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Sociologia, Problemas e Práticas
versão impressa ISSN 0873-6529
Sociologia, Problemas e Práticas no.70 Oeiras set. 2012
https://doi.org/10.7458/SPP2012701212
A densidade da sombra: trabalho doméstico, género e imigração
In the depth of shadows: domestic work, gender and immigration
La densité de l’ombre: travail domestique, genre et immigration
La densidad de la sombra: trabajo doméstico, género e inmigración
Manuel Abrantes*
* Membro do Centro de Investigação em Sociologia Económica e das Organizações (Socius) do Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade Técnica de Lisboa e professor convidado no curso de mestrado em Estudos sobre as Mulheres da Universidade Aberta. E-mail: mabrantes@socius.iseg.utl.pt
Resumo
A bibliografia sobre papéis de género, políticas de apoio social e desenvolvimentos do mercado de trabalho ajuda a entender a persistência dos serviços domésticos na economia contemporânea. No entanto, sabe-se muito pouco sobre a composição ou a dinâmica deste ramo de atividade. O presente artigo revê um conjunto de estudos relevantes e examina dados do Instituto Nacional de Estatística e da Segurança Social, mapeando a evolução do trabalho doméstico remunerado na primeira década do século XXI em Portugal. Os dados sugerem um aumento considerável da intensidade e da informalidade do trabalho. Argumenta-se que a aliança conveniente entre desproteção social e flexibilidade está a reverter o processo de crescente formalização que caracterizava o serviço doméstico no início da década, precipitando-o de volta à subterraneidade.
Palavras-chave Trabalho doméstico, género, imigração, proteção social.
Abstract
The bibliography on gender roles, welfare state policies and labour market developments helps us understand the continued existence of domestic services in the contemporary economy. However, little is known about the composition or dynamic of this branch of activities. The present article looks at a set of relevant studies and examines data from Statistics Portugal and the Social Security Service, mapping the evolution of paid domestic labour in the first decade of the 21st century in Portugal. The data suggest a considerable increase in both the intensity and the informal nature of the work. The author argues that the convenient alliance between a lack of social protection on the one hand and flexibility on the other is reversing the process of growing formalisation that characterised domestic service at the beginning of the decade, casting it back into an underground status.
Keywords domestic work, gender, immigration, social protection.
Résumé
La bibliographie sur les rôles de genre, les politiques d’aide sociale et le développement du marché du travail aide à comprendre la persistance des services domestiques dans l’économie contemporaine. Cependant, nous en savons très peu sur la composition ou la dynamique de cette branche d’activité. Cet article reprend un ensemble d’études importantes et examine les données de l’Institut National de la Statistique et de la Sécurité Sociale, afin de retracer l’évolution du travail domestique rémunéré dans la première décennie du XXIe siècle au Portugal. Les données suggèrent une augmentation considérable de l’intensité du travail et de son caractère informel. L’absence de protection sociale alliée à la flexibilité est en train d’inverser la régularisation croissante qui caractérisait le service domestique au début de la décennie pour le ramener au niveau souterrain.
Mots-clés travail domestique, genre, immigration, protection sociale.
Resumen
La bibliografía sobre papeles de género, políticas de apoyo social y desarrollos del mercado de trabajo ayuda a entender la persistencia de los servicios domésticos en la economía contemporánea. Sin embargo, poco se sabe sobre la composición o la dinámica de esta rama de actividad. El presente artículo revisa un conjunto de estudios relevantes y examina datos del Instituto Nacional de Estadística y de La Seguridad Social, mapeando la evolución del trabajo doméstico remunerado en la primera década del siglo XXI en Portugal. Los datos sugieren un aumento considerable de la intensidad y de la informalidad del trabajo. Se argumenta que la alianza conveniente entre desprotección social y flexibilidad está revirtiendo el proceso de creciente formalización que caracterizaba el servicio doméstico en el inicio de la década, precipitándolo de vuelta a la economía subterránea.
Palabras-clave trabajo doméstico, género, inmigración, protección social.
O trabalho doméstico remunerado em Portugal constitui um fenómeno do qual a pesquisa sociológica se tem acercado repetidas vezes, embora sejam raros os estudos que se detêm na sua caracterização. Como adiante se verá, o estudo das articulações entre vida profissional e familiar dá notável centralidade à organização das tarefas domésticas, mas tende a entender a delegação de tarefas numa pessoa remunerada como o fim — um dos fins possíveis — da história. Reconhece-se, ainda assim, uma importância crescente ao mercado de serviços domiciliários como rede de segurança num contexto de apoio social deficitário, particularmente no que diz respeito a crianças e pessoas idosas dependentes (Guerreiro, 2000; Wall e Nunes, 2010). Por outro lado, a pesquisa sobre género e imigração no mercado de trabalho confronta-se por necessidade empírica com os serviços domésticos, mas só em poucos casos encontramos tentativas de descrever o setor (Catarino e Oso, 2000; Baptista, 2011; Guibentif, 2011). Pode gerar-se, assim, a ideia de que o serviço doméstico constitui um objeto desenquadrado das principais transformações do mercado de trabalho contemporâneo ou, até, um legado de modelos tradicionais de organização social condenado a desaparecer — isto em contramão das tentativas desenvolvidas, em vários pontos do mundo, para inscrevê-lo no debate da nova economia dos serviços e da globalização (Hochschild, 2000; Isaksen, Devi e Hochschild, 2008; Anderson, 2000; Parreñas, 2001; Moya, 2007; Sassen, 2007).
