Introdução
A Organização Mundial de Saúde (OMS) aponta a obesidade como um dos maiores problemas de saúde pública no mundo. A projeção é que, em 2025, cerca de 2300 milhões de adultos estejam com sobrepeso e mais de 700 milhões obesos. No Brasil, a obesidade tem vindo a crescer cada vez mais. A Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica ([ABESO], 2014) indica que 50% da população está acima do peso, ou seja, na faixa de sobrepeso e obesidade.
O excesso de peso (EP) e a obesidade têm caráter múltiplo e heterogéneo, envolvendo não apenas fatores biológicos e de causa individual, mas uma integração de fatores históricos, económicos, sociais e culturais. Não são apenas os aspetos relacionados à dieta ou ao sedentarismo que devem ser avaliados, mas as condições de trabalho, habitação, segurança, rede de abastecimento e globalização, que explicam os fatores proximais que, usualmente, se incluem nos modelos causais das doenças e de risco para saúde (Ministério da Saúde [MS], 2014). São doenças que, eventualmente, até se faz o diagnóstico, mas o tratamento não é priorizado (Kaplan et al., 2018). Esta abordagem inclui orientação nutricional e atividade física, terapia comportamental e/ou medicamentosa, além da cirurgia.
Vários estudos demonstram também que os médicos, inclusivé os da atenção primária, não abordam as medidas preventivas (Colbert & Jangi, 2013), poucos fazem o tratamento de maneira adequada (Leedham-Green, Pound & Wylie, 2016) e outros ainda exibem atitudes preconceituosas que desmotivam o cuidado da pessoa com EP (Fang, Gillespie, Crowe, Popeo & Jay, 2019; Pantenburg et al., 2012). Os resultados desses estudos inferem que, apesar dos dados epidemiológicos evidenciarem a epidemia de EP no mundo, os profissionais da saúde ainda não estão preparados para uma atuação adequada.
Muitos fatores parecem envolvidos nessa “invisibilidade” do EP, tais como: falta de reconhecimento como doença crónica; desconhecimento da fisiopatologia, dos fatores biopsiquicossociais e das opções medicamentosas; falta de tempo para examinar o paciente; poucos medicamentos disponíveis (Yanovski & Yanovski, 2014) e o preconceito para com as pessoas com EP.
Os médicos, para além de atuarem como prescritores de medicamentos nos casos indicados, têm um papel importante de ajudar os pacientes a promoverem mudanças no estilo de vida, especialmente se forem modelos deste estilo de vida. No entanto, poucas faculdades de medicina incorporaram a medicina do estilo de vida em seus currículos (Malatskey, Essa-Hadad, Willis & Rudolf, 2019). O estudo de Vitolins, Crandall, Miller, Ip, Marion, e Spangler (2012) demonstrou que a falta de treinamento sobre o assunto durante o curso também dificulta o cuidado das pessoas com EP ao longo da vida profissional.
Nesse contexto epidemiológico e seguindo as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) (Ministério da Educação [MEC], 2014), entende-se que a formação em Medicina deve capacitar os médicos sobre os mecanismos fisiopatológicos, a prevenção e o tratamento dessa epidemia, desde a atenção básica até o encaminhamento para os especialistas, bem como o trabalho interprofissional e colaborativo.
Ante o exposto, e em face da escassez de estudos nacionais e locais sobre o ensino médico e o EP, procurou-se responder à pergunta: Sob o ponto de vista dos estudantes do internato de medicina, que estratégias educativas dariam maior visibilidade à temática EP durante o curso?
Nesta pesquisa, o objetivo foi identificar as estratégias educativas para enfrentar a invisibilidade da temática “excesso de peso no currículo de medicina”, na visão dos estudantes.
1. Métodos
Para fins deste artigo, adotou-se um recorte da pesquisa de mestrado intitulada “O manejo clínico do excesso de peso: saberes dos estudantes de Medicina”.
