesmo um dos principais objetivos da Fase III da Iniciativa Ciclo de Vida (UNEP/SETAC 2012) permitindo a acessibilidade por parte das organizações e profissionais a metodologias e ferramentas mais robustas e económicas com base em dados confiáveis. No entanto, é necessário realizar mais ACVs para aprender a superar as limitações atuais (alocação, incertezas, etc.), para expandir os dados disponíveis e aprimorar as técnicas e a metodologia. Mais conhecimento científico (que é discutido principalmente no campo académico) deve ser transferido para uma sociedade mais ampla. Deve ainda procurar-se envolver as comunidades do ciclo de vida, os especialistas e as pessoas que têm influência nos tópicos da ACV, num diálogo de longo prazo, aumentar a conscientização do público sobre questões de ACV e LCM e criar um ambiente aberto de discussão entre especialistas e o público em geral.
Outro desafio será desenvolver e implementar capacidades para operacionalizar e integrar plenamente a ACV no desenvolvimento de produtos, marketing e tomada de decisões estratégicas nos negócios através do LCM-CMM (Life Cycle Managment - Capability Maturity Model) (UNEP/SETAC 2015).
Conclusões
Três novos desafios estão identificados na Iniciativa Ciclo de Vida:
Oferta de uma Comunidade de Prática de escolha ‘’ Community of Practice of choice’’ alcançada por meio de: um fórum global para grupos de utilizadores do ciclo de vida (para identificar áreas onde é necessário mais trabalho de desenvolvimento); um repositório de melhores práticas (capitalizando experiências em diferentes níveis, de empresas a governos); e, orientação global, ferramentas e documentos de posicionamento desenvolvidos em colaboração por especialistas em ciclo de vida e utilizadores (fornecendo valor no processo de harmonização e melhoria do uso do conhecimento do ciclo de vida).
Desenvolvimento da capacidade do ciclo de vida - Diversos canais e produtos são fornecidos para os vários públicos-alvo de programas de desenvolvimento de capacidades: formuladores de políticas, tomadores de decisões de negócios e profissionais. Tais produtos incluem e-Learning, workshops, disseminação on-line e on-paper de histórias de sucesso e melhores práticas e projetos-piloto.
Consenso e Plataforma de Conhecimento do Ciclo de Vida - são feitos através de bases de dados de ACV e bibliotecas de fatores de caracterização de impacte devidamente vinculados por um sistema de nomenclatura global - e fornecido por meio de uma plataforma de partilha de conhecimento destinado principalmente aos profissionais e especialistas em ACV. Resumos não técnicos periódicos sobre o progresso na área de conhecimento do ciclo de vida são fornecidos para informar os políticos e tomadores de decisão.