Introdução
A definição de família ao longo dos anos sofreu influências do meio social, perdendo as características do modelo patriarcal, sendo hoje compreendida com base nos laços afetivos dos indivíduos. A adoção é um instituto muito antigo, uma vez que sempre existiram filhos destituídos do poder familiar e de pais que não podiam ciar, mas que em situações normais houveram famílias com interesse em ter filhos e com disponibilidade pela adoção.
No Código Civil de 1916, a adoção era levada a efeito por escritura pública e o vínculo de parentesco era estabelecido apenas entre adotante e adotado. Com o surgimento da Constituição de 1988, em seu artigo 227, parágrafo 6º, foi excluída a diferença entre filhos adotivos e os por filiação. Por sua vez, a Lei nº 8.069/1990 passou a tratar a adoção como medida irrevogável, sendo concedida apenas por decisão/ sentença judicial, desvinculando o adotado da família biológica para todos os efeitos.
Atualmente, existem diversos tipos de adoção, mesmo com a lei de adoção em vigor, a unilateral, à brasileira e/ou regular. De acordo com Dias (2015). A adoção unilateral é admitida nos casos em que o cônjuge ou companheiro adota o filho do outro, ocorrendo, assim, a exclusão de um dos genitores biológicos, que é substituído pelo adotante, permanecendo o vínculo de filiação com o outro genitor.
Além da adoção unilateral existe ainda “à brasileira”, decorre do registro realizado pelo pai que não é seu, como se o fosse, ou seja, neste caso não relação de consanguinidade, mas a vontade de registrar filho de outrem, seguindo os procedimentos legais. Apesar de esse tipo de adoção ser considerada ilegal, muitas vezes acaba ocorrendo o perdão judicial, tendo em vista, a motivação afetiva que envolve essa forma de agir.
Por fim, tem-se a adoção regular ou adoção legal, prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente, em que os interessados fornecem seu nome para que sejam incluídos na lista de avaliação de aptidão à adoção. Após todo o trâmite da ação judicial haverá a concessão da adoção.
Vale destacar que a adoção legal retira todo vínculo com a família biológica, tendo o adotado os direitos da sua relação com o (s) adotante (s). No que tange a esse assunto, a jurisprudência vem reconhecendo a possibilidade de aquele que foi adotado, regularmente, ter o direito à herança em relação a sua filiação biológica, mesmo não havendo registro e multiparentalidade. Porém, conforme entendimento, a paternidade socioafetiva, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação.
Importante mencionar que embora a adoção faça com que os vínculos da família biológica sejam rompidos, muito se tem a pesquisar sobre os demais direitos envolvidos nesta relação, assim como também vários princípios fundamentais inerentes a pessoa humana deverão ser ponderados a fim de não serem suprimidos. Por não haver uma previsão precisa da legalidade em relação a tal temática, faz necessário estudos mais robustos sobre o tema a fim de solucionar o problema do direito a herança de pais biológicos de filhos adotivos.
1. Desenvolvimento
O surgimento da família veio com a necessidade do homem em estabelecer relações afetivas de forma estável e constante. A família ficou entendida como aquelas decorrentes de casamento formal, trazendo uma ausência de amparo, de apoio as pessoas que se uniam sem formalidade legal, e assim não recebiam proteção do Estado.
Com isso e apresentando estas dificuldades, com a Constituição Federal de 1988 houve a evolução da definição de família, havendo muitas mudanças jurídicas, enfatizando os direitos advindos da dignidade da pessoa humana. Vale destacar esse marco no Brasil, sendo assim reconhecida a igualdade e isonomia entre homens e mulheres, estabelecendo proteção igualitária aos cônjuges e filhos seja pelo casamento ou por adoção.
Essas mudanças trouxeram a importância dos vínculos de parentalidade, surgindo a filiação socioafetiva, que é conhecida como a relação direta de parentesco que existe entre duas pessoas e que atribui entre duas pessoas direitos e deveres. Neste sentido existem algumas formas de filiação: socioafetiva, natural ou biológica e jurídica ou civil.
A filiação conhecida como biológica é aquela em que o indivíduo tem vínculo genético, de consanguinidade, independente de relação afetiva. A filiação jurídica decorrente de uma ação judicial, conhecida como adoção judicial, regida pela lei nº 12.010/09, a fim de ofertar a legalidade do ato de adotar. Onde ocorre uma preparação para que as partes criem vínculos e tenham convicção de sua escolha. A filiação socioafetiva é verdade aparente e do direito de filiação, consagra a igualdade entre a filiação biológica e a socioafetiva.