Dando especial atenção à produção científica em contexto nacional, o presente artigo tem como finalidade estabelecer uma ponte entre estes vários campos do saber e interpretar os dados quantitativos disponíveis sobre trabalho doméstico remunerado na primeira década do século XXI em Portugal.[1] Na primeira parte, revê-se e discute-se um conjunto de estudos que, concebendo maioritariamente o serviço doméstico como consequência ou produto marginal de outros fenómenos, iluminam contudo singularidades do setor. De seguida, examina-se a evolução recente dos números do Instituto Nacional de Estatística e da Segurança Social. Os dados sugerem que, a par de moderadas variações de volume, estamos perante transformações importantes quanto à composição do ramo de atividade, com um aumento considerável da intensidade e da informalidade do trabalho. Argumenta-se que a aliança conveniente entre desproteção social e flexibilidade, favorecida em tempos de crise económica, está a reverter o processo de crescente formalização que caracterizava o serviço doméstico no início da década, precipitando-o de volta à subterraneidade.
A trabalhadora doméstica na encruzilhada
A participação crescente das mulheres no mercado de trabalho remunerado em Portugal está amplamente documentada (Nunes, 1991; Torres, 2004; Casaca, 2007; Ferreira, 2010). Num texto publicado em 1981, Vírginia Ferreira questiona em particular a relação entre este fenómeno e a organização do trabalho doméstico. À responsabilidade tipicamente atribuída à mulher no campo doméstico e familiar veio juntar-se, sem a substituir, um conjunto de ambições e expetativas em relação ao seu desempenho como profissional. Para a emancipação da mulher, o debate clássico apresentaria duas vias possíveis. Uma, a do feminismo liberal, defende a libertação através do melhoramento da posição da mulher no mercado de trabalho e no sistema de produção capitalista. A outra, a do feminismo reformista, assenta na transformação das relações de produção. O estudo do trabalho doméstico sugere que estas duas vias não se excluem uma à outra. Pelo contrário, parece difícil conceber um melhoramento da posição da mulher no mercado de trabalho sem uma alteração, ainda que parcial, dos hábitos e dos preconceitos que modelam a divisão sexual do trabalho dentro e fora de casa. “A questão”, adianta Ferreira (1981: 70), “estará em determinar até que ponto o sistema capitalista pode ser afetado no caso dos produtos do trabalho doméstico serem substituídos por sucedâneos provenientes da produção mercantil e/ou do setor dos serviços públicos.”
A investigação sobre as articulações entre vida profissional e familiar tem dado um contributo crucial para caracterizar este processo. Ao analisar a relação entre políticas públicas, emprego e divisão doméstica do trabalho, Rosemary Crompton (2006) mostra como o crescimento da taxa de emprego das mulheres e uma mudança parcial das atitudes em relação aos papéis de género podem coexistir com uma ideologia de divisão do trabalho que mantém a esfera doméstica como feminina e o trabalho remunerado como masculino. Quando o nível de rendimentos da família o permite, a contratação de uma trabalhadora doméstica desempenha um papel decisivo, podendo, a um só tempo, suavizar o conflito familiar e preservar o tradicionalismo das relações de género (Crompton, 2006: 198). Entre os seis países analisados por esta autora, Portugal é aquele em que as famílias registam maior tempo total de trabalho (pago e não pago); é também aquele em que a distribuição destes dois tipos de trabalho entre homens e mulheres permanece mais desigual.[2]
Com efeito, várias singularidades têm sido atribuídas a Portugal em trabalhos de cariz comparativo. Importa realçar, em primeiro lugar, a elevada taxa de atividade entre as mulheres, índice no qual Portugal se distingue dos restantes países do Sul da Europa, assemelhando-se aos escandinavos (Casaca, 2007; Casaca e Damião, 2011). Note-se que, ao contrário do que sucede noutros países, a proporção de trabalho a tempo parcial em Portugal permanece muito diminuta. Anália Torres (2008) observa que o aumento substancial das mulheres em emprego pago foi marcado por diferenças significativas de classe, com as mulheres de escolaridade mais reduzida a encontrar trabalho sobretudo no setor industrial e no serviço doméstico, enquanto as mulheres de escolaridade elevada abriam caminho em áreas como a função pública, a saúde e o ensino. Para estas últimas, a reconciliação das exigências profissionais com o tradicionalismo de género dominante no campo dos valores e das práticas familiares foi facilitada justamente pelo acesso à contratação de serviços domésticos baratos (Torres, 2008: 39, 46). Inês Brasão (2010) dá conta da emergência deste fenómeno nas décadas de 1950 e 1960. Defende, aliás, que a fraca atração dos estudos de género pelas trabalhadoras domésticas se relaciona justamente com a construção destas enquanto o “outro” da libertação feminina, simbolizada pela deslocação das mulheres de classe média da esfera doméstica para o mercado de trabalho, do espaço privado para o espaço público. As trabalhadoras domésticas “são, portanto, sombras de um discurso de conquista e de emancipação no qual ciência e ideologia se confundem, não resultando numa problematização sobre as desigualdades internas ao género feminino” (Brasão, 2010: 4; cf. também pp. 149-155).[3]
Em contraste, a fertilidade regista uma quebra contínua durante as últimas décadas, o que sugere um nó problemático entre apoios públicos insuficientes, rendimentos familiares modestos, precariedade laboral e horários longos de trabalho (Torres, 2008; Wall e Nunes, 2010). A redução da dimensão dos agregados familiares e o aumento das pessoas a viver sós reflete não só o cruzamento destes fatores e um quadro geral de envelhecimento demográfico, mas também “a linha de continuidade na consolidação do processo de privatização da vida familiar” (Aboim, 2003: 17; ver também Guerreiro, 2003). Karin Wall, José de São José e Sónia Correia (2002) dão especial atenção às mães sós que partilham a residência com outros familiares e desempenham um trabalho remunerado com carga horária substancial. De acordo com a tipologia concebida neste estudo para caracterizar as diversas formas de articular família e trabalho, a modalidade “informal paga” abrange os serviços remunerados de uma empregada doméstica, de uma vizinha ou de uma ama que recebe crianças em casa. Destaca-se a grande flexibilidade destas soluções, podendo ser adotadas a tempo parcial, com alterações frequentes mediante a necessidade da família. Enquanto os serviços de uma ama se pautam por horários longos e custos relativamente baixos, a contratação de uma trabalhadora doméstica só é acessível a mães com rendimentos elevados.[4]
