Introdução
Na literatura, ao longo do tempo, o conceito de Qualidade de Vida (QV) tem assumido vários termos. Pelo sentido dinâmico, amplo, subjetivo e polissêmico segundo Ferrans (1996), encontramos para definir QV, o bem-estar, na perspetiva de Guyatt, Feeny & Patrick (1993), grau com que as pessoas aproveitam as possibilidades de suas vidas para Camellier, (2004), perceção de satisfação com a vida (Ferrans, 1996). De acordo com a Organização Mundial da Saúde, Qualidade de Vida (QV) é “a perceção do indivíduo de sua inserção na vida no contexto da cultura e sistemas de valores nos quais ele vive e em relação aos seus objetivos, expectativas, padrões e preocupações” (WOQoL Group, 1995). A singular e ampla dimensão da saúde e sua envolvência com diversos aspetos positivos e negativos da vida permitem distintas formas de avaliação, levando as pessoas numa determinada região a manifestarem diferentes níveis de saúde e de bem-estar, físico e emocional. Baseado nessas questões e na multidimensionalidade da QV, surgiu o conceito de Qualidade de Vida Relacionada à Saúde (QVRS), bem como uma proliferação de instrumentos que permitem a sua medição (Guyatt, Feeny & Patrick, 1993).
1. Enquadramento teórico
A monitorização do estado de saúde da população infantil/adolescência assume-se como uma das principais atividades em saúde pública, tornando-se mais relevante na medida em que elas são incapazes de se proteger em termos de saúde e das condições de vida desfavoráveis. Para além de, simultaneamente, permitir a compreensão e o conhecimento da saúde, no sentido de desenvolver políticas promotoras de saúde e bem-estar. A nível europeu ganhou relevância, entre 2001 e 2004, o desenvolvimento de um instrumento genérico sobre Qualidade de Vida Relacionada com a Saúde - KIDSCREEN-52©, que pode ser aplicado para medição, monitorização e avaliação de crianças e adolescentes, entre os 8 e os 18 anos de idade, e aos seus pais, no âmbito da saúde e da doença crónica (Matos, Gaspar et al, 2006; Ravens-Sieberer, Gosch, Abel, Auquier, Bellach, Bruil, Dur, Power, Rajmil & European KIDSCREEN Group, 2001; The KIDSCREEN Group Europe, 2006). Neste contexto, a avaliação da Qualidade de Vida (QV) nas crianças “é útil para identificar grupos de crianças e adolescentes que estão em risco, com problemas de saúde e pode, também, auxiliar na definição do peso associado a cada doença ou incapacidade específica” (Gaspar & Matos, 2008, p. 10).
As pesquisas sobre QV têm avançado de uma forma global, porém, em relação às crianças os estudos ainda não têm sido sistemáticos (Abreu, Marques, Martins, Fernandes & Gomes, 2016). A título exemplificativo, Wallander, Schmitt & Koot (2001), numa revisão sistemática da literatura, identificaram que dos 20.000 artigos sobre QV publicados entre 1980 e 1994, unicamente 3.050 se referiam às crianças, e a faixa etária menos estudada situava-se entre os 6-12 anos. Por outro lado, como referem Soares, Martins, Lopes, Brito, Oliveira & Moreira (2011), a participação das crianças na avaliação da QV é considerada vulnerável, o que requer a inclusão dos seus pais/cuidadores no processo de consentimento informado e participação nos estudos, de modo a salvaguardar-se o supremo interesse da criança. Não obstante, os investigadores necessitam de reconhecer que as crianças são capazes de desenvolver um autoconhecimento sobre o seu processo saúde-doença e de comunicá-lo.
Na mesma linha de pensamento, Ribeiro (2003) refere que, na avaliação da QV da criança, torna-se fundamental ter em conta a sua experiência subjetiva em vez das condições de vida, porque a relação entre as condições objetivas e o estado psicossocial é imperfeita e que, para conhecer a experiência da QV, é indispensável o recurso direto à descrição da própria pessoa sobre o que sente em relação à sua vida.
