Introdução
O crescente número de diagnósticos de perturbações mentais no último século elevou a importância da saúde mental tanto na ótica académica, quanto na visão da população em geral (MIND, 2013).
A depressão, em particular, é uma doença muito prevalente que afeta os indivíduos, sem discriminar género, raça e etnia. Nos Estados Unidos da América, cerca de 10 milhões de pessoas sofrem de depressão e, destes, estima-se que cerca de 6 milhões não recebem tratamento (Bailey, Mokonogho, & Kumar, 2019).
A depressão é muitas vezes associada a uma deterioração grave dos funcionamentos físico e social, implicando o recurso constante aos cuidados de saúde primários, com um forte impacto negativo na qualidade de vida relacionada com a saúde e na qualidade de vida geral, superior ao observado em outras condições físicas crónicas, tais como a hipertensão, a diabetes, a artrite e os problemas gastrointestinais (Gameiro et al., 2008).
Verifica-se, contudo, que as doenças mentais têm consequências diferentes para as pessoas, dependendo da posição social relativa que ocupam no espaço estratificado. Naturalmente, é expectável que os acessos aos cuidados de saúde não devem estar dependentes das prescrições estabelecidas num território, do rendimento ou da etnia. Contudo, é atualmente reconhecido que as minorias étnicas e raciais têm menos acesso à saúde mental que os doentes caucasianos e, quando têm, recebem um serviço de menor qualidade (Office of the Surgeon General, Center for Mental Health Services, & National Institute of Mental Health, 2001).
A “Raça” é um conceito histórico de teor abstrato que está relacionado com a trajetória política e económica das sociedades humanas. Este conceito solidificou-se em meados do século XVI, com as diversas expansões mercantilistas europeias que propagaram o ideal moderno do europeu como o “homem universal”. Todos os demais povos e culturas eram considerados “menos evoluídos”. Este legado histórico de dominação cultural do homem branco trouxe imensas consequências em todas as esferas sociais até ao dia de hoje (Almeida, 2019).
O século XX aportou grandes progressos na questão da igualdade racial e apesar de, na maior parte dos países, os indivíduos serem legalmente iguais, as consequências dos tempos “sombrios” de outrora ainda assombram as minorias étnicas e raciais. Por terem sido alvos de opressão no passado, as minorias étnicas encontram-se mais distantes do centro do poder e têm mais dificuldades em alcançá-lo devido ao legado da dominação que continua a existir sob a forma do preconceito. Consequentemente, possuem trabalhos, educação e saúde mais precários (Almeida, 2019). É justamente o impacto que esta histórica desigualdade racial tem no tratamento da depressão que se pretende mapear neste estudo.
A desigualdade no tratamento da depressão pode aparecer em vários campos, nomeadamente na relação médico/profissional de saúde-doente, na qualidade das prestações de serviços médicos e na prescrição médica adotada para o tratamento (Lagomasino, Stockdale, & Miranda, 2011).
Torna-se importante, portanto, compreender se a evolução dos cuidados de saúde mental, especificamente no caso da depressão, ocorreu e ocorre de forma desigual, e de que maneiras estas possíveis desigualdades se manifestam. Nesse sentido o objetivo desta revisão scoping é mapear e sintetizar a existência da desigualdade racial e étnica no tratamento da depressão. Para isso definimos como questões de investigação: Existe desigualdade racial e étnica no tratamento da depressão? De que forma esta desigualdade se manifesta?
1. Métodos
Esta revisão scoping foi conduzida tendo por base o método proposto pela Joanna Briggs Institute (Peters et al., 2015) e foi redigida tendo por base o Preferred Reporting Items for Systematic reviews and Meta-Analyses Extension for Scoping Reviews (PRISMA-ScR) (Tricco et al., 2018).
A pesquisa foi realizada nas bases de dados Scopus, PubMed e Web of Science, e foram incluídos estudos em língua inglesa, portuguesa e espanhola, com data de publicação de 2010 até à atualidade. A escolha que motivou o intervalo de tempo da pesquisa deveu-se à realização de uma pesquisa preliminar que revelou não existirem artigos relevantes previamente a 2010.