Particularidades a nível nacional podem ser explicadas por aspetos de natureza diversa, ainda que devamos ser prudentes ao dissociá-los. Por um lado, as questões de cultura e valores são importantes (Aboim, 2010). Estas envolvem não só quem deve executar certas tarefas, mas também quais as tarefas a executar e de que modo executá-las. Em particular, Portugal tem sido identificado como um país onde os valores familiares dão grande centralidade à criança (Aboim, 2010) e à manutenção das pessoas idosas ou dependentes em contexto residencial familiar (São José e Wall, 2006). Neste sentido, os cuidados pessoais assumem preponderância face a outras tarefas de índole doméstica, como limpar, cozinhar ou lavar roupa. Por outro lado, as políticas públicas e os níveis de rendimento das famílias afetam evidentemente a sua possibilidade de trabalhar menos horas, assim como a capacidade de adquirir no mercado soluções para a prestação de cuidados a familiares ou bens que reduzam o tempo despendido em tarefas domésticas.
Apesar de oferecer contributos fundamentais, a bibliografia considerada até ao momento ajuda a entender sobretudo o lado da procura do serviço doméstico, correndo o risco de conceber este como necessidade, direito ou dependência de quem o remunera. Enquanto todos os ramos de atividade estão sujeitos a entendimentos e negociações de género e de classe, neste parece ser especialmente difícil avançar para a sua caracterização enquanto atividade de pleno direito, sintoma perene da sua desvalorização histórica (Anderson, 2000). Em última análise, a questão do valor social do trabalho doméstico constitui matéria para examinação empírica, rejeitando a noção dualística de que certas categorias de trabalho são inerentemente subordinadas ou empoderadoras (Nickson e Warhurst, 2003; Blétière, 2008).
Neste aspeto, os estudos das migrações têm estado na linha da frente, em larga medida devido à grande proporção de mulheres imigrantes que encontra trabalho no serviço doméstico (Baganha, 1998; Peixoto, 2006; Góis e outros, 2009; Miranda, 2009; Trovão e Ramalho, 2010). Karin Wall e Cátia Nunes (2010), em particular, examinam o laço entre fluxos migratórios, orientações do estado providência e modalidades de prestação de cuidados. Argumentam que, devido a estímulos destas diversas fontes, tem-se consolidado em Portugal um modelo misto no que toca a local de prestação dos cuidados (domicílios particulares e instituições), perfil étnico das pessoas que prestam os cuidados (nativas e imigrantes), modo de financiamento dos cuidados (público e privado) e grau de regulação do trabalho (formal e informal). Três modalidades de trabalho são salientadas pelas autoras, com diferentes evoluções. O trabalho a tempo inteiro para um único empregador particular, remunerado ao mês, parece ter decrescido, sendo o trabalho doméstico com corresidência cada vez mais desempenhado por imigrantes. Por outro lado, o trabalho em vários domicílios, pago à hora, parece ter aumentado. O trabalho através de instituições também aumentou, muito por causa do investimento público nesta área. A presença de empresas continua a ser reduzida.
Os estudos específicos sobre os serviços domésticos merecem referência. Numa ótica comparativa, o trabalho de Christiane Catarino e Laura Oso (2000) mostra que, tanto em Madrid como em Lisboa, o número crescente de mulheres imigrantes está estreitamente associado à externalização alargada dos serviços de reprodução social, que estimulou a procura de mão de obra desprivilegiada. No entanto, o fenómeno configura-se de forma distinta nos dois contextos de acolhimento: em Lisboa, o recrutamento de trabalhadoras domésticas imigrantes foi mais tardio e lento, refletindo dinâmicas do mercado de trabalho — sobretudo, a maior taxa de atividade das mulheres portugueses nos escalões etários superiores, inclusivamente após a reforma — e o reconhecimento progressivo do serviço doméstico nas políticas públicas de regulação migratória. Já Maria das Dores Guerreiro (2000) combina a análise de dados estatísticos a nível nacional e dois estudos de caso qualitativos em concelhos da Grande Lisboa, distinguindo vários tipos de serviço e de configurações organizacionais. Devido às pressões do envelhecimento demográfico e aos ímpetos das políticas públicas, os serviços de apoio a crianças e a pessoas idosas aumentaram nas suas várias modalidades, incluindo o trabalho pago informal.
Uma década mais tarde, Patrícia Baptista (2011) detém-se nas questões de imigração para descrever como o nicho ocupacional do trabalho doméstico passou de um contexto de recrutamento à escala nacional, junto das classes mais desfavorecidas, para uma escala global. Embora o sistema de vistos de trabalho em Portugal nunca tenha contemplado o trabalho doméstico, este tem sido considerado válido em processos de regularização para imigrantes. De facto, as trabalhadoras domésticas estrangeiras parecem mais propensas do que as portuguesas para requerer um contrato de trabalho e a realização de contribuições para a Segurança Social, dado estas serem ferramentas preciosas no processo de regularização junto das autoridades da imigração (Peixoto, 2006; Guibentif, 2011).[5] De forma tão paradoxal quanto lógica, a concentração de trabalhadoras imigrantes nos serviços domésticos poderá constituir assim um estímulo à formalização deste ramo de atividade. Tal significa também impor um recuo, ainda que sinuoso, à cumplicidade entre “estado fraco e mercado forte” identificada no estudo dos fluxos migratórios contemporâneos (Peixoto, 2002).
