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Sociologia, Problemas e Práticas

versão impressa ISSN 0873-6529

Sociologia, Problemas e Práticas  n.66 Oeiras maio 2011

 

As classes sociais já não contam? Advocacia e reprodução social

 

Miguel Chaves* e João Sedas Nunes**

* Docente na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e investigador do Cesnova. E-mail: miguel.chaves@fcsh.unl.pt

** Docente na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e investigador do Cesnova. E-mailjoaosedasnunes@fcsh.unl.pt

 

Resumo

O crescimento numérico que a advocacia sofreu internacionalmente, nas últimas décadas, foi muito intenso, gerando junto dos profissionais a percepção de que se verificou um amplo desmantelamento das condicionantes que pautavam o acesso à profissão e, no seu interior, às posições mais capitalizadas. Recorrendo a um estudo centrado na advocacia portuguesa, observar-se-á que essa leitura não é correcta — a segmentação interna que a profissão regista, hoje em dia, permite que continue a ser utilizada eficazmente nos processos de reprodução das classes dominantes. Demonstrar-se-á ainda que os mecanismos pelos quais esse processo opera contribuem para o ocultar, pois tendem a ser reduzidos a factores que radicam numa concepção associal do mérito individual.

Palavras-chave reprodução das desigualdades, advocacia, classes sociais, meritocracia.

 

Social classes matter no more? Advocacy and social reproduction

Abstract

Internationally, advocacy has known a significant growth in the last decades, breeding herein the professionals the perception that there has been a wide dismantlement of the constraints which regulated the access to the profession and, within, the most capitalized positions. Making a study based upon the Portuguese advocacy its keystone, the fallacy of this idea will be uncovered — advocacy’s inner segmentation today allows it to remain a topos of the reproduction of the dominant classes. It will also be stressed that the mechanisms that steer this process contribute to conceal it, for they tend to be shorten to factors rooted in an asocial conception of the individual merit.

Keywords inequality reproduction, advocacy, social classes, meritocracy.

 

Les classes sociales ne comptent plus? Le métier d’avocat et la reproduction sociale

Résumé

La grande augmentation du nombre d’avocats observée ces dernières décennies à l’échelle internationale a suscité chez ces professionnels la sensation qu’il y avait eu un assouplissement des conditions d’accès à la profession et, au sein de celle-ci, aux positions les plus capitalisées. À partir d’une étude centrée sur les avocats portugais, cet article nous montre que cette perception est fausse — la segmentation interne au sein de la profession, telle qu’elle se présente de nos jours, lui permet de continuer d’être utilisée efficacement dans les processus de reproduction des classes dominantes. Il démontre également que les mécanismes par lesquels ce processus s’opère contribuent à le cacher, car ils tendent à se limiter à des facteurs fondés sur une conception asociale du mérite

Mots-clés reproduction des inégalités, avocats, classes sociales, méritocratie.

 

Las clases sociales ya no cuentan? Abogacía y reproducción social

Resumen

El crecimiento numérico que la abogacía sufrió internacionalmente en las últimas décadas, fue muy elevado, generando en los profesionistas la percepción de que se verificó un amplio desmantelamiento de las condicionantes que marcaban el acceso a la profesión, y en su interior, a las posiciones más capitalizadas. Recurriendo a un estudio centrado en la abogacía portuguesa se observa que esa lectura no es correcta — la segmentación interna que la profesión registra hoy en día, permite que continúe siendo utilizada eficazmente en los procesos de reproducción de las clases dominantes. Se demuestra, además, que los mecanismos por los cuales ese proceso opera contribuyen para ocultarlo, pues tienden a ser reducidos a factores que radican en una concepción asocial del mérito individual.

Palabras-clave reproducción de las desigualdades, abogacía, clases sociales, meritocracia.

 

De uma velha profissão e de um velho problema sociológico

Na sequência da expansão do número de indivíduos com formações superiores, assistimos, nas últimas décadas, em muitas sociedades, a um grande crescimento e alargamento da base social de recrutamento de certos grupos profissionais que ao longo de séculos funcionaram como canais de reprodução de classes dominantes. Em Portugal, é sem dúvida o caso da advocacia.

Tanto dentro como fora da abordagem sociológica essa ampliação tem sido equacionada, muitas vezes, como um fenómeno que conduz necessariamente a uma descapitalização económica, simbólica e intelectual desses colectivos, e como um indício de que estes deixariam de funcionar como um dos meios eficazes de reprodução das classes dominantes nas sociedades onde se encontram sediados. O raciocínio é, em essência, similar ao que se vem aplicando há muito ao campo universitário. Uma vez democratizado o acesso às profissões, o inflacionamento dos títulos e das prerrogativas neles contidos não pode deixar de suceder, esboroando-se o seu valor relativo.

A “tese do inflacionamento” não se encontra necessariamente errada (Nunes, 2011: 591-592). Mas importa frisar que nela se tende a propor uma leitura generalista e pouco rigorosa (Maurin, 2007: 157-168; 2009: 52-73), leitura que contribui para escamotear o papel que estes grupos, e o uso que deles é feito pelos diferentes colectivos e indivíduos, continuam a deter na reprodução das classes dominantes em diversos países.

No limite, a referida tese ditaria mesmo uma espécie de interdito analítico, transmitindo a imagem de que os grupos profissionais (com excepção dos que contam com restrições de acesso muito marcadas, como é o caso da medicina) já não constituem — à semelhança do que sucederia com o próprio campo universitário — loci adequados para dar conta dos processos de reprodução social das classes dominantes. Para uns, essa “constatação” aconselharia simplesmente a que se procurasse analisar tais processos por outras vias; para outros, porém, não estaríamos senão perante mais uma “prova” do carácter anacrónico da problemática da reprodução das desigualdades sociais, proclamado pelas teorias anticlasse (Atkinson, 2010).[1] Se os processos de selecção social (já) não se observam à transparência no momento do acesso dos indivíduos a certas instâncias (grupos profissionais, universidade, etc.) anteriormente propulsoras do seu posicionamento na hierarquia social, isso significaria que tais processos se tornaram eles mesmos quasi-insignificantes, analiticamente espúrios.

Porque é que a pré-noção de que certos grupos profissionais se esgotaram enquanto canais de reprodução social se foi impondo e difundindo, perturbando, em nosso entender, a análise sociológica?

