Introdução
A paragem cardiorrespiratória não hospitalar (PCRNH) assume-se como um problema importante de saúde pública nos países desenvolvidos (Grasner et al., 2016). Embora o seu prognóstico tenha melhorado com a melhoria do atendimento pré-hospitalar e dos cuidados pós-PCRNH, incluindo o aparecimento de protocolos de reperfusão precoce e gestão da temperatura-alvo (TTM), a sobrevida e os outcomes neurológicos ainda são desfavoráveis (Sunde et al., 2007).
Estudos observacionais demonstraram que a doença coronária é uma das principais causas de PCRNH, mesmo na ausência de elevação do segmento ST (EST) e que os doentes de PCRNH submetidos a angiografia coronária (AgC) têm um melhor prognóstico (Radsel, Knafelj, Kocjancic, & Noc, 2011; Vadeboncoeur, Chikani, Hu, Spaite, & Bobrow, 2018).
Atendendo à gravidade inerente ao quadro de PCRNH, houve a perceção, suportada por estudos observacionais, de que a AgC deve ser realizada nas primeiras horas após a PCRNH, independentemente da presença de EST (Dumas et al., 2010; Elfwén et al., 2018; Hollenbeck et al., 2014; Kern et al., 2015; Song et al., 2021). Esta visão foi adotada pelas diretrizes da American Heart Association (AHA) em 2015 (Callaway et al., 2015). Também o International Liaison Committee on Resuscitation (ILCOR) propôs o transporte de todas as pessoas vítimas de PCR para centros hospitalares com salas de hemodinâmica para avaliação de possíveis danos cardiovasculares (Peberdy et al., 2013; Noc et al., 2014). Contudo, atendendo à falta de consenso sobre o tempo para realização da AgC na PCRNH, afirmou que seriam essenciais estudos randomizados para determinar o momento oportuno de realização de AgC nesta população com vista a melhorar a sobrevida (Nikolaou et al., 2015).
Recentemente, o Coronary Angiography after Cardiac Arrest Trial (COACT) (Lemkes et al., 2019) randomizou mais de 500 pessoas vítimas de PCRNH sem EST para AgC precoce (< 2h) ou uma estratégia convencional (coronariografia tardia ou não realizada). Este ensaio não mostrou nenhum benefício na sobrevida a 90 dias nem melhoria neurológica com a AgC precoce, ao contrário de alguma da evidência proveniente dos estudos observacionais (Dumas et al., 2010; Elfwén et al., 2018; Hollenbeck et al., 2014; Kern et al., 2015; Song et al., 2021), e reacendeu a discussão sobre se a AgC imediata deveria ser a “estratégia padrão” após a PCRNH, na ausência de EST.
Os objetivos desta revisão sistemática da literatura (RSL) são avaliar a eficácia e segurança da realização sistemática de angiografia coronária (AgC) precoce (< 24h) em pessoas vítimas de PCRNH sem EST e estabelecer a importância do tempo para a realização da AgC nestas vítimas.
1. Métodos
A presente RSL será desenvolvida de acordo com o método do Joanna Briggs Institute (Tufanaru, Munn, Aromataris, Campbell, & Hopp, 2017) e reportada de acordo com o método Preferred Reporting Items for Systematic Reviews and Meta-Analyses (PRISMA) (Page et al., 2021).
Questão de Investigação
Sendo a evidência nesta matéria dispersa e, em certa medida, contraditória, procurámos sintetizar o impacto da coronariografia precoce nas vítimas pós-paragem cardiorespiratória sem elevação do segmento ST. Assim, definiu-se como questão de investigação: Qual é o efeito da coronariografia precoce nos outcomes nas vítimas pós-paragem cardiorrespiratória sem elevação do segmento ST?
Os critérios de inclusão serão apresentados de acordo com o método PI[C]OD (população, intervenção, comparação, resultados, desenho) (Akobeng, 2005; Eriksen & Frandsen, 2018; Santos, Pimenta, & Nobre, 2007) e está apresentado na tabela 1.