O estudo matricial, citado acima, foi desenvolvido no período de 2017 a 2019 e teve como objetivo geral verificar o conhecimento, a autoconfiança e as atitudes na gestão clínica da pessoa com EP, adquiridos pelos estudantes do internato de medicina de uma universidade pública no nordeste brasileiro. Nesta pesquisa matricial, foi utilizado um questionário para avaliação de conhecimento e uma pergunta aberta: “Quais as sugestões para o aprimoramento do ensino sobre excesso de peso?”. Os dados produzidos por essa pergunta originaram o material a ser apresentado como conteúdo principal deste estudo, respondendo ao objetivo de identificar estratégias educativas para enfrentar a invisibilidade da temática “excesso de peso no currículo de medicina”.
Trata-se de pesquisa descritiva, transversal e de abordagem quantitativa. Esse tipo de pesquisa permite trabalhar fenómenos e processos que não podem ser quantificados, possibilitando a explicação do contexto social no qual o indivíduo está inserido, permitindo inferir sobre os acontecimentos produzidos em certa realidade (Minayo, 2015).
Para responder à pergunta da pesquisa, foram convidados 32 estudantes que frequentavam o estágio de Clínica Médica 2, do internato do curso de medicina de uma universidade pública do nordeste brasileiro. Foram 15 participantes do sexo masculino e 17 do sexo feminino. A pergunta aberta foi respondida por 30 participantes. A escolha dos participantes foi intencional procurando a representatividade e considerando que a extensão do objeto e a complexidade do estudo devem orientar o tamanho da amostra na pesquisa qualitativa (Minayo, 2015; Taquette & Borges, 2020).
O período do internato foi escolhido para realizar o estudo, por se tratar da última etapa da formação do médico generalista, portanto, momento adequado para avaliar os conhecimentos adquiridos nos ciclos anteriores do curso. Tratou-se, desse modo, de uma amostra intencional.
O questionário, criado no formulário Google Docs, foi enviado por meio eletrónico aos participantes durante o estágio de Clínica Geral, após terem assinado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). O período da recolha das informações foi de junho a novembro de 2018.
Os dados produzidos, tomando-se por base a pergunta aberta, foram armazenados, transcritos, sistematizados, categorizados e analisados. A análise de conteúdo foi escolhida e, dentro dessa análise, utilizou-se a proposta de sistema de categorias, com o intuito de organizar e sistematizar os pontos que emergiram das respostas dos participantes.
A análise temática, de cunho qualitativo, deu especial ênfase à presença dos temas elaborados para responder à pergunta da pesquisa, em detrimento da frequência com que estes aparecem ao longo dos relatos. Com o intuito de reverter a invisibilidade da temática “excesso de peso no currículo de medicina”, com base nas sugestões dos participantes, o material foi codificado em categorias temáticas.
O estudo foi submetido ao Comité de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) - Plataforma Brasil - e aprovado com o Parecer nº 80644117.4.0000.5013. A fim de preservar o anonimato dos participantes, os seus nomes foram substituídos pela letra P (participante) seguida de numeração crescente.
2. Resultados e discussão
As doenças crónicas continuam a aumentar, apesar da forte evidência científica que sustenta os comportamentos saudáveis como meios eficazes de prevenção e tratamento (Blanchard, Shilton, & Bull, 2013).
A busca de estratégias é fundamental no processo de desenvolvimento curricular, especialmente no curso que objetiva desenvolver competências médicas de forma integrada e contextual. Ao ser abordado o tema “sugestões para o aprimoramento do ensino sobre EP no âmbito da graduação”, durante a pesquisa intitulada “O manejo clínico do excesso de peso: saberes dos estudantes de medicina”, emergiram das respostas dos participantes (internos) informações significativas que podem indicar caminhos importantes para a busca da excelência do plano pedagógico do curso. Estas informações foram traduzidas em duas categorias empíricas: 1) Incentivo ao estilo de vida saudável no curso de medicina; 2) Intervenções educativas visando melhorar as competências dos estudantes na abordagem do EP.