Os motivos são vários. Entre eles destacamos a pouca importância analítica que tem sido conferida, nos estudos levados a cabo sobre a problemática da reprodução social, ao processo de segmentação hierárquica interna dos grupos e categorias profissionais, identificado por vários autores (por exemplo: Abbott, 1988; Bucher e Strauss, 1961; Carapinheiro, 1991). Se se preferir, a pouca relevância dada ao facto de que os processos de selectividade social já não podem ser apreendidos com tanta nitidez confrontando as populações que ingressam nos campos profissionais (mas também no ensino superior) com as que deles se encontram excluídas. Hoje há que observar o interior desses campos, “contemplando os seus distintos segmentos hierarquizados e o modo como estes acolhem diferenciadamente populações de diferentes extracções sociais” (Chaves, 2010: 333). Como referem Fitoussi e Rosanvallon (1997: 41-42) as “novas desigualdades” “procedem da requalificação de diferenças no interior de categorias consideradas anteriormente homogéneas. […] são, por conseguinte, antes de tudo ‘intracategoriais’”.

Centrando-nos na advocacia, grupo profissional estranhamente abandonado pela análise sociológica portuguesa (Chaves, 2010), argumentamos que, uma vez identificada a segmentação interna da profissão e os mecanismos de selecção que aí têm lugar, ficaremos em condições de observar que as posições cimeiras da hierarquia profissional são, na sua maioria, apropriadas por indivíduos provenientes de posições capitalizadas na estrutura social. Mas veremos igualmente que os mecanismos através dos quais opera a reprodução das desigualdades contribuem, dada a sua natureza, para ocultar esse processo, uma vez que são reduzidos, em grande parte das interpretações, a dispositivos de índole meritocrática.

Antes de prosseguir importa clarificar que a concepção de classe social que aqui mobilizamos é assumidamente bourdiana. Não nos deteremos numa revisão crítica dessa concepção. Os princípios da sociologia das classes sociais de Bourdieu têm sido suficientemente escalpelizados em numerosos artigos e investigações, produzidos no quadro da sociologia portuguesa (Pereira, 2005; Silva, 2010) e além-fronteiras. Queremos, mesmo assim, avançar a definição sintética proposta por Atkinson (2010) em texto recente. Além de esclarecedora, faz jus à definição conceptual e aos usos empíricos que Bourdieu (mas também o próprio Atkinson) emprestou à noção em diversas investigações por si conduzidas. As classes sociais são definidas como

clusters de pessoas com reservas de capital semelhantes , condições de existência e habitus considerados conjuntamente para fins analíticos; são caracterizadas pelas suas “posições relativas” em relação às outras (classes) estruturadas em “dominante” (grande volume de capital), “dominada” (baixo volume) e “intermédia”, não por propriedades “substanciais”, traços ou condutas que se lhes associem — como ocupações particulares, concretas, efeitos, disposições ou práticas reveladoras de estilos de vida específicos. (Atkinson, 2010: 14)

Os dados em que nos apoiamos provêm da aplicação de um inquérito representativo com base no qual se procurou analisar o processo de inserção de jovens advogados de Lisboa no campo da advocacia portuguesa, recobrindo os primeiros cinco anos de ingresso na profissão (Chaves, 2010). O universo foi constituído por todos os indivíduos com idade inferior a 35 anos inscritos na Ordem dos Advogados na comarca de Lisboa entre 1 de Janeiro de 1998 e 31 de Dezembro de 2002.

 

Advogado: uma profissão selecta?

Em Portugal, a advocacia tem vindo a sofrer um crescimento intenso nas últimas três décadas. Nos primeiros três anos do século XXI a média de novas inscrições anuais na Ordem dos Advogados (OA) ultrapassou as 2000, tendo-se alcançado, em 2002, o patamar record de 2160 (Caetano, 2003: 68). Graças a este ritmo, o número de indivíduos matriculados na OA atingiu, no final de 2003, 31.183, sendo que, destes, 21.871 exerciam efectivamente a profissão. Tal “retrato” contrasta vivamente com o que se obtinha na primeira metade da década de 1960, período em que as novas inscrições anuais não ultrapassavam a centena.[2]

Este incremento espectacular permitiu que acedessem à profissão do foro elevados contingentes de indivíduos provenientes de classes sociais que antes apenas se encontravam aí residualmente representadas. Suscitam-nos porém resposta bastante crítica duas observações que a partir desse dado são geralmente esboçadas, dentro e fora do campo profissional. Uma primeira afirma que o ingresso na advocacia já não traduz qualquer processo de selecção social. Uma segunda sugere que essa profissão jurídica deixou de funcionar como meio eficaz de reprodução de classes dominantes no Portugal contemporâneo. Reservaremos grande parte deste texto ao propósito de desmontá-las.

Um exercício simples é suficiente para notarmos que a selecção social no acesso à profissão continua a operar. Basta confrontarmos os graus de escolaridade dos pais e das mães dos jovens advogados com os níveis de instrução dos indivíduos que, na população portuguesa, se encontram próximos das faixas etárias desses progenitores para constatarmos a enorme discrepância existente entre as duas populações. Os ascendentes dos jovens advogados apresentam níveis de escolaridade bastante superiores (quadro 1). Enquanto na população portuguesa entre os 45 e os 54 anos tais níveis de instrução foram alcançados por menos de 10% dos indivíduos (Machado e outros, 2003: 57),[3] junto dos jovens advogados as proporções de progenitores que os atingiram ascendem a 44,3% (47% no caso do pai e 41,6% no da mãe). Como seria de esperar, se consideramos o primeiro ciclo do ensino básico (escolaridade primária) a relação inverte-se. Enquanto a incidência desta instrução na população portuguesa situada no intervalo etário supracitado supera a metade, queda-se, junto dos progenitores dos jovens advogados, pelos 20,7%. Este contraste prolonga-se para o plano inferior da vereda escolar — avultando nesse patamar o peso residual dos pais de jovens advogados sem qualquer instrução.[4]

 

Quadro 1 Comparação dos níveis de escolaridade dos pais dos jovens advogados com os níveis de escolaridade da população portuguesa (em percentagem)

 

E, adoptando agora uma outra perspectiva: quais seriam as características sociais das “famílias de origem” dos jovens advogados se, em lugar do nível de instrução, procurássemos analisá-las a partir das classes socioprofissionais? Tornar-se-ia, nesse caso, evidente que as classes socioprofissionais dos empresários, dirigentes e profissionais liberais e dos profissionais técnicos e de enquadramento (as mais capitalizadas) são, de novo, claramente maioritárias, perfazendo no seu somatório 69,9% dos pais e 46,8% das mães (quadro 2).[5] Este (duplo) exercício permite rebater sem margem para dúvidas a ideia da ausência de selectividade social no ingresso ao grupo profissional.

