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Sociologia, Problemas e Práticas

versão impressa ISSN 0873-6529

Sociologia, Problemas e Práticas  no.73 Oeiras set. 2013

https://doi.org/10.7458/SPP2013732810 

A construção social da economia política da água

The social construction of the economic policy for water

La construction sociale de l’économie politique de l’eau

La construcción social de la economía política del agua

 

Rodrigo Constante Martins*

* Professor do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar-Brasil). E-mail: rmartins@ufscar.br

 

RESUMO

Este trabalho apresenta uma crítica conceitual à compreensão neoclássica da questão ambiental. O artigo propõe uma análise do modelo lógico-dedutivo usado pela economia ambiental neoclássica para a interpretação dos modernos conflitos socioambientais. Apresenta uma revisão crítica dos princípios neoclássicos, partindo do caso do uso e acesso aos recursos hídricos. Particularmente, o trabalho tratará do uso de instrumentos econômicos na experiência de política de águas no Brasil e em Portugal.

Palavras-chave: sociedade e recursos hídricos, sociologia ambiental, política ambiental, teoria social.

 

ABSTRACT

This work presents a conceptual critique about the neoclassical comprehension of the environmental question. The article proposes an analysis of the logical-deductive model used by the neoclassical environmental economy for the interpretation of the socio-environmental conflicts. It presents a critical revision of the neoclassic principles starting from the case of the access to water resources. Particularly, the work will treat the use of economical instruments of environmental policy experience of the water management in both Brazil and Portugal.

Keywords: society and water resources, environmental sociology, environmental policy, social theory.

 

RÉSUMÉ

Ce travail présente une critique conceptuelle de la compréhension néoclassique de la question environnementale. L’article propose une analyse du modèle logico-déductif utilisé par l’économie environnementale néoclassique pour l’interprétation des conflits socio-environnementaux modernes. Il présente une révision critique des principes néoclassiques en partant du cas de l’accès aux ressources hydriques et de leur utilisation, tout en mettant l’accent sur l’utilisation des instruments économiques dans l’expérience de la politique des eaux au Brésil et au Portugal.

Mots-clés: société et ressources hydriques, sociologie environnementale, politique environnementale, théorie sociale.

 

RESUMEN

Este trabajo presenta una crítica conceptual a la comprensión neoclásica de la cuestión ambiental. El artículo propone un análisis del modelo lógico-deductivo usado por la economía ambiental neoclásica para la interpretación de los modernos conflictos socio-ambientales. Presenta una revisión crítica de los principios neoclásicos partiendo del caso del uso y acceso a los recursos hídricos. Particularmente, el trabajo tratará del uso de instrumentos económicos en la experiencia de política de aguas en Brasil y en Portugal.

Palabras-clave: sociedad y recursos hídricos, sociología ambiental, política ambiental, teoría social.

 

Introdução

Álvaro de Campos, um dos heterônomos mais conhecidos de Fernando Pessoa, lança no poema “A água de aqui é boa, não é?” versos provocadores que convêm aos propósitos deste texto. Diz ele: “A água de aqui — a verdade; a verdade não — a melhor aparência dela.”

A produção de verdades / diagnósticos sobre a moderna crise socioambiental é atualmente um campo amplo que concentra não apenas investigadores e peritos da ciência, mas também engloba militantes ambientalistas, agentes econômicos, burocracias de governo, stakeholders, dentre outros. A pluralidade de interesses envolvidos na tessitura de hipóteses e explicações sobre causas e efeitos do aquecimento global, da perda de biodiversidade, da poluição e da escassez de água indica a pertinência de esforços sociológicos de problematização das forças sociais que disputam o reconhecimento pelo retrato legítimo da questão ambiental. Isto é, a construção social da verdade (ou de sua melhor aparência) relativa aos desafios ambientais contemporâneos pode ser apreendida como objeto de investigação sociológica através das relações entre as categorias de classificação dos fenômenos naturais e as posições das classes e grupos sociais que simultaneamente atuam e são afetados por tal classificação.

