Introdução
A doença mental é muito mais do que uma ausência de saúde e pode estar associada a várias condições, a dificuldades na gestão de emoções, atitudes, pensamentos e dinâmicas sociais, o que torna difícil uma definição concreta e única (Ferro, 2013). A sua diversidade concetual também contribui para a sua prevalência na população, estimando-se que afete um quarto da população mundial (World Health Organization, 2020).
Uma das questões mais preocupantes relacionadas com a doença mental é a natureza do seu retrato no imaginário coletivo das sociedades, tantas vezes mediado pelos media, por se partir do pressuposto que será também daqui que se formam as atitudes, muitas vezes discriminatórias perante as pessoas que sofrem desta condição (Bowen & Lovell, 2019; Venkatesan & Saji, 2019).
Esta preocupação segue uma ideia generalista de media, que inclui ‘velhas’ e ‘novas’ plataformas, como jornais e televisão, redes sociais e jogos, diferentes fontes, coberturas jornalísticas ou retratos artísticos e pressupõe que o seu papel mediador entre a divulgação científica e a opinião pública é sólido e protagonista (Nairn, 2007).
O trajeto científico sobre as representações das pessoas com doença mental tem se intensificado e debruçado essencialmente em duas vertentes principais, a ilustração dessas representações e os seus efeitos (Ferro, 2013).
Nos estudos de media, entre as várias perspetivas, há duas grandes correntes que muitas vezes protagonizam estas pesquisas, e que se distanciam pela forma como retratam o espectador. Por um lado, as abordagens herdeiras de uma visão estruturalista, onde mais frequentemente se neutraliza a capacidade de agência do recetor, de modo a compreender a forma como este é afetado pelos media. Por outro, estão as visões mais construtivistas (Hall, 2001) que descrevem uma relação coparticipada entre media e espectador, sendo este último mais ativo do que um mero recetor, podendo mesmo transformar as mensagens mediáticas (Santi & Santi, 2009).
Ainda que heterogéneas, a maioria destas pesquisas acolhe a última perspetiva teórica, onde a representação linguística (e consequentemente mediática) é a tradução dos diferentes significados que atribuímos às nossas experiências, aos contextos que conhecemos e aos outros. Estas representações, construídas e negociadas em sociedade, onde os media participam, vão se consolidando (ainda que com flexibilidade) em representações sociais, como os conjuntos de pensamentos, imagens e valores que concretizam depois a forma como nos relacionamos e interpretamos. “Representar é, neste sentido produzir significados através da linguagem. Trata-se de utilizar a linguagem para conferir sentido ao mundo, sentidos esses que são partilhados por membros de uma mesma cultura” (Ferro, 2013). Precisamente porque é a partir destas representações que conhecemos e explicamos o mundo social, que tantos esforços são feitos para desconstruir as imagens estigmatizantes de violência, perigo, imprevisibilidade e inferioridade (Bowen, 2019; Venkatesan & Saji, 2019) associadas a diferentes doenças mentais.
Nesse sentido os objetivos desta revisão scoping são: a) identificar que representações da doença mental são reportadas nos media; b) mapear as plataformas de media associadas; c) identificar as doenças mentais reportadas. Para isso definimos como questões de investigação: Que representações da doença mental são reportadas nos media?
1. Métodos
Este protocolo foi redigido tendo por base o Preferred Reporting Items for Systematic reviews and Meta-Analyses for systematic review Protocols (PRISMA-P) (Moher et al., 2015) e estrutura a realização de uma revisão scoping através do método proposto pela Joanna Briggs Institute (Tricco et al., 2018).
A pesquisa será realizada nas bases de dados PubMed, Scopus e Web of Science, e serão incluídos estudos em língua inglesa, portuguesa e espanhola, com data de publicação de 1 de janeiro 2009 a 31 de dezembro de 2019. A escolha que motivou este intervalo de tempo da pesquisa foi a constatação de melhorias na representação mediática sobre a doença mental, consequente de uma crescente produção sobre este tema, na última década.
As estratégias de pesquisa encontram-se apresentadas na Tabela 1.