População | Vítimas de PCRNH ≥ 18 anos, sem EST |
Intervenção | Coronariografia precoce (até 24h) |
Comparação | Estratégia convencional (AgC após 24h ou não realizada) |
Outcomes | Primário: sobrevida a curto prazo (até 90 dias) Secundários: Sobrevida com estado neurológico favorável; Sobrevida a médio prazo (6 a 12 meses); Ocorrência de arritmias ventriculares; Eventos renais durante o internamento; Hemorragias. |
Desenho | Revisão sistemática: estudos clínicos randomizados (RCT’s) e observacionais Meta-análise: RCT’s |
Legenda: AgC-Angiografia coronária; PCRNH-Paragem Cardiorrespiratória Não Hospitalar; RCT’s-Ensaios Clínicos Randomizados; EST-Elevação do segmento ST
Critérios de Inclusão
Serão considerados os seguintes critérios de inclusão:
População: A população em estudo compreende indivíduos ≥ 18 anos, vítimas de PCRNH cujo eletrocardiograma inicial não apresente EST ou equivalente;
Intervenção: A intervenção em estudo será a realização de AgC precoce, que neste estudo foi definida como AgC realizada nas primeiras 24 horas, em consonância com a definição adotada pelas recomendações da Sociedade Europeia de Cardiologia para a Síndrome coronária aguda sem EST (Collet et al., 2021);
Comparador: No presente estudo, o comparador será a não-realização de AgC nas primeiras 24 horas. Este grupo controlo poderá incluir doentes que foram submetidos a AgC numa fase mais tardia (>24 horas) ou que não foram submetidos a AgC de todo;
Outcomes: Para serem considerados para inclusão, os estudos terão que reportar pelo menos um dos endpoints (primário ou secundários) em vítimas adultas de PCRNH sem EST com e sem AgC precoce.
Desenho: Para a RSL, os estudos poderão ser prospetivos ou retrospetivos, randomizados ou não randomizados. Caso a pesquisa devolva dois ou mais RCTs, os mesmos serão incluídos numa meta-análise. Nessa eventual meta-análise serão incluídos apenas ensaios clínicos randomizados (RCT’s), devido ao risco de viés inerente aos estudos observacionais.
O endpoint primário será a sobrevida a curto prazo. Para a presente RSL serão aceites estudos que reportem a sobrevida desde as primeiras 24 horas até aos primeiros 90 dias após a PRCNH. Os endpoints secundários incluirão a sobrevida com status neurológico favorável, a sobrevida a médio prazo (6 a 12 meses), ocorrência de arritmias ventriculares, eventos renais durante o internamento, hemorragias
Para serem incluídos na análise relativa ao estado neurológico, os estudos devem reportar a avaliação neurológica de acordo com a escala Cerebral Performance Categories (CPC), sendo que um grau CPC ≤2 será considerado como estado neurológico favorável (Perkins et al., 2015). Para inclusão na análise de sobrevida a médio prazo, os estudos terão que reportar dados sobre a sobrevida entre os 6 e os 12 meses.
As arritmias ventriculares consideradas nesta RSL serão a taquicardia ventricular mantida, com ou sem rebate hemodinâmico e com ou sem necessidade de cardioversão elétrica e a fibrilhação ventricular. Relativamente aos eventos renais durante o internamento, serão avaliados a necessidade de substituição da função renal e a presença de lesão renal aguda.
Serão consideradas complicações hemorrágicas durante o internamento apenas as hemorragias major.
Sendo expectável que os eventos intra-hospitalares sejam reportados menos frequentemente e de forma menos homogénea nos vários estudos, para permitir a inclusão de um maior número de estudos, não serão impostas definições estritas para os endpoints “lesão renal aguda” e “hemorragia major”, sendo aceites as definições propostas pelos autores dos estudos incluídos. As definições adotadas por cada estudo serão discriminadas em tabela.
Critérios de Exclusão
Os critérios de exclusão serão os seguintes: publicação duplicada (incluindo estudos diferentes relatando os mesmos resultados na mesma população), estudos publicados apenas na forma de um resumo ou apresentação em conferência, estudos que incluam vítimas que sofreram PCRNH com EST, exceto se forem reportadas análises de subgrupo para indivíduos sem EST, estudos incluindo vítimas de PCRNH de origem não cardíaca óbvia (por exemplo, afogamento, trauma, hemorragia, etc.), exceto se forem reportadas análises de subgrupo para PCRNH de etiologia presumivelmente cardíaca.
Não serão excluídos estudos com base no ritmo inicial (serão incluídos ritmos desfibrilháveis e não-desfibrilháveis) nem na Escala de Coma de Glasgow [(GCS), serão incluídos pacientes comatosos e não comatosos].
Estratégia de Pesquisa
O objetivo da pesquisa na literatura será a identificação de artigos primários publicados nos últimos 5 anos, que cumpram os critérios previamente definidos.
