Introdução
A pele é o maior sistema do corpo humano. Desempenha funções de proteção contra agentes externos, regulação da temperatura corporal, funções sensoriais, metabólicas e excretoras (Carneiro, Sousa, & Gama, 2010; Bohjanen, 2015).
No entanto, a pele está sujeita a sofrer agressões de qualquer tipo que poderão prejudicar o normal funcionamento do corpo. As feridas traumáticas, são um dos exemplos que, por serem irregulares e pouco limpas, constituem um desafio constante para quem delas cuida (Carneiro et al., 2010).
No processo de cicatrização fisiológica da ferida verifica-se a sucessão progressiva de três fases (fase inflamatória, proliferativa e de remodelação). Existem variados fatores locais e sistémicos que interferem com uma ou mais fases neste processo e que podem afetar a cicatrização tornando-as feridas complexas (FC) (Guo & Dipietro, 2010 e Rice, Hamblin, & Herman, 2012).
As Feridas Complexas (FC) estão associadas a um processo complicado de restauração funcional, devido à presença de patologias subjacentes que tornam esse processo moroso, de difícil solução, com significativa diminuição da Qualidade de Vida (QV) do doente e com aumento de custos, quer para o próprio, quer para o sistema de saúde que o acompanha (Collière, 2003; Baranoski & Ayelo, 2005; Cunha, 2006).
Podemos, então, definir as FC como feridas que ficam estagnadas em qualquer fase da cicatrização, por um período de quatro a seis semanas ou mais e que, portanto, não evoluem para a cicatrização (Collière, 2003; Tsourdi, Barthel, Rietzsch, Reichel, & Bornstein, 2013; Frykberg & Banks, 2015).
O diagnóstico diferencial de uma FC, dada a complexidade de fatores que as envolvem, é, por isso, amplo e, habitualmente, demorado. Assim quando estamos perante uma FC temos de avaliar os fatores clínicos que influenciam a evolução das feridas, o que implica uma abordagem de múltiplos fatores, locais e sistémicos (figura 1).
Para que essa abordagem seja a mais correta, é importante identificar quais os fatores sistémicos e locais que interferem na cicatrização da ferida em questão. Relativamente aos fatores sistémicos, estes encontram-se divididos em três grupos: as patologias do indivíduo, os tratamentos associados e os fatores sociais. Assim, é importante dar alguns exemplos destes fatores. Como patologias associadas mais frequentes aparece-nos a Hipertensão arterial (HTA), a dislipidémia, o Acidente Vascular Cerebral (AVC), a insuficiência venosa periférica, as cirurgias vasculares as cardiopatias e alguns tipos de Síndromes como é o caso do Síndrome de Churg-strauss. Este Síndrome divide-se em três fases: a primeira, mais longa e prodrómica, apresenta asma e sinais e sintomas prévios de rinite e sinusite; a fase eosinofílica, que pode manifestar-se em anos, é marcada por eosinofilia periférica e infiltrados eosinofílicos teciduais semelhantes à síndrome de Löffler ou pneumonia eosinofílica crónica; e a fase vasculítica, que pode ser grave, e aumentar muito a morbi-mortalidade dos pacientes (Churg-strauss, 2005).
Relativamente aos tratamentos e ou às medicações habituais do indivíduo, estes são prescritos e realizados em função da patologia do mesmo. Por último, os fatores sociais mais referenciados são o tabagismo, alcoolismo e a depressão (Lecour & Justiniano, 2010; Pinto, 2012).
Como consequência da conjugação dos fatores sistémicos do indivíduo (figura 1), poderá ocorrer um aumento da extensão e duração da inflamação, provocando uma disfunção no processo fisiológico. O desequilíbrio nas protéases e nos seus inibidores, tal como na distribuição do oxigénio, leva à destruição da matriz celular, ficando a ferida estagnada, o que a torna numa FC (Laureano & Rodrigues, 2011; Silva, 2012; Rice, Hamblin, & Herman, 2012).
Para percebermos em que fase do processo de cicatrização se encontra uma ferida, é necessário avaliar todos os fatores locais da ferida, tais como: o tipo de tecido no leito da mesma, a localização, a extensão, a profundidade, o exsudado, as características da pele circundante e o odor (Baranoski & Ayelo, 2005; Oliveira & Dias, 2012; Oliveira, 2014).