A adoção é considerada uma espécie de filiação não-biológica regulamentada tanto pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, quanto pelo Código Civil, cujo parentesco é considerado civil, como segue: “Art. 1.593. O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem”. (BRASIL, 2002).
Independente da consanguinidade ou não o direito das sucessões estará presente, como sendo aquele que transmite de uma pessoa a outra através da morte, por sua última vontade ou por determinação legal. A sucessão legítima é a que advém por força de lei, onde os membros familiares são os chamados para a sucessão, na vocação hereditária. Já a sucessão testamentária é através de testamento, aqui os beneficiários da herança podem ser tanto legítimos como também não legítimos. Na situação em que se deseja beneficiar um filho específico, para depois de seu falecimento, a forma adequada é através de testamento, mas havendo herdeiros necessários, ou seja, descendentes, ascendentes ou cônjuge/companheiro, a parte disponível fica limitada à metade do patrimônio do testador, que corresponde a legítima. (NADER, 2016)
A sucessão mista é aquela em que resulta da combinação das sucessões legítima e testamentária; ou seja, é quando o titular do patrimônio faz testamento dispondo parte de seu patrimônio disponível à algumas pessoas determinadas, assim, haverá tanto herdeiros legítimos quanto testamentários. (NADER, 2016).
Uma forma de estabelecer vínculos de filiação entre indivíduos é a adoção, equiparando-o em obrigações e direitos com aqueles estabelecidos de forma natural, ou seja, o adotado tem os mesmos direitos e garantias do filho legítimo, no que diz respeito a relação socioafetiva e direitos patrimoniais.
De acordo com Zeglin (2015), o direito sucessório decorrente da relação com os parentes biológicos deixa de existir, pois com a adoção esses direitos serão exercidos dentro da nova família do adotado, tendo-se em vista a igualdade trazida pela Constituição Federal/1988 às diferentes origens de filiação, o filho adotivo terá o direito a herdar em igual condição com os filhos biológicos, sendo vedado qualquer tipo de discriminação em decorrência da origem de filiação.
O artigo 41 do Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece os direitos adquiridos pelo filho adotivo:
Art. 41. A adoção atribui a condição de filho ao adotado, com os mesmos direitos e deveres, inclusive sucessórios, desligando-o de qualquer vínculo com pais e parentes, salvo os impedimentos matrimoniais. [...]
§ 2º É recíproco o direito sucessório entre o adotado, seus descendentes, o adotante, seus ascendentes, descendentes e colaterais até o 4º grau, observada a ordem de vocação hereditária. (BRASIL, 2002).
De acordo com tal artigo, o filho adotivo não recebe herança dos pais biológicos, pois ao ser adotado o vínculo com sua família biológica é rompido, não havendo direito referente a família de origem. Desta forma, ocorrendo o falecimento dos pais biológicos da criança ou adolescente que foi adotada, não terá este direito de receber herança por morte, devido ao rompimento do vínculo biológico.
Mesmo havendo este posicionamento legal diante das normas previstas no Estatuto, a doutrina e jurisprudência se divergem. Zeglin (2015) afirma que todos têm o direito a buscar pela sua origem biológica, mesmo que esse filho já possua uma filiação socioafetiva, assim, não seria justo que por isso fosse privado de ter reconhecido seu direito patrimonial no que tange aos pais biológicos, em virtude de ir ao encontro do princípio da dignidade da pessoa humana, da isonomia e do melhor interesse da criança e do adolescente.
Porém a discussão sobre esta questão é que a desvinculação biológica em casos de adoção não é absoluta, uma vez que os tribunais vêm decidindo em favor do reconhecimento da filiação biológica, e de todos os direitos que lhe são inerentes, inclusive à herança.