2.1 Incentivo ao estilo de vida saudável no curso de medicina
Mudar o estilo de vida é difícil e requer tempo e esforços contínuos. Torna-se necessário investimentos e a introdução de políticas saudáveis no ambiente da faculdade de medicina, sendo essencial para aumentar as possibilidades e superar a epidemia de doenças relacionadas com o estilo de vida, que está a dominar a saúde em todo o mundo (Malatskey et al., 2019).
Na pesquisa, verifica-se o relato sobre a influência de um currículo de medicina no estilo de vida do estudante , enquanto futuro modelo para a sociedade, e reforça a necessidade de melhorar os hábitos pessoais de saúde dos estudantes de medicina.
P4: Fazer, de cada aluno, um paciente, visto que o ganho de peso durante o curso é muito comum, muito em função da nossa péssima qualidade de vida. Em virtude da carga enorme de assuntos pra estudar, carga horária de aulas/estágios, pouco tempo livre e/ou muita correria, a grande maioria dos estudantes comem mal (lanches rápidos, por vezes, como sanduíches e pizzas), ficam com pouco tempo para uma atividade física regular (é possível adequar-se com muita disciplina, mas, dentre todas as obrigações que temos, quase sempre a academia é a escolhida para ser dispensada quando a corda aperta), qualidade do sono prejudicada, tudo que contribui para o ganho de peso e possível obesidade. Logo, se cada aluno, além de ser um estudante (tendo aulas sobre o tema), fosse um paciente, com certeza, seria um tema amplamente aprendido.
Comportamentos de saúde durante o curso de medicina são importantes, pois prevêem práticas de aconselhamento preventivo posteriores dos médicos. Pesquisas mostraram a associação entre as práticas de saúde dos médicos e sua capacidade de influenciar o comportamento do estilo de vida de seus pacientes (Oberg & Frank, 2009; Frank, Dresner, Shani, & Vinker, 2013). Revelaram também que uma prática pessoal mais saudável durante o curso prediz positivamente as práticas de aconselhamento preventivo dos médicos (Frank, Carrera, Elon, & Hertzberg, 2007). Malatskey et al. (2019) afirmaram que é improvável que os médicos sejam capazes de uma orientação eficaz, se não puderem sustentar comportamentos saudáveis. No entanto, poucas faculdades de medicina incorporaram a medicina do estilo de vida em seus currículos.
A inclusão da medicina do estilo de vida no ensino de medicina tem conquistado espaço na literatura médica. Esta intervenção curricular, durante o curso, é um passo estratégico para alterar o panorama do cuidado preventivo (Phillips, Pojednic, Polak, Bush, & Trilk, 2015). Uma maneira mais eficiente para introduzir a medicina de estilo de vida pode ser incorporá-la ao longo de todo o currículo de medicina (Malatskey et al., 2019).
À luz do reconhecimento de que os estudantes apresentam redução significativa na qualidade de vida com aumento do stresse e de que os médicos exercem um papel significativo na prevenção e na gestão de doenças relacionadas com os comportamentos de saúde, os resultados deste estudo corroboraram com a literatura e sugeriram que recursos e tempo mais substanciais precisam ser alocados para a medicina do estilo de vida durante o curso.
2.2 Intervenções educativas visando melhorar as competências dos estudantes na abordagem do EP
A análise das respostas dos participantes indicou forte apelo para as intervenções educativas, visando melhorar as competências dos estudantes na abordagem do EP. Estas medidas foram identificadas como medidas de curto prazo devido à sua maior facilidade de implementação. Algumas delas, a escola pesquisada teria condições de viabilizar em menos de um ano, visto que há um contexto favorável para mudanças.
As cinco subcategorias seguintes, ilustradas no Quadro 1, conferem sustentação a esta categoria.
2.2.1 Foco das intervenções educativas
No estudo, o foco da maioria das intervenções concentrava-se em melhorar as competências (conhecimento, habilidades e atitudes) em vários tópicos da abordagem do EP, sobretudo a prevenção e o tratamento, com abordagem biopsicossocial.