Quando analisamos o tipo de tecido existente no leito da ferida, este pode ser tecido necrosado de cor castanha ou preta, com aspeto mole ou duro, o qual impede a progressão da ferida para a cicatrização e, portanto, torna-se necessário dissecar todo esse tecido. O mesmo acontece com o tecido desvitalizado, de coloração amarelada. Por outro lado, o tecido de granulação deve ser mantido. Este apresenta cor vermelho vivo, aspeto limpo, brilhante e húmido, revelando que a ferida está a evoluir de forma favorável à cicatrização. Por fim, podemos encontrar tecido de epitelização, rosado e brilhante, que cresce a partir dos bordos e na superfície da ferida, o que nos indica que esta se encontra na fase de cicatrização ou remodelação (Baranoski & Ayelo, 2005; Oliveira, 2014). Em relação à localização da ferida é importante percebermos se o local tem boa ou má perfusão tecidular, o que, neste último caso, atrasa ou compromete a cicatrização. O exsudado presente no leito da ferida consiste na acumulação de fluídos com soro, detritos celulares, bactérias e leucócitos. Pode ser de cor amarelo-pálida (seroso), de cor avermelhada (sero hemático ou hemático), ou de cor esbranquiçada, esverdeada ou acastanhada (purulento). É também variável na quantidade, podendo ser escasso, moderado ou abundante (Baranoski & Ayelo, 2005; Oliveira, 2014). Estes aspetos, tanto a coloração como a quantidade de exsudado também podem atrasar a cicatrização.
A pele é a fonte primária de novas células epiteliais que promovem a reepitelização da ferida, o que significa que qualquer lesão da pele circundante retarda o processo de cicatrização. É possível, também, que a pele se encontre com aspeto descamativo, indicando desidratação ou encontrar-se ruborizada ou com aumento da temperatura, o que ocorre devido à presença de infeção (Oliveira, 2014). O odor fétido indica, habitualmente, a existência de uma infeção local ou sistémica devido à presença de microrganismos (Young, 2012; Oliveira, 2014).
Os sinais e sintomas que podem indicar, quer uma infeção superficial, quer uma infeção profunda, são vários. Convencionou-se uma mnemónica para facilitar a prática clínica diária de identificação destes dois tipos de infeção. A diferença entre elas assenta nas mnemónicas de NERDS e STONEES (são siglas inglesas que devem ser desenvolvidas) respetivamente (Young, 2012) (tabela 1).
Assim considera-se FC ou de difícil cicatrização todas aquelas que estão associadas a perdas cutâneas extensas, infeções agressivas, viabilidade dos tecidos comprometida ou que estão associadas a doenças sistémicas como a diabetes, vasculopatias, vasculites (Coltro et al., 2011; Afonso et al., 2013).
As vasculites primárias e as vasculopatias secundárias, são processos inflamatórios vasculares que determinam danos funcionais e estruturais na parede dos vasos (Brandt et al., 2007). São consideradas primárias se não tiverem etiologia e secundárias se surgirem como manifestação decorrente de uma doença de base tal como o lúpus ou a artrite reumatoide (Gonçalves, 2012). As vasculites primárias confinadas à pele são designadas de idiopáticas (VCP).
As lesões surgem na pele inicialmente sob a forma de eritema localizado e que progridem para vesículas, nódulos, úlceras ou necrose de 1 mm a 4 cm, sendo tanto assintomáticas como dolorosas (Cruz et al., 2011).
Na VCP existe a deposição de imunoglobulinas IgG e IgM, que geram a ativação leucócitos, que levam migração dos neutrófilos para a região, liberando enzimas e derivados reativos do oxigénio para eliminar antígenos. No entanto, este processo inflamatório de reação à deposição inicial de imunoglobulinas na parede das veias é muito intenso e causa lesões nas mesmas, aumentando a permeabilidade desses vasos, com saída de fluidos e extravasamento de hemácias (Bezerra et al., 2020).
Este, tipo de lesões localizam-se inicialmente nas pernas, tornozelos ou outras áreas pendentes ou sob maior pressão hidrostática. Os sintomas mais comuns que apresentam são prurido moderado até dor intensa e podem deixar cicatrizes atróficas (Brandt et al., 2007).
1. Métodos
Foi desenvolvido um estudo descritivo e observacional a uma doente de 82 anos com uma FC como alteração secundária da vasculite ativa.
Tratou-se de uma amostragem intencional por conveniência com base numa entrevista estruturada e acompanhamento por observação direta da FC. Na observação física da doente verificou-se a presença de uma ferida, localizada na região da perna direita.