Inicialmente desenvolveu-se uma pesquisa restrita à MEDLINE (via PubMed) (Tabela II), com vista a identificar artigos sobre o presente tema e desta forma, através da análise dos seus títulos, resumos e palavras-chave, refinar os termos e frases booleanas a utilizar na pesquisa final. Posteriormente, realizar-se-á uma pesquisa nas bases de dados Cochrane (Cochrane Central Register of Controlled Trials), Scopus, CINAHL e JBI, assim como também na “literatura cinzenta” nomeadamente no Repositório Científico de Acesso Aberto de Portugal (RCAAP) e no OpenGrey.
Após exclusão das publicações duplicadas, dois revisores independentes analisarão o título e resumo de todas as publicações e excluirão aquelas que claramente não se refiram à questão em análise. Os restantes artigos serão cuidadosamente analisados na íntegra pelos dois revisores para avaliar a elegibilidade. Em caso de desacordo, será solicitada opinião a um terceiro revisor.
Pesquisa | Fórmula de pesquisa | Nº de revisões obtidas |
---|---|---|
#1 | (OHCA[Title/Abstract]) OR (((((Death, Sudden, Cardiac[MeSH Terms]) ) OR ( Out-of-Hospital Cardiac Arrest[MeSH Terms])) OR (Out-of-Hospital heart Arrest[MeSH Terms])) OR (Heart Arrest[MeSH Terms]))) AND (((((PCI[Title/Abstract]) OR (CAG[Title/Abstract])) OR (myocardial revascularization[Title/Abstract])) OR (myocardial revascularisation[Title/Abstract])) OR ((((((((percutaneous coronary revascularization[MeSH Terms]) OR (percutaneous coronary revascularisation[MeSH Terms])) OR ( Percutaneous Coronary Intervention[MeSH Terms])) OR (cardiac catheterization[MeSH Terms])) OR (cardiac catheterisation[MeSH Terms])) OR (heart catheterization[MeSH Terms])) OR (heart catheterisation[MeSH Terms])) OR (coronary angiography[MeSH Terms]))) | 522 |
#2 | Filters: Publication date from 2016/01/01; English; French; Portuguese; Spanish | 511 |
Após a pesquisa, todas as citações identificadas serão transferidas para o Endnote V7.7.1 (Clarivate Analytics, PA, EUA) e os duplicados removidos.
Análise de Viés e Grau de certeza da evidência
A qualidade dos estudos e risco de viés será avaliada por dois revisores independentes, com recurso a um terceiro em caso de discordâncias, de acordo com a metodologia Cochrane. O viés de publicação será avaliado pela análise visual dos gráficos funel plot. Para identificar possíveis vieses de publicação, confirmar-se-á se os resultados relatados nos ensaios correspondem às análises pré-especificadas no respetivo protocolo.
O risco de viés dos estudos observacionais será avaliado através da utilização da ferramenta Risk Of Bias in Non-randomized Studies - of Interventions (ROBINS-I) (Sanderson, Tatt, & Higgins, 2007; Sterne et al., 2016). O método Grading of Recomendations Assessment, Developing and Evaluation (GRADE) será usado para avaliação do grau de certeza da evidência (Brozek et al., 2009).
Extração dos dados
O endpoint primário do presente estudo será a sobrevida a curto prazo. Os endpoints secundários incluirão sobrevida com estado neurológico favorável, sobrevida a médio prazo, lesão renal aguda (LRA), necessidade de terapia de substituição renal (TRS), arritmias ventriculares e hemorragia major durante o internamento hospitalar.
As características dos participantes (incluindo idade, género, fatores de risco cardiovascular e doença cardiocerebrovascular prévia) e os detalhes relativos à PCR [testemunhada versus não testemunhada, ritmo inicial, TTM e tempo até retorno da circulação espontânea (RCE)] serão também recolhidos e analisados.
Análise Estatística
Para o tratamento estatístico dos dados incluídos na meta-análise será utilizado o software Cochrane Collaboration’s Review Manager (RevMan versão 5.4).
As probabilidades de acerto odds ratio (OR) e intervalos de confiança de 95% (IC) serão estimados a partir de dados brutos dos RCT’s. Será utilizado o modelo de efeitos fixos sempre que a heterogeneidade do estudo seja baixa e o modelo de efeitos aleatórios sempre que exista heterogeneidade significativa. A heterogeneidade será avaliada pela estatística I 2. Serão realizadas análises de sensibilidade para avaliar os resultados de AgC emergente (<2h) e para analisar os subgrupos de doentes com ritmos desfibrilhável / não-desfibrilhável, comatosos / não-comatosos e submetidos / não-submetidos a TTM.