P25: Tratar sobre as opções terapêuticas, investir na prevenção [...]
P17: Incluir a temática de forma clara e objetiva, com ênfase no diagnóstico, tratamento farmacológico e não farmacológico [...].
P27: [...] precisa-se tratar os transtornos neuropsiquiátricos que podem levar à obesidade, desde ansiedade a outros sintomas que não se trata antes mesmo da pessoa ser obesa.
Não pode ser uma expectativa realista para os médicos tratar efetivamente a obesidade, a diabetes, a síndrome metabólica, a desnutrição hospitalar e muitas outras condições, desde que não sejam ensinadas durante o curso de medicina e residência, como reconhecer e tratar as causas nutricionais.
Estudos demonstraram que fatores como: reconhecimento como doença crónica; conhecimento da fisiopatologia, dos fatores biopsicossociais e das opções medicamentosas são decisivos na ajuda à pessoa com EP (Yanovski & Yanovski, 2014) e que a não abordagem deste assunto, durante o curso, dificulta o cuidado das pessoas com EP ao longo da vida profissional (Leedham-Green et al., 2016; Vitolins et al., 2012). Este dado é reforçado no VIII Report da Association of American Medical Colleges (Association Of American Medical Colleges [AAMC], 2007), que trata do projeto de ensino de medicina para a prevenção e o tratamento do EP e obesidade no curso.
Tratar efetivamente a obesidade e o EP não pode ser uma expectativa realista para os médicos se não houver oportunidades de aprendizagens para conteúdos fundamentais realçados nos resultados da pesquisa, como o tratamento farmacológico e não farmacológico da pessoa com EP. Os relatos mostram falta de oportunidades para a aprendizagem destes conteúdos e reforçam a necessidade de intervenções educativas urgentes.
P20: [...] deveríamos, assim, ter, pelo menos, uma ideia geral do que estes pacientes necessitam para referenciá-los aos especialistas ou a um possível tratamento.
Esses dados estão alinhados com os resultados de Medeiros (2019), que mostraram lacunas sobre os conhecimentos relacionados à conduta medicamentosa e nutricional após o diagnóstico, bem como o momento mais adequado de encaminhar ao especialista.
O Projeto Pedagógico do Curso (PPC) da instituição pesquisada, norteado pelas DCN (MEC, 2014), assim como a rede de atenção às doenças crónicas, enfatizam a necessidade do médico atuar de forma preventiva, fazendo o diagnóstico precoce das doenças ou do seu agravamento, e tratando de forma integral, além de encaminhar aqueles casos, que apresentam maior complexidade, para a rede de atenção especializada.
A importância da nutrição também foi citada pelos participantes:
P13: Capacitar melhor os académicos para fazer orientação nutricional.
A nutrição desempenha um papel fundamental na promoção da saúde, prevenção e tratamento de doenças. Estudos (Mogre, Stevens, Aryee, Amalba, & Scherpbier, 2018) demonstraram que, na maioria das escolas de medicina, não há integração da nutrição no currículo de graduação, o que leva à falta de conhecimento e incapacidade de praticar a nutrição clínica, desde a graduação até aos programas de residência médica.
2.2.2 Formato metodológico das intervenções educativas
O formato metodológico das intervenções educativas é decisivo no desenvolvimento das competências. Abordagens direcionadas para o conhecimento, habilidades e atitudes devem ser incentivadas.
A revisão de literatura desenvolvida por Mogre et al. (2016) mostrou que a maioria das intervenções desenvolvidas é direcionada para melhorar o conhecimento dos profissionais sobre o tema, e que essas intervenções proporcionavam pouca mudança no comportamento na prática. Além disso, o preconceito, algumas vezes não percebido, juntamente com o pouco tempo despendido na consulta, prejudicam o cuidado das pessoas com EP (Leedham-Green et al., 2016).