Por último, Pierre Guibentif (2011) apresenta os resultados de um questionário aplicado a pessoas empregadas em serviços domésticos em Portugal. A população que este estudo pioneiro dá a conhecer é esmagadoramente constituída por mulheres, com uma maioria (67%) de pessoas de nacionalidade portuguesa e proporções mais reduzidas, mas significativas, de pessoas originárias de países africanos de língua oficial portuguesa, Brasil e Europa de Leste. Embora uma proporção considerável apenas tenha completado quatro anos de escolaridade, muitas apresentam níveis de escolaridade mais elevados, incluindo acima do ensino secundário. Isto sucede sobretudo entre as mulheres de nacionalidade estrangeira, confirmando o risco elevado de sobrequalificação a que estão expostas (OECD, 2008; Casaca e Peixoto, 2010). Embora a proporção das pessoas inquiridas que trabalham apenas numa casa seja ainda substancial, a maioria trabalha em várias casas, geralmente da classe média, o que parece corroborar a tese da democratização progressiva do acesso ao serviço doméstico (Catarino e Oso, 2000: 186; Brasão, 2010: 173). A violação de direitos consagrados na lei por parte das entidades empregadoras é abundante, especialmente no que toca a contribuições para a Segurança Social, subsídios de férias e de Natal, concessão de licença de maternidade e pagamento de custos de saúde em caso de acidente no trabalho.
Ao debruçarmo-nos sobre a primeira década do século XXI, importa aferir o desenvolvimento dos serviços domésticos em quatro aspetos fundamentais. Em primeiro lugar, a sua dimensão, ou o volume que constituem na atividade económica. Uma vez que a participação das mulheres no mercado de trabalho remunerado continuou a aumentar, não é de esperar que tenha existido uma redução dos serviços domésticos, pelo menos até aos primeiros sinais da crise económica em 2008. Segundo, terão ocorrido mudanças significativas nas condições em que o trabalho doméstico é desempenhado, nomeadamente no que diz respeito ao vínculo com a entidade empregadora e à carga horária? A revisão bibliográfica leva a crer que sim, sobretudo devido à metamorfose das composições familiares, à busca das trabalhadoras domésticas por melhores condições de emprego e à própria mudança de perfil da população trabalhadora. A este respeito, os registos da Segurança Social permitem obter detalhes adicionais sobre o perfil da população trabalhadora relativamente a nacionalidade, género e idade. Por último, urge estimar o grau de proteção social e informalidade patente no setor, o que será feito, com a devida cautela, recorrendo à triangulação de dados.
Notas metodológicas
Procurar-se-á, com o recurso a duas fontes de dados distintas, superar a dificuldade tipicamente associada à caracterização quantitativa dos serviços domésticos (Peixoto, 2006). Por um lado, examinar-se-ão as estatísticas produzidas pelo Instituto Nacional de Estatística com base no Inquérito ao Emprego, de regularidade trimestral; por outro, os registos da Segurança Social, disponibilizados pelo Instituto de Informática do Ministério da Solidariedade e Segurança Social.
No caso presente, as Estatísticas do Emprego têm a qualidade de serem, por definição, insensíveis ao estatuto legal de residência e de trabalho das pessoas inquiridas. Embora encerrem as limitações naturais de qualquer inquérito por amostragem, estas são mitigadas pelo cálculo de médias anuais a partir dos resultados trimestrais e pelo ajustamento do peso de variáveis sociodemográficas registadas, de dez em dez anos, nos censos. Considerar-se-á o ramo de atividade das famílias empregadoras de pessoal doméstico, que, conforme definição na Classificação de Atividades Económicas (CAE — rev. 3), abrange um leque amplo de serviços, incluindo aqueles prestados por jardineiras/os, motoristas e secretárias/os particulares; é razoável esperar, ainda assim, que a maioria das pessoas se concentre nas tarefas de limpeza, cozinha, lavandaria e prestação de cuidados pessoais. O trabalho pode ser desempenhado em regime de contrato ou de tarefa, desde que o vínculo seja diretamente com uma entidade empregadora particular, isto é, indivíduo ou família. Assim, a população que presta apoio domiciliário através de instituições de solidariedade social ou de empresas não está incluída neste ramo de atividade. Não se recorrerá à Classificação Nacional de Profissões, uma vez que, nesta segunda tipologia, os serviços domésticos só são localizáveis a um nível de desagregação muito avançado, incapaz de gerar estimativas válidas.[6]
Os registos da Segurança Social apresentam dados desde 2002 e permitem, de um modo geral, aferir o acesso da população trabalhadora à proteção social, uma questão crucial no âmbito deste estudo. Recorde-se que, de acordo com o Decreto-Regulamentar n.º 43/82 de 22 de julho, os serviços domésticos são obrigatoriamente abrangidos pelo regime geral de previdência. A análise considerará todas as pessoas que efetuaram pelo menos uma contribuição ao longo do ano, sendo possível identificar os principais grupos de nacionalidades da população contribuinte. Embora a base de dados não distinga entre pessoas nascidas fora e dentro de Portugal, a investigação prévia sobre os graus de antiguidade das diferentes nacionalidades imigrantes em Portugal ajuda a colmatar essa lacuna (Peixoto, 2008).
