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Sociologia, Problemas e Práticas

versão impressa ISSN 0873-6529

Sociologia, Problemas e Práticas  n.34 Oeiras dez. 2000

 

DESAFIOS À UNIVERSIDADE

Comercialização da ciência e recomposição dos saberes académicos

Luísa Oliveira*

 

 

Resumo Assistimos à emergência de um novo modelo de desenvolvimento, assente num novo padrão de competitividade baseado na inovação, tese que tem arrastado consigo o debate sobre as relações entre universidade e indústria, leia-se ciência como factor produtivo. Se bem que a ciência e as suas aplicações sempre tenham alimentado o crescimento económico, os moldes em que se coloca hoje esta questão são completamente novos. Trata-se de imputar à universidade a assumpção de novas funções e a transformação das que lhe têm sido tradicionalmente atribuídas. Neste texto procuramos discutir esta questão numa perspectiva histórica, argumentando que a importância decisiva que a filosofia teve na fundação do modelo humboldtiano de universidade está a ceder o passo à teoria económica, num quadro de tecnocratização da política. A referência ao caso português procura mostrar a "espessura sociológica" que marca a diferença entre países e que resiste à importação dos modelos económicos.

Palavras-chave Universidades, comercialização da ciência, inovação.

 

 

Introdução

Assistimos à emergência de um novo modelo de desenvolvimento, assente num novo padrão de competitividade baseado na inovação, tese que tem arrastado consigo o debate sobre as relações entre universidade e indústria, leia-se ciência como factor produtivo.1 Se bem que a ciência e as suas aplicações sempre tenham alimentado o crescimento económico, os moldes em que se coloca hoje esta questão são completamente novos. Com efeito, ultrapassado o modelo linear de difusão do conhecimento em que tradicionalmente assentava a ligação entre a universidade e a esfera económica, a universidade passa para dentro do "actor-rede produtor de inovação" (Callon, 1989), intervindo directamente no processo.

Trata-se de imputar à universidade uma responsabilidade directa na promoção competitiva do país, o que implica a assumpção de novas funções e a transformação das que lhe têm sido tradicionalmente atribuídas (Etzkowitz e Peters, 1994).

A Europa procura seguir este modelo, oriundo dos Estados Unidos, cujas virtualidades residem essencialmente no sucesso económico proporcionado pela quantidade de inovações tecnológicas e de novos mercados que a investigação académica induz.2 As universidades europeias estão hoje perante um conjunto de desafios que põem em causa os seus modelos construídos ao longo de dois séculos de história e procuram adaptar-se ao novo contexto, segundo as especificidades societais (Maurice, Sellier e Silvestre, 1982) que lhe são próprias. Estamos ainda longe de poder descortinar o resultado deste processo.

Neste texto começamos por relembrar a origem da "universidade moderna", também conhecida como o modelo de Humboldt. Esta discussão traz a lume o papel da ciência no desenvolvimento económico e o modo como a universidade integrou em si a função de investigação, procurando manter-se independente perante o estado e o mercado.

Uma breve referência ao desenvolvimento histórico da ciência nos EUA junta algumas notas elucidativas sobre o que está hoje em jogo na transformação da ciência enquanto instituição e nos desafios que se colocam à universidade.

Procuramos discutir a possibilidade de importação do modelo americano e relativizá-la, defendendo a ideia de que a importância decisiva que a filosofia teve na fundação do modelo humboldtiano está a ceder o passo à teoria económica, num quadro de tecnocratização da política (Habermas, 1973), e que há um défice de discussão, no seio da própria academia, sobre este processo. A referência ao caso português procura mostrar a "espessura sociológica" que marca a diferença entre países e que resiste à importação dos modelos económicos.

Considera-se também que a questão da recomposição dos saberes académicos só tem sentido neste quadro geral de abordagem.

 

As lições da história

A invenção da "universidade moderna": funções e saberes académicos

Os desafios de mudança que se colocam hoje à universidade e a recomposição de saberes que exigem são, na sua essência, os mesmos que marcaram a emergência da "universidade moderna", há cerca de 200 anos.

O modelo humboldtiano de universidade é a referência clássica da "ideia de universidade moderna" (Renaut, 1995), consubstanciada na formação da universidade de Berlim em 1810, que surge na sequência da primeira grande crise académica, marcada pelo processo de laicização da universidade da Idade Média e que se traduziu pela transferência da dependência da igreja para a dependência do estado e pela emergência de um novo saber, a ciência. Este processo é também marcado pela transformação das funções da universidade, que se torna, a par do ensino, num lugar de produção da ciência, processo que alguns autores designam como primeira revolução académica (Etzkowitz, 1997).

Na época desencadeou-se na Alemanha um debate profundo em torno da própria concepção de universidade e de ciência, debate em que a filosofia alemã desempenhou um papel fundamental e donde surgiria a ideia de uni-versidade — enquanto reunião de múltiplos saberes tendo por base uma unidade orgânica — fundada na concepção de ciência como sistema (Renaut, 1995).

Um dos grandes temas desse debate foi justamente o da relação entre a universidade e o estado, num quadro em que se procurava impedir que este interferisse ou pressionasse no sentido da instrumentalização do saber. Temia-se que o estado, na prossecução dos seus interesses, reduzisse a missão da universidade à formação dos funcionários de que precisava para si próprio. É assim que, pela primeira vez, se coloca a questão do "saber desinteressado" contra a profissionalização, em nome da famosa liberdade académica. Colocada assim a questão da autonomia universitária, destacamos aqui quatro pontos que nos parecem essenciais, quer pela relevância que tiveram na época, quer pela actualidade que têm para a discussão sobre a actual crise universitária, ponto a partir do qual se deve, a nosso ver, colocar o problema da recomposição dos saberes.

A primeira questão que vale a pena sublinhar é que, à época, o problema da autonomia se desdobrava em dois grandes temas: a autonomia interna e a autonomia externa. Os problemas colocados pela primeira referiam-se à relação entre ensino e investigação. A produção do saber e a sua transmissão são tarefas distintas e não obedecem às mesmas exigências; tratava-se de discutir, na altura, em que medida uma se deve ou não subordinar à outra, porquê e em que condições. A esta questão cada país deu uma resposta diferente, tendo desenvolvido trajectórias próprias que marcam hoje as principais diferenças entre as universidades e, de modo mais geral, a organização dos chamados "sistema nacionais de inovação" (Lundvall, 1992; Nelson, 1993).

Actualmente esta questão aparece com a mesma premência, a avaliar pela importância que as comparações internacionais suscitam, na tentativa de concluir sobre as vantagens e desvantagens de cada modelo. O problema neste tipo de comparações parece residir nos critérios a partir dos quais se considera o que é "vantajoso", atendendo a que prevalece a ideia de que o sistema deve obedecer a um princípio de racionalidade económica, quer dizer, a uma lógica mercantil da ciência (Ferné, 1993).