Realizada monitorização da evolução da situação clínica em cinco momentos diferentes durante o tratamento em ambulatório. Com a aplicação da escala RESVECH 2.0 monitorizou-se a avaliação da FC e foi avaliada a QV sentida no geral com recurso à aplicação da escala Euroquool 5 dimensões e 5 Likert (EQ-5D-5L).
2. Resultados
AVALIAÇÃO INICIAL
Doente do sexo feminino
Idade: 82 anos
Peso: 55 kg
Altura: 1,52 cm
Antecedentes pessoais: Diabetes mellitus tipo II, HTA, Asma, Demência, Síndrome de Churg-Strauss, Vasculite (é importante ressalvar a fase em que se encontra a vasculite) e desconhece alergias.
Antecedentes cirúrgicos: Esplenectomia, Safenetomia bilateral e Prótese Total do Joelho à direita.
Realizou tratamentos adjuvantes de Quimioterapia e Radioterapia em dezembro de 2020.
Análise da situação em estudo
Neste estudo de caso, foram identificados como diagnósticos de enfermagem: o comprometimento do conhecimento da situação clínica, sono alterado, dor intermitente, frequente, no membro inferior direito, para além de se encontrarem comprometidos a realização dos autocuidados, alimentar-se, higiene, mobilidade, transferir-se e uso do sanitário. Definimos como foco principal da nossa atenção, a ferida existente no membro inferior direito, com score de 26 avaliada pela escala RESVECH 2.0. Verificou-se, no primeiro dia, que existiam sinais de infeção evidentes tais como (dor, aumento da temperatura, exsudado, tecido friável, hipergranulação, odor, …). Pela análise dos sinais apresentados (sinais de STONEES), a ferida apresenta infeção profunda, pelo que se optou pela aplicação de um apósito composto por uma matriz cicatrizante micro aderente (Technology Lípido Coloide - TLC) impregnada com prata. A TLC-Ag proporciona uma ação antibacteriana e gelifica facilmente, contribuindo assim para a drenagem de resíduos. Além disso, permite uma fácil aplicação e remoção do penso sem dor.
Após 15 dias de tratamento com uma matriz cicatrizante TLC-AG e fibras poliabsorventes, no dia 15 de Maio já não existiam sinais de infeção, optou-se, então, pela aplicação de uma Matriz de NOSF - TLC e fibras microaderente combinada com fibras poli - absorventes de poliacrilato para conduzirem eficazmente a FC á cicatrização. Este apósito para além de absorver o exsudado através das suas fibras, gere a hemorragia das feridas, cria um ambiente húmido no leito da ferida melhorando assim as condições para a cicatrização, protege a pele ao redor da ferida e a própria ferida na sua remoção atraumática. Este tratamento foi mantido até ao fim da cicatrização.
Neste estudo de caso podemos comprovar pela análise da escala de RESVECH 2.0 aplicada em cinco momentos que a ferida evoluiu favoravelmente. Destaca-se, ainda, que os sinais de infeção reduzem significativamente em 15 dias. Verifica-se a cicatrização total da FC do Membro inferior aos 58 dias com a diminuição do score da escala de REVESCH 2.0 de 26 para 2 (gráfico 1).
Aplicamos a escala EQ-5D-5L com o intuito de avaliar a QV sentida pela doente com uma FC com vasculite.
Se analisarmos os resultados obtidos com a aplicação da referida escala podemos observar que existiu uma melhoria da QV em geral sobretudo pela diminuição da dor. Verificamos ainda, com a aplicação da matriz cicatrizante micro aderente impregnada com prata e da matriz cicatrizante TLC-NOSF, que a doente refere essencialmente diminuição da dor, conseguindo iniciar as atividades habituais como andar, tomar banho, ler, fazer renda e ver TV. Assim, pela análise dessa escala ainda verificamos que é demostrada a melhoria da QV em Geral sobretudo na dimensão Dor e Mal-estar pois o score da escala EQ-5D-5L diminui de 18 para 5 (figura 2).
Conclusão
Concluímos que uma FC com uma área de 20 cm, cicatrizou completamente ao fim de 58 dias e a doente permaneceu sem dores durante todo o tratamento, o que lhe permitiu um aumento significativo da QV em geral.
São necessários mais estudos, com mobilização de instrumentos de avaliação sensíveis e maior número de participantes para maior robustez dos resultados.