As estratégias de pesquisa utilizadas encontram-se apresentadas na Tabela 1.
Base de dados | Fórmula de pesquisa | Resultados |
---|---|---|
PubMed | ((racial disparities) AND (depression)) AND (treatment) Filters: from 2010 - 2020 | 247 |
Scopus | all "Racial disparities" AND "depression treatment" AND PUBYEAR > 2010 | 291 |
Web of Science | TS=(racial disparities AND depression AND treatment) Tempo estipulado: 2010-2020. Índices: SCI-EXPANDED, SSCI, A&HCI, CPCI-S, CPCI-SSH, ESCI, CCR-EXPANDED, IC. | 258 |
Após a pesquisa, todas as citações identificadas foram transferidas para o Endnote V7.7.1 (Clarivate Analytics, PA, EUA) e os duplicados removidos. A fim de avaliar a sua elegibilidade, os títulos e resumos foram analisados por dois revisores independentes (IN e MC). Na ausência de consenso foi incluído um terceiro revisor (ES) como critério de desempate. Os artigos completos foram, então, analisados com base nos seguintes critérios de inclusão:
PARTICIPANTES: Foram considerados todos os estudos que incluíssem pessoas com depressão, definida como uma perturbação do humor caracterizada por tristeza sustentada e/ou perda de interesse ou prazer nas atividades diárias, juntamente com um conjunto de sintomas cognitivos e somáticos. Os sintomas cognitivos incluem sentimentos de auto-valorização/confiança (e não perda de auto-valorização), desesperança, enquanto que os sintomas somáticos podem incluir fadiga, sono e desregulação do apetite (APA, 2013). Apenas foram considerados estudos em que o diagnóstico estivesse formalmente estabelecido.
CONCEITO: Foram considerados estudos que abordassem o conceito de desigualdade racial e étnica.
CONTEXTO: Foram considerados todos os estudos e sem restrições: hospitalar, ambulatório, entre outros.
TIPO DE ESTUDOS: Todos os tipos de estudos, nomeadamente revisões sistemáticas, estudos quantitativos, qualitativos e de métodos mistos.
Os dados foram extraídos por dois revisores independentes (IN e MC). A presença de desacordo entre os revisores foi resolvida com a inclusão de um terceiro revisor (ES). Por fim, os resultados foram agrupados numa tabela e acompanhados por uma síntese narrativa para atingir o objetivo da revisão.
2. Resultados
Após os duplicados terem sido removidos, um total de 547 artigos foram encontrados nas bases de dados. Destes, 505 foram eliminados com base na leitura do título e resumo. 42 artigos foram selecionados e avaliados pelos critérios de inclusão. Destes, 37 foram excluídos pelas seguintes razões: 21 deles pelos participantes, e por fim, 16 não se enquadravam no conceito proposto. Os estudos restantes foram considerados elegíveis. Esse processo está representado na Figura 1.
As características e especificações dos estudos incluídos foram agregadas e incluídas na Tabela 2.