Neste artigo, nos interessará particularmente a construção de descrições e prescrições dos problemas relativos aos usos e acessos à água em países distintos.[1] Como é sabido, a temática dos recursos hídricos adquiriu grande abrangência social e política no decorrer das últimas três décadas. Encontros multilaterais envolvendo técnicos e chefes de governo tornaram-se recorrentes, tendo no mais das vezes o propósito de estabelecer inovações normativas para a regulação do uso e acesso à água em escalas nacional e internacional. Em termos simbólicos, ressaltam-se as novas estratégias de classificação do recurso, associado aos signos de riqueza econômica estratégica, como “ouro azul” ou “petróleo do século XXI”.

Esta ressignificação do recurso, alçado à categoria de capital natural, também repercute na construção de novas estruturas de gestão ambiental, voltadas fundamentalmente para o ideal econômico da alocação eficiente dos fatores de produção. Neste sentido, a disseminação internacional dos chamados instrumentos econômicos de gestão ambiental vem sendo apontada como solução eficaz para o ajustamento do consumo social da água. Do ponto de vista prático, tais instrumentos teriam o mérito maior de fazer refletir, através de mecanismos de mercado, os níveis de escassez relativa do recurso, induzindo os agentes econômicos a adotarem condutas racionais de uso do capital natural.

Neste artigo buscaremos desenvolver uma interpretação crítica sobre o aparato conceitual e os valores sociais envolvidos na construção dos instrumentos econômicos de gestão das águas. Para tanto, o artigo divide-se em quatro partes. Na primeira parte, mais descritiva, serão apresentadas algumas das experiências nacionais de gestão econômica dos recursos hídricos, passando pelo caso francês (marco nesta modalidade de gestão) e delimitando os contornos institucionais dos casos brasileiro e português — ambos ainda em fase de implementação normativa. Na segunda parte do texto serão discutidos os pressupostos teóricos que, legitimados pela crença científica, amparam os diagnósticos e as prescrições elaboradas pelos especialistas da chamada “economia da água”. Como se procurará evidenciar no curso do artigo, as várias dimensões da conduta social implicadas nas suposições da economia ambiental nos permitirão identificar a agenda de uma modalidade de “economia política da água”. Na terceira e quarta partes do artigo serão discutidos alguns elementos críticos envolvidos nesta nova especialidade econômica, que hoje influencia sobremaneira o debate internacional sobre os instrumentos de governança da água. Por fim, nas considerações finais, será feita uma síntese das principais implicações das discussões empreendidas ao longo do texto.

A tentativa de interpretação empreendida nesse texto não tem a pretensão de recuperar as especificidades dos casos nacionais de gestão econômica da água, mas abrir uma perspectiva crítica que pode ser pensada nos termos das experiências ainda incipientes — sobretudo as das sociedades brasileira e portuguesa. Deste modo, as discussões nele empreendidas recorrerão menos às singularidades relativas destes contextos nacionais do que à aproximação dos princípios de gestão econômica dos recursos naturais que norteiam atualmente o aparato público regulador nestes países.

 

A gestão econômica da água: experiências nacionais

Problemas relacionados à escassez de água potável em nível mundial têm suscitado preocupações, tanto por parte de estados nacionais quanto por agências e organizações multilaterais, acerca dos modos de regulação e otimização do uso dos recursos hídricos. Gradativamente, em vários países — sobretudo nos pertencentes à OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico) — o controle institucional direto sobre o acesso e uso dos recursos hídricos vem sendo feito a partir da adoção dos chamados instrumentos econômicos, que teriam como função induzir os agentes econômicos a comportarem-se de acordo com padrões socialmente desejados. No concernente à experiência internacional de gestão das águas, os instrumentos econômicos mais utilizados para a garantia de usos mais eficientes do recurso têm sido os orientados para a criação de mercados de água e para formas de cobrança pelo uso dos recursos hídricos — a valoração da água.

A instituição de mercados de direitos de água tem sido realizada com base na crença neoclássica do marginalismo de que, dentro de um sistema de livre mercado, a escassez relativa de um bem determina automaticamente a elevação de seu preço, estimulando assim seus consumidores a otimizarem o seu uso. Nos estados do oeste dos Estados Unidos (Arizona, Califórnia, Colorado, Nevada e Novo México) o direito de propriedade da água possui as mesmas características dos direitos de propriedade sobre a terra, podendo inclusive ser vendido, cedido ou alugado temporariamente. A administração do mercado de direitos de água é feita pelo estado, através de tribunais especiais de água (Water Courts), encarregados de reconhecer os direitos sobre o recurso e resolver eventuais conflitos (Cowan, 1998).