Nesse sentido, a Juíza de Direito da 1ª Vara de Família, Órfãos e Sucessões de Sobradinho/DF, Dra. Ana Maria Gonçalves Louzada afirma que a dignidade da pessoa humana deve ser o princípio e o fim do Direito (CASSETTARI, 2015, p. 195), como segue:
Se nossa realidade se mostra diversa da grande maioria das famílias, esse motivo não é o bastante para que não tenhamos direitos. A dignidade da pessoa humana deve ser o princípio e o fim do Direito. O ser humano deve ser sempre o que de mais relevante cabe ao Direito tutelar. Se o deixarmos ao desabrigo, estaremos sendo cúmplices de rasgos na alma. O não fazer, o se omitir, também é uma forma cruel de abolir direitos. (CASSETTARI, 2015, p. 195)
De tal modo, há julgados no sentido de reconhecer o direito à herança, quando a adoção for considerada superveniente ineficaz, conforme o entendimento do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais:
APELAÇÃO CÍVEL - FAMÍLIA - ADOÇÃO - ATO DECLARADO INEFICAZ - PATERNIDADE BIOLÓGICA - SUCESSÃO - LEGITIMAÇÃO PARA SUCEDER - LEI VIGENTE. 1. A legitimação para suceder rege-se pela lei vigente ao tempo da morte do autor da herança. 2. Enquanto perdurou o estado de filiação adotiva, o adotado fez jus a todos os direitos oriundos dessa condição. 3. Não caracteriza enriquecimento ilícito o fato de o filho concorrer à sucessão dos bens do pai biológico, mesmo já tendo herdado de sua mãe adotiva, se o ato de adoção foi supervenientemente declarado ineficaz. (MINAS GERAIS, 2003).
Em outro viés vem a decisão do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina que enfatiza que a preexistência da paternidade socioafetiva não traz impedimento a paternidade biológica, com todas as consequências dela decorrentes, como segue:
PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS INFRINGENTES. AÇÃO DECLARATÓRIA DE INEXISTÊNCIA DE FILIAÇÃO E ANULAÇÃO DE REGISTRO CIVIL C/C INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. PATERNIDADE SOCIOAFETIVA MANTIDA NA SENTENÇA. RECONHECIMENTO DA PATERNIDADE BIOLÓGICA, SEM EFEITOS JURÍDICOS E PATRIMONIAIS. REFORMA DA SENTENÇA, POR MAIORIA DE VOTOS, PARA RECONHECER A PATERNIDADE BIOLÓGICA EM TODOS OS EFEITOS JURÍDICOS. RECURSO DESPROVIDO. A preexistência da paternidade socioafetiva não impede a declaração judicial da paternidade biológica, com todas as consequências dela decorrentes, inclusive as de natureza patrimonial. (SANTA CATARINA, 2016).
Conforme visto nas decisões o que deve prevalecer é o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, além da dignidade da pessoa humana, buscando avaliar o caso concreto do filho adotivo que busca o direito à herança, conforme prevê o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande Sul, entendendo que possuir um pai registral não deve dificultar o reconhecimento da paternidade biológica, como segue:
APELAÇÃO CÍVEL. INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE C/C ANULAÇÃO DE REGISTRO CIVIL. INVESTIGANTE QUE CONTA COM PAI REGISTRAL. RESULTADO DE EXAME DE DNA QUE APONTA PROBABILIDADE SUPERIOR A 99,99% DE QUE O INVESTIGADO SEJA O PAI BIOLÓGICO DO INVESTIGANTE. SENTENÇA QUE SOMENTE DECLARA A PATERNIDADE BIOLÓGICA, SEM CONCEDER, CONTUDO, OS REFLEXOS NA ESFERA REGISTRAL E PATRIMONIAL. PATERNIDADE REGISTRAL QUE NÃO PODE INIBIR AS REPERCUSSÕES DA INVESTIGATÓRIA, EM DETRIMENTO DOS 64 INTERESSES DO INVESTIGANTE. 1. Considerando que o índice de probabilidade de paternidade apontado no resultado do exame de DNA realizado foi superior a 99,99999%, é indubitável que o investigado é mesmo o pai biológico do autor, impondo-se, pois, o julgamento de procedência do pedido investigatório, com todas as suas repercussões. O fato de o investigante possuir um pai registral não deve constituir óbice à procedência de tal pleito, com seus reflexos na esfera registral e patrimonial.
