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Sociologia, Problemas e Práticas

versão impressa ISSN 0873-6529

Sociologia, Problemas e Práticas  n.62 Oeiras abr. 2010

 

Patrulha e proximidade: Uma etnografia da polícia em Lisboa

[Susana Durão, 2008, Coimbra, Almedina]

 

João Freire

Investigador do CIES-IUL. E-mail: joao.freire@mail.telepac.pt

 

Este livro, que apresenta a um público mais amplo a tese de doutoramento em antropologia social de Susana Durão, merece ser bem divulgado, a mais de um título.

O assunto é de actualidade, mas também perene e de relevante interesse para a comunidade: a polícia, em particular aquela que anda nas ruas das nossas aglomerações urbanas é, indiscutivelmente, um elemento activo da vida social, implicada na segurança dos cidadãos e na ordem pública, mas que carrega com ela (em particular num país como Portugal) uma imagem pouco favorável de discricionariedade e abuso da força legal que lhe é atribuída, ou então de desleixo e pouco empenhamento na sua missão. Além disso, como instituição especializada na verificação da observância da lei por parte dos indivíduos, sempre levanta a inevitável questão de ela própria poder eximir-se ao cumprimento da mesma (ou, dito de outra forma: “como fiscalizar os nossos fiscais?”).

A investigação científica que lhe está na base é surpreendente pela dimensão, o rigor e a exigência a que obrigou a sua autora. A abordagem etnográfica e a metodologia da observação participante levou a investigadora a uma permanência junto dos agentes de rua e de uma unidade organizacional elementar de inserção no meio urbano, a esquadra, ao longo de todo o ano de 2004. Mas a esta progressiva intrusão e familiarização no meio policial, com o seu cortejo de procedimentos técnicos, antigos (v. g., o “diário”, o mapeamento de trajectos, etc.) e modernos (recolha de imagens), foi completada com uma vasta análise de documentos e registos escritos, o lançamento de um questionário e uma campanha de entrevistas a várias dezenas de agentes, chefes e oficiais de polícia — instrumentos de uso mais habitual por parte dos sociólogos.

Uma tal participação do analista nas acções quotidianas da polícia, acompanhando mesmo os agentes nas tarefas de patrulhamento de rua, a pé e em viatura, observando interpelações, detenções, participações e outras “ocorrências”, implicou a superação de problemas óbvios de identificação, para a qual Susana Durão estava bem alertada pelo domínio de uma extensa bibliografia especializada e pelo treino previamente adquirido sobre outros objectos de estudo (nomeadamente no caso dos tipógrafos). Como ela refere: “Assim que me envolvi nas patrulhas fui associada aos agentes e foi como se tivesse passado para o ”lado deles” (p. 49); “Poder acompanhar os ocasionais trabalhos à civil iniciou-me logo nos aspectos mais secretos e nem sempre lícitos da actividade, mas também me permitiu entender dados essenciais das carreiras e das trajectórias” (p. 50); “Os efeitos da minha presença nas atitudes e autocontrolo dos polícias não são fáceis de medir. Tanto podiam querer ”mostrar trabalho” como moderar a reactividade e o uso da força face a algumas figuras da droga, por exemplo, que podiam ser alvo fácil para polícias. […] Assim como reconheço as vantagens da observação-participante, nunca tive ilusões quanto às suas limitações. Os temas da violência e da corrupção nos actos e conversas com polícias eram tangenciais e facilmente se tornava perceptível a tendência, calculada, para manter algum nível de generalizado silenciamento” (p. 51); “Mesmo na fase mais intensa dos turnos, os agentes não me colocaram em situações em que tivesse de arriscar uma imparcialidade que podia também afectá-los. […] Fui muitas vezes uma mera espectadora, por vezes atónita, e à espera que as situações terminassem para então dialogar. Em algumas ocasiões fui mais participante do que observadora […] Em poucas semanas deixei de sentir o peso do olhar sobre mim nas ruas. Do lado de lá não surgiram grandes equívocos, mas mais a dúvida sobre que tipo de polícia ou funcionária do Estado seria. […] A maior parte das vezes era simplesmente a ”colega dos polícias” (p. 53) — eis um conjunto de frases esparsas onde se percebe a delicadeza e dificuldade do exercício, ao mesmo tempo que a aguda consciência e controlo da autora sobre a situação relacional vivida.