Trabalho e proteção social nos serviços domésticos
De 2000 a 2010, o número de pessoas empregadas no ramo de atividade dos serviços domésticos regista um decréscimo de aproximadamente dez mil (quadro 1). A evolução ao longo da década, contudo, não foi linear. Embora as oscilações possam dever-se, em parte, a aspetos técnicos da recolha de dados, é possível identificar um aumento entre 2005 e 2008, seguido de uma quebra significativa.[7] A figura 1 reforça esta leitura. Face ao decréscimo relativamente constante e moderado do emprego total em Portugal, com valores muito próximos do zero entre 2002 e 2008, o aumento do emprego nos serviços domésticos antes da eclosão da crise económica e a sua contração nos últimos anos têm contornos mais pronunciados.
Quadro 1 Pessoal dos serviços domésticos, por sexo, 2000-2010 (em milhares)
Figura 1 Crescimento anual do pessoal dos serviços domésticos e da população empregada total, 2000-2010 (%)
Sem traduzir necessariamente a evolução dos serviços domésticos no seu todo, estes dados dizem respeito à modalidade de vínculo contratual direto entre as duas partes. Assim, o aumento em meados da década pode estar relacionado com uma expansão desta modalidade em detrimento da prestação de serviços através de instituições de solidariedade social ou empresas. O mesmo é possível, no sentido inverso, para o final da década. É razoável esperar, contudo, que a contração dos orçamentos familiares e a insegurança ou perda de emprego entre famílias da classe média leve um número significativo destas a abdicar parcial ou integralmente do recurso a serviços domésticos.
A proporção de mulheres na população empregada é espantosamente elevada e constante, mantendo-se acima dos 98% em 2010 (cf. quadro 1). Acrescente-se, para fins comparativos, que a proporção de mulheres na população empregada total em Portugal aumentou de 45% em 2000 para 47% em 2010. Os serviços domésticos apresentam-se, assim, como um dos expoentes máximos da segregação sexual identificada em relatórios extensivos sobre o mercado de trabalho contemporâneo (Eurostat, 2008; European Commission, 2009).[8]
Em 2000, 85 mil trabalhadoras domésticas declaravam trabalhar a tempo parcial, face a 67 mil a trabalhar a tempo inteiro (figura 2). Esta distância encurtou-se ao longo da década, com o aumento do trabalho a tempo inteiro. A crise económica parece ter afetado mais o trabalho a tempo parcial do que o trabalho a tempo inteiro, provavelmente porque aumentou a pressão para trabalhar mais horas. A importância de atentar à distribuição por estas duas modalidades de trabalho confirma-se ao considerar a média de horas semanais trabalhadas (dados do INE, não publicados). Esta aumentou de 28 para 30 horas no arco temporal analisado, embora não tenha sofrido alterações dentro de cada uma das modalidades. Em 2010, a carga semanal fixava-se em 41 horas entre as trabalhadoras a tempo inteiro e 18 horas entre as trabalhadoras a tempo parcial, valores que se mantiveram muito semelhantes durante a década.
Figura 2 Pessoal dos serviços domésticos por tempo de trabalho, 2000-2010 (milhares)
A distribuição entre trabalho a tempo inteiro e a tempo parcial não dá conta do número de domicílios em que trabalha a pessoa inquirida. Uma trabalhadora doméstica a tempo inteiro pode ter um só local de trabalho e uma só entidade empregadora, ou várias; o mesmo para quem trabalha a tempo parcial. De qualquer modo, os estudos já realizados indicam que o trabalho a tempo inteiro é a modalidade mais propícia ao recrutamento da mulher imigrante, sobretudo quando se trata de trabalhar como interna (Catarino e Oso, 2000; Wall e Nunes, 2010; Guibentif, 2011). A sua procura está tendencialmente associada à prestação de cuidados a crianças ou pessoas idosas e, naturalmente, aos estratos de maior capacidade económica. O trabalho a tempo parcial, em contraste, é frequente entre mulheres portuguesas que o desempenham a fim de complementar outras fontes de rendimento. Assim, o trabalho a tempo inteiro tem condições para vingar mesmo que a contração dos orçamentos familiares motive a redução do trabalho a tempo parcial. Esta segmentação interna do serviço doméstico contribui para explicar a relativa resiliência do setor face a ciclos económicos negativos quando comparado com outros ramos da economia (Peixoto, Marçalo e Tolentino, 2011: 106).
As Estatísticas do Emprego permitem ainda identificar quantas pessoas trabalham por conta de outrem e por conta própria. No caso dos serviços domésticos, contudo, esta distinção é especialmente delicada. O Inquérito ao Emprego é explicitamente indiferente ao tipo de enquadramento no sistema fiscal ou na Segurança Social, apoiando-se, em vez disso, numa pergunta sobre quem define as condições de prestação da tarefa, nomeadamente o período e o custo de execução: se for a trabalhadora, considera-se trabalho por conta própria; se for a entidade empregadora, por conta de outrem (INE, s/d: 51). A singular subjetividade desta questão limita a possibilidade de análise. Note-se apenas que 19% das trabalhadoras domésticas inquiridas no Inquérito ao Emprego em 2010 afirmaram trabalhar por conta própria, uma proporção muito semelhante à registada em 2000, embora tenham sido atingidos valores mais elevados na maioria dos anos intermédios. A sugestão é que uma fração minoritária mas substancial de pessoas empregadas nesta área vive uma relação de trabalho com maior autonomia, o que merece estudo aprofundado através de outros dispositivos metodológicos.