Síntese dos dados
As características dos estudos incluídos (incluindo definição de AgC precoce e grupo controlo, critérios de inclusão e exclusão, número de doentes incluídos em cada grupo) serão apresentados sob a forma de tabela. As características da população, do evento e do tratamento serão apresentadas separadamente, sob a forma de tabela, para os estudos randomizados e observacionais. Para os estudos randomizados serão apresentados os dados conjuntos de todos os estudos, incluindo análise estatística global para deteção de eventuais diferenças entre os grupos, enquanto para os estudos observacionais serão apresentados os dados individuais de cada estudo.
Os resultados da meta-análise dos RCT’s serão apresentados sob a forma de Forest Plot para cada um dos endpoints. Os resultados dos estudos observacionais serão sintetizados de forma visual, numa forma gráfica semelhante a um Forest Plot, mas não será gerada nenhuma análise estatística.
2. Discussão
Este estudo pretende congregar e analisar de forma crítica a evidência relativa à realização de AgC precoce nas vítimas de PCRNH sem EST no contexto da prática clínica atual, permitindo assim uma reflexão e eventual reformulação do método de abordagem a este tipo de situação clínica. A PCRNH é por inerência uma situação clínica crítica. Assim, é fundamental que a sua abordagem seja o mais simples e mais eficaz possível; é importante identificar e resolver o fator precipitante o mais precocemente possível, por forma a reverter o quadro antes que ocorram lesões de órgão irreversíveis (Atwood, Eisenberg, Herlitz, & Rea, 2005).
O eletrocardiograma de 12 derivações é um exame básico e inócuo, de execução e interpretação imediatas e que fornece dados fundamentais no contexto de PCRNH, como as alterações do ritmo cardíaco e a deteção de isquemia (Miranda, Lobo, Walsh, Sandoval, & Smith, 2018). Na presença de EST, à semelhança das recomendações para a abordagem do enfarte agudo do miocárdio (EAM) com EST sem PCRNH, a realização de AgC deve ser agilizada o mais depressa possível e obrigatoriamente nas primeiras 2h após o diagnóstico; se tal não for logisticamente possível, está indicada a realização de terapêutica fibrinolítica imediata (Ibanez et al., 2018). No contexto de EAM sem EST, as recomendações preconizam que doentes com instabilidade hemodinâmica ou de ritmo sejam também referenciados para AgC emergente (Collet et al., 2021), contudo, na vasta maioria dos casos de PCRNH sem EST não é possível estabelecer ad initium se a isquemia miocárdica foi, de facto, o fator precipitante (Collet et al., 2021). Tradicionalmente, na ausência de outra causa óbvia para o quadro, o doente era referenciado para AgC emergente (Callaway et al., 2015), embora esta prática fosse baseada maioritariamente em estudos não randomizados (Dumas et al., 2010; Elfwén et al., 2018; Hollenbeck et al., 2014; Kern et al., 2015; Song et al., 2021). Após o surgimento do primeiro grande ensaio clínico randomizado da era moderna sobre o tema, o estudo COACT (Lemkes et al., 2019), impõe-se uma reflexão e reapreciação da literatura já publicada. A constatação de que a realização de AgC precoce não traz benefício no contexto de PCRNH poderá implicar uma reformulação radical da prática clínica, não só evitando a orientação imediata do doente crítico para o laboratório de hemodinâmica com todos os riscos e dificuldades logísticas que isso implica, mas também privilegiando uma cascata diagnóstica mais cuidada e a instituição mais precoce e eficaz das medidas de suporte e intervenções com benefício demonstrado nesta população, como por exemplo a TTM em doentes comatosos (Abella, Phil, & Gaieski, 2019; Bernard et al., 2002; Lascarrou et al., 2019; THACASG, 2002). Por outro lado, caso a maioria da evidência pese a favor da AgC precoce, isso poderá implicar a protocolização de procedimentos, no sentido de haver eficácia e uniformidade de cuidados.
Conclusão
Esta revisão sistemática prevê sintetizar os resultados dos estudos realizados sobre a realização emergente de angiografia coronária em pessoas vítimas de paragem cardiorrespiratória não hospitalar. Com a análise sistemática pretende-se contribuir para um conhecimento mais profundo sobre a temática em estudo.
Destaca-se que este trabalho poderá contribuir para o refinamento e uniformização do método de abordagem ao doente com paragem cardiorrespiratória sem elevação do segmento ST.