Os formatos de ensino e aprendizagem sugeridos pelos participantes incluíram metodologias tradicionais e ativas, como palestras, tutoriais de aprendizagem baseados em problemas, demonstrações, dramatizações, discussões de casos clínicos, aulas práticas.
P24: Capacitação do estudante por meio de aula/palestra sobre o correto manejo destes pacientes.
P14: Estudos, aulas, focar em casos clínicos e tratamento.
P4: [...] se cada aluno, além de ser um estudante (tendo aulas sobre o tema), fosse um paciente, com certeza, seria um tema amplamente aprendido.
P19: Abordar com mais afinco a temática, sedimentando o conhecimento mediante o acompanhamento de casos ambulatoriamente, o que em geral é pouco estimulado.
Uma revisão (Matharu et al., 2014) examinou os métodos de treinamento efetivo para a intervenção em sobrepeso e obesidade no curso de medicina. Os estudos utilizaram, com sucesso, uma variedade de métodos de ensino, incluindo treinamento na prática, palestras, dramatização e interação padronizada de pacientes para aumentar a competência dos estudantes de medicina em relação à abordagem do sobrepeso e da obesidade.
Observou-se ausência de sugestões incorporando educação baseada em tecnologia. A revisão realizada por Mogre et al. (2016) indicou que o uso das tecnologias da informação e comunicação (TIC) leva a ganhos significativos do conhecimento, atitudes positivas, aumento de habilidades de autoavaliação sobre aconselhamento nutricional e gestão clínica da pessoa com EP.
2.2.3 Características das intervenções educativas
Como característica da abordagem do EP, os participantes sinalizaram a necessidade de atividades transversais, interdisciplinares e interprofissionais, resultando numa prática colaborativa.
P9: Ela deve ter um espaço de discussão destinado a ela (excesso de peso), portanto, seria interessante incluir esse tema na graduação juntamente com outras patologias crónicas e de grande prevalência. Isso contribuiria para que a obesidade deixasse de ser relacionada apenas a um fator de risco, por sinal, muito determinante para desenvolvimento de outras patologias, e passasse a ser abordada como uma doença, que de facto é. O conhecimento sobre a doença é o principal caminho para melhorar a abordagem da mesma.
P15: [...] poderia se trabalhar com o tema de obesidade contando com a participação de outros profissionais da área de saúde, não médicos, que ofereceriam uma visão mais ampla e completa do assunto. Este tema deveria ser incluído nas aulas de Saúde e Sociedade, além de na Endocrinologia.
O EP e a obesidade apresentam-se de forma muito heterogénea e envolvem não apenas fatores biológicos e de causa individual, mas uma integração de fatores históricos, económicos, sociais e culturais (MS, 2014).
A Educação Interprofissional (EIP) durante o curso foi realçada, pelos entrevistados, como uma das maneiras de enfrentamento:
P18: [...] como futuros médicos, acredito que não sejamos capazes de lidar com o processo de sobrepeso sem o trabalho de equipe multiprofissional; porém, como temos pouquíssimo contacto com estes profissionais durante a graduação, acabamos por não ser capazes de reconhecer o limite que nossa capacidade atinge e o espaço que podemos direcionar para outros profissionais poderem complementar no cuidado com o paciente.
A abordagem do tema EP, como sugerem os internos, deve ter características capazes de desempenhar o cuidado necessário para tal, contando com a participação de várias disciplinas de medicina, além da Endocrinologia (interdisciplinaridade), bem como outras profissões - Educação Interprofissional (EIP).
Nos últimos anos, diante do reconhecimento de que as transformações no sistema educacional e de saúde devem ocorrer de maneira interdependente e articulada, diversas iniciativas de mudanças na formação das profissões relacionadas com a saúde recomendam a adoção da EIP para avançar numa nova configuração do trabalho. Ela destaca-se como uma estratégia para alcançar uma prática interprofissional na equipa de saúde, ou seja, uma prática de atenção à saúde na qual profissionais de diferentes áreas prestam serviços de modo colaborativo, orientados pela integralidade, envolvendo utentes, familiares e comunidades (World Health Organization [WHO], 2010, Frenk et al., 2010).