O número de trabalhadoras domésticas com contrato sem termo aumentou com relativa constância até 2008, momento em que, mais uma vez, a tendência se inverte, com uma redução de 139 mil pessoas para 109 mil — e de 79% da população empregada no ramo para 76% (figura 3). Uma vez que se considera existir contrato sem termo sempre que a relação de trabalho, tendo frequência regular, não foi objeto de acordo que a defina de outra forma, esta categoria tenderá a englobar um grande número de trabalhadoras domésticas sem contrato escrito. Isto significa que a trabalhadora pode estar enquadrada, aos olhos da lei, na modalidade de maior segurança laboral, ainda que a sua situação seja, no plano empírico, extremamente precária. Assim, a consolidação das outras formas contratuais, pouco afetadas até ao momento pela crise económica, reflete dois desenvolvimentos. Por um lado, o ímpeto de formalização protagonizado pela população trabalhadora imigrante a fim de assegurar a residência legal no país (Peixoto, 2006). Por outro lado, a adoção de modalidades de trabalho temporário e de prestação de serviços, quer por parte de entidades empregadoras particulares, quer por parte de empresas que têm vindo a surgir nas áreas de limpeza e apoio domiciliares. Repare-se que entre 2005 e 2008, o período de crescimento do setor identificado nas figuras iniciais, houve um aumento de ambas as formas contratuais distinguidas na figura 3.
Figura 3 Pessoal dos serviços domésticos por tipo de contrato, 2000-2010 (em milhares)
O primeiro aspeto digno de nota relativamente aos dados da Segurança Social é que o número de pessoas com contribuições efetuadas no regime de serviço doméstico registou um decréscimo acentuado desde 2002 (figura 4). Nesse ano, a população contribuinte ascendia a 173 mil, um valor inclusivamente superior à estimativa das Estatísticas do Emprego para o ramo de atividade.[9] A perda de proteção social só terá sido mitigada caso tenha ocorrido uma deslocação para outros regimes da Segurança Social, por exemplo o esquema geral de trabalhadores por conta de outrem ou o seguro social voluntário. Os dados disponíveis não permitem examinar esta hipótese, mas é inverosímil que tal tenha acontecido à escala necessária para compensar a quebra assinalável que o gráfico expõe. Uma explicação mais plausível residirá na dificuldade das trabalhadoras para assegurar o seu enquadramento no sistema, sobretudo devido a constrangimentos económicos e ao incumprimento de contribuições por parte das entidades empregadoras (Guibentif, 2011).
Figura 4 Pessoal dos serviços domésticos e pessoas com contribuições para a Segurança Social por serviço doméstico, 2000-2010 (em milhares)
A dedução a partir dos estudos anteriores é que as contribuições para a Segurança Social estariam, pelo menos nos primeiros anos da década, a ser estimuladas pela sua utilidade no processo de regularização das mulheres imigrantes. Por que razão terá então ocorrido um decréscimo, considerando que a aquisição ou renovação de um título válido de residência continua a ser uma necessidade premente da população imigrante? Duas respostas poderão ajudar a compreender este processo. Uma é que, desde o início da década, o trabalho nos serviços domésticos tem sido crescentemente assumido por imigrantes que já possuem título de residência ou que o asseguram por outra via, nomeadamente a reunificação familiar. A outra é que as mulheres portuguesas, com menor propensão para efetuar contribuições para a Segurança Social, continuam a constituir uma parcela grande das trabalhadoras domésticas, parcela essa que pode até ter aumentado nos anos mais recentes sob as pressões do desemprego e da pobreza (Peixoto, 2006: 223). Adicionalmente, a população empregada neste ramo, sobretudo aquela que tem nacionalidade portuguesa, concentra-se nos escalões etários superiores — e assim tem sido cada vez mais ao longo dos últimos anos, numa trajetória de claro envelhecimento (Baptista, 2011; Abrantes e Peixoto, 2012). Isto pode significar que algumas trabalhadoras que se mantêm no ativo já não podem ou não veem vantagem em efetuar descontos, estando inclusivamente, em alguns casos, a receber uma pensão de reforma.
A distinção entre população de nacionalidade portuguesa e estrangeira produz dois contributos fundamentais (quadro 2). Em primeiro lugar, o número de pessoas de nacionalidade estrangeira empregadas nos serviços domésticos em 2010 cifra-se, segundo as Estatísticas do Emprego, em 20 mil. Isto representa ainda uma minoria da população empregada no ramo (14%), embora seja claramente superior ao peso da população imigrante na população empregada total em Portugal (4%).[10] Acrescente-se que os serviços domésticos constituem o ramo de atividade mais frequente entre as mulheres imigrantes empregadas em Portugal, concentrando 20% do seu total. Em segundo lugar, corrobora-se fortemente a maior inclinação da população imigrante para contribuir para a Segurança Social: a população com descontos efetuados em 2010 excede a população estimada para o ramo de atividade na grandeza de um milhar.
Quadro 2 Pessoal dos serviços domésticos e pessoas com contribuições para a Segurança Social por serviço doméstico, por nacionalidade, 2010
A informação disponibilizada pelas Estatísticas do Emprego a respeito da nacionalidade é ainda bastante limitada em termos de detalhe e arco temporal. Permite apurar as principais nacionalidades estrangeiras na globalidade do mercado de trabalho, embora não conceda o refinamento desejado para cada ramo de atividade. Com base também em dados de 2010 (não publicados), afere-se que mais de um terço (35%) da população estrangeira empregada em Portugal é brasileira, seguida da população originária de Angola (11%), Cabo-Verde (10%), Ucrânia (9%), Roménia (5%) e Moldávia (4%). Os dados apresentados em Guibentif (2011) indicam que, para as mulheres de todas estas nacionalidades, os serviços domésticos têm representado uma fonte de rendimento importante. Indicam também que o desenquadramento da Segurança Social é mais comum entre as mulheres brasileiras e da Europa de Leste do que entre as mulheres de origem africana, podendo isto dever-se a diferenças na capacidade de reivindicar este direito, na longevidade da estadia em Portugal, ou nos planos de permanência e partida.
