O trauma é uma importante causa de mortalidade e morbilidade, um fenómeno altamente prevalente e impactante, que exige uma resposta complexa devido à sua apresentação clínica multiforme (Mota, Cunha, et al., 2021). Acresce a essa importante repercussão hemodinâmica imediata, cuja gravidade cursa frequentemente em choque hipovolémico e morte, dor aguda severa (superior a 7 numa escala de 0 a 10) em mais de 40% das vítimas (Mota, Santos, et al., 2021a), desconforto provocado pelo frio superior a 5 (numa escala de 0 a 10) em mais de 17% (Mota, Santos, et al., 2021b) e outras manifestações de desconforto que ainda não reúnem consenso e atenção junto da comunidade académia. Destas emerge uma em particular, cuja etiologia se deve por inteiro às intervenções ministradas pelas equipas de socorro - o desconforto provocado pela imobilização.
A imobilização tem como objetivo diminuir os movimentos da vítima, garantindo o alinhamento das estruturas anatómicas com suspeita de lesão, para minimizar o risco de lesões secundárias ao mecanismo do trauma primário (Camargo-Arenas et al., 2019; Figueira et al., 2021), contribuindo, no entanto, para a incidência de algum nível de desconforto. Esta modalidade de desconforto não tem sido, no entanto, explorada e não se encontram estudos que investiguem a etiologia nosológica do mesmo, subsistindo a ideia de que, sendo a imobilização uma intervenção imprescindível, os benefícios ultrapassam os riscos, nomeadamente as lesões por pressão, pressões intracranianas elevadas e dor (Bruijns et al., 2013; Holla et al., 2017). Por outras palavras, ainda que menos eloquentes, mas que dão corpo e título a este manuscrito, a imobilização das vítimas de trauma é um “mal necessário”.
A dor é um conceito subjetivo, complexo e multidimensional, é uma experiência sensorial desagradável associada a danos reais ou potenciais nos tecidos (International Association for the Study of Pain, 2006), uma consequência de eventos patológicos e/ou traumáticos, todavia, é recorrentemente reportada como resultado de intervenções clínicas invasivas e não invasivas (Sobieraj et al., 2020), como é, por exemplo, a imobilização nas vítimas de trauma. Arrogar o desconforto provocado pela imobilização como sendo uma manifestação de dor aguda no trauma pode resultar não apenas num erro de cariz conceptual, como também na incapacidade de tratar este desconforto por não ser possível corrigir aquela que é a sua verdadeira causa, a imobilização. Quando o mecanismo da lesão cria um alto índice de suspeita de lesão da cabeça ou da coluna vertebral, a imobilização está recomendada. A alteração do estado de consciência e o défice neurológico são também indicadores de que a imobilização da coluna deve ser realizada (Feller et al., 2022).
À comunidade académica e clínica oferece-se a possibilidade de se rever e reestruturar a abordagem geral à vítima de trauma, assumindo-se, naturalmente, a inegável relevância da imobilização, enquanto técnica largamente administrada no contexto pré-hospitalar como medida profilática de danos secundários, tendo a consciência de que ela é, por si só, responsável por um desconforto próprio, particular e, quando confundido como dor, acaba por ser liminarmente ignorado. Desvincular a dor aguda do desconforto provocado pela imobilização, não é desvalorizar e/ou subestimar a dor e sua importância nesta tipologia de vítimas, é, pelo contrário, procurar melhorar a capacidade de diagnóstico dos diferentes desconfortos a que estas vítimas estão expostas e que frequentemente padecem, e com isso melhorar a capacidade de tratamento na sua globalidade. Assim, a solução que acreditamos ser a mais indicada, e assumindo-se o desconforto provocado pela imobilização como uma entidade nosológica única, é, primeiro, a criação de instrumentos de monitorização específicos (escalas) para este desconforto, segundo, rever as técnicas de imobilização, quanto à sua aplicação, aplicabilidade e eficácia e, por último, o desenvolvimento de novas opções farmacológicas e não farmacológicas para a gestão e tratamento do desconforto provocado pela imobilização. A utilização de um instrumento de monitorização estandardizado e validado para avaliação e registo do desconforto provocado pela imobilização, constituir-se-ia como um indicador de qualidade dos cuidados pré-hospitalares, na medida em que permitiria (1) monitorizar e (2) obter a perceção real da evolução do desconforto em função das intervenções administradas.
Para se alcançar uma melhor qualidade na prestação de cuidados no pré-hospitalar e para melhorar o bem-estar das vítimas de trauma, o desconforto originado pela imobilização tem de merecer especial atenção tanto na academia, designadamente com incentivo à investigação experimental aplicada, como na prática clínica, entre outros, pela via da implementação de procedimentos seguros, baseados em evidências fortemente recomendadas.