 

Quadro 2 Classes socioprofissionais dos pais dos jovens advogados (em percentagem)

 

Abrindo um parêntese, notar-se-á que, se antecipássemos a observação do momento de ingresso no campo profissional para o da entrada na universidade, constataríamos, decerto, que a selectividade já se manifestaria no momento do próprio ingresso nas faculdades de Direito (Chaves, 2010). Como sucessivos estudos foram demonstrando nos últimos 15 anos (Cruz e Cruzeiro, 1995; Grácio, 1997; Balsa e outros, 2001; Almeida e outros, 2003; Mauritti, 2003, entre outros), embora atenuado, persiste na sociedade portuguesa um sensível “efeito de capital económico e cultural” quando toca a recrutar os estudantes do ensino superior, constatação que não nos deve porém levar a subestimar o essencial. Como já referimos, a forma mais fecunda de analisar a reprodução das desigualdades passa, hoje em dia, não tanto por confrontar as características dos que ficam de fora do sistema universitário com as dos que nele ingressam, quanto por observar o interior desse sistema, comparando as diversas escolas e cursos num espaço que não se confina às fronteiras nacionais. É num campo universitário internacional e globalizado que as elites jogam e fazem valer, hoje em dia, os seus trunfos (Almeida e outros, 2004; Altbach e Knight, 2007; Brezis, 2010).

Mas retomando a digressão central, se já realçámos que identificar a especificidade de perfil social das populações que transpuseram os umbrais da advocacia é um passo necessário para comprovar que a profissão do ad vocatus continua a ser um veículo de reprodução social das classes dominantes, ele não permite, por si só, aferir até que ponto essa instrumentalização é eficaz, e através de que processos se concretiza. Para tal será necessário sondar o campo profissional, caracterizando os seus segmentos internos e avaliando, de seguida, se as classes dominantes acedem, de facto, às posições mais bem cotadas, fugindo, simultaneamente, aos segmentos periféricos do mercado profissional — aqueles que, no juízo desclassificador dos pares, arrastam, na tentativa vã de aí permanecerem, a profissão no seu conjunto para além dos “limites mínimos da dignidade”.

São várias as obras que ao longo das últimas décadas se têm referido à segmentação interna da profissão do foro (por exemplo: Abel, 1989; Seron, 1997; Karpik, 1995), parte das quais procurando documentá-la à luz do processo de transformação que a advocacia contemporânea tem sofrido à escala global, no sentido de, grosso modo, se adaptar e tirar partido da evolução da economia capitalista (por exemplo: Flood, 1996; Dezalay e Sugarman, 1995; Karpik, 1995), orientando-se para as empresas e organizando-se de forma empresarial.

No entanto, se essa literatura teve uma importância central na nossa reflexão a propósito da segmentação interna da advocacia portuguesa, ela contém, na óptica da abordagem que aqui privilegiamos, uma falha. Por regra não perspectiva a segmentação interna da profissão em termos hierárquicos, omitindo o modo como se processa a distribuição dos indivíduos recém-chegados pelas diferentes categorias, identificando as suas proveniências sociais. Procuraremos, nesta análise, ultrapassar essa lacuna.

 

Entre a hierarquia profissional e a hierarquia social: desigualdade e distinção entre advogados

Graças à utilização de dois tipos de metodologia complementares de estatística exploratória multidimensional — análise de correspondências múltiplas (ACM) e análise classificatória (análise de clusters) —, foi possível distinguir quatro segmentos de profissionais na advocacia juvenil lisboeta (denominámo-los “classes de situação profissional”). Esses segmentos permitem (a) agregar os jovens que partilham posições profissionais próximas e (b) delinear os conteúdos e contornos dessas posições. As variáveis e as modalidades mobilizadas na construção desses segmentos derivaram de sete dimensões: (1) modo de exercício da profissão; (2) tipo de clientes; (3) padrões de carreira; (4) situação económica; (5) saberes e competências; (6) posicionamento face a certos aspectos ético-deontológicos; e (7) posicionamento face a alguns aspectos estruturais de transformação da advocacia portuguesa contemporânea.[6]  

Jovens advogados em situação precária (classe 1): exercem a advocacia de forma “tradicional” em pequenos escritórios, a título individual, ou sob a dependência de um advogado sénior, mesmo tendo clientes próprios. Os inscritos nesta classe desenvolvem a advocacia de forma autónoma, seguindo o protótipo do profissional liberal. Verifica-se aqui um centramento claríssimo nos pequenos clientes, muitas vezes com reduzido nível de solvência. É também frequente a realização de defesas oficiosas. O montante de rendimentos auferidos é baixo e particularmente irregular. É igualmente mais reduzido do que nas outras “classes” o tempo de trabalho diário, de tal forma que o trabalho e os clientes surgem como “bens raros”. Finalmente, regista-se neste grupo uma clara sobrerrepresentação da prática do Direito Penal.

Advogados independentes em escritórios de média dimensão (classe 2): do ponto de vista dos modos de exercício da advocacia, aproximam-se dos da classe anterior; encontramos formas de exercício individuais com partilha de despesas de escritório, e um número considerável de advogados que trabalham com um advogado sénior, desejando, muitas vezes, adquirir autonomia em momentos posteriores da sua carreira. O exercício da advocacia é sobretudo generalista, verificando-se também uma sobrerrepresentação do Direito Civil e do Penal. A prática deste último não é, porém, tão vincada quanto na classe anterior. À imagem da classe 1, os jovens que a integram crêem aproximar-se da advocacia tradicional e obedecer ao modelo do profissional liberal. A similaridade entre esta classe e a primeira, no que concerne às modalidades de exercício, não é, porém, total. Com efeito, deparamos aqui com um número (se bem que minoritário) de indivíduos que se encontram inscritos em pequenas sociedades de advogados na qualidade de sócios ou de colaboradores. Por outro lado, a dimensão dos escritórios, em número de profissionais, é superior à que se verifica na classe anterior. E embora continuem a avultar os clientes individuais, somam-se-lhes agora, frequentemente, pequenas e médias empresas. Finalmente, os rendimentos elevam-se significativamente quando contrapostos aos obtidos pelos jovens advogados em situação precária, embora se situem bem abaixo dos valores médios de rendimento alcançados pelos jovens profissionais que trabalham em médias e grandes sociedades (classe 3).

Advogados em médias e grandes sociedades (classe 3): é o segmento profissional mais representativo das transformações ocorridas na advocacia portuguesa a partir da década de 1980. Nele prevalece, de forma categórica, o exercício como colaborador em grandes sociedades, entidades nas quais os jovens juristas desenvolvem uma advocacia especializada, centrada fundamentalmente no Direito Comercial, Financeiro, Bancário e Fiscal, e orientada para clientes fortemente capitalizados, nomeadamente grandes empresas nacionais e internacionais. Estes jovens profissionais desenvolvem a profissão na qualidade de assalariados, contrariando o arquétipo da advocacia liberal. O nível de rendimentos auferidos é, em média, consideravelmente superior ao que se regista em qualquer outro segmento, situando-se muito acima dos valores médios alcançados pela generalidade dos trabalhadores portugueses em qualquer faixa etária. Não é invulgar um arco temporal de 10 anos chegar para franquear a fasquia dos 5000 euros mensais. Além disso, em virtude de existirem nas grandes sociedades “planos de carreira” que prevêem, inclusive, a ascensão à categoria de associado, esta espécie de advogados é confrontada com horizontes de promoção que adquirem contornos financeiramente ainda mais auspiciosos.