Recorrendo a dados da Segurança Social, o quadro 3 apresenta os cinco agregados nacionais mais numerosos em 2010, bem como a sua evolução desde 2002.[11] Confirma-se que foi entre as trabalhadoras portuguesas que se deu o decréscimo da população contribuinte, numa redução que parece ter sido mais acelerada do que a perda de presença no setor. No início da década, as nacionalidades estrangeiras apresentavam números extremamente baixos, o que sugere uma abundância de desproteção social que se terá esbatido. Ainda assim, a percentagem constituída por estas nacionalidades é, em 2010, reduzida: 8% no caso do Brasil, inferior a 4% nos restantes grupos. Estes dados parecem confirmar a informalidade persistente do setor e moderar a expetativa de que a generalidade das trabalhadoras domésticas imigrantes esteja a conseguir embarcar no círculo virtuoso de proteção social e regularização legal junto das autoridades da imigração.
Quadro 3 Pessoas com contribuições pagas à Segurança Social por serviço doméstico, por nacionalidade, 2002-2010 (em milhares)
Conclusões
O levantamento bibliográfico que ocupa a primeira parte do artigo expõe a posição ambígua em que se encontram as trabalhadoras dos serviços domésticos. Asseguram a sua posição no mercado laboral ao mesmo tempo que são vítimas da reprodução e da consolidação da marca de género atribuída ao trabalho doméstico. Tal marca de género está, por sua vez, intimamente ligada à desvalorização social deste tipo de trabalho em contraponto ao trabalho considerado produtivo, desempenhado fora de casa e assente na profissionalização. A transformação incompleta das relações de género assenta na persistência de uma repartição desigual de responsabilidades e direitos entre homens e mulheres, bem como na continuidade, ou até dilatação, de vetores de segmentação ocupacional e salarial no mercado de trabalho. Para uma grande parte das mulheres em Portugal, sobretudo com menor escolaridade, isto significa viver uma “modernização sem emancipação” (Torres, 2008: 50).
Num contexto de políticas de família e redes públicas de apoio deficitárias ou insensíveis à composição das famílias, o recurso a serviços particulares de prestação de cuidados surge não como um luxo, mas como um bem essencial que só pode ser dispensado à custa do desempenho profissional e da autonomia das mulheres (Wall, São José e Correia, 2002; Wall e Nunes, 2010). Por outro lado, tem produzido e alimentado um segmento da economia fértil em práticas informais e precárias. A proporção elevada de mulheres imigrantes empregadas neste ramo de atividade e as dificuldades que nele se colocam à profissionalização e à organização coletiva são questões fulcrais a merecer estudo futuro.
Os dados estatísticos examinados dão um contributo importante para quantificar as sombras em que continua a desempenhar-se o trabalho doméstico remunerado. Verifica-se que o ramo de atividade dos serviços domésticos, pelo menos na modalidade contratual direta, manteve um volume substancial durante a primeira década do século XXI. Regista-se contudo um decréscimo desde a eclosão da crise económica em 2008. Mais do que variações de dimensão, os dados sugerem transformações importantes relativamente à composição do setor. Perfila-se, em 2010, um panorama de trabalho mais intenso e mais informal do que dez anos antes. Numa comparação com dados recolhidos no final da década de 1990 (Catarino e Oso, 2000), é notável a crescente etnicização do setor — sem esquecer que as dinâmicas migratórias dentro do território nacional já constituíam um dos seus pilares (Brasão, 2010) —, com especial destaque para o aumento da população de origem brasileira. Por outro lado, este processo de internacionalização parece ser menos abrupto do que noutros países, sobretudo em período de crise económica. As dinâmicas de retorno e a dificuldade por parte de imigrantes para renovar as suas autorizações de residência, nomeadamente associada à falta de contrato escrito e de contribuições para a Segurança Social, ampliam o leque de interpretações para a diminuição do emprego formal.
A desproteção social emerge como tema de magna urgência na esfera académica e pública. Já se conheciam as dificuldades das trabalhadoras dos serviços domésticos para assegurar a sua posição no sistema de Segurança Social (Guibentif, 2011; Baptista, 2011). A presente análise sugere que estas dificuldades ter-se-ão acentuado na última década, sobretudo entre as mulheres portuguesas. A resposta poderá estar nos fracos rendimentos das trabalhadoras, na prioridade que dão à poupança privada, ou na resistência das entidades empregadoras ao cumprimento do seu dever de contribuição. O mais provável é estarmos perante um cruzamento destes três motivos que, aliás, não são inteiramente dissociáveis entre si no plano empírico.
Falar de trabalho à margem do sistema de Segurança Social é também falar de exclusão e de riscos de pobreza a médio e a longo prazo — além da questão de sustentabilidade do próprio sistema de Segurança Social, claro está. A desregulação da economia e a flexibilização das relações laborais têm merecido um debate tenso (Pinto e Pereira, 2008). É importante não esquecer os setores tradicionalmente desregulados e flexíveis, aqueles que há muito tempo conhecem de perto a cumplicidade entre estado fraco e mercado forte (Peixoto, 2002). O estudo das condições em que se desempenha o trabalho doméstico remunerado exige o debate sobre questões de género, de imigração e da própria valorização do trabalho que permanecem por resolver nos dias que correm.