Que tipo de saber cabe à universidade transmitir é o segundo tema que decorre naturalmente do primeiro. Mesmo considerando a investigação em pé de igualdade com o ensino — entendida na altura como "investigação pura e desinteressada" —, o saber a transmitir corresponderia mais a uma "alta cultura especializada". Dando prioridade ao ensino, o saber seria "menos culto" e mais profissionalizante.

Um outro tema, convocado para a discussão da autonomia interna, refere-se à relação entre disciplinas no seio da universidade e, por essa via, à organização interna, concretizada na relação entre faculdades e universidade e das faculdades entre si. Tratava-se de definir se a ciência se deveria desenvolver num quadro de autonomia e especialização disciplinar ou, em alternativa, procurar estabelecer relações entre disciplinas e esbater a especialização.

A autonomia externa referia-se à relação entre universidade e estado, questão que esteve presente em toda a história da universidade moderna, embora os pressupostos em que essa discussão se tem baseado não sejam sempre os mesmos. Ora se defende a autonomia em nome da liberdade académica assente no "saber desinteressado" ou, numa lógica liberal, com o argumento de que se trata de uma instituição da sociedade como as outras, com os seus próprios interesses, numa lógica de concorrência entre universidades.

Mas a história da universidade moderna não pode ser contada à margem da história da ciência (Caraça, 1999). Vem isto a propósito da conciliação entre "ciência pura" e as necessidades da economia por altura da primeira revolução industrial, o que, em traços largos, corresponde à abertura da universidade como lugar de produção da ciência. As academias da ciência tinham surgido muito antes, nos séculos XVII e XVIII, um pouco por toda a Europa, no quadro de uma filosofia em que se considerava que o progresso da ciência dependia da utilidade que lhe pudesse ser dada.

Leibnitz, primeiro presidente da Academia das Ciências de Berlim em 1700, ficou conhecido na história da universidade justamente porque distinguiu as "ciências puramente teóricas" e a sua aplicação prática e, neste quadro, desenvolveu esforços significativos na fundação das Academias — fora das universidades — com base na ideia de "ciências produtivas".3

Segundo o autor, era preciso que "… na sociedade do conhecimento a actividade científica não fosse orientada por uma simples curiosidade ou desejo de saber, por investigações inúteis, mas que se orientasse sobretudo pela ‘utilidade’" (Leibniz, 1700, cit. por Renaut, 1995: 122).

Este movimento teria dado origem ainda às "escolas especiais" (Spezialschulen) e às "escolas superiores profissionais" (Fachhoschschulen).

Neste quadro e a esta distância, poderíamos interrogar-nos sobre os factores que, apesar de tudo, explicam a expansão das universidades até aos nossos dias quando, podemos admitir, seria esperável que se tivessem remetido a um papel de formação de elites, como aconteceu em certos períodos da história. A resposta parece encontrar-se no modelo de universidade que, perante esta controvérsia, Humboldt encontrou — e não será por acaso, que o modelo humboldtiano influenciou as universidades de quase todo o mundo, incluindo os EUA —, quando inventou a Universidade de Berlim. Esta universidade surgiu simultaneamente contra a ideia utilitária de ciência — de que as academias e "escolas superiores e especiais" eram o exemplo — e contra o modelo das universidades eclesiásticas medievais.

O que é essencial reter para a questão que agora nos ocupa é que, para Humboldt, tratar as universidades como escolas especializadas e dividir a investigação em pura e aplicada seria uma enorme ameaça tanto para a universidade, como para a ciência. O sucesso de Humboldt deve-se ao compromisso que foi capaz de estabelecer entre uma coisa e outra: caberia às universidades a investigação pura (no sentido da procura da verdade), investigação que deveria incluir no entanto uma componente prática. No ensino, esta opção teria tradução na célebre fórmula da "formação pela investigação".

Desta complexa controvérsia que, por razões óbvias, não cabe aqui explorar, destacamos três aspectos que nos parecem essenciais para o debate actual sobre a universidade, a saber:

· uma diferença essencial entre "ciência como procura da verdade" e "ciência como procura de respostas aos interesses económicos e políticos". Esta questão é fundamental e não deve ser confundida, como frequentemente acontece, com investigação fundamental versus investigação aplicada.

· o modelo de Humboldt permitiu uma concepção de universidade relativamente independente do estado, da economia e da sociedade, à custa, é certo, de uma certa representação mítica da ciência que vingava naquela época;

· as implicações de cada uma destas opções na natureza dos saberes que se produzem e transmitem e, logo, na recomposição dos saberes académicos. Com efeito, a partir de uma concepção de ciência "como procura da verdade", ficava implícito que este "saber" não estava comprometido em formar "competências prontas a usar", segundo os interesses específicos do mercado.4 No projecto da Universidade de Berlim vingou a ideia de que as competências profissionais não decorrem directamente da esfera do saber científico, mas que são adquiridas por imitação dos modelos tradicionais do "saber-fazer".

Por outro lado, a "procura da verdade" e a "formação pela investigação" proporcionam uma visão global do mundo e uma formação integral do Homem e não apenas uma profissão. Para Humboldt as universidades tinham também como missão aquilo a que chamava " educação moral da nação".5

O outro lado da história: a ciência no desenvolvimento económico

Mas o papel da ciência no desenvolvimento não é uma questão nova, independentemente do modo como cada país autonomizou e organizou as suas actividades de investigação e lhes concedeu um papel maior ou menor dentro da universidade, com a França a constituir um caso extremo no contexto europeu.6 Tomemos o exemplo americano, já que é o modelo de referência actual para a Europa, tanto do ponto de vista do modelo de desenvolvimento, como de inspiração da teoria económica.

O exemplo dos EUA

Como refere Caraça (1999), o século XIX foi o século da mecânica, do aço e do caminho-de-ferro, o seu símbolo foi a máquina, o conceito a mecânica e os europeus pareciam ser os senhores do mundo. Por analogia, poderíamos dizer que o século XXI parece desenhar-se como o século da informática, das telecomunicações e da biotecnologia, o seu símbolo é o computador, o conceito a informação — "sociedade da informação" — e os americanos parecem ser os senhores do mundo. Como chegámos aqui no que diz respeito ao modelo de universidade e de desenvolvimento da ciência?

Historicamente, o modelo americano foi muito influenciado pelo modelo alemão de Humboldt. Antes disso, a influência da igreja não é comparável com a Europa (Peyrefitte, 1995). Os EUA tinham colleges à semelhança do modelo inglês de Oxford e Cambridge e, sob a influência de Benjamin Franklin, prevalecia a ideia de uma "cultura útil" (Kerr, 1994). Como em qualquer outro país, o problema do financiamento da investigação marcou decisivamente as vicissitudes históricas do ensino superior. A velha oposição entre investigação fundamental e investigação aplicada aos interesses da economia remonta nos EUA ao princípio do século XX. Primeiro, e este aspecto é fundamental, porque é sensivelmente nesta altura que emergem os primeiros laboratórios industriais nas grandes empresas de química e de electricidade. A primeira guerra mundial terá sido outro marco decisivo nesta matéria, altura em que a indústria privada começou também a financiar as actividades de investigação universitárias com alguma regularidade. Segundo Robert Millikan, foi então que, pela primeira vez na história, "…o mundo foi capaz de perceber o que a ciência podia fazer…" (Geiger, 1988: 334).