Na América Latina, o Chile é atualmente o único país que dispõe de legislação que estabelece um sistema de mercado, através de direitos transacionáveis. Datada de 1981, a legislação chilena garante a negociabilidade dos diretos de água (definidos como um certo volume de água por unidade de tempo), permitindo o intercâmbio entre o que a lei define como setores agrícolas e não agrícolas (Lee e Juravlev, 1998). Contudo, se comparado com o caso norte-americano, o mercado de água chileno ainda é considerado incipiente, e possui um pequeno volume de transações.

A cobrança pelo uso dos recursos hídricos, por sua vez, constitui-se atualmente no principal instrumento de gestão de águas em nível internacional. Em síntese, tal instrumento parte da atribuição de um valor monetário aos recursos hídricos, que se reflete na forma de impostos, taxas ou simplesmente preços a serem cobrados sobre o uso e/ou contaminação da água. Tal instrumento tornaria possível responsabilizar os agentes (usuários / poluidores) pelas externalidades negativas que suas atividades comportam, permitindo uma aproximação entre custos privados e custos sociais, ao mesmo tempo em que pode gerar receitas para amenizar os impactos negativos sobre os aspectos quantitativos e qualitativos dos recursos hídricos (Dinar, 2000).

A adoção da cobrança pelo uso dos recursos hídricos tem como uma de suas orientações básicas o princípio do poluidor-pagador, adotado pelas legislações ambientais dos países filiados à OCDE. Tal princípio pressupõe que o agente econômico poluidor responderia à demanda de sustentabilidade ambiental menos por considerar que tal temática seja legítima e mais porque o não atendimento à mesma reverberaria negativamente em sua posição no mercado, através da elevação de seus custos individuais.[2]

O sistema francês de gestão dos recursos hídricos é um dos principais exemplos internacionais do emprego do princípio do poluidor-pagador. Calçado em legislação da década de 60, tal modelo define a bacia hidrográfica como unidade administrativa de gestão das águas nacionais, além de também garantir a cobrança pelo uso da água para os agentes públicos e privados que contribuam para a deterioração da qualidade do recurso. A taxa cobrada dos agentes poluidores franceses — a redevance — é determinada através do volume de poluição lançado ou na degradação gerada sobre os corpos de água. Sua aplicação seria uma forma de induzir o poluidor a realizar análises de custo-eficácia entre poluir — pagando taxas — ou não poluir, adotando mecanismos ou tecnologias que reduzam sua carga poluidora (Barraqué, 1991).

No Brasil, o modelo francês tem sido a principal referência para a construção dos arcabouços institucionais nacional e estaduais de gestão dos recursos hídricos. A Constituição Federal de 1988 reiterou o domínio público da água, reconhecendo, porém, o valor econômico do recurso e a cobrança por seu uso. Em 1997, a Política Nacional de Recursos Hídricos definiu que a valoração seria o instrumento privilegiado de ação política de controle ambiental. Dado o caráter descentralizado do novo sistema de gestão das águas no país, nos rios de domínio federal, cumpriria aos Comitês de Bacia Hidrográfica a implementação da cobrança. No caso dos rios de domínio estadual, seria dos estados a responsabilidade pela regulamentação do sistema de cobrança.

Desde 2003, em nível federal, a cobrança pelo uso dos recursos hídricos é praticada pelo Comitê do Rio Paraíba do Sul, que envolve municípios dos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Em nível estadual, o Ceará implementou a cobrança no final de 1998. No estado de São Paulo, a cobrança pelo uso da água foi aprovada em forma de lei em 2005 e encontra-se em fase de implementação pelos Comitês de Bacia Hidrográfica. A Política de Recursos Hídricos deste estado, desde 1991, reconhecia a água não só como um bem público, mas também como um bem dotado de valor econômico, “cuja utilização deve ser cobrada, observados os aspectos de quantidade, qualidade e as peculiaridades das bacias hidrográficas” (São Paulo, 1991).