Advogados em universos exteriores aos escritórios de advogados (fundamentalmente em contextos organizacionais) (classe 4): esta situação minoritária — não representa mais de 17% do total — é caracterizada pelo facto de os indivíduos que a constituem não desenvolverem a advocacia em escritórios de advogados. Embora se encontrem aqui todos os jovens advogados de empresa, esta classe contém no seu interior uma grande disparidade de situações que dificultam tipificá-la e compará-la com as três classes anteriores. Por essa razão, não será mobilizada no presente argumento.

Salvaguardando a existência de algumas “configurações capitalizadas” na classe 2 (correspondentes sobretudo a jovens sócios de pequenas sociedades, e a alguns outros que exercem a profissão num quadro liberal numa situação particularmente lucrativa), que não se distinguem desse ponto de vista da classe 3, somos obrigados a concluir que os referidos segmentos não se encontram situados num plano horizontal, antes se apresentam dispostos hierarquicamente.

Tal evidencia-se, desde logo, no capital económico, social e simbólico que circula em cada segmento e que pode, portanto, ser apropriado por aqueles que o constituem ou que nele se incorporam. Isso capta-se imediatamente contrastando as classes 1 e 2. À medida que vamos transitando da primeira para a segunda (ou, mais expressivamente ainda, do extremo mais baixo da classe 1 rumo ao patamar mais elevado da classe 2), quer o número de clientes, quer a sua “qualidade” do ponto de vista do volume de capitais de que dispõem, vão-se acentuando. Partindo de clientes individuais, no limite bastante depauperados, vamos transitando para clientes ainda individuais mas crescentemente capitalizados ou para o universo das pequenas e médias empresas. O mesmo tipo de continuum verifica-se no que respeita ao contacto com os pares. Os indivíduos da classe 1 estabelecem, em geral, contactos reduzidos com outros advogados, ao passo que os da classe 2 têm relações comparativamente mais intensas, numa evidência de que o capital profissional, em especial das “profissões imperiais” (Vargas, 2010), como é justamente o caso da advocacia, integra uma forte componente de capital social.

Já se vê que o volume do capital social e económico atinge o seu ponto mais elevado na classe 3. Com efeito, os jovens advogados em médias e grandes sociedades dispõem de condições particularmente favoráveis para se dotarem de capital social e económico (e o fazerem numa lógica de rápida e forte acumulação), em virtude do contacto que estabelecem quer com clientes fortemente capitalizados e quadros dirigentes de empresas, quer com advogados seniores, sócios de sociedades, também eles possuidores de elevado volume de capital social e económico.

É ainda relevante sublinhar que as classes não são igualmente permeáveis a todos os jovens advogados. Pelo contrário, no seu conjunto prefiguram um quadro selectivo de oportunidades profissionais, que se vai progressivamente estreitando. Na classe 1, deparamo-nos com as situações profissionais ao alcance de todos aqueles que ingressam na profissão. Mas, à medida que nos aproximamos dos patamares mais capitalizados das classes 2 ou 4, e da generalidade da classe 3, a possibilidade de acesso mingua, atingindo a sua contracção máxima nas grandes sociedades mais bem cotadas (classe 3).

Conhecida a segmentação hierárquica interna da profissão, é enfim possível formular e responder a uma questão decisiva associada à distribuição dos jovens recém-chegados à profissão no interior deste universo hierarquizado. Nessa distribuição observaremos, como antecipámos, a regularidade social de os segmentos que se situam numa posição cimeira da hierarquia serem tomados por aqueles que, à partida, possuem maiores volumes de capital, preservando (resguardando) assim a profissão numa das suas funções (tão histórica quanto invisível) de reprodução das classes dominantes?

Tudo aponta para que assim seja. Veja-se, primeiro, o perfil socioprofissional de origem das várias classes de situação profissional. Os dados mostram que se cotejarmos as classes 1 e 3 — as que mais se opõem em termos hierárquicos — a segunda é constituída por 84,5% de indivíduos provenientes das classes socioprofissionais dos empresários, dirigentes e profissionais liberais (EDL) e dos profissionais técnicos e de enquadramento (PTE), que não constituem mais de 49,1% da classe 1 (quadro 3). Os filhos de operários e de empregados executantes, por seu lado, não constituem mais do que 14,1% da classe 3, mas já ponderam 33,9% na classe 1.

 

Quadro 3 Classe socioprofissional do pai por classes de situação profissional (em percentagem)

 

Atente-se, depois, na clivagem provocada pelo capital escolar da mãe: enquanto quase 2/3 (64,3%) da classe 3 são constituídos por jovens advogados cuja mãe possui um nível de instrução superior, na classe 1 menos de 1/6 (15,1%) dos indivíduos tem mãe que possua idêntico “gabarito escolar” (quadro 4).[7]

 

Quadro 4 Nível de instruçãodamãe por classes de situação profissional (em percentagem)

 

Não restará portanto grande margem para dúvidas: atravessemos ou não um período de declínio do valor relativo do título universitário e profissional — hipótese esquissada e também mitigada acima —, a profissão de advogado, através de certos segmentos internos privilegiados, de que as grandes sociedades bem cotadas são o exemplo por excelência, continua a ocupar uma posição charneira na reprodução das classes dominantes na sociedade portuguesa contemporânea.

Como se não bastasse demarcar as origens sociais mais elevadas dos jovens que trabalham em médias e grandes sociedades (classe 3), detendo-nos apenas no “meio da advocacia”, obtém-se um reforço considerável da tese que vimos defendendo se as cotejarmos com as da totalidade dos jovens portugueses em faixa etária idêntica à sua, centrando-nos para o efeito no capital escolar dos progenitores (quadro 5). Contrastando estas duas populações, de dimensões bem distintas, ressalta de novo, e agora de forma especialmente flagrante, a sobresselecção social dos jovens envolvidos na advocacia grã-societária.

 

Quadro 5 Comparação do nível de instrução de dois grupos de advogados e da população portuguesa com idades compreendidas entre os 45 e os 54 anos (em percentagem)

 

Les beaux esprits se rencontrent: descodificando a matriz endoclássica das sociedades prestigiadas de advogados

Uma última questão está por abordar. Através de que processos e mecanismos tem lugar o acesso dos jovens às médias e grandes sociedades?