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Notas
[1] O presente texto resulta da pesquisa “Serviços domésticos e trabalhadoras/es migrantes: a negociação da relação laboral”, desenvolvida no âmbito do doutoramento em sociologia económica e das organizações no Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade Técnica de Lisboa. Uma primeira abordagem do tema encontra-se em Abrantes e Peixoto (2012). Agradeço a Sara Falcão Casaca e João Peixoto pelo desafio e apoio constante, bem como às/aos colegas que reviram anonimamente a primeira versão do artigo pelos seus comentários preciosos. Agradeço também ao Instituto Nacional de Estatística e ao Instituto de Informática da Segurança Social, em particular a Maria João Rebelo e Pedro Rodrigues respetivamente, pela disponibilização de dados e esclarecimentos. Este trabalho conta com o apoio da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (bolsa de doutoramento SFRH/BD/61181/2009).
[2] Os outros países examinados por Crompton (2006) são Finlândia, França, Inglaterra, Noruega e Estados Unidos da América. Uma publicação posterior destaca o número elevado de famílias em Portugal que externaliza o trabalho doméstico, embora a análise não permita distinguir entre a contratação de serviços pagos e o recurso ao apoio voluntário de pessoas não corresidentes, nomeadamente familiares (Crompton, Lewis e Lyonette, 2007).
[3] Esta leitura recorda o argumento de Sassen (2005: 402) de que o poder de iluminação que caracteriza as grandes categorias teóricas significa também que se produz, em seu redor, uma vasta área de penumbra, “impedindo-nos de ver outras presenças na paisagem”.
[4] Wall e São José (2004: 592) subscrevem o abandono da ideia de “conciliação” entre vida profissional e familiar em benefício da noção de “gestão”. Nesta perspetiva, a família pode ser entendida como um empreendimento no qual são ativados recursos e pesados custos e benefícios, embora seja importante recordar que as opções associadas têm um peso afetivo e emocional de relevância (Zelizer, 2005).
[5] Importa assinalar que, no quadro da Segurança Social, o serviço doméstico é objeto de um regime especial. É permitida uma taxa contributiva mais reduzida do que aquela prevista no regime geral de trabalhadores por conta de outrem (28,3% contra 34,75%, à data de redação), bem como a opção de realizar descontos com base numa remuneração convencional, inferior ao salário efetivo (Peixoto, Marçalo e Tolentino, 2011: 46). Por outro lado, só tem direito a subsídio de desemprego quem trabalha a tempo inteiro para a mesma entidade empregadora e desconta sobre o salário efetivo, sendo para tal necessário que tenha menos de 57 anos (Instituto da Segurança Social, 2012: 14). Assim, o regime especial do serviço doméstico surge como uma via inferior, poderá dizer-se, do sistema da Segurança Social, protegendo a pessoa que o desempenha em alguns aspetos e excluindo-a noutros.
[6] Isto deve-se, em grande medida, ao facto de a Classificação Nacional de Profissões enquadrar os serviços de limpeza e os serviços de cuidados pessoais em grupos profissionais diferentes. Embora esta separação seja compreensível do ponto de vista das funções desempenhadas (e útil caso as estimativas para cada uma das profissões fossem suficientemente fiáveis para divulgação), a observação empírica tem mostrado como é frequente o serviço doméstico abarcar as duas funções sem uma fronteira objetiva. Esta fronteira constitui, aliás, um motivo possível de tensão entre a trabalhadora e a entidade empregadora, bem como um aspeto fundamental dos debates sobre a profissionalização do setor ou sobre a intervenção pública.
[7] A quebra estende-se a 2011, quando o número total de pessoas empregadas neste ramo de atividade viria a descer para 135,7 milhares.
[8] De acordo com dados de 2010 disponibilizados através do Eurostat, as mulheres constituem a maioria da população empregada nos serviços domésticos em todos os estados membros da União Europeia, embora em nenhum outro esta maioria seja tão avassaladora como em Portugal (Abrantes e Peixoto, 2012). Por motivos de simplificação e legibilidade, as restantes figuras apresentadas no artigo abdicarão da desagregação por sexo. Dar-se-á também preferência à utilização do substantivo plural no feminino.
[9] Esta discrepância não significa desadequação das estimativas. É possível que pessoas captadas noutros ramos de atividade pelas Estatísticas do Emprego estejam inscritas no regime de serviço doméstico da Segurança Social. Desde logo, as Estatísticas do Emprego registam a atividade principal da pessoa inquirida. O serviço doméstico é com frequência combinado com outras atividades, podendo existir uma preferência por descontar neste regime especial, nomeadamente porque apresenta taxas contributivas inferiores. Por outro lado, uma pessoa pode ter efetuado uma contribuição relativa a serviço doméstico num determinado período do ano mas não estar a desempenhar esse trabalho na semana de referência a que reporta o Inquérito ao Emprego. É também possível realizar contribuições sem estar efetivamente a desempenhar o trabalho.
[10] Recorde-se porém que, num inquérito específico ao pessoal dos serviços domésticos em várias regiões do país, a proporção de imigrantes atingiu 33% (Guibentif, 2011). Embora esse estudo não tivesse uma ambição de representatividade comparável à das Estatísticas do Emprego, acaba por reforçar dúvidas prévias quanto à abrangência plena da população imigrante nas fontes oficiais (Peixoto, 2008: 24-26).
[11] Infelizmente, as nacionalidades são agregadas pelos serviços da Segurança Social com base no volume de cada nacionalidade e na sua propinquidade geográfica, impossibilitando maior detalhe em grupos reconhecidamente tão amplos.