Base de dados | Fórmula de pesquisa | Resultados |
---|---|---|
PubMed | (("mental disorders"[MeSH Terms] OR ("mental"[All Fields] AND "disorders"[All Fields]) OR "mental disorders"[All Fields] OR ("mental"[All Fields] AND "illness"[All Fields]) OR "mental illness"[All Fields]) AND media;[All Fields] AND ("Representation (McDougall Trust)"[Journal] OR "representation"[All Fields])) AND ((Classical Article[ptyp] OR Clinical Study[ptyp] OR Comparative Study[ptyp] OR Case Reports[ptyp]) AND "2009/11/23"[PDat] : "2019/11/20"[PDat]) | 4 |
Scopus | TOPIC: (mentalillness) AND TOPIC: (media) AND TOPIC: (representations) Refined by: DOCUMENT TYPES: ( ARTICLE ) Timespan: 2009-2019. Indexes: SCI-EXPANDED, SSCI, A&HCI, CPCI-S, CPCI-SSH, ESCI, CCR-EXPANDED, IC | 81 |
Web of Science | ( TITLE-ABS-KEY ( mental AND illness ) AND TITLE-ABS-KEY ( media ) AND TITLE-ABS-KEY ( representations ) ) AND ( LIMIT-TO ( PUBYEAR , 2019 ) OR LIMIT-TO ( PUBYEAR , 2018 ) OR LIMIT-TO ( PUBYEAR , 2017 ) OR LIMIT-TO ( PUBYEAR , 2016 ) OR LIMIT-TO ( PUBYEAR , 2015 ) OR LIMIT-TO ( PUBYEAR , 2014 ) OR LIMIT-TO ( PUBYEAR , 2013 ) OR LIMIT-TO ( PUBYEAR , 2012 ) OR LIMIT-TO ( PUBYEAR , 2011 ) OR LIMIT-TO ( PUBYEAR , 2010 ) OR LIMIT-TO ( PUBYEAR , 2009 ) ) AND ( LIMIT-TO ( DOCTYPE , "ar" ) ) | 74 |
Após a pesquisa, todas as citações identificadas serão transferidas para o Endnote V7.7.1 (Clarivate Analytics, PA, EUA) e os duplicados removidos. A fim de avaliar a sua elegibilidade, os títulos e resumos serão analisados por dois revisores independentes (BL e ES). Na ausência de consenso será incluído um terceiro revisor como critério de desempate. Os artigos completos serão analisados com base nos seguintes critérios de inclusão:
PARTICIPANTES: Serão considerados todos os media/ plataformas mediáticas que se refiram à doença mental (como por exemplo, jornais, videojogos ou filmes).
CONCEITO: A representação mediática corresponde ao conjunto de imagens, atributos, valores e configurações que as plataformas mediáticas evocam para retratar um fenómeno social. Estas são formas de representações sociais que se traduzem pelo conjunto de opiniões e conhecimento que orienta a forma como as pessoas se interpretam umas às outras e aos acontecimentos em seu redor. Como são construídas e negociadas em interação social, estas representações são sempre afetas a um determinado grupo de indivíduos, num momento espácio-temporal específico. Para esta revisão scoping, o conceito central será o de representação mediática de doença mental.
CONTEXTO: Não existem limitações, todos os contextos são aplicáveis.
TIPO DE ESTUDOS: Todos os tipos de estudos, nomeadamente revisões sistemáticas, estudos quantitativos, qualitativos e de métodos mistos.
Os dados serão extraídos por dois revisores independentes (BL e ES). Na presença de desacordo entre os revisores será incluído um terceiro revisor. Por fim, os resultados serão agrupados numa tabela e acompanhados por uma síntese narrativa.
2. Resultados
Com a realização desta revisão scoping esperamos um mapeamento amplo que revele uma tendência negativa sobre a forma como as pessoas com doença mental são representadas nos media.
Uma pesquisa inicial e preliminar revela que no total foram contabilizadas oito plataformas mediáticas, sendo o jornal o mais comum, seguido de filmes, televisão, livros, revistas, guiões, videojogos e redes sociais. Sobre a doença mental em destaque, distinguem-se doze patologias, ainda que a categoria genérica ‘doença mental’ seja a mais comum.
Cerca de 90% dos artigos têm uma expectativa negativa sobre a representação mediática da doença mental, assumindo que o seu retrato é frequentemente associado a traços de personalidade indesejados, e/ou fonte de perigo e violência, e/ou incompreendida na totalidade, e/ou explicada a partir de estereótipos degradantes, e/ou um problema que põe em causa a harmonia e segurança das sociedades (Bowen, 2019; Venkatesan & Saji, 2019).