Esta percepção não foi, como se sabe, muito agradável, com os exemplos das armas químicas, os primeiros bombardeamentos aéreos, os submarinos e depois o desastre de Hiroshima, que acabaram com o mito da neutralidade da ciência e, de certo modo, a dessacralizaram.

No pós-guerra, em todo o caso, o celebre relatório de Vannevar Bush — conselheiro científico do Presidente Roosevelt — Science, the Endless Frontier (1945) — procura "lavar" a imagem da ciência, tendo sido um marco decisivo, quer para o modo como esta se viria a desenvolver, quer para a configuração das universidades americanas. Com efeito, defendia-se o financiamento da investigação fundamental, com o argumento de que os grandes desenvolvimentos tecnológicos no período da guerra só tinham sido possíveis graças ao anterior investimento em investigação fundamental. Reconhecia-se também que, dados os elevadíssimos montantes financeiros que a investigação fundamental exigia, só o Governo teria condições para o fazer. E foi com este objectivo que Bush propôs a criação da National Science Foundation. O governo assumiu assim o papel de financiar a investigação considerada relevante para as necessidades nacionais, institucionalizando uma responsabilidade tripartida entre o poder político, militar e económico, uma vez que as experiências da colaboração com o sector industrial tinham já criado as suas raízes. Posteriormente, no período da guerra fria, o desenvolvimento da ciência e da tecnologia acelerou a um nível sem precedentes.

Este modelo, tal como o europeu — em vias de construção — desenvolveu-se segundo uma trajectória particular, societalmente confinada. Como refere Geiger (1988), o que se chama agora correntemente "transferência tecnológica", já era a missão do National Research Council (NRC) na América dos anos 20.7

Nos anos 80 a indústria muda de estratégia na sua relação com as universidades, passando a financiar projectos de longo prazo, com contratos no valor de milhares de dólares, havendo mesmo exemplos de grandes empresas europeias que financiam actividades de investigação nos EUA.8 Esta mudança — que não exclui o tipo de colaborações anteriores, mais baseadas em cooperações limitadas no tempo, consórcios, troca de investigadores entre universidades e indústria, etc. — teve grande impacte em todo o sistema de C&T.

A partir de uma leitura mais global, esta nova atitude do lado da indústria inclui-se numa estratégia empresarial de diminuição de custos como reacção à crise dos anos 70 (Boyer, 1981) e que se traduziu pela exteriorização de uma grande parte de actividades até então desenvolvidas no interior das empresas. Este processo traduziu-se num discurso assente em dois slogans de consciencialização colectiva sobre as virtualidades económicas do downsizing e do empreendedorismo, como componentes importantes do novo espírito do capitalismo (Boltanski e Chiapello, 1999).9

Em paralelo, a emergência de novas indústrias de alta tecnologia, como as telecomunicações, a informática e a biotecnologia — os chamados sectores baseados na ciência, por oposição aos sectores tradicionais — como pilares do desenvolvimento económico do século XXI, transformam a concepção tradicional de ciência (Gibbons e outros, 1994) — e com ela a universidade —, como condição necessária ao novo modo de desenvolvimento.

É neste quadro que Etzkowitz (1997) defende a ideia de que a transição que a universidade atravessa se traduz, não numa crise — como o indicador dos cortes orçamentais poderia induzir —, mas numa revolução: a segunda revolução académica. A primeira ocorreu quando a universidade assumiu, paralelamente ao ensino, a função de investigação, transformando-se numa instituição de investigação. A segunda caracteriza-se pela institucionalização da função económica das universidades — o desenvolvimento económico passa a fazer parte da sua missão — num processo em que os actores envolvidos vão adaptando ou ajustando as suas posições às novas oportunidades e constrangimentos institucionais: "canalizar os fluxos de conhecimento para novas fontes de inovação tecnológica, tornou-se uma tarefa da academia, mudando a estrutura e a função da universidade. " (Etzkowitz e Leydesdorff, 1997: 1).

Esta revolução académica tem, também internamente, várias consequências: na estrutura e organização interna da universidade, na transformação da ciência enquanto tal, nos modos de financiamento, na concepção do saber científico, no perfil dos investigadores e, em consequência, no que se ensina. Fala-se em universidade empreendedora e em docentes-empresários.

Interessa-nos reter aqui a ideia de transformação da ciência, principalmente no que se refere aos efeitos no "saber", na medida em que se passa do saber científico, segundo a concepção tradicional de ciência, para um outro tipo de saber científico, inerente à nova ciência.

Da ciência tradicional a uma nova concepção de ciência: recomposição das funções e dos saberes académicos

Segundo alguns autores está em curso um novo modo de produzir ciência (Gibbons e outros, 1994). Neste processo as universidades deixam de ser o lugar privilegiado de produção do saber científico e esta mudança significa, simultaneamente, que esse saber se produz com outros actores e instituições e de um modo diferente. Este processo desencadeia um conjunto de desafios às universidades, no sentido em que lhes exige uma mudança estrutural (Santos, 1994) e, naturalmente, uma recomposição profunda dos saberes académicos.

As razões históricas que explicam esta situação têm origem no próprio modelo da ciência tradicional10 " através de um processo de especialização no domínio cognitivo, de profissionalização no domínio social e de institucionalização no domínio político" (Gibbons e outros, 1994).11 Definiu-se assim, ao longo do tempo, um padrão para a ciência-instituição que excluía tudo o que, de algum modo, a ameaçava. As principais consequências deste processo são a estruturação do conhecimento científico em disciplinas, uma certa concepção de ciência e de cientista, um conjunto de normas sociais que regulam este sistema e a identificação de lugares/instituições que participam na construção e funcionamento do edifício científico.

As bases de sustentação deste modelo teriam vindo a ser destruídas ao longo do tempo, fundamentalmente devido à massificação do ensino e à apropriação da função de investigação pelas universidades, na medida em que um número crescente de indivíduos tornou possível uma disseminação do conhecimento académico pela sociedade, constituindo o suporte de um novo modo de produção do saber que já não se confina ao mundo académico: está nos laboratórios públicos, na indústria, nas empresas, em centros de investigação ou nos gabinetes de consultoria, enfim, onde quer que aqueles indivíduos desenvolvam a sua actividade.

Uma outra razão, igualmente importante, deve-se à emergência das novas tecnologias — telecomunicações e informática —, que permitem a ligação entre todos esses (novos) lugares onde o saber se produz, saber que já não está sujeito às normas cognitivas e sociais do modelo convencional.

O que está em causa é, portanto, uma transformação da ciência enquanto instituição e uma reconversão profissional dos docentes/cientistas — induzida também por esta via —, enquanto protagonistas principais deste processo.