Autores/ Ano / País | Tipo de estudo | População/ Contexto | Conclusões |
---|---|---|---|
Lagomasino et al., 2011 (Estados Unidos da América) | Estudo descritivo-correlacional | Adultos norte-americanos observados por psiquiatras e médicos de cuidados de saúde primários | Os hispânicos tendem a receber menos “aconselhamento”/ educação para a saúde para lidar com a depressão; os doentes negros tendem a receber menos prescrições de antidepressivos. |
Kim, 2014 (Vários países) | Revisão narrativa | Grupos de minorias étnicas e raciais | Os hispânicos e negros tiveram menos de 50% de probabilidade de receber uma prescrição médica de antidepressivos quando comparados com caucasianos. |
Shao et al., 2016 (Vários países) | Revisão narrativa | Grupos de minorias étnicas e raciais | Os fatores socioeconómicos, culturais, pessoais e comunicacionais contribuem tanto para o subdiagnóstico da depressão, como para a falta de tratamento. |
McGregor et al., 2020 (Estados Unidos da América) | Estudo descritivo-correlacional | Indivíduos beneficiários do programa “Medicaid” | As taxas de tratamento da depressão são mais baixas para afro-americanos e hispânicos, em comparação com os caucasianos. As percentagens sem tratamento são de 19,9% de afro-americanos, 15,2% de hispânicos e 11,9% de caucasianos. Comparativamente com os caucasianos, os afro-americanos têm cerca de metade da probabilidade de receber tratamento, os hispânicos cerca de um terço e os outros grupos étnico-raciais cerca de um quinto. Os caucasianos têm mais probabilidade do que qualquer outro grupo de receberem apenas medicação. |
Hankerson et al., 2015 (Vários países) | Revisão narrativa | Grupos de minorias étnicas e raciais | Os diversos fatores sociais específicos fazem com que a desigualdade racial e étnica no tratamento da depressão exista. As medidas para aprimorar o tratamento da depressão de grupos étnicos e raciais na prática clínica incluem a construção de confiança, utilização de redes sociais, abordar a depressão de forma holística e refletir sobre o seu próprio viés cultural. |
Lagomasino et al. (2011) analisaram a desigualdade racial e étnica no tratamento da depressão, tendo em conta a prescrição farmacológica indicada pelo médico para cada doente com sintomas de depressão. Para tal, foram realizadas 58,826 consultas de doentes do inquérito nacional “National Ambulatory Medical Care Survey” de 2003 até 2007. Os resultados mostram que os doentes hispânicos com consultas com médicos de cuidados de saúde primários tiveram menor probabilidade de terem “aconselhamento” para a depressão quando comparados com os doentes caucasianos. No caso dos doentes de raça negra também existe menor probabilidade de prescrição de antidepressivos nas consultas quando comparado com os doentes caucasianos.
Este estudo revelou ainda que, apesar dos doentes negros e hispânicos terem sido atendidos maioritariamente por médicos alocados a uma quantidade grande de utentes não-caucasianos, a componente racial e étnica da prestação de serviços não é uma variável significativa, ou seja, não explica todas as desigualdades encontradas no tratamento da depressão (Lagomasino et al., 2011).
O estudo de Kim (2014) apontou as desigualdades no tratamento da depressão com base no mesmo inquérito (National Ambulatory Medical Care Survey). Entre 1992 e 2003, a probabilidade de prescrição farmacológica de antidepressivos para doentes negros e hispânicos, no final de 2003, era apenas metade do que quando comparada com doentes caucasianos (Kim, 2014).
Num estudo de maior escala, McGregor et al. (2020) analisaram o tratamento da depressão em 599,421 doentes beneficiários do programa norte-americano “Medicaid”. Os resultados encontrados mantêm o padrão das pesquisas mencionadas anteriormente: os doentes negros tiveram 50% menor probabilidade de receber tratamento para a depressão quando comparados com doentes caucasianos; os doentes hispânicos tiveram 66% menor probabilidade; e doentes de outras raças e etnias tiveram 80% menor probabilidade (McGregor et al., 2020).
Um outro fator que contribui para a desigualdade do tratamento da depressão é o seu subdiagnóstico. Shao et al. (2016), ao analisar os dados da pesquisa “Collaborative Psychiatric Epidemiology Surveys” constataram que as minorias étnicas possuíam menor probabilidade de serem diagnosticadas com depressão. Neste estudo, foram descritas as possíveis razões para o “lapso” (ausência de) no diagnóstico, bem como para a falta de tratamento: i) diferenças do status socioeconómico e do seguro médico; ii) diferença na “procura de ajuda” e diferenças culturais das crenças pessoais, na atitude e no conhecimento sobre depressão; iii) falta de confiança nos prestadores de cuidados médicos para a saúde mental; iv) a “perceção do racismo”: o racismo estrutural como uma fonte de stress constante para as minorias étnicas/raciais; v) crenças pessoais dos prestadores de cuidados de saúde; vi) no caso dos imigrantes: falta de conhecimento sobre o sistema de saúde norte-americano (Shao, Richie, & Bailey, 2016).
Por fim, e para combater a desigualdade racial e étnica no tratamento da depressão, Hankerson, Suite e Bailey (2015) propuseram uma série de medidas aplicáveis na prática clínica. Destas podemos salientar: construir uma relação de confiança com os doentes; mobilizar as redes sociais dos doentes para encontrar “possíveis aliados”; e abordar o tratamento de uma maneira holística e analisar e auto-refletir sobre os seus próprios preconceitos e privilégios (Hankerson, Suite, & Bailey, 2015).