Atendendo-se que a saúde percebida é designada de Qualidade de Vida Relacionada com a Saúde (QVRS), sendo a mesma descrita como um constructo que inclui componentes do bem-estar e funções físicas, emocionais, mentais, sociais e comportamentais, da maneira como são percecionados pelos próprios e pelos outros, neste caso pelas crianças/adolescentes e/ou pelos pais (pai/mãe), o grupo de qualidade de vida da Organização Mundial de Saúde (1998) introduziu uma perspetiva transcultural (cross-cultural), segundo a qual, a QV é descrita como uma perceção individual acerca da posição da própria pessoa na vida, num contexto cultural e num sistema de valores onde a pessoa vive, e em relação aos seus objetivos, expectativas, metas e preocupações/interesses. Por conseguinte, a QVRS da criança e do adolescente deve ser considerada sob uma perspetiva ecológica que focaliza variados níveis de análise, a criança, os pais e a família, os pares, a comunidade e a sociedade (Gaspar, Matos, Ribeiro & Leal, 2006).
A QVRS da criança/adolescente tem vindo a constituir-se como objeto de estudo, todavia, ainda é escassa a literatura científica na área (Azevedo & Alves, 2016). As mesmas autoras referem, com base na sua revisão sistemática da literatura, que as evidências indicam que a QV apresenta melhores índices em crianças/adolescentes mais jovens, do género masculino, com melhores condições sociais e boas relações sociais. Segundo Theunissen et al. (1998) a avaliação da QVRS na população pediátrica pode ser imprecisa, dadas as possíveis dificuldades cognitivas relacionadas à interpretação dos itens. Assim, a perceção dos pais configura-se uma opção muito útil para a avaliação da qualidade de vida de crianças e adolescentes.
Este estudo tem por objetivo identificar que variáveis sociodemográficas referentes aos pais (pai e mãe) influenciam a sua perceção acerca da QVRS dos filhos.
2. Métodos
O estudo assumiu uma abordagem quantitativa, transversal e descritivo-relacional.
Amostra não probabilística por conveniência ou acidental, sendo constituída por 592 pais de crianças e adolescentes a frequentarem escolas do 2º e 3º ciclo do Ensino Básico do Agrupamento de Escolas do Distrito de Viseu, região centro de Portugal.
Relativamente aos pais (pai e mãe), observou-se uma idade média de 40,43 anos (±2,58 anos), sendo o sexo feminino (84,8%) o mais representativo e o sexo masculino fez-se representar em 15,2% da amostra.
Para este estudo considerou-se como variável endógena a QVRS das crianças na perspetiva dos pais (pai e mãe) e como variáveis manifestas as caraterísticas sociodemográficas dos pais (sexo, idade e grau de parentesco com a criança).
A recolha de dados decorreu no ano letivo 2018/2019 com a aplicação de um questionário para a caracterização sociodemográfica e a versão portuguesa da Escala KIDSCREEN - 52© (Gaspar & Matos, 2008), estruturado em dez dimensões: Saúde e atividade física; Sentimentos; Estado de humor global; Auto-perceção (sobre si próprio); Autonomia/tempo livre; Família e ambiente familiar; Questões económicas; Amigos (relações interpessoais de apoio social); Ambiente escolar e aprendizagem; Provocação (bullying) Cada uma das dimensões contém 3 a 6 questões, cujas respostas se enquadram numa escala tipo Likert de orientação positiva de 1 (nada/nunca) a 5 (totalmente/sempre), sendo que as pontuações mais altas indicam melhor QVRS relacionada à saúde.
Todas as dimensões apresentaram neste estudo valores de consistência interna muito bons (acima de 0,815) à exceção da dimensão Auto-perceção cujo valor se situou nos 0,575.
Os dados que resultam da colheita de dados foram tratados, através de SPSS versão 25 para windows, recorrendo a técnicas de estatística descritiva e inferencial conforme a natureza dos dados, para um nível de significância de 5%.
Foram tomadas as devidas diligências junto das entidades envolvidas no estudo, nomeadamente da Comissão de Ética, do Ministério da Educação e do Agrupamento de Escolas.
3. Resultados
No grupo de crianças e adolescentes verificou-se uma idade mínima de 9 anos e uma máxima de 17 anos, correspondendo a uma média de idade de 12,43 anos (±1,59 anos). O sexo masculino foi o mais predominante (51,5%) e a sua idade mínima é de 9 anos e a máxima de 16 anos. O sexo feminino representou 48,5% da amostra, cujas idades oscilaram entre os 10 e os 17 anos. Os rapazes, (M=12,47 ( 2,57 anos), são ligeiramente mais velhos que as raparigas (M=12,39 (1,58 anos) mas as diferenças não são estatisticamente significativas
A maioria das crianças e adolescentes (94,2%) residem numa família nuclear, coabitando com os dois pais (pai e mãe).