A primeira nota a fazer é a de que, entre os vários factores responsáveis pelo encaminhamento dos indivíduos para essas entidades, o papel mediador desempenhado pela família, através dos progenitores ou de outras figuras relevantes, ocupa posição destacada. Essa mediação pode ser directa, o que sucede quando se mobilizam redes sociais a fim de interceder pelo beneficiário (filho, sobrinho, afilhado, etc.); mas também indirecta, quando este último se faz acompanhar “tão-só” da bênção contida no nome familiar. O capital simbólico compreendido no apelido tem um papel efectivo no ingresso nos escritórios reputados de grande dimensão. Mesmo um olhar desatento que percorra os folhetos promocionais onde as grandes sociedades dão a conhecer o elenco dos seus jovens advogados notará, com toda a certeza, a presença de apelidos sonantes da alta burguesia e/ou cuja árvore genealógica entronca em linhagens da “nobreza portuguesa”.

Apesar da importância destes recursos, o número de indivíduos cooptados para as grandes sociedades por seu intermédio é, cremos, minoritário. Quer isto dizer que esses recursos não explicam senão uma parte do processo de reprodução das classes dominantes que atravessa a formação da classe 3. Os factores que faltam para explicar a outra parte do puzzle — leia-se, a maior parte do puzzle — são geralmente remetidos, na leitura dos jovens advogados, para “elementos de mérito”. Não discordamos dessa leitura, consistindo esta, por assim dizer, numa “meia-verdade”. A triagem de jovens recrutados pelas grandes sociedades, exceptuando os casos em que é manifestamente intermediada pela família, assenta toda ela formalmente em critérios de cariz meritocrático.

O ponto que nos afasta da interpretação dos profissionais, e porventura de outros observadores, prende-se com a forma como o “mérito” deve ser equacionado. E o que está na base dessa divergência é, nem mais nem menos, a concepção sociológica de mérito que rompe na nossa reflexão.

Demoremo-nos pois na análise desses factores. Fazê-lo possibilitar-nos-á, ao mesmo tempo, descortinar qual o processo que permite aceder às grandes sociedades e esclarecer por que razão tal processo é interpretado no interior do próprio campo profissional como o resultado de um processo de selecção meritocrático.

Desde logo, um dos primeiros critérios utilizados nas grandes sociedades, a fim de eleger os indivíduos submetidos às entrevistas de selecção que a elas permitem ter acesso, consiste na identificação da universidade onde se graduaram. No caso da advocacia lisboeta, verifica-se que as Faculdades de Direito da Universidade de Lisboa e de Coimbra, a Universidade Lusíada e, muito particularmente, a Universidade Católica são as mais valorizadas (nenhum dos licenciados pela Faculdade de Direito da UNL observados tinha, no momento em que foi realizado o estudo, concluído o estágio da Ordem dos Advogados, condição de ingresso na profissão), monopolizando a “distinção” do ensino do Direito. Dificilmente terão sequer acesso às entrevistas de selecção indivíduos provenientes de outras escolas, a não ser que possuam uma média de licenciatura particularmente elevada. Este sistema de classificação das escolas, interno à advocacia, tem implícita uma hierarquia simbólica dos estabelecimentos de ensino que se constitui a partir do cruzamento de dois eixos.

Um desses eixos pode ser designado “meritocrático”. Trata-se de um vector com base no qual se atribui uma posição simbólica às escolas em função das qualidades atribuídas aos candidatos nelas ingressados. O segundo eixo, que titulamos “pedagógico”, respeita à putativa qualidade científica e pedagógica das escolas, organizando-se com base em representações, geralmente difusas, acerca do valor dos docentes, dos programas e da antiguidade do estabelecimento em causa.

Embora sejam independentes em termos lógicos, estes eixos encontram-se associados entre si do ponto de vista das representações que os indivíduos promovem a propósito do valor dos diversos estabelecimentos: enquanto o “valor escolar dos indivíduos” ingressados numa dada escola é muitas vezes encarado como o factor que ilustra e reforça a qualidade da mesma, esta última é por sua vez considerada o factor responsável pela atracção dos bons candidatos.

O segundo factor que filtra o acesso às entrevistas de selecção já foi sugerido. Trata-se da média final de licenciatura, que, realce-se, opera em estreita associação com a “escola de proveniência”. Uma declaração proferida por um informante envolvido em processos de selecção é sintomática do princípio geralmente seguido: “Ter uma nota X na Universidade Y, não é o mesmo que ter uma nota X na Universidade Z. ” Isto é, à medida que se vai descendo na cotação simbólica das universidades, a exigência que se coloca ao nível das classificações académicas vai aumentando. Concretamente, uma classificação final de 13 valores dificilmente permitirá aceder à própria entrevista de recrutamento, sendo aliás condição de eliminação imediata, caso não tenha sido obtida nas universidades prestigiadas. Por contraste, uma classificação de 14, 15 valores é, em conjugação com a proveniência dessas mesmas universidades, uma garantia de acesso, pelo menos, à entrevista de selecção.

Os dados disponíveis não nos permitem identificar, entre as duas dimensões assinaladas — “faculdade de origem” e “classificação final de licenciatura” —, qual a que gera mais efeitos sobre a definição dos recursos profissionais de que os licenciados em Direito fruem em Portugal. Todavia, esta não nos parece ser a questão mais pertinente: o que importa salientar é que ambos os aspectos são convocados na generalidade dos processos de selecção que ditam o acesso às médias e grandes sociedades. O que se vai alterando é o modo como estes aspectos se conjugam em cada caso concreto.

A combinação destes dois aspectos aflora nas mais variadas situações. Por exemplo, em certas sociedades de advogados, ao surgir um “candidato de eleição” (leia-se, um indivíduo que tenha concluído a sua licenciatura numa faculdade prestigiada obtendo uma nota particularmente elevada), a organização típica da entrevista de selecção pode não ser respeitada. É aí comum que algum dos sócios mais importantes faça questão de estar presente. A explicação avançada por uma sócia de uma grande sociedade estreitamente envolvida nesse processo ordinário de selecção foi a de que alguns desses sócios “têm gozo nisso, gostam de conhecer pessoalmente a pessoa e por vezes têm conversas interessantes sobre os mais variados assuntos”.

Tudo isto nos conduz ao terceiro factor ou, se se preferir, ao terceiro filtro — a própria entrevista de selecção. Aí, além do conhecimento de línguas estrangeiras e de outras competências técnicas que são “passadas a pente fino”, a “impressão favorável” depende da capacidade de o candidato mobilizar um conjunto de elementos performativos considerados relevantes na aferição das suas “competências intrínsecas” por parte do júri.