De maneira geral, no Brasil, o princípio da mercantilização da água, sobretudo através das estratégias de valoração, vem sendo amplamente defendido por movimentos ambientalistas e pelos integrantes dos Comitês de Bacia Hidrográfica. As justificativas comumente manifestadas em favor do princípio estão, por parte dos movimentos ambientalistas, relacionadas à perspectiva de penalização dos agentes poluidores, e, por parte das instituições gestoras, voltadas à arrecadação de recursos financeiros para as atividades de gerenciamento.

No contexto europeu, a sociedade portuguesa vem promovendo mudanças significativas em seus marcos legais, visando uma maior aproximação com os princípios econômicos de gestão das águas. No momento, o país encontra-se em fase de implementação de um novo aparato institucional de administração do recurso. Esta inovação associa-se em larga medida ao processo de integração progressiva de políticas ambientais dos países da União Europeia (UE). Em particular, a Diretiva n.º 2000/60/CE do Parlamento e do Conselho Europeu, que instaura uma nova diretiva das águas para a UE, sugere a pertinência da gestão integrada da água e do território. A despeito de afirmar o caráter não comercial dos recursos hídricos, a diretiva define-os como patrimônio cuja utilização racional deve basear-se nos princípios de precaução e do poluidor-pagador (União Europeia, 2000).

Em Portugal, a transposição da Diretiva n.º 2000/60/CE para a ordem jurídica nacional ocorreu em 2005, com a aprovação pela Assembleia da República da chamada Lei da Água (Lei n.º 58/2005, de 29 de dezembro). Esta lei integra a gestão das águas e do território através da administração ambiental por bacia hidrográfica (noção já consolidada no modelo francês). Também define, entre seus instrumentos de gestão, o princípio econômico, que indicaria a escassez atual ou potencial do recurso, bem como sua utilização economicamente eficiente, tendo por base os princípios do poluidor-pagador e do utilizador-pagador Os Planos de Gestão de Bacia Hidrográfica devem contemplar, segundo o texto da lei, a análise econômica das utilizações da água, considerando as relações de custo-eficácia para a implementação de uma política de preço ótimo do recurso (Diário da República, 2005).

O capítulo 7.º da Lei da Água no país versa exatamente sobre o regime econômico e financeiro do recurso. Este regime deve promover a sua utilização sustentável mediante a internalização dos custos econômicos do uso e da poluição pelos agentes usuários, seguindo uma política de preços que incentive o cálculo eficiente de planejamento microeconômico do uso do recurso.

Considerando este contexto de expansão das estratégias de mercantilização da água não só nas sociedades latino-americanas, mas também no contexto europeu, seja em nível nacional ou comunitário, nos parece que, em termos de reflexão sociológica, são necessários novos esforços de interpretação crítica dos principais termos envolvidos na noção de valoração ambiental. Ou seja, se por um lado as necessidades de recursos financeiros para a gestão ambiental e de enquadramento jurídico dos agentes poluidores são inquestionáveis, por outro é preciso atentar para a não naturalização de noções lógico-dedutivas que pouco contribuem para a construção de políticas públicas condizentes com a complexidade das disputas socioambientais.

Do ponto de vista da análise sociológica, são vários os caminhos de interpretação crítica que podem ser desenvolvidos sobre os princípios da mercantilização dos recursos naturais. Dentre tais caminhos, buscaremos aqui percorrer os contornos essenciais de duas alternativas interpretativas, quais sejam: a das dimensões extraeconômicas do comportamento econômico dos agentes sociais, e a da crítica ao padrão capitalista de uso e acesso aos processos ecossistêmicos. Antes, porém, convêm algumas notas sobre a caixa-preta teórica que sustenta os princípios políticos da melhor aparência da gestão econômica dos recursos naturais.