3. Discussão
Esta revisão scoping objetivou mapear a existência da desigualdade racial e étnica no tratamento da depressão. Da análise realizada não foram encontrados estudos que neguem a sua existência e mesmo partindo de pesquisas, fontes e abordagens diferentes, as conclusões tendem a ser concordantes: as minorias étnicas e raciais, comparativamente com doentes caucasianos, recebem menos tratamento para a depressão, e, quando recebem, é um tratamento de menor qualidade (Hankerson et al., 2015; Kim, 2014; Lagomasino et al., 2011; McGregor et al., 2020; Shao et al., 2016).
Os estudos analisados mostram que as principais fontes promotoras desta desigualdade são: i) o “racismo percebido”: que suporta o racismo estrutural, estando este presente em todas as esferas da sociedade acabando por afetar psicológica e fisiologicamente as minorias étnicas e raciais. Este “racismo constante” gera um grande stress e afeta negativamente a saúde mental, facilitando assim o desenvolvimento da depressão major; ii) as crenças individuais dos prestadores de cuidados; iii) a linguagem e capacidade de comunicação; iv) a competência cultural dos prestadores de cuidados, ou seja, a sua capacidade de compreender as diversas barreiras culturais existentes; e, por fim, v) o status socioeconómico dos doentes (caso seja mais elevado, pode atenuar a desigualdade experienciada no tratamento da depressão) (Hankerson et al., 2015; Kim, 2014; Lagomasino et al., 2011; McGregor et al., 2020; Shao et al., 2016).
O subdiagnóstico e a falta de tratamento que experimentam as minorias étnicas e raciais resultam das causas supracitadas. Se os diagnósticos fossem ser realizados mais precocemente, isto traduzir-se-ia numa melhoria dos tratamentos e consequentemente dos resultados em saúde, especificamente desta população.
Podemos, por isso, concluir que a desigualdade racial e étnica no tratamento da depressão é um problema complexo e exige a aplicação de diversas intervenções que vão para além do âmbito da prática clínica. As intervenções a nível governamental nos planos culturais, pessoais e socioeconómicos carecem de planeamento e execução pois o racismo é um problema estrutural “enraizado” nas diversas camadas da sociedade.
Os pontos fortes desta revisão scoping incluíram a abrangência da estratégia de pesquisa e os critérios rigorosos de inclusão, permitindo aplicar um processo rigoroso de extração e de síntese de dados. Contudo, esta revisão não é isenta de limitações. A principal limitação desta revisão traduz-se na inclusão de estudos referentes unicamente a um único país (Estados Unidos da América). Isso impõe uma dificuldade de generalização dos resultados, embora esse facto já se assumia como esperado, porque os Estados Unidos da América são dos países com maior diversidade racial e étnica. Ainda assim, podemos afirmar que os resultados encontrados manifestam uma preocupante realidade que carece de medidas corretivas e/ou preventivas.
Conclusão
Esta revisão scoping corroborou a existência de desigualdades raciais e étnicas no tratamento da depressão unanimemente em todos os estudos selecionados. Estas desigualdades têm repercussões diretas no subdiagnóstico e na falta de tratamento adequado dos doentes não-caucasianos. Por outro lado, a falta de tratamento adequado manifesta-se sob a forma de uma menor probabilidade de prescrição médica de antidepressivos e de aconselhamento para o tratamento da depressão.
As variáveis preditoras desta desigualdade são as crenças pessoais dos prestadores de cuidados, o status socioeconómico dos doentes, o racismo estrutural constante, a linguagem e capacidade de comunicação e, por fim, as competências culturais dos prestadores de cuidados. Nesse sentido, é urgente propor um conjunto de medidas e intervenções dirigidos para a prática clínica e sociedade em geral para combater este problema.
Também é essencial que estudos futuros analisem a desigualdade racial e étnica do tratamento da depressão em outros países e contextos comparando os seus resultados específicos com as variáveis preditoras de desigualdade até agora reportadas.