As dimensões da QVRS melhor percecionadas pelos pais (pai e mãe), através da sua média ponderada foram a Provocação (bullying) (média=84,24(17,44), seguindo-se a Família e ambiente familiar (média=82,66(13,81) e o Estado de humor global (média=81,79(14,76). As dimensões pior percecionadas foram o Ambiente escolar e aprendizagem (média=72,60(15,12) e os amigos (média = 72.65±17.02) , Os coeficientes de variação indicam uma dispersão moderada face às médias encontradas, em todas as dimensões da QVRS conforme a tabela 1 e dispersão baixa para o fator global da escala.
Qualidade de vida | N | Min | Max | M | DP | CV (%) | Sk/erro | K/erro |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Saúde e atividade física | 592 | 15.00 | 100.00 | 76.27 | 16.57 | 21.72 | -5,91 | 1.18 |
Sentimentos | 20.83 | 100.00 | 80.18 | 14.05 | 17.52 | -6.76 | 3.24 | |
Estado de humor global | 7.14 | 100.00 | 81.79 | 14.76 | 18.04 | -11.13 | 8.53 | |
Auto-perceção (sobre si próprio) | 35.00 | 100.00 | 76.39 | 14.38 | 18.82 | -2.76 | -8.84 | |
Autonomia/Tempo Livre | 15.00 | 100.00 | 75.96 | 17.48 | 23.01 | -4.56 | -0.83 | |
Família e Ambiente Familiar | 29.17 | 100.00 | 82.66 | 13.81 | 16.70 | -6.89 | 0.83 | |
Questões Económicas | 0.00 | 100.00 | 76.50 | 21.46 | 28.05 | -6.52 | 0.13 | |
Amigos | 12.50 | 100.00 | 72.65 | 17.02 | 23.42 | -3.47 | -0.79 | |
Ambiente Escolar e Aprendizagem | 4.17 | 100.00 | 72.60 | 15.12 | 20.82 | -4.54 | 2.66 | |
Provocação (Bullying) | 25.00 | 100.00 | 84.24 | 17.44 | 20.70 | -9.44 | 0.19 | |
QVRS global | 40.38 | 98.56 | 77.82 | 10.60 | 13.62 | -3.07 | -0.31 |
Não foram encontradas diferenças estatisticamente significativas entre o género dos pais (pai e mãe) e cada uma das dimensões da QVRS das crianças e adolescentes.
No que se refere à idade dos pais/mães verificou-se que interfere na perceção acerca da QVRS dos filhos dado se terem encontrado significâncias estatísticas em todas as dimensões com exceção da Autonomia/tempo livre (cf. Tabela 2).
Idade | ≤39 anos | 40-41 anos | ≥42 anos | X2 | P |
---|---|---|---|---|---|
Qualidade de vida | OM | OM | OM | ||
Saúde e atividade física | 332.55 | 303.59 | 245.68 | 24.283 | 0.000 |
Sentimentos | 320.68 | 298.29 | 266.37 | 9.305 | 0.010 |
Estado de humor global | 325.45 | 288.57 | 273.89 | 9.118 | 0.010 |
Auto-perceção (sobre si próprio) | 310.56 | 305.54 | 268.31 | 6.651 | 0.036 |
Autonomia/Tempo Livre | 293.28 | 297.59 | 298.74 | 0.109 | 0.947 |
Família e Ambiente Familiar | 323.44 | 287.09 | 278.16 | 7.563 | 0.023 |
Questões Económicas | 316.49 | 305.96 | 260.94 | 11.155 | 0.004 |
Amigos | 318.35 | 303.03 | 262.72 | 10.241 | 0.006 |
Ambiente Escolar e Aprendizagem | 351.20 | 293.67 | 237.53 | 40.539 | 0.000 |
Provocação (Bullying) | 282.07 | 287.78 | 324.70 | 7.124 | 0.028 |
QVRS global | 328.10 | 298.97 | 256.96 | 15.795 | 0.000 |
4. Discussão
O grupo de crianças/adolescentes foi maioritariamente masculino (51,5%), no qual a classe de idades mais frequente foi dos 12 aos 13 anos e cuja média de idades foi de 12,43 anos (±1,59 anos). Estes resultados diferem dos encontrados no projeto “Proteção e Promoção da Qualidade de Vida Relacionada com a Saúde em Crianças e Adolescentes - uma perspetiva Europeia de Saúde Pública (KIDSCREEN)”, suportado pela Comissão Europeia, referenciado por Abreu et al. (2016), onde a uma amostra de crianças e adolescentes tinham uma média de idades de 11,59±2,54 anos, maioritariamente do sexo feminino (62,6%). No que se refere aos pais, há conformidade entre os resultados do referido projeto e os do presente estudo, uma vez que, na utilização da versão parental do questionário, quem mais colaborou no seu preenchimento foram as mães (76,2%), tal como na amostra em estudo (84,8%). Similarmente, Chang & Yeh (2005), Jokovic, Locker & Guyatt (2004), Theunissen et al. (1998) reportaram que as mães tendem a estar mais envolvidas nos cuidados à criança, deste modo, é provável que estejam mais aptas a reportar a QVRS dos seus filhos do que os pais.