Mas que “competências intrínsecas” são objecto de caução? Segundo os depoimentos obtidos, avultam a “cultura geral” (valorizada igualmente a montante, na transmissão académica da ciência jurídica), a “autoconfiança”, permeada por alguma “serenidade” e “modéstia”, e ainda a capacidade de patentear realismo (“pragmatismo”) e sentido da responsabilidade. Estas últimas qualidades, interpretadas como traços de personalidade, deverão, por sua vez, ser idealmente matizadas por sinais de “descontracção” e até de algum “humor”, no fundo uma combinação de fleuma e finesse d’esprit. Tais atributos são particularmente valorizados nas sociedades mais bem cotadas, no interior das quais são apreciados, aferindo-se o grau de naturalidade com que são exteriorizados, o mesmo é dizer a sua “veracidade”.

Para os indivíduos encarregues de proceder à triagem o índex da selecção inclui todas estas propriedades “discretas” da competência. Verificá-las e testemunhar a sua tangibilidade na hexis corporal e nas elocuções dos candidatos indicia que se está perante alguém que, além de tecnicamente competente, inteligente e perspicaz, “nada tem a temer” — de um indivíduo que não só “vale” como conhece o seu valor. Poder-se-ia acrescentar, na presença de um gentleman, preparado para se relacionar com clientes e colegas de elite; de alguém como eles.

Acabámos, portanto, de revelar as três dimensões que mais directamente explicam o acesso às grandes sociedades de advogados — a universidade onde se obteve a licenciatura em Direito, as classificações escolares alcançadas e, finalmente, as qualidades raras patenteadas nas entrevistas de selecção. Qualquer delas parece remeter para os méritos intrínsecos do indivíduo em questão. No entanto, qualquer das três, ao ser assumida de forma atomística e associal, oculta um aspecto essencial: o modo como as “diferenças sociais” actuam na sua própria fabricação.

Parte destes processos pode ser justamente captada recorrendo a estudo anterior (Chaves, 2010: 114-130), observando o modo como os recursos de que dispunham os jovens advogados a montante do acesso às faculdades de Direito se encontram relacionados com a entrada em certas escolas. Com efeito, se sondarmos a relação que se estabelece entre esse ingresso e as origens sociais familiares, aferidas através das “classes socioprofissionais” e dos “níveis de instrução dos progenitores”, o resultado é uma associação clara entre a posição social da família de origem e a escola onde os jovens advogados realizaram a sua licenciatura, mais exactamente uma sobrerrepresentação dos filhos dos progenitores que dispõem de um maior volume de capital global nas escolas mais bem cotadas no plano simbólico.

Contemplando a “situação profissional do pai” para cada uma das universidades frequentadas pelos jovens advogados inquiridos, verificamos que, conjuntamente, a classe dos empresários, dirigentes e profissionais liberais e a dos profissionais técnicos e de enquadramento — as duas mais capitalizadas — ponderam, no total, 69,7%. Ora, este valor é sistematicamente superado nas escolas mais conceituadas: Faculdades de Direito da Universidade de Lisboa (74,6%), Universidade Lusíada (73,3%) e, sobretudo, Universidade Católica (84,7%). Todas as restantes escolas de Direito — das Universidades Autónoma (45,2%), Moderna (53,3%), Internacional (47,1%) e, neste caso, também Coimbra (63,7%) — encontram-se abaixo do limiar geral. Quadro semelhante se verifica se considerarmos o “nível de instrução do pai” em cada uma das escolas: a proporção total de 47% de pais que dispõem desse nível de instrução é superada nas Universidades Católica (63,3%), de Lisboa (48%), de Coimbra (54,5%) e Lusíada (53,5%), ficando as demais — Autónoma (16,1%), Moderna (33,3%) e Internacional (32,4%) — aquém desse valor. É contudo no que concerne ao “nível de instrução materno” que as discrepâncias se tornam particularmente acentuadas: para uma proporção total de 41,5% de mães com curso médio ou superior, notam-se “desvios” francamente positivos para as Universidades de Lisboa (50,3%), Católica (56,7%) e de Coimbra (54,5%), contrastando com “desvios” negativos nas restantes — Autónoma (16, 1%), Moderna (13,3%), Internacional (23,5%) —, efeito que, neste particular, se estende, embora de forma menos nítida, à Lusíada, onde atinge 32,4%.[8]

O que estes dados no fundo mostram é que é possível identificar uma “relação de homologia” entre as características e os recursos das famílias de origem e as propriedades sociais da escola onde os jovens advogados, então ainda estudantes, realizaram a sua licenciatura. Não sendo aqui o momento para analisar em pormenor as “determinantes” dessa correspondência, cremos que ela releva quatro pontos críticos.

Em primeiro lugar, sobressai a própria relação que os sujeitos mais capitalizados e as suas famílias estabelecem com a hierarquia simbólica escolar. Esta traduz-se, desde logo, num melhor conhecimento da posição que cada um dos estabelecimentos ocupa no interior do campo universitário ou, para utilizar a expressão de Bourdieu (1979: 158), num “conhecimento prático ou instruído das flutuações do mercado de títulos escolares” e, acrescentaríamos, dos signos da distinção académica. Tudo se passa, assim, como se os seus esquemas de classificação da realidade universitária coincidissem, de forma antecipatória, com os mobilizados por aqueles que no mercado de trabalho se encarregarão de os seleccionar.

Em segundo lugar, avulta o ascendente, provavelmente mais marcado nestes segmentos sociais (e muito particularmente naqueles cuja posição no campo profissional mais se articula com ou mesmo depende da posse de títulos escolares “valiosos”), do valor da “excelência intelectual”, entendendo-se, justamente, que esta se encontra inextrincavelmente ligada à hierarquia simbólica das escolas. Incorporada enquanto princípio ético essencial e elevada a critério central de auto e heterojulgamento, a excelência intelectual terá conduzido uma parte considerável dos jovens provenientes de meios familiares com elevado capital cultural a restringirem o seu leque de escolhas a um conjunto de escolas simbolicamente valorizadas.

Em terceiro lugar, realçamos o papel potenciado por redes de sociabilidade informal (familiar e amical) na produção de apetências académicas escolarmente informadas a montante da frequência universitária. Com efeito, ao funcionarem como redes de “recrutamento endoclassista”, tais redes contribuirão também para gerar a sobrerrepresentação das classes com maior volume de capital nos estabelecimentos mais bem cotados. Este factor, identificado através de testemunhos obtidos em entrevistas, tornar-se-á particularmente preponderante na Universidade Católica. Vários foram os jovens advogados que testemunharam tê-la frequentado a par de familiares na mesma faixa etária, assim como de colegas da escola secundária, designadamente de certos estabelecimentos privados que, provavelmente, acabarão por constituir fontes privilegiadas de angariação de indivíduos para a Faculdade de Direito da referida Universidade.