 

Mercado e meio ambiente: as hipóteses do utilitarismo neoclássico

A microeconomia ambiental neoclássica tem fornecido um importante suporte conceitual para a adoção em escala internacional de instrumentos econômicos para a gestão dos recursos naturais (Jacobs, 1994; Martins, 2004). No nível das políticas públicas, este suporte conceitual fornece os fundamentos para a hipótese do princípio do poluidor-pagador. De acordo com tal princípio, o agente social poluidor deve arcar com as despesas para manter o meio ambiente dentro de parâmetros aceitáveis de qualidade, sustentando, por conseguinte, a hipótese de que, ao ser penalizado pela cobrança no uso deletério da água, o poluidor seria induzido a adotar práticas menos onerosas ao meio ambiente (OCDE, 1992).

Na construção epistemológica do referido princípio — que, em consonância com o utilitarismo neoclássico, segue uma lógica estritamente hipotético-dedutiva, onde os conceitos aplicados na análise derivam abstratamente uns dos outros —,[3] supõe-se que o agente econômico isoladamente induziria o progresso técnico, respondendo rapidamente à demanda de sustentabilidade ambiental. Contudo, tal resposta justificar-se-ia menos pela legitimidade dos valores da sustentabilidade ambiental ante ao cálculo econômico do agente do que pela ameaça de custos adicionais que o não atendimento à demanda de sustentabilidade lhe acarretaria. No caso da aplicação do princípio do poluidor-pagador à gestão das águas, espera-se que a insistência de um agente no uso insustentável do recurso eleve seus custos de produção — custos estes que, repassados ao preço final de seus produtos, diminuirão sua competitividade. Assim, seria esta uma forma de internalização do problema ambiental pelos agentes econômicos, tida pela OCDE como legítima e urgente de ser instaurada nos países que atravessam situações limite.

Nestes termos, a criação de mercados de água e a valoração do recurso surgem como processos de significação por excelência da questão ambiental em nível social. Por intermédio da instauração destas novas institucionalidades, as situações de degradação e escassez relativa dos recursos hídricos seriam naturalmente incluídas no cálculo racional-econômico dos agentes consumidores, que, por sua vez, seriam incitados a definirem formas de uso mais sustentáveis de tais recursos.

Esta dedução acerca das práticas individuais ampara-se na suposição neoclássica de que a alocação eficiente de qualquer bem ou serviço dá-se mediante a livre manifestação da escala de preferência dos agentes-consumidores. Isto significa que seria possível medir a sensibilidade dos consumidores diante das variações na oferta de mercadorias a partir, única e exclusivamente, de sua disposição a adquiri-las/comprá-las, ou seja, a partir de sua utilidade circunstancial.

No caso dos bens ambientais, a situação de uso e acesso não regulados pelos mecanismos de mercado afetaria de maneira decisiva a função de utilidade do agente-consumidor. Pearce (1985), um dos principais expoentes da economia ambiental, destaca que o caráter não rival dos bens ambientais faz com que seu consumo por um indivíduo não implique, necessariamente, o não consumo de outrem, impedindo, assim, que os consumidores manifestem suas preferências pelo referido bem por intermédio de lances de mercado. Diante de tais circunstâncias, os resultados — sejam eles positivos ou negativos — dos usos feitos pelos agentes econômicos dos bens e serviços de domínio público constituiriam-se em externalidades da atividade econômica. Fundamentais no arcabouço teórico da economia ambiental, as externalidades são definidas por este paradigma como sendo os efeitos gerados pela atividade de um agente econômico sobre outrem, afetando sua função de utilidade e, por conseguinte, o próprio equilíbrio do mercado (Baumol e Oates, 1988). A alteração desta situação de equilíbrio afastaria o mercado do “optimum de Pareto”, causando então distorções na distribuição dos recursos e das rendas entre produtores e consumidores. No caso dos bens e serviços ambientais, ao provocar algum tipo de prejuízo que se transformasse em custos excedentes para outro, o agente em questão estaria produzindo uma externalidade negativa, afastando então o mercado do seu ponto optimum de alocação dos recursos.