Este novo saber existe, é economicamente útil, mas não tem bases de legitimação, isto é, tem dificuldades em ser socialmente reconhecido. Para distinguir estes dois modos de produção do saber e à falta de terminologia específica, Gibbons e outros usam a designação de modo 1 e modo 2 de produção do saber, para se referirem respectivamente ao modelo convencional de funcionamento da ciência e ao modelo emergente. O primeiro refere-se ao que geralmente é designado por conhecimento científico e pode definir-se muito sinteticamente, segundo o autor, como o conjunto de normas cognitivas e sociais que devem ser seguidas na produção, legitimação e difusão do saber.

Os seus protagonistas são designados como cientistas, designação que já não se aplica ao modo 2, não querendo isto dizer, sublinham os autores, que não cumpram as regras do método científico. As diferenças entre o modo 1 e o modo 2 de produção da ciência sintetizam-se no quadro 1.

 

Quadro 1 Vectores de mudança na transformação do saber científico

 

Aceitar este modelo, a que alguns autores já chamam "ciência pós-académica" (Ziman, 1999), significa reconhecer não só uma necessidade de recomposição dos tradicionais saberes académicos, como também a de uma mudança de identidade profissional dos docentes universitários.12

Se admitirmos, por outro lado, como Etzkowitz e Peters (1997) que ao aceitar um papel económico a universidade fica parecida com uma corporação de negócios, com actividades empresariais e de marketing, para além das funções tradicionais de investigação e ensino, teremos que concluir que, para além das mudanças nos saberes inerentes ao novo modo de produzir ciência, a universidade tem ainda que endogeneizar um conjunto de novos saberes e competências associadas às mudanças organizacionais e de gestão que um tal modelo engendra.

O papel da teoria económica na ideia de comercialização da ciência

Relativizando a experiência americana à especificidade societal que lhe é própria e o optimismo liberal de Etzkowitz, que a Europa procura agora seguir em nome da "globalização" e da "competitividade",13 parece-nos mais realista considerar que chegamos ao século XXI a braços com uma crise académica, em que a universidade procura, melhor ou pior, construir uma nova identidade num mundo onde a importância decisiva da filosofia — na discussão que daria origem ao modelo fundador da universidade de Humboldt — cede o passo à teoria económica e à tecnocratização da política (Habermas, 1973).

Este parece ser um caso evidente em que " a teoria económica, no sentido lato do termo, trabalha, influencia e dá forma à realidade económica, em vez de observar como é que ela funciona" (Callon, 1994: 51).14

A divulgação dos "casos de boas práticas", por exemplo, ou das virtualidades do modelo americano,15 assim como a importação acrítica de teorias produzidas noutros contextos,16 acaba por influenciar o modo como os actores sociais — da indústria e do meio académico — percebem a situação, definem os seus próprios interesses, formulam as suas estratégias, lutam pela legitimidade e configuram o modo como as instituições funcionam, mas a partir do seu próprio contexto.

Tudo começou quando a primeira revolução industrial tornou claro, a dada altura, que o "progresso técnico" tinha uma importância decisiva na criação de riqueza, através do seu impacte directo na produtividade do trabalho, no emprego, na criação de novos produtos e mercados, etc. Já Marx tinha chamado a atenção para a importância da ciência e da técnica no desenvolvimento do capitalismo. Mas foi Kuznets, em 1930, o primeiro economista a considerar que o traço distintivo das sociedades industriais é o seu sucesso na aplicação do conhecimento resultante da actividade científica à esfera económica.

Schumpeter (1935) é o economista que mais longe vai neste domínio, quando considera a "inovação" como chave da explicação sobre o modo como o sistema capitalista gera incessantemente a energia que o transforma. No entanto, a crise do início dos anos 30, simbolicamente marcada com o crash da Bolsa de Nova Iorque em 1929, mobilizou a atenção dos economistas para o problema do desemprego e dos modelos macroeconómicos do equilíbrio, e Schumpeter foi durante muito tempo um autor marginal na economia.

Em 1982 Rosenberg vem chamar a atenção dos colegas para o facto de "que excluir a inovação no produto do progresso técnico, era o mesmo que representar Hamlet sem o príncipe". No rescaldo da crise económica dos anos 70 assistiu-se, de facto, a uma espécie de reabilitação de Schumpeter, um pouco na expectativa de que a crise fosse realmente "uma destruição criadora". Os chamados neo schumpeterianos dedicam-se então a uma análise do impacte da inovação no crescimento económico. Neste quadro, a "inovação" adquire um lugar central, assim como todos os factores que possam influenciar a sua produção. A ciência e a universidade entram neste debate como factores de importância decisiva. A chamada teoria dos "sistemas nacionais de inovação" (Nelson, 1993 e Lundvall, 1992) marca um passo decisivo nesta matéria. A perspectiva conhecida por tripple-helix (Etzkowitz e Leysdorf, 1997) vai ainda mais longe.

Basta lermos atentamente os documentos oficiais sobre a questão, incluindo os da OCDE, para nos darmos conta até onde vai o papel da teoria económica na definição de regras e das políticas de C&T, da política de ensino e industrial.17 Esta questão é, no mínimo, paradoxal, num quadro em que a "nova ciência" se quer pluridisciplinar. O "poder da ciência", o " poder na ciência" e o "poder com a ciência", que Caraça (1999) distingue, para efeitos de simplificação analítica, não existem separados na realidade. Com efeito, os conselheiros científicos próximos do poder político e económico e a importância que nos nossos dias é dada à ciência e à tecnologia, como o autor diz — para se referir ao "valor social" da ciência — são um marco característico da nossa época.

Uma análise preliminar das políticas europeias neste domínio mostra-nos que essas mesmas políticas procuram desenhar uma universidade que deve assumir, para além do ensino e da investigação, uma função no crescimento económico, procurando ir muito mais longe que o modelo de profissionalização contra o qual a "ideia de universidade moderna" se tinha fundado. De Humboldt fica a ideia de universidade como lugar de produção de investigação, o que muda é a natureza da investigação e o célebre princípio da "liberdade académica".

A necessidade de uma leitura histórica e sociológica:
o exemplo de Portugal

Neste ponto procuramos chamar a atenção para que a realidade económica está imbuída (embedded), no sentido de Granovetter (1973), de uma componente sociológica, historicamente construída. Esta espessura sociológica, chamemos-lhe assim, invisível para a teoria económica, oferece resistência à importação de modelos económicos, ou outros, que lhe são estranhos. Esta resistência, maior ou menor consoante o grau de estranheza, pode rejeitar esses modelos, assimilá-los ou adaptá-los.18

Os resultados negativos da avaliação de políticas, por exemplo, não raras vezes se devem a uma certa cegueira em relação à realidade sociológica, na sua concepção.