Para rematar, em quarto lugar não é também de desprezar a hipótese de que todo este conatus familiar, extensível aos estudantes através da incorporação de esquemas disposicionais conforme às lógicas do campo universitário, se encontre conjugado com a obtenção de melhores classificações no ensino secundário por parte daqueles que provêm de meios com mais capital cultural, designadamente de famílias de professores ou de profissionais liberais.

Certa é a correlação entre os resultados escolares obtidos no ensino superior e as origens sociais. No quadro 6, descobre-se uma correlação entre o nível de instrução dos pais dos jovens advogados e a classificação universitária obtida por estes últimos, com as classificações superiores a sobressaírem junto daqueles que possuem na sua retaguarda volumes mais elevados de capital cultural.[9] Este facto não é de modo nenhum estranho num contexto marcado pela expansão do número de ingressados no ensino superior. Apesar de, desde o clássico La Reproduction (Bourdieu e Passeron, 1970), conhecermos o fenómeno da “sobresselecção escolar”,[10] sabemos também que, com a democratização escolar, esse efeito de sobresselecção tem vindo a ser fortemente atenuado (Mounier, 2001: 141).

 

Quadro 6 Classificação final de licenciatura da totalidade dos jovens advogados pelo nível de instrução do pai (em percentagem)

 

A este respeito importa ressaltar que, provavelmente, a correlação entre resultados escolares no ensino superior e nível de escolaridade dos pais intensificar-se-á de forma flagrante nos casos em que os dois progenitores têm níveis de instrução superiores. Esta conexão deve-se à dupla circunstância de a sua socialização primária decorrer num contexto doméstico cultivado e de esse capital cultural se estender, em muitos casos, a um contexto familiar alargado, quer intra quer intergeracionalmente. Cremos que um bom indicador disso mesmo reside, justamente, na inscrição, nessas “unidades domésticas”, do factor mais “explicativo” da desigual distribuição dos indivíduos na hierarquia profissional: o nível de escolaridade da mãe (Chaves, 2010: 211).

Por fim, importa aludir ao modo como as origens sociais se enredam na posse de um conjunto de “competências relacionais” que permitem a certos jovens triunfar na entrevista de selecção, mostrando-se ajustados às funções para as quais serão contratados — o uso apropriado de indumentária, a gestualidade, a utilização de determinados códigos linguísticos, etc.

É certo que estas habilidades expressivas que constituem um dos traços da “nobreza de toga” podem ser adquiridas através de socialização escolar e profissional, na universidade e depois no estágio da Ordem — e sê-lo-ão tanto mais quanto a formação tiver ocorrido em universidades “de topo”. Contudo — e é este o ponto-chave —, a possibilidade de tornar a “representação” persuasiva e bem-sucedida é tanto maior quanto mais a relação com as regras a utilizar for de familiaridade incorporada. Ou seja, quanto mais as disposições que lhe subjazem tiverem sido “naturalmente” transmitidas pelas famílias de origem. Neste sentido, a natureza do “mérito” e da “vocação” não poderá ser devidamente compreendida na sua inteira espessura sem que a situemos no quadro dos processos de socialização, particularmente daqueles que têm lugar desde a primeira infância. Trata-se, no fim de contas, de constatar, na senda de Bourdieu, a diferença que se verifica entre os “ herdeiros” e os “candidatos” (ou os “recém-chegados”) a posições de elite;[11] diferenças que se consubstanciam não só em certas competências performativas ligadas ao corpo e às elocuções linguísticas que as completam como na “maior margem de tolerância avaliativa” de que os “herdeiros” são alvo. Colocados, por seu turno, face a uma pressão avaliativa suplementar, os “recém-chegados” terão de demonstrar incessantemente que se situam com legitimidade nas posições sociais que seriam “naturalmente” ocupadas por outros, sendo compelidos a realizar sobreesforços performativos e a patentear as suas particulares apetências face ao olhar exercitado dos “herdeiros”. Ao desenrolar-se sobre a estreita linha que separa o imprescindível do excessivo, esse sobreesforço não está porém isento de riscos, ou não fosse um selo distintivo do recém-chegado, precisamente, o “fazer demais” (Mounier, 2001: 51), sinal de inadaptação e de incomodidade, mesmo que provisórias, face aos novos tabuleiros em que passou a jogar.

Como se calculará, a interiorização dos atributos (ou skills) legítimos num arbitrário cultural enraizado no corpo e nos movimentos do corpo tenderá a ser especialmente eficaz nos casos em que os processos de socialização decorrem no interior de um quadro familiar constituído por juristas. Aí, ao serem postas em acção, estas competências e habilidades expressivas são susceptíveis de serem sentidas como um dado quase-genético ou, se se preferir, como a expressão de uma “natureza”.

Fazemos pois nossas as palavras de Mounier (2001: 50-51), ao afirmar:

[…] a inscrição de um indivíduo num campo não é grande parte das vezes totalmente bem-sucedida a não ser que ele “aí tenha nascido”, quer dizer, a não ser que toda a sua educação primária nele tenha construído um habitus conforme a esse campo, ou então que tenha passado por um longo processo iniciático de reeducação literalmente vivido muitas vezes como segundo nascimento. É esta necessidade de uma crença prática, ou seja, espontânea e não reflectida ou solicitada, que permite aos actores do campo distinguirem os herdeiros dos recém-chegados, ou pior, dos arrivistas.

Em suma, as disposições transmitidas no meio familiar e nas redes socializadoras que o rodeiam — parentelas alargadas, amigos, vizinhos, colegas e pais de companheiros de escola primária e secundária — são pois, em grande medida, a diferentia specifica, tantas vezes intuída mas poucas explicitada, que torna possível que les beaux esprits vraiment se rencontrent.

 

Conclusão: sobre a reprodução social e a produção sociológica

Ao objectivar a inserção profissional dos jovens advogados evidenciámos a relação existente entre a distribuição na hierarquia profissional e as origens sociais. Nesse passo, cremos ter clarificado o modo como as hierarquias sociais se reproduzem (continuam a reproduzir) através do processo de reprodução do campo profissional. Fazê-lo — note-se — não significa adoptar qualquer concepção determinista. Sabemos que o métier de advogado, ao mesmo tempo que se institui como espaço e ferramenta de reprodução social, abre também para trajectórias de mobilidade. O mesmo sucede, aliás, com a escola e o ensino superior. Ao mesmo tempo que funcionam como instâncias reprodutoras e legitimadoras de desigualdades, a escola e o ensino superior consistem também — importa apurar em que grau — em mecanismos potenciadores de mobilidade social e estrutural e, por essa via, num veículo democratizador.[12]