Desta feita, em uma situação de poluição (que não seria apenas ambiental, mas também econômica), a solução para o restabelecimento do equilíbrio de mercado seria a internalização, por parte do homo oeconomicus, das externalidades por ele provocadas. Contudo, conforme afirmam Baumol e Oates (1988), a ausência de direitos de propriedade sobre muitos dos recursos naturais faz com que não haja pressão social para que o agente gerador da externalidade arque com os custos sociais de sua ação. Para estes autores, na medida em que os bens ambientais não podem se constituir em propriedades privadas, sendo então de uso e domínio públicos, a racionalidade própria das transações de mercado não pode sobre estes imperar. Por conta disso, Stevenson (1991) nos mostra que, historicamente, tem sido atribuída aos governos nacionais — na condição de gestores dos bens públicos — a função privilegiada de equacionar os impasses políticos e econômicos criados pela degradação ambiental.

Entretanto, vários outros autores têm argumentado que esta intervenção governamental tem dado margem ao surgimento de outras disfunções na relação entre economia e natureza. Definidas por Gowdy e O’Hara (1995) como falhas de intervenção, ou, conforme o próprio Stevenson, falhas de governo, tais disfunções estariam vinculadas à própria forma de estruturação do moderno estado-nação. Segundo estes autores, o aparato burocrático característico da estrutura deste estado dificulta a regulação do uso dos recursos naturais, na medida em que os interesses políticos envolvidos no âmbito da gestão pública transformam a questão ambiental em instrumento de barganha entre facções da burocracia estatal. Também ressaltando a existência das falhas de governo, Turner, Pearce e Bateman (1993) apontam as possíveis manobras na legislação ambiental em favor de interesses setoriais, revelando a incapacidade do estado de fazer refletir os níveis de escassez ambiental junto aos agentes econômicos. De acordo com estes autores, a regulação estatal poderia mascarar o nível de esgotamento do capital natural, uma vez que não remete ao homo oeconomicus a responsabilidade de adquirir informações sobre o estoque de recursos naturais para, a partir delas, realizar suas próprias análises de custo-eficácia.

Diante desses impasses atribuídos à atuação do estado na gestão ambiental, a análise neoclássica conclui que não há como enfrentar os problemas relativos à escassez e à degradação ambiental — retomando o bem-estar de todos os agentes econômicos — senão através da criação de condições para que os próprios instrumentos de mercado possam atuar nas relações entre economia e natureza. Para tanto, ao invés de regulamentar, caberia ao estado a tarefa de criar condições para o “livre” funcionamento dos mercados ambientais, que, por sua vez, agiriam em prol da minimização dos impactos econômicos da degradação ambiental.

 

O mercado como prática social

Em face da consolidação dos principais termos da economia ambiental para a análise da moderna crise ambiental, vários estudos têm sido realizados, no curso das duas últimas décadas, com o objetivo de estimar valores monetários para bens e serviços ambientais. A elaboração de indicadores quantitativos ponderados através de critérios de escassez, tais como os níveis de vulnerabilidade e insubstituibilidade dos recursos naturais, e a tentativa de mensuração da disponibilidade da sociedade em pagar pela preservação ambiental — passando inclusive pela construção de mercados hipotéticos para os serviços ambientais — têm sido apresentadas por autores da economia ambiental como a solução viável e eficaz de gerenciamento dos recursos naturais em escala mundial (Pearce e Turner, 1991; Pearce, 1993; Tisdell, 1997).

De outra parte, vários esforços interpretativos, partindo de diferentes matrizes teóricas das ciências sociais, têm enfatizado tanto a falta de sustentação teórica da concepção de mercados ambientais quanto sua inadequação como princípio norteador de políticas de gestão dos recursos naturais. No geral, as críticas à economia ambiental apontam para o reducionismo do comportamento econômico dos agentes sociais no uso dos recursos naturais (Leff, 1995; Benton, 1994), a apreensão a-histórica da relação sociedade-natureza (Martins, 2004; Altvater, 1995) e a própria concepção de sistema econômico deste approach, que reduziria a atividade econômica a um sistema fechado e isolado, desconsiderando que a produção é, fundamentalmente, troca e/ou transformação de energia (Alier e Schlüpmann, 1993; Daly, 1991).