As vicissitudes da história e o modelo português de universidade

Em Portugal a discussão sobre a "modernização da universidade à maneira de Humboldt" coloca-se em termos diferentes. Se modernização houve, consistiu na laicização do sistema com a expulsão dos jesuítas e a "reforma de Pombal" nos finais do século XVIII. O modelo português de modernidade seguiu mais de perto a "ideia napoleónica de universidade", no sentido em que era uma instituição fortemente centralizada, dependendo directamente do estado monárquico constitucional e mais vocacionada para um ensino profissionalizante (Cruzeiro, 1990). A I República não durou o suficiente para implementar reformas estruturais, o regime de Salazar atrofiou o sistema de ensino e manteve a universidade fechada sobre si própria e reservada à formação de elites.

É verdade que o número de estudantes matriculados no ensino superior não deixou de crescer nos anos 50 e 60, tendo-se levantado o problema do congestionamento das quatro únicas universidades então existentes no país (duas em Lisboa, uma em Coimbra e outra no Porto). A crise universitária portuguesa neste período tinha, no entanto, características bem particulares. Sedas Nunes argumentava, num texto datado de 1969, que não se podia confundir o congestionamento das escolas com massificação, e procurava demonstrar que se tratava antes de um problema de democratização do ensino:

o número de estudantes, comparado com a população do país, e a taxa de escolarização universitária das correspondentes classes de idade eram dos mais baixos, não só da Europa, mas do mundo (tirando as nações extremamente subdesenvolvidas).
(Sedas Nunes, 1969)

Segundo o mesmo autor, o ensino superior era muito selectivo e elitista, uma vez que cerca de 4/5 dos estudantes provinham de cerca de apenas um décimo das famílias. Em 1960 a taxa de escolarização do ensino superior era de 1,6% (Peixoto, 1989), o que significa que nem sequer 2 em cada 100 jovens portugueses com idades entre os 18 e os 24 anos frequentavam este grau de ensino (Vieira, 1995).

Não entrando em pormenores, vale a pena sublinhar que, por um lado, à data, Portugal era um país de características ainda marcadamente rurais, expressas numa estrutura de classes ligadas ao campo e pouco propícias a estratégias de mobilidade social baseadas no investimento educativo (Vieira, 1995) e, por outro, o nível médio de vida de grande parte das famílias não podia suportar os custos inerentes a esse investimento.

Assim, no início dos anos 70, a discussão centrava-se não tanto na necessidade de aplicar filtros administrativos à entrada do sistema, de tipo numerus clausus, mas na falta de recursos económicos que obrigava a que uma grande parte dos jovens fosse obrigada a entrar cedo no mercado de trabalho. Não existiam portanto universidades destinadas à formação de elites, como por exemplo as Grands Écoles francesas, porque o acesso à universidade era, desde logo, limitado pelas condições socioeconómicas das famílias.

É entre os anos de 1974/1977 que se dá o grande salto, passando o número de estudantes matriculados no ensino superior de 56.910 para 86.119, a que se segue um período relativamente irregular de crescimento até 1985, com a curva sempre ascendente até aos nossos dias. Para alguns autores, é a partir de 1985 que se pode falar com rigor em massificação do ensino superior. O número de indivíduos a frequentar este grau de ensino relativamente à população em idade normal de frequência (18-22 anos) passa de 18% em 1990 para 37% em 1995 (OCDE, 1997).

Seguindo ainda Sedas Nunes na sua análise da crise académica dos anos 60, as universidades eram instituições enquistadas na sua inércia quase estrutural perante o meio envolvente, "continuando a produzir licenciados que correspondiam a exigências sociais em declínio, não preparando, por outro lado, investigadores e especialistas, que a vida moderna carecia de maneira rapidamente progressiva" (Sedas Nunes, 1969). Esta situação, contudo, não tinha nada a ver com uma lógica de ensino entre uma cultura mais ampla/mais especializada, uma vez que a questão da investigação praticamente nem se colocava. O que se tinha era uma universidade de vocação profissionalizante com os curricula desactualizados.

Em 1973 a reforma Veiga Simão veio dar os primeiros passos para a democratização do ensino, advogando a expansão e diversificação do ensino básico19 e secundário e a introdução de um "ensino superior de curta duração", baseada nos institutos politécnico e nas escolas normais superiores espalhadas por todo o país e que confeririam o bacharelato. Esta reforma, fortemente inspirada na teoria do capital humano e legitimada pelas sugestões dos relatórios da OCDE (Amaral, 1998), não viria a ser completamente levada à prática, uma vez que a revolução de 1974 e a Constituição da República Portuguesa, aprovada pouco tempo depois — num ambiente político que proclamava encaminhar-se para uma sociedade socialista —, definiam regras que levavam a uma democratização do ensino que ia muito mais longe do que Veiga Simão propunha. Em todo o caso, foram ainda criadas novas universidades,20 institutos universitários, institutos politécnicos21 e escolas normais superiores destinadas à formação de professores do ensino básico (Braga da Cruz e E. Cruzeiro, 1995). Previa-se ainda a criação do numerus clausus, como meio de controlar a crescente procura de ensino universitário e aprovou-se a implementação da Universidade Católica, a primeira universidade privada no país. Parecia desenhar-se um modelo estratificado de ensino superior, faltando para isso definir mais claramente a missão de cada um destes tipos de instituições, dado que a investigação, como elemento diferenciador, continuava fora do âmbito da universidade.

Em 1986 foi homologada a Lei de Bases de Sistema Educativo, ano que marca também a entrada de Portugal na UE, passo que virá a introduzir reformas estruturais profundas em todo o sistema. Esta lei vem acentuar o carácter dual do ensino superior e atribuir um papel económico tanto a universidades como a politécnicos.

Grandes tensões entre os níveis médio e superior têm marcado a história do ensino em Portugal desde o início do século (Grácio, 1998). A lei 61/78 viria a eliminar algumas características do politécnico como ensino intermédio, elevando-o ao nível do superior.

Em síntese, o ensino superior, por razões históricas particulares, democratizou-se bastante mais tarde quem em qualquer país europeu e do que nos Estados Unidos e manteve-se vocacionado para o ensino profissionalizante. A discussão do modelo alemão, americano ou mesmo francês, não faz qualquer espécie de sentido no caso português.

Quanto à relação entre ensino e investigação, foi também um dos temas abordados no âmbito da discussão sobre a crise universitária na década de 60. Dias Agudo referia a este propósito que:

a investigação ligada ao ensino vive, em Portugal, sobretudo da dedicação de alguns professores… a estrutura universitária era pouco apropriada às exigências da pesquisa científica. A verba que o país destinava a I&D era manifestamente insuficiente — 0,3% do produto nacional bruto em 1964 —, assim como a percentagem dessa verba consagrada à investigação para o ensino superior que, nesse mesmo ano, foi apenas de 8% do total destinado à investigação. (Dias Agudo, 1969: 127)

O Instituto de Alta Cultura, fundado em 1929, esforçou-se por estimular a investigação científica, criando vários centros de investigação e enviando bolseiros para o estrangeiro, acção que, ainda segundo Dias Agudo, teria sido bem mais proveitosa se, em simultâneo, se tivessem remodelado as estruturas universitárias, que estavam organizadas em departamentos demasiado estanques, sem ligação entre si, mesmo dentro da mesma escola.