Seja como for, a perspectiva aqui exposta tem (pelo menos) duas virtudes. Por um lado, permite apear as concepções que privilegiam a noção de “mérito” na explicação do modo como se gera a distribuição dos actores sociais na hierarquia social; sobretudo aquelas que utilizam a noção de “mérito” de uma forma etérea e desligada das suas condições de produção, geralmente consubstanciadas na ideia de que “o indivíduo constrói o seu próprio destino”. Por outro lado, permite desmontar (uma vez mais) a “ideologia das novas classes médias”, ideologia segundo a qual as explicações da desigualdade radicadas nos pressupostos da reprodução social e, muito concretamente, no recurso ao conceito de classe social, são não só absurdas como anacrónicas. Se é verdade que nas formas simbólicas capitalistas que tomaram conta da alta modernidade os “grandes” e os “pequenos” do mundo social deixaram de ser imaginados e construídos como membros e/ou representantes de classes sociais (Boltanski e Chiapello, 1999), nem por isso nem pelas modalidades de recomposição socioprofissional que as sociedades actuais experimentam encontramos razões para decretar a “morte” ou a caducidade teórica das classes sociais, decrepitude conceptual que não contestamos sozinhos. Para referir apenas alguns exemplos, também o fizeram e continuam em muitos casos a fazer Atkinson (2008; 2010), Chauvel (2004) ou Goldthorpe (2002), tal como nós empenhados em actualizar a sociologia das classes sociais em objectos empíricos que, entre o mais, tornem claro que as classes continuam a constituir uma das principais realidades sociais através das quais, nas sociedades actuais, cursam processos de fechamento social (Parkin, 1979).

A advocacia — outras profissões sê-lo-iam também — é precisamente um exemplo de que “os sistemas estruturados de desigualdades e distinções sociais não deixaram de ser, entre outros, elementos constitutivos fundamentais das nossas sociedades” (Costa e outros, 2000: 46). A advocacia funciona como meio de transmissão de posições privilegiadas na estrutura social. Observando — como fizemos e instamos a fazer — não tanto a desigualdade que se regista no acesso ao grupo profissional, mas as suas hierarquias internas, é indubitável que ele continua a ser objecto de um jogo social que não se resume às regras da prática jurídica. É para o espaço das classes sociais, para as suas lógica e esferas de acção que temos de nos dirigir também. Só aí encontramos a chave explicativa que nos permite ver que à constituição do grupo profissional dos advogados não é alheia a preservação intergeracional das posições sociais das classes dominantes. Como prescindir então do conceito de classe social, um dos conceitos mais plásticos e com maior valor heurístico criados pela ciência sociológica?

 

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Notes

[1] Embora aceitando com dificuldade que os autores citados por Atkinson em artigo recente, mas também em textos anteriores (Atkinson, 2007 e 2008) — Archer, Bauman, Beck e Giddens —, constituam de facto os melhores exemplos de “anti-class theorists”, para utilizar a sua própria expressão, subscrevemos que diversas apropriações das noções de reflexividade e de individualização têm vindo a potenciar, de facto, nos textos de sociologia e na teoria social, como chave interpretativa das transformações contemporâneas, a ideia de que “as pessoas de todas as condições sociais são individualistas e produtoras de tomadas de posição reflexivas, eclipsando-se nesse fluxo os constrangimentos de classe, as disposições, os estilos de vida e as identidades” (Atkinson, 2010: 12).

[2] Estes números reenviam-nos para o fenómeno de ampliação prodigiosa deste grupo profissional nos últimos 45 anos, e muito especialmente para a sua aceleração nas últimas três décadas. Com efeito, sensivelmente até 1974, o número de novas inscrições não excedeu as 150 por ano (Caetano, 2003: 67-72). Embora o crescimento que se registou a partir de então não possa ser exclusivamente atribuído ao conjunto de transformações políticas, sociais e culturais desencadeadas em 25 de Abril de 1974, não é possível ignorar que é já da “era democrática” o primeiro aumento vertiginoso da população de advogados. Em cerca de cinco anos, o número de novas inscrições na O Amais do que triplicou, perfazendo, na segunda metade da década de 1970, as 500 anuais. Daí para a frente, o número de novos ingressos não cessou de aumentar; primeiro, de uma forma mais gradual (a média de inscrições superior a 1000 advogados por ano é finalmente atingida no dealbar dos anos 90); depois, de forma mais rápida/intensa — em apenas uma década o número médio de novos inscritos duplica, atingindo o patamar de 2000 (Caetano, 2003: 67-72).

[3] Estes dados, referentes à população portuguesa, foram produzidos com base no Censo de 2001, dizendo apenas respeito à faixa dos 45-54 anos, visto corresponder, tal como acontece no referido estudo, à idade da maioria dos progenitores que constituem a nossa amostra, permitindo afinar a justeza da comparação.

[4] Notar-se-á à margem que estas discrepâncias não se distribuirão homogeneamente por todo o território nacional. Por exemplo, é de esperar que no concelho de Lisboa elas se suavizem. A razão é simples: trata-se dum concelho com um perfil de escolarização comparativamente elevado no panorama nacional, contraste “concelhio” que mais se vinca nas faixas das idades mais velhas. Suavizar não quererá porém dizer eliminar: acaso focássemos especificamente Lisboa, as discrepâncias realçadas continuariam a ser extremamente significativas.

[5] No estudo específico que permeia este paper, para a construção do indicador individual de classe seguiu-se a tipologia ACM. Os fundamentos teóricos, os procedimentos e as vantagens analíticas desta tipologia têm sido explicitados em diversos trabalhos, fundamentalmente em Costa (1999), Costa e outros (2000) e Machado e outros (2003).

[6] Para mais detalhes e sobre o processo de construção e composição dos clusters, ver Chaves (2010: 183-191 e 395-407).

[7] O mesmo aconteceria se considerássemos o nível de instrução do pai. Por razões que se prendem com a economia do texto, não incluímos essa variável neste artigo.

[8] Para maiores detalhes e desenvolvimentos, consultar Chaves (2010: 127-130).

[9] Para uma análise da desigualdade dos resultados escolares que, não descurando a importância das “origens sociais”, analisa estes aspectos em profundidade e numa abordagem de cariz compreensivo, ver naturalmente Lahire (2000; 2008), mas também, por exemplo, Jaeger (2009) na abordagem do ensino secundário na Dinamarca.

[10] Categoria analítica criada pela dupla francesa para dar conta da relação coma escola dos improváveis, isto é, jovens das classes populares que prolongamos estudos muito além da posição na hierarquia escolar que corresponde à posição que as suas famílias de origem ocupam no espaço social, com resultados escolares inclusive superiores aos dos filhos das fileiras mais escolarizadas da burguesia e das “novas” pequenas burguesias.

[11] Ver Fonseca (2003).

[12] Ver, a propósito do potencial e dos limites da sociologia de Bourdieu na análise do sistema de ensino superior, o texto de Nogueira e Nogueira (2002), no qual nos revemos.

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