Contudo, a despeito das críticas, os princípios da economia política da água sustentados pelo neoclassicismo marginalista seguem ocupando lugar de destaque no debate internacional sobre regulação ambiental. Outrossim, estes princípios são recorrentemente utilizados para a nominação dos principais temas da moderna crise socioambiental. Esta atividade de nominação, que se origina na designação dos ativos ambientais e se estende até a proposição dos mercados futuros de commodities ambientais, também explicita o fabrico de relações complexas de poder, que não se encerram nos limites de autonomia dos distintos campos de relações (burocrático, acadêmico, econômico). A rigor, a temática ambiental perpassa estes campos; contudo, fundamenta-se sobre a retórica dominante do campo econômico.

O entendimento da gênese do moderno discurso ambientalista requer, sem embargo, a compreensão das formas pelas quais a retórica econômica conduziu os termos da temática ambiental na agenda política desde meados do século XX. Do ponto de vista analítico, propor tal compreensão não implica em tomar a dimensão econômica dos processos sociais como elemento determinante de interpretação. Neste caso, o olhar sobre a retórica econômica resulta da própria historização do discurso ambientalista, posto que sua formulação foi resultante do apontamento de certos limites físicos para a sustentação do padrão de crescimento econômico verificado nas economias centrais no curso das duas primeiras décadas do pós-guerra.

Um dos produtos sociais mais expressivos da presença da retórica econômica na gênese do moderno debate ambiental é a noção de racionalidade no interior do discurso ambientalista. A expressão “racionalização do uso dos recursos naturais” atribui às práticas sociais um conjunto de suposições que comumente apresentam-se de forma bastante fragmentada na vida cotidiana. A noção de cálculo implicada nos discursos de uso racional da água, da energia e dos recursos florestais, dentre outros, requer uma consciência fundamentada no cálculo e na previsibilidade. Esta consciência temporal e seu ethos correlato aparecem como fundamento da conduta econômica racional e capazes de assegurar êxito ao planejamento do que nos últimos anos convencionou-se chamar de contabilidade ambiental.

Entretanto, a suposição da condução universalizada das práticas sociais na direção desta modalidade de racionalização despreza o fato de que a racionalidade da ação tem seu limite na conduta socialmente estruturada do agente. Logo, toda prática social está circunscrita a um quadro específico de experiências passadas que funcionam como matriz de percepções, decisiva para a formulação de estratégias de conduta social. Ou, como nos sugere Bourdieu, a prática revela a fundamentação da illusio como ordem de ação, rotina; no caso do utilitarismo, revela que “o conjunto de disposições do agente econômico que fundam a ilusão da universalidade a-histórica das categoriais e conceitos utilizados são o produto de uma longa história coletiva, e que deve ser adquirida no curso da história individual” (Bourdieu, 2003: 83).

É notório que a crença de que os agentes econômicos, induzidos por “sinais” de mercado, deverão incorporar a dimensão ambiental sob um padrão de racionalidade econômica pressupõe a existência de um padrão unívoco de racionalidade. Entretanto, se consideramos que a relação da sociedade com o meio ambiente é mediatizada também por processos políticos e culturais, torna-se evidente que qualquer estereótipo de conduta racional constitui-se numa idealização com estreito alcance analítico. Weber (1999), em sua clássica análise da dimensão reflexiva da ação social, já enfatizava a necessidade de se compreender o seu sentido subjetivamente visado, ou seja, os elos significativos que fundamentam a ação do agente. Para ele, a dimensão do termo racional vincula-se estritamente aos processos que sustentam a ação social. Sem a compreensão dos seus elos significativos — ou, na terminologia weberiana, de seu sentido — a ação torna-se, do ponto de vista analítico, um comportamento reativo, sem conteúdo eminentemente social.

Portanto, a racionalidade de uma ação ou processo social não deve ser compreendida senão a partir dos seus elos significativos, compostos tanto de motivações materiais quanto simbólicas. É justamente tal iniciativa que permitiria à teoria social, tal como enfatizam apropriadamente Elias e Scotson (2000), a recusa da herança iluminista no que tange à crença consoladora da supremacia de uma razão abstrata, descarnada e totalizante. Os dados sociais, por serem sui generis, não são racionais ou irracionais em sentido absoluto, mas base sobre a qual indivíduos e/ou grupos sociais se autorreconhecem e constroem suas identidades (seja através do conhecimento científico e de ideologias políticas, ou mesmo da construção depreciativa do outro).