Como referido, o conceito ‘doença mental’ acolhe várias condições, cada uma com representações diferenciadas. A depressão é a doença mais ‘desculpabilizada’ e aquela que tem sido sempre retratada mais humana e positivamente (Atanasova, Koteyko, Brown, & Crawford, 2017), seguida do autismo, que aparece quase sempre em associação à infância e que tem tido mais protagonismo em personagens fictícias do cinema e televisão (Beirne, 2019; Brayton, 2018).
A bipolaridade, os distúrbios de personalidade e a esquizofrenia, por outro lado, têm surgido sempre como os exemplos para as doenças mentais com piores retratos mediáticos, frequentemente associadas ao crime e à violência (Kenez, O'Halloran, & Liamputtong, 2015; Rohr, 2015).
Um dos temas mais recorrentes nas pesquisas sobre as representações mediáticas é acerca do risco do estigma e a discriminação contra pessoas com doença mental (Bowen, 2016). Alguns exemplos trabalhados são a comercialização do medo associado ao asilo (Bowman & West, 2019), a simbologia da doença mental nos filmes de terror (Goodwin, 2014), as personagens maléficas nos videojogos que sofrem de alguma doença mental (Fawcett & Kohm, 2019) e outras caricaturas estigmatizantes em jornais de informação (Bowen, 2016; Chen, Hsu, Shu, & Fetzer, 2012; Coverdale, Coverdale, & Nairn, 2013; MacLean et al., 2015; Potter, 2014).
Nas pesquisas que sobrepõem a análise das representações aos efeitos que estas provocam, os resultados são semelhantes na sua negatividade, demonstrando que as imagens estigmatizantes têm impactos duradouros e preocupantes na forma como as pessoas com doença mental são interpretadas e tratadas no seu quotidiano (Dale, Richards, Bradburn, Tadros, & Salama, 2014).
Excecionalmente, há ainda exemplos onde se demonstram efeitos positivos nas campanhas mediáticas com representações otimistas e informadas acerca da doença mental (Zimbres, Bell, & Taylor, 2020).
Esta pesquisa inicial permite-nos prever a constatação de melhorias gerais na representação da doença mental, através das análises longitudinais, acompanhadas por cada vez mais campanhas anti estigma e maior atenção dada a este tema, embora o mesmo não se aplique para todas as doenças mentais (Smith-Frigerio, 2018).
3. Discussão
Mesmo que preliminarmente, é possível destacar três ideias agregadoras. Primeiramente, é possível constatar o que tem sido o ponto de partida para quase todos os autores revistos, e que diz respeito ao longo trabalho ainda a fazer sobre representações informadas, coerentes, positivas e dignificantes da doença mental. Através de retratos caricaturais e degradantes nos espaços de ficção, como o cinema e a literatura, ou de imagens estereotipadas e frequentemente associadas ao perigo e ao crime, nas coberturas jornalísticas impressas e televisivas, pouco protagonismo tem sido dado apenas à educação e informação acerca da doença mental, como uma questão social comum (em oposição à individualização responsabilizadora dos doentes).
De seguida, evidenciar os efeitos nefastos que advém destas representações, naquilo que é uma negociação continuada e bidirecional entre os produtores de conteúdo - os media, e os seus consumidores - as audiências. Ainda que se revelem alguns resultados positivos de campanhas especializadas em inverter o cariz negativo da maioria das representações sobre a doença mental, esta não deixa de ser campo atribulado, com consequências diretas nas pessoas que com ela sofrem.
Por último, destacar as melhorias longitudinais no retrato da doença mental, ainda que com diferenças relativas a cada doença, e a crescente produção científica sobre este tema, que teve o seu pico em 2019, e que revela um esforço adequado para a construção de uma sociedade mais informada e inclusiva.
Conclusões
Este protocolo de revisão scoping prevê sintetizar os resultados dos estudos realizados sobre as representações mediáticas da doença mental, a partir de um mapeamento de várias plataformas mediáticas, como jornais, videojogos, redes sociais entre outras, bem como da variedade de doenças mentais referidas.
Mesmo com oscilações entre as diferentes doenças mentais, é bastante comum registarem-se representações mediáticas negativas, com associações a imagens de violência, perigo, imprevisibilidade e inferioridade face às pessoas sem doença mental.
Embora preliminarmente se verifiquem melhorias na forma como se retrata a doença mental, estas são ainda escassas e insuficientes para desconstruir os estereótipos estigmatizantes que marcam as pessoas com doença mental, em especial as que sofrem de bipolaridade, esquizofrenia e distúrbios de personalidade, comumente associados à violência e ao crime.