Calculava-se a existência, naquela época, de cerca de uma centena de "equipas" a fazer investigação em que, mais de metade, possuía apenas 1 ou 2 investigadores a tempo completo. Um conjunto de outros factores contribuíram fortemente para a quase ausência de investigação no ensino superior, nomeadamente a falta de pessoal técnico auxiliar, deficiente apetrechamento de oficinas, laboratórios e bibliotecas, e a pesada sobrecarga docente dos professores — fazendo com que os assistentes tivessem poucas possibilidades de fazer o doutoramento num período de tempo razoável —, os baixos salários fazendo com que:

a nossa produção científica ainda dependesse muito do espírito de dedicação de um ou outro professor… com prejuízo do ensino que a universidade devia ministrar e do papel que lhe devia caber na formação de investigadores de que o país tanto necessita para o seu desenvolvimento económico e social. (Dias Agudo, 1969)

Assim se alimentava um divórcio entre ensino e investigação nas universidades, e se acentuava a ideia do modelo napoleónico, com a diferença que a França fundava, em 1920, o Centre Nationale de Recherche Scientifique (CNRS), a quem confiava um papel — e um orçamento — de importância fundamental no desenvolvimento científico do país, à margem da universidade.

Em Portugal, a investigação ia-se fazendo basicamente nos centros implementados pelo Instituto de Alta cultura, com recursos bastante escassos, e posteriormente no INIC, que viria a desaparecer em 1992.22

Ao mesmo tempo, a fragilidade do desenvolvimento industrial e a própria especialização sectorial da indústria contribuíam para alimentar este divórcio com:

a indústria a mostrar um desinteresse quase completo pela investigação feita pelas universidades… e com a legislação a não facilitar a colaboração mútua entre as escolas superiores e os núcleos de investigação dos organismos do estado" (Dias Agudo, 1969)

Este dado é fundamental para se perceber toda a problemática actual da relação universidade-indústria e, provavelmente, do modo como o nosso sistema universitário e científico se foi construindo ao longo do tempo.

Se a situação no final dos anos 60 era esta e ainda que a Reforma de Veiga Simão tivesse sido uma oportunidade estratégica para introduzir outro modelo de organização de tipo humboldtiano,23 o ambiente criado com a revolução de 74 e a explosão no ensino superior que se lhe seguiu, colocaram na lista de preocupações do governo outras prioridades.

Segundo Gago (1995), só nos anos 80 se afirma em Portugal uma universidade de investigação, a partir de um conjunto de leis das quais as mais importantes são as que se referem ao estatuto da carreira docente universitária24 e do politécnico,25 que confere obrigatoriedade de investigação nas atribuições do docente universitário.

Em síntese, para além de um atraso de 200 anos, tratou-se de uma transformação ditada pela lei, com algumas dificuldades de implantação no terreno, quer por efeitos de uma cultura fortemente enraizada, quer pela escassez de recursos financeiros (Ruivo, 1995). É que, se os docentes passam a ser obrigados a fazer investigação, as universidades não tinham infra-estruturas capazes, nem orçamentos que viabilizassem aquela lógica, quer pelas dificuldades inerentes ao desenvolvimento do país — o que se traduzia num orçamento público muito limitado para a investigação e para o ensino superior —, quer porque a especialização produtiva (Salavisa, 1999) continuava a não ser propícia a um interesse nas actividades de C&T por parte da indústria.

O d.-l. n.º 66 de 1980 vem permitir a organização das universidades em departamentos, estabelecendo ainda como objectivo o desempenho das funções de ensino, investigação e prestação de serviços à comunidade. Podemos dizer que, do ponto de vista institucional, este decreto abre a possibilidade de transformação das universidades portuguesas naquilo a que Etzkovitz (1990 e 1997) chama segunda revolução académica, não fosse a falta de resposta — e este é um dado fundamental — do lado da indústria (Salavisa e outros, 2000).

A aplicação desta legislação teve impactes muito distintos, com maior dificuldade de concretização nas universidades mais antigas, cujas estruturas de organização e cultura interna se sedimentaram ao longo de décadas, senão de séculos. Há portanto uma grande diferença na apropriação destas medidas de política entre as universidades mais antigas e as que surgiram a partir da década de 70, variando também segundo os domínios científicos (Gago, 1995).

Em todo o caso, e a aceitarmos a interpretação de Etzkowitz, poderíamos concluir que a universidade portuguesa está a procurar fazer de uma só vez o que o resto do mundo ocidental fez em duas revoluções espaçadas por dois séculos de história. Ou seja, estamos a viver ao mesmo tempo a primeira e a segunda revolução académicas e, nesse sentido, um gigantesco processo de aprendizagem colectiva e de recomposição de saberes.

A versão portuguesa da "universidade de investigação"

E é neste quadro que chegamos a uma versão sui generis de "universidade de investigação". Com efeito, na década de 80, os professores, confrontados com a obrigatoriedade de fazer investigação — até para efeitos de progressão na carreira — e, nalguns casos, fortemente motivados para este domínio de actividade, tomaram a iniciativa de fundar centros de investigação ditos universitários, mas que têm autonomia científica, administrativa e financeira, mesmo que funcionem dentro das instalações universitárias,26 e que concorrem no mercado com empresas de consultoria na angariação de projectos de investigação para se autofinanciarem. Estas instituições aparecem nas estatísticas do sistema de C&T com a designação de "instituições sem fins lucrativos", designação onde cabe também outro tipo de instituições com carácter, origem e objectivos diferentes, nomeadamente todas as instituições de intermediação que surgiram como medidas no âmbito do Programa de Modernização da Indústria Portuguesa (PEDIP) e do Programa Ciência mais dirigido para as instituições de C&T, que contaram com financiamentos comunitários, e ainda fundações.27 Isto quer dizer que, em Portugal, boa parte das funções, incumbidas às universidades, de investigação, prestação de serviços à comunidade e mesmo de formação contínua de quadros, estão a cargo destas instituições, funcionando ainda em muitos casos como instituições de acolhimento de estudantes de mestrado e doutoramento, cujos graus são, posteriormente, conferidos pela universidade.

São instituições com um carácter híbrido, na medida em que, tendo laços muito fortes com as universidades, principalmente pelo facto de terem nascido da iniciativa de académicos e de manterem protocolos de cooperação de carácter muito variado, consoante os casos, são na realidade instituições independentes das universidades. Este fenómeno, que constitui um traço específico da organização do sistema de C&T em Portugal, é referido num relatório da OCDE que conclui que, perante a burocratização das instituições universitárias,28 "a comunidade C&T portuguesa encontrou uma resposta eficaz: as instituições sem fins lucrativos… estas instituições estão em vias de se multiplicar a uma velocidade acelerada. A tal ponto que Portugal é, de longe, o país da OCDE caracterizado pela percentagem de C&T executada pelas ISFL mais elevada da zona: 12,4% em 1990, contra 6,4 % da Islândia, 4,1% no Japão, 4% na Grã-Bretanha, 3,9% na Bélgica, 3,1% nos EUA e 2,2% nos Países Baixos (em todos os outros países, esta percentagem é inferior a 1,5%)" (OCDE, 1993).