2. Por via de regra, o argumento da prevalência da paternidade socioafetiva em relação à biológica somente é passível de acolhimento em prol do filho, quando for de interesse dele preservar e manter o vínculo parental estampado no registro de nascimento, e não contra o filho. A exceção à mencionada regra se dá em circunstâncias muito especiais, quando a relação socioafetiva é consolidada ao longo de toda uma vida - o que não se verifica no caso em exame, em que o autor possuía apenas 24 anos de idade à época do ajuizamento da ação. POR MAIORIA, DERAM PROVIMENTO. (RIO GRANDE DO SUL, 2016).
O mesmo ocorre em relação a decisão do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, compreendendo que a jurisprudência aponta por reconhecer ambos os vínculos de filiação, como segue:
APELAÇÕES CÍVEIS. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE POST MORTEM. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA. IRRESIGNAÇÃO DOS RÉUS. PEDIDO DE DESISTÊNCIA ATINENTE A UM DOS RECURSOS. POSSIBILIDADE, CONFORME PREVISÃO DO ARTIGO 998 DO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. NÃO CONHECIMENTO DO RECLAMO QUE SE IMPÕE. INTERPOSIÇÃO DE RECURSO PELO ESPÓLIO DO FALECIDO. ILEGITIMIDADE PASSIVA. RECURSO NÃO CONHECIDO EM RELAÇÃO A ESTE APELANTE. MÉRITO. PREVALÊNCIA DA PATERNIDADE SOCIOAFETIVA SOBRE O VÍNCULO BIOLÓGICO. IMPOSSIBILIDADE. JURISPRUDÊNCIA MODERNA QUE APONTA PELA VIABILIDADE DE RECONHECER AMBOS OS VÍNCULOS DE FILIAÇÃO CONCOMITANTEMENTE. PRECEDENTE DO STF EM SEDE DE REPERCUSSÃO GERAL CONSAGRANDO A TESE DA MULTIPARENTALIDADE. ATRIBUIÇÃO DOS EFEITOS PATRIMONIAIS, ADEMAIS, QUE CONSTITUI CONSEQUÊNCIA DO RECONHECIMENTO DA PATERNIDADE. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO CONHECIDO, COM EXCEÇÃO DO INTERPOSTO PELO ESPÓLIO, E DESPROVIDO. (SANTA CATARINA, 2017).
De acordo com a avaliação e observação dos julgados, e diante do posicionamento doutrinário, é possível perceber que se trata de algo novo e que ainda não foi regulamentado, porém com os avanços sociais e as mudanças nos tipos de famílias, surge assim a necessidade de mudanças jurisprudenciais conforme os casos concretos apresentados ao judiciário, de forma a levar em consideração os costumes e os princípios norteadores do direito.
Conclusão
Ao longo de toda a pesquisa a abordagem focava no direito da criança e/ou adolescente receber herança de pai biológico, tendo aquela sido adotada e em se tratando de adoção a lei é clara ao estabelecer que quando a mesma é concedida, os vínculos biológicos são suprimidos em relação aos vínculos de adoção em relação aos direitos sucessórios.
Cabe mencionar aqui que assim como a adoção rompe os vínculos do adotado, o artigo 41 do Estatuto da Criança e do Adolescente, em situação de multiparentalidade aplica uma relativização, já que nesses casos o que deve ser observado é o melhor interesse da criança ou do adolescente, que por sua vez busca a origem biológica, sem que pereça o vínculo socioafetivo com a família adotiva. O princípio da dignidade da pessoa humana deve sobrepor, em que pese o direito da criança ou do adolescente, podendo gerar direitos patrimoniais de recebimento de duas heranças, cada uma de uma fonte (adotiva e biológica).
A justificativa de que o recebimento de duas heranças seria ilegal ou imoral, seria irrelevante, uma vez que o filho tem que ter suas duas filiações, que é mais abrangente que o fato do recebimento patrimonial das heranças. Tendo em vista o reconhecimento da multiparentalidade, quando há o registro civil de paternidade dupla poderá o filho receber referente às filiações, e por utilização dos princípios gerais do direito, por analogia, é possível o filho adotivo receber o patrimônio (herança) em relação à família biológica sem ter a necessidade de haver o registro duplo.
Conforme entendimento jurisprudencial, a paternidade socioafetiva, registrada ou não, não impede que haja o reconhecimento do vínculo, com efeitos jurídicos próprios. Neste sentido, o filho adotivo teria direito à herança (patrimônio) deixado pelo pai biológico, mesmo não havendo o registro de multipaternalidade.