No capítulo preliminar, esboça-se um quadro geral dos estudos sobre as polícias, e suas principais perspectivas teóricas e disciplinares, ao mesmo tempo que são explicitados os motivos e os objectivos analíticos que orientaram esta investigação. Assim, clarifica-se a ideia de que, embora com um indispensável esboço do funcionamento da instituição policial nacional (estamos a falar da Polícia de Segurança Pública, cuja origem fazem remontar a 1867 mas será essencialmente uma obra da República), aquilo que, problematicamente, mais interessa à autora são as formas de trabalho dos indivíduos na organização, a gestão que fazem do cumprimento das tarefas de que estão incumbidos (e para as quais foram formados), do modo como, nesse desempenho, são avaliados e recompensados (ou prejudicados no seu processo de carreira profissional, ou mesmo punidos disciplinarmente), em interacção com superiores, iguais, subordinados e sobretudo com “os públicos” (para além das obrigações e expectativas que lhes conferem os seus papéis familiares e os seus interesses particulares), em contextos marcados pela rotina quotidiana e o conhecimento do “terreno” (e dos seus problemas), mas também com a noção da existência de um risco (acidente, violência, descontrolo) que nunca se afasta completamente dos seus horizontes.

O livro compreende mais sete capítulos numerados: no primeiro fala-se da cultura das organizações policiais, com uma ampla revisão da literatura estrangeira existente e muito actualizada, donde ressalta a ideia da pluralidade de culturas porventura existentes no seio de uma instituição estatal como é a polícia moderna; e, além disso, a noção de que, longe de se esgotar numa racionalização desenhada pelas normas formais e os regulamentos, a “organização se vai fazendo”. E também se descreve a evolução mais recente da PSP, sobretudo depois que os seus comandos deixaram de ser exercidos por oficiais do exército, que se reestruturaram as carreiras profissionais do pessoal (de certa forma, em paralelo com a concessão de um direito de sindicalização condicionado) e que à instituição foram confiadas algumas funções de investigação criminal; o segundo capítulo faz-nos mergulhar no microcosmos de uma esquadra de bairro, com um efectivo de uma cinquentena de pessoas, a quem diariamente e mediante a técnica das “escalas” (e outras) são distribuídos serviços internos e externos, regulares e ocasionais, individuais ou grupais, na ampla panóplia de acções policiais desenvolvidas, por iniciativa própria ou em resposta a uma solicitação ou situação criada, na sua área territorial de actuação, “esquadrinhada” em zonas e itinerários intencionais; no capítulo 3 analisam-se os documentos processuais da vida policial nas esquadras, constantes principalmente dos “registos de ocorrências”, que contêm um enorme manancial de informação, nem sempre eficaz para atender às queixas dos cidadãos e à administração da justiça, mas indispensáveis para uma compreensão dos processos sociais que se desenvolvem dentro da instituição, e entre ela e a população. É em tal contexto que é pronunciada a frase irónica de que “a caneta é a nova arma dos polícias”; no capítulo 4, com apoio em extractos do “diário de campo” da autora, são ilustrados diversos tipos de acção na rua que os polícias são recorrentemente chamados a efectuar, daqui resultando umas “classificações alternativas” (às tipificações formais), produto das vivências colectivas da profissão; também das observações directas das acções policiais na rua é feito o quinto capítulo, mas agora focando as interacções entre agentes e “populares”, com algum apoio bibliográfico estrangeiro, específico para este tema; finalmente, nos capítulos 6 e 7 são descritos os estilos policiais (no dizer dos próprios: os “profissionais”, os “malucos”, os “duros”, os “baldas” e os “certinhos”, pelo menos), os efeitos do tempo-longo sobre as atitudes dos agentes, com o cansaço da rua, o aproveitamento das transferências, mobilidades e outras ocupações mais diferenciadas.

O texto conclusivo repega nas principais ideias-força que se desprendem do anteriormente exposto, interpretando-as nas tensões e ambiguidades que se geram entre a vida profissional de polícia, os constrangimentos e negociações da sua estrutura organizacional, e o meio social urbano onde actuam. Várias figuras, esquemas, fotos, etc. integram um curto, mas útil, anexo.

Para além do excelente exercício de etnometodologia que Susana Durão oferece aos seus colegas das ciências sociais, e do conhecimento que a todos nos transmite sobre os polícias (e a Polícia) de Portugal, duas impressões nos restam ainda desta leitura: a primeira, de carácter mais propositivo, é que gostaria de ver mais aprofundado o estudo das mudanças trazidas pela feminização deste corpo policial, desde que tal processo se iniciou há uma vintena de anos atrás, tal como, de resto, o impacto do sindicalismo na profissão; a segunda, mais emocional, que recorda como a famosa série televisiva Hill Street Blues nos terá servido a todos para humanizar a nossa visão dos polícias, e a estes talvez para se humanizarem um pouco mais no cumprimento da sua missão.

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