Tanto quanto sabemos, não existe informação pormenorizada sobre este fenómeno, mas é relativamente consensual a ideia de que estamos a assistir a uma divisão funcional das actividades universitárias, em que as funções docentes e pedagógica tendem a centrar-se nos departamentos e faculdades e as actividades de I&D em Centros e Institutos que, embora ligados à universidade, podem ter autonomia administrativa, científica e financeira, ou apenas uma ou duas delas. Trata-se portanto de um modelo híbrido em que aparentemente as universidades endogeneizaram as novas funções de investigação e de prestação de serviços ao exterior, abandonando, sem grandes sobressaltos, a sua "torre de marfim de instituições de elite", fechadas sobre si próprias, mas o que na realidade se passa é que, provavelmente, se encontrou um modelo organizacional sui generis, com instituições independentes das universidades que desempenham grande parte das novas funções que lhes são atribuídas.

Esta é a nossa versão do modelo de Humboldt e é à luz deste modelo que nos parece oportuno retomar as questões que enunciámos no início: que relação entre ensino e investigação? Que tipo de saber cabe à universidade transmitir? Qual a relação entre disciplinas no seio da universidade? Em que medida a autonomia relativamente ao estado implica uma dependência do mercado e quais as consequências deste processo?

Paradoxos e equívocos na universidade: contributos para um debate sobre o futuro da universidade em Portugal

Equívoco 1: a relação ensino-investigação

Teoricamente a relação ensino-investigação tem a virtualidade de fazer progredir a ciência, a formação contínua e a actualização dos conhecimentos do docente, fazendo assim da universidade o lugar, por excelência, de produção, ensino e aprendizagem do saber científico. Mas este "ciclo virtuoso" pressupõe uma concepção de conhecimento desinteressado — leia-se independente dos interesses económicos e políticos —, à maneira de Humboldt, o que é contraditório com a formação profissionalizante de "banda estreita" que parece dominar o espírito actual das universidades portuguesas.29 Por outro lado, no cenário de uma investigação conduzida pelos interesses do mercado — admitindo que este existe —, a necessária formação geral de base deixa de ter espaço e corre-se o risco de formarmos "quadros superiores especilizados cidadãos funcionais ignorantes".

Esta contradição (Santos, 1994) faz com que grande parte dos docentes leccione cadeiras cujo conteúdo está desligado das suas actividades de investigação, o que, para além da sobrecarga de trabalho, se reflecte na qualidade do ensino e da investigação.30 O ciclo torna-se então vicioso, na medida em que está na base das controvérsias críticas à universidade e que têm origem neste equívoco que convém esclarecer, sob pena de estarmos a usar as mesmas palavras para falarmos de coisas distintas quando nos referimos, por exemplo, à qualidade de ensino ou às expectativas, porventura infundadas, que se geram nos docentes, nos alunos, nas famílias, nas empresas e na sociedade em geral.

Esta é, a nosso ver, uma questão de fundo que não pode ser deixada ao livre arbítrio da "mão invísivel" do mercado dos estabelecimentos do ensino superior, a coberto da autonomia universitária.

Equívoco 2: que tipo de saber deve a universidade transmitir?

A resposta a esta questão depende naturalmente do que designámos como " equívoco 1".

Num contexto de massificação do ensino superior, a par de um grave problema de desemprego na Europa, a tentação de equiparar as universidades a "escolas profissionalizantes", que produzem competências "prontas a usar" pelo mercado, para favorecer a integração profissional dos licenciados, é compreensível. Mas, se a "nova ideia de universidade" é essa, então todo o sistema deve ser reorganizado em conformidade. Esse princípio é contraditório, por exemplo, com uma "universidade de investigação" e com uma "formação pela investigação" — só possível aos níveis de pós-licenciatura — e ainda mais contraditório com as exigências que são feitas à actual carreira docente universitária. Acresce que este modelo pressupõe, no caso de Portugal, que a esfera económica se transforme no sentido de poder comprar os "produtos da universidade" — sejam eles indivíduos licenciados ou saber formalizado em textos ou protótipos —, questão que não desenvolveremos aqui.

Equívoco 3: sobre o problema da multidisciplinaridade

Parece ser consensual, pelos menos ao nível do discurso, que a multidisciplinaridade é o caminho para o desenvolvimento da chamada ciência pós-académica. Alguns programas de C&T europeus procuram já induzir uma lógica deste tipo. Ora, a admitir que a universidade é um lugar importante de produção do conhecimento científico — mesmo que não tenha o monopólio —, a assumpção daquele princípio levada às últimas consequências implica uma revolução na organização interna da universidade, sabendo que as faculdades e os departamentos surgiram exactamente na sequência de uma organização disciplinar e especializada do conhecimento. A coerência deste modelo implica também que a organização dos cursos, a divisão em licenciaturas cada vez mais especializadas e a própria organização da carreira docente estejam feitas com base na ideia de especialização disciplinar.

Fazendo tábua rasa de tudo isto, a questão de multidisciplinaridade aparece geralmente associada à ideia de formação de equipas compostas de múltiplas especializações, flexíveis e temporárias, à maneira de Gibbons (1994). Assumir esta posição é ignorar o que a sociologia do trabalho e das organizações tem demonstrado até à exaustão: as culturas e identidades profissionais (Sainsaulieu, 1977; Dubar, 1991; Oliveira, 1998), as relações de poder e estratégias de afirmação no seio das organizações (Crozier e Fiedberg, 1977; Sainsaulieu, 1987) e entre disciplinas (Serres, 1996; Caraça, 1999).

É por isso que as experiências deste tipo são, geralmente, mal sucedidas.

Equívoco 4: autonomia perante o estado versus dependência do mercado

Esta questão está intimamente ligada com as anteriores e, naturalmente, com a clarificação da missão da universidade.

Em primeiro lugar, sublinhemos que a "ciência como procura da verdade", a que também se chama investigação fundamental, não deve ser confundida, como correntemente acontece, com investigação fundamental por oposição a investigação aplicada. A investigação fundamental pode e deve ter uma componente aplicada, sob pena de a ciência se tornar pura retórica. O que é essencial nesta controvérsia é a definição dos objectivos da própria investigação, ou seja, termos um modelo de ciência "como procura da verdade" — e é neste sentido que é desinteressada —, ou uma ciência como "procura de resposta aos interesses económicos e políticos". É esta divisão que no passado marcou a diferença entre:

· investigação académica, feita nas universidades;

· investigação industrial, feita nas empresas;

· investigação de apoio à tomada de decisão política, feita nas instituições de investigação que funcionam dentro da esfera política (gabinetes de estudos e institutos associados a ministérios).