Nessa perspetiva, estudantes ou profissionais de duas ou mais profissões de saúde que aprendem com, de e sobre cada uma delas melhoram a colaboração e a qualidade da assistência, como bem demonstram pesquisas envolvendo o tema (WHO, 2010; Costa, 2016; Reeves, Perrier, Goldman, Freeth, & Zwarenstein, 2013).
Observa-se que as características das intervenções educativas apontadas pelos participantes são desafiadoras. Elas envolvem a formação docente, dimensão essencial para essa prática pedagógica, requerendo novos saberes e habilidades profissionais que orientem os seus estudantes (Batista, Vilela & Batista, 2015) até mesmo a aprenderem uns com os outros, como é o caso da educação interprofissional (WHO, 2010; Reeves et al., 2013).
2.2.4 Cenários possíveis para o desenvolvimento das atividades
Os participantes identificam a atenção primária e secundária como espaços que requerem melhor abordagem sobre o tema EP.
P26: [...] todas as práticas voltadas ao assunto foram realizadas em ambulatório de Endocrinologia, Cardiologia e Saúde da Criança e do Adolescente. Porém, o tema “obesidade”, em si, foi pouco trabalhado e ele perpassa todas as áreas da Medicina.
P6: Medidas eficazes na atenção básica contra a obesidade.
P10: Incluir dentro do bloco de Endocrinologia esse assunto é reforçar, durante as aulas práticas, a importância da temática para que se transforme em parte de nossa prática rotineira, já que é uma doença que faz parte do nosso dia a dia, mesmo não sendo a queixa principal de muitos desses pacientes.
Os estudantes do internato parecem mais propensos a assimilar a abordagem do indivíduo com EP, se eles observarem os seus professores e precetores modelarem o comportamento esperado. A tomada de medidas adequadas sobre cuidados nutricionais pelos modelos, proporcionou modelagem de papéis positivos nos participantes da pesquisa realizada por Scolapio, DiBaise, Schwenk, Macke e Burdette (2008).
Kaplan et al. (2018) demonstraram, por sua vez, que, para melhorar o tratamento da pessoa com EP, são necessários: o diagnóstico formal da doença; a priorização na consulta sobre o tema, assim como o acompanhamento com consultas regulares e a valorização dos programas de cuidado com o peso, além do conhecimento das medicações. A rotação num programa de cirurgia bariátrica mostrou-se mais promissora quando comparada às rotações noutras disciplinas clínicas (Banasiak & Murr, 2001).
Na pesquisa discutida nesse artigo, observa-se que os participantes têm a compreensão de que, para a aquisição das competências necessárias à abordagem do EP, a temática deve permear todo o curso e não ser apenas foco no internato. Infere-se que a prestação de cuidados relacionados ao EP melhora com o aumento do treinamento de habilidades e da quantidade de interações com as pessoas com EP.
P11: O tema deve ser incluído na graduação antes do início do internato, preferencialmente nas clínicas, para que seja abordado de forma detalhada, uma vez que é de grande importância.
Os participantes apontaram a atenção secundária (ambulatório de Endocrinologia, Cardiologia, entre outros) e a atenção primária em saúde como espaços importantes e ricos para o exercício prático sobre EP, especialmente no internato. Estas proposições vão ao encontro das DCN (MEC, 2014), que apontam a rede de cuidados de saúde primários como um campo potencial e necessário de prática colaborativa, no qual vários cursos de formação de profissionais de saúde deverão inserir os seus estudantes.
2.2.5 Avaliação de aprendizagem do estudante
A avaliação é parte constitutiva das intervenções educativas e propicia o acompanhamento dos avanços e das dificuldades na aprendizagem. Por esta razão, deve estar relacionada com os objetivos da aprendizagem, devendo assim, estar voltada para os processos e não somente para os resultados. Nas sugestões dos estudantes do internato, o apelo por mais avaliações sobre o tema surge de forma muito tímida.