Gaspar, Ribeiro, Matos, Leal & Ferreira (2009) observaram no seu estudo que as crianças e adolescentes que vivem com os pais (pai e mãe) revelaram melhor QDV, tal como foi encontrado no presente estudo, constatando-se que, na maioria das dimensões, os valores de ordenação média mais elevados correspondem aos pais cuja criança/adolescente coabita com ambos os progenitores. Assim sendo, afigura-se como positivo o facto de a esmagadora maioria das crianças/adolescentes (94,2%) residir com os pais (pai e mãe).
Em relação à perceção dos pais acerca da QVRS dos filhos a média ponderada mais elevada correspondeu à dimensão Provocação (bullying) (média=84,24(17,44), seguindo-se a dimensão família e ambiente familiar (média=82,66(13,81) e a dimensão estado de humor global (média=81,79(14,76). Com o valor mais baixo destacou-se a dimensão Ambiente escolar e aprendizagem (média=72,60(15,12). Abreu et al. (2016) salientam que os pais revelam uma avaliação mais negativa nas dimensões, suporte social e grupos de pares, divergindo do presente estudo, pois a dimensão com um valor médio mais baixo ambiente escolar e aprendizagem, sugerindo que é nesta dimensão que os pais percecionam de forma mais negativa a QVRS dos seus filhos.
No presente estudo constatou-se que a única variável sociodemográfica dos pais que interferiu com significância estatística na sua perceção acerca da QVRS dos filhos foi a idade, sendo os pais mais novos (≤39 anos) os que obtiveram uma pontuação mais elevada acerca da perceção da QVRS, com exceção da dimensão Provocação (bullying). À semelhança dos estudos de Gaspar, Matos, Batista-Foguet (2010) e de Gaspar, Matos, Ribeiro (2010), foram os pais com menos idade os que percecionaram de forma mais positiva a QVRS dos seus filhos. Contudo, no estudo de Abreu et al. (2016) não se registaram diferenças entre os grupos etários na avaliação da QVRS das crianças e adolescentes na perspetiva dos pais.
Conclusão
Os resultados apurados indicam que tanto os pais como as mães percecionam de forma mais positiva a QVRS das crianças e adolescentes ao nível da provocação (bullying), da família, ambiente familiar e estado de humor global.
Os pais mais novos revelaram um valor de ordenação média mais elevada relativamente à perceção da QVRS dos filhos, no global e com significância estatística.
Os profissionais de saúde, designadamente os enfermeiros, devem continuar a promover estratégias que possam potenciar a QVRS das crianças e adolescentes nos mais variados contextos, dotando também os pais de conhecimento, assumindo-se como um adjuvante para a promoção da QVRS das mesmas, através da implementação de sessões de educação para a saúde dirigidas quer às crianças e adolescentes, quer aos pais e à comunidade educativa.
Na promoção da QVRS das crianças e adolescentes, devem ser considerados todos os fatores que possam colocar em risco o seu bem-estar, através de intervenções preventivas baseadas na avaliação da sua QVRS a todos os níveis. É que a saúde subjetiva e o bem-estar percebido são aspetos importantes na promoção da QVRS, e também são indicadores relevantes em áreas da saúde, nomeadamente Enfermagem. No domínio da saúde pública, a monitorização da QVRS torna-se um imperativo salvaguardando as diferenças individuais, sociais, familiares e culturais.