Na ciência "pós-académica" esta diferença tende a diluir-se. Ora a ciência tradicional, apesar das vicissitudes do percurso, teve um papel inegável na promoção e legitimação de uma cultura crítica, não rejeitando a sua base experimental.

Esta é uma questão da maior importância, na medida em que extravasa largamente o âmbito da universidade para se tornar numa questão de civilização, mas que convoca os académicos, como elite intelectual e protagonistas importantes neste processo, a pronunciarem-se sobre o assunto.

Se a sobrevivência da ciência depende cada vez mais dos clientes, sejam eles instituições públicas ou empresas privadas, corre seriamente o risco de se tornar, também ela, uma ciência politicamente correcta. Esta é uma questão que deve ser incluída na problematização da "sociedade do risco" (Beck, 1992), já que as consequências de um cenário deste tipo poderiam ser trágicas se acreditarmos, como diz Caraça (1999), que a ciência funcionou sempre como um meio indispensável para a construção de uma visão do mundo.

 

 

Notas

1    Para uma explicitação em linguagem sociológica desta tese oriunda da economia, e suas implicações na recomposição dos saberes, cf. Luisa Oliveira e Raul Lopes (orgs.) (1996), Estudo socioeconómico da Marinha Grande e Área Envolvente: Avaliação de Potencialidades, Lisboa, Ed. IEFP.

2    Entende-se por inovação tecnológica um novo produto (final ou intermédio) comercializável, isto é, não basta ser "uma novidade" se não se puder transformar em mercadoria. Para uma discussão do conceito de inovação, cf. Luísa Oliveira (2000), Para uma Abordagem Sociológica do Conceito de Inovação. Relatório para a Fundação de Ciência e Tecnologia, Lisboa.

3    Para uma discussão do conceito de "investigação industrial", cf. Bowker, Geof, " O desenvolvimento da investigação industrial", em Serres, Michel, (org), (1996), Elementos Para uma História das Ciências III, de Pasteur ao Computador, Lisboa, Ed. Terramar.

4    Aliás, o Japão parece ter compreendido e resolvido satisfatoriamente esse problema, através de uma "política de recrutamento e gestão dos recursos humanos" pelas empresas, adequada a um certo tipo de relação entre universidade e indústria. Cf. in Jolivet, Muriel (1985), L’Université au Service de l’Économie Japonaise, Paris, Ed. Economica.

5    Para uma distinção entre educação e ensino ver Rodrigues, Maria João, (1991), Competitividade e Recursos Humanos, Lisboa, Ed. D. Quixote.

6    Modelo que mereceu o nome de "modelo napoleónico" para acentuar essa mesma especificidade.

7    O NCR coordenou a mobilização da ciência durante a primeira guerra e continuou no período de paz como uma espécie de instituição de intermediação com o objectivo de desenvolver uma cooperação estreita entre indústria e ciência académica.

8    É o caso, por exemplo, de uma empresa alemã do sector químico que, entre 1981 e 1991, financiou, em 70 milhões de dólares, o Hospital Geral de Massachussets em Boston.

9    Quer dizer, as empresas, para reduzirem os custos, diminuem o emprego, quer por via dos despedimentos, quer pelo travão ao recrutamento. O desemprego, assim gerado, deve solucionar-se pela transformação dos desempregados em empreendedores e os jovens devem também criar o seu próprio emprego. É com base nesta filosofia que se fala em universidades empresariais e docentes empreendedores.

10    Usamos esta designação para distinguir da "nova ciência", à falta de melhor designação.

11    O sublinhado é nosso.

12    Para uma definição de identidade profissional no quadro da questão da recomposição de saberes, cf. Luísa Oliveira (1998), Inserção Profissional, Lisboa, Ed. Cosmos.

13    Num movimento inverso ao que se desenvolveu no tempo de Homboldt, em que os americanos vinham à Europa copiar o modelo de Berlim.

14    Evidentemente que este raciocínio também se aplica a outras disciplinas, questão que nos levaria a uma discussão epistemológica que não cabe no âmbito deste texto. A língua inglesa é bastante clara, ao distinguir economics (teoria económica) e economy (a economia real).

15    Ver entrevista de Philippe Busquin, comissário europeu da investigação, "A Europa tem de voltar a ser atractiva", jornal Público de 6 de Março de 2000

16    Para uma tentativa de leitura da situação portuguesa a partir da perspectiva da Triple-Helix, cf. Luísa Oliveira (1999), "Societal coherence and the new ways of production of knowledge: the case of Portugal", Comunicação à IV European Sociological Conference "Will Europe work?", Amesterdão.

17    Veja-se, a título de exemplo, Bengt Lundval e Susana Borras (1997), The Globalization of Learning Economy: Implications for Innovation Policy: Repport Based on the Preliminary Conclusions from Several Projects under the TSER Programme, DGXII.

18    Tipologia inspirada em Rodrigues, Maria João (1988), O Sistema de Emprego em Portugal, Crise e Mutações, Lisboa, D. Quixote.

19    A escolaridade obrigatória era, nesta altura, apenas de 4 anos.

20    Universidade Nova de Lisboa, Universidade do Minho e Universidade de Aveiro e vários institutos superiores em Évora e nos Açores que deram, posteriormente, origem a universidades.

21    O Instituto Politécnico da Covilhã e o Instituto Politécnico de Vila Real que também deram origem a universidades.

22    Para um desenvolvimento deste tema, cf. Luísa Oliveira (org.), (1999), Monograph of National Higher Education and Research Systems: Relatório no Âmbito do Projecto "Innovation et Systèmes d’Enseignment Supérieur, Programa TSER, DG XII

23    Como se chegou a tentar na Universidade Nova de Lisboa, cf. Gago, 1995.

24    D. -l. n.º 448/79, lei n.º 19/80.

25    D. -l. n.º 185/81.

26    O que lhes permite uma maior flexibilidade de funcionamento já que se vêem livres do peso burocrático da organização universitária a que estão ligados por via do ensino ou de actividades de gestão.

27    Nomeadamente a Fundação Gulbenkian da Ciência, a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento e a Fundação para o Desenvolvimento dos Meios Nacionais de Cálculo Científico.

28    Num relatório da OCDE, datado de 1993, sobre a análise das políticas portuguesas de ciência e tecnologia.

29    É significativo que, na avaliação do ensino superior, um dos indicadores que tem sido referido como importante seja a informação relativa à inserção profissional dos diplomados, o que algumas universidades já tomaram a iniciativa de fazer. Isto é, a universidade tem uma avaliação tanto mais positiva quanto mais for capaz de produzir competências à medida do nosso mercado de trabalho.

30    A ausência de estudos nesta matéria é, no mínimo, surpreendente. Sobre esta questão, ver nomeadamente Alestalo & Peltola, 2000, sobre o caso da Finlândia que, segundo Busquin, é o país europeu com melhor ligação entre universidades e empresas. Cf. entrevista ao jornal Público já citada.

 

 

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*Luísa Oliveira, docente do ISCTE, investigadora no DINÂMIA.
E-mail: luisa.oliveira@iscte.pt

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