Gontijo, Alvim e Castro Lima (2015) afirmaram que “nenhum método é capaz de isoladamente avaliar os múltiplos aspetos que envolvem o saber médico. Daí a necessidade da avaliação combinar diferentes instrumentos e múltiplas observações, com registos sistemáticos” (p. 211). Os estudos de Ockene et al. (2018) e de Fang et al. (2019) utilizaram o Exame Clínico Objetivo Estruturado (OSCE) como instrumento de avaliação das habilidades para a gestão clínica da pessoa com EP.
Uma importante ferramenta da avaliação formativa é o feedback, termo que se refere à entrega de informações com base na observação direta, visando melhorar o desempenho do estudante. Jug, Jiang & Bean (2019) observaram que a literatura sobre educação em medicina descreve vários métodos para dar feedback com suas facilidades e barreiras. Porém, ainda são poucos os artigos que descrevem a importância de receber feedback. Ressaltam ainda que dar e receber feedback torna-se mais fácil com a prática.
Conclusão
O reconhecimento apenas da importância, ou mesmo a incipiente presença do tema no currículo, são insuficientes para promover a necessária gestão clínica da pessoa com EP, e ampliar as possibilidades de superar a epidemia de doenças relacionadas com o estilo de vida.
As descobertas desse estudo direcionam para a necessidade do curso de medicina pesquisado investir em estratégias de mudança de comportamento do estudante de medicina como incentivo ao estilo de vida saudável no ambiente da faculdade de medicina, bem como, em medidas de resultados em curto prazo - Intervenções educativas visando melhorar as competências dos estudantes na abordagem do EP.
Para os participantes do estudo, a primeira medida torna-se necessária dado o inevitável stresse do curso de medicina. Assim, as escolas deveriam assumir a responsabilidade de ajudar os estudantes a lidar com essa condição, para melhor influenciar o comportamento do estilo de vida de seus futuros pacientes. Isso requereria a inclusão de um programa de incentivo ao estilo de vida saudável por meio de intervenções transversais e frequentes no currículo, enfatizando a importância dos comportamentos de saúde pessoal e das habilidades profissionais no apoio à mudança do estilo de vida.
O segundo grupo de estratégias refere-se à necessidade da construção de intervenções educacionais voltadas para competências na gestão clínica da pessoa com EP. Estas intervenções teriam como foco conteúdos que permitissem tratar efetivamente o EP, tais como o tratamento farmacológico e não farmacológico, e também reconhecer o momento mais adequado de encaminhar ao especialista.
É importante a criteriosa escolha de métodos e técnicas pedagógicos e de avaliação que, amparados em fundamentos teóricos que expliquem o desenvolvimento das competências necessárias para a gestão clínica de pessoas com EP, possam efetivamente interferir neste processo de adoecimento.
Os estudantes reconhecem a necessidade destas intervenções ocorrerem num contexto interdisciplinar e interprofissional, voltadas para o conjunto de discentes e docentes/precetores envolvidos na formação profissional.
Os resultados desta pesquisa levam a inferir que, embora a escola pesquisada tenha vindo a investir no processo de mudança curricular há quase duas décadas, as DCN ainda não foram traduzidas em um currículo fundamentado em evidências e baseado em competências. Permanece a necessidade da gestão de um currículo articulado e integrado às necessidades de saúde da população.
O estudo realizado apresenta limitações. Uma dessas limitações é que a interpretação de natureza subjetiva da pesquisa qualitativa admite que outros pesquisadores possam chegar a diferentes resultados. Outra limitação refere-se ao olhar da pesquisa baseada apenas nos estudantes, embora se tenha encontrado alta consistência com os dados da literatura.
Conflito de interresses
Os autores declaram que os dados aqui apresentados foram publicados, em versão mais sintetizada, nas atas do 9º Congresso Ibero-Americano em Investigação Qualitativa - CIAIQ2020 (Medeiros, Vilela, & Fregadolli, 2020) cuja replublicação foi autorizada.