Neste contexto, ao contrário do que supõem os neoclássicos, a significação cultural, dentre outras, pode ser o fator determinante sobre o resultado social de uma dada ação, sobrepondo-se inclusive a aspectos econômicos que poderiam dar-lhe sentido distinto. Este seria o caso, por exemplo, de uma interpretação um pouco mais acurada do que o neoclassicismo chama de falhas de mercado. Na economia moderna, as falhas relacionadas com a alocação dos recursos naturais constituem-se, a rigor, em vantagens competitivas disputadas por diferentes grupos (ou capitais) econômicos. A apropriação e uso de condições ecológicas favoráveis ao processo de valorização capitalista têm sido, historicamente, alternativas para ganhos de produtividade e competitividade dos capitais individuais. Da mesma forma, o uso de vantagens institucionais e políticas da esfera não mercantil — chamadas pelos neoclássicos de “falhas” de governo — também constituem-se, sob o prisma da prática destes agentes, em vantagens competitivas.[4]

Ademais, convém ainda destacar que o alcance dos instrumentos econômicos na gestão dos recursos naturais, ao serem concebidos sob a estratégia marginalista de universalização das práticas sociais, evidencia de antemão seus limites em face das distintas modalidades de disputas sociais pertinentes aos jogos de cada campo de forças sociais. Isto é, se considerarmos os recursos naturais como elementos de disputas que são indissociáveis do espaço social, é mister supor que os jogos de oposições e de distinções sociais de cada campo revelarão estratégias diversas de distribuição dos recursos materiais e simbólicos em face dos princípios de diferenciação do próprio campo. Neste sentido, os pressupostos nos quais a aplicação de tais instrumentos se baseia — quais sejam, os da alocação econômica eficiente e da promoção do uso racional do recurso — deverão servir sobremaneira aos mecanismos de diferenciação social de cada campo de forças. Por esta razão, não há como estabelecer nenhum elo, seja de ordem prática ou mesmo teórica, entre o pseudoequilíbrio das relações de troca e o equilíbrio ecológico requerido para a sustentabilidade do uso dos recursos naturais.

Nestes termos, convém ainda resgatar a definição de Fligstein (1996) para a constituição do mercado econômico como fenômeno eminentemente sociopolítico. Tal como destaca o autor, a criação de mercados implica em soluções sociais para problemas de direito de propriedades, estruturas de governança, concepções de controle e regras de troca. A definição do perfil não resulta de processos automáticos de interação social. Esta definição é sobretudo política. As soluções para a constituição de cada mercado são decisivas para a permanência ou exclusão dos agentes. Portanto, a racionalidade destes agentes no âmbito do mercado reserva-se às disputas políticas pelo ordenamento das relações e pela conquista de vantagens competitivas. E, no campo destas disputas políticas, os capitais econômico, social e cultural combinam-se de formas peculiares à posição de cada agente no espaço social.

Mesmo a noção de equilíbrio, recorrente na literatura da economia ambiental em referência à obra de Pareto, revela traços de inconsistência que ultrapassam as dificuldades de identificação do plano das relações concretas e chega à sua formulação conceitual. Como bem observa Passeron (2004), a originalidade de Pareto em relação aos demais marginalistas neoclássicos relaciona-se com sua ressalva de que o equilíbrio econômico de mercado não fornece um modelo que possa ser transposto para suposições acerca do equilíbrio social. O equilíbrio econômico suposto pelo autor estaria intimamente atrelado a condutas lógico-ideais dos agentes econômicos. Em sua análise econômica, o autor procura demonstrar que o livre mercado seria o espaço por excelência de realização de tais condutas. Já em sua obra sociológica, Pareto avança sobre o que denomina de ações não lógico-experimentais, relacionadas ao que chama de resíduos e derivações. Tal como insiste o autor, é preciso estar atento ao fato de que estas ações não lógicas não seriam ilógicas: na história social, equilíbrios, conflitos e crises se explicariam através dos resíduos (expressão dos sentimentos inscritos na natureza humana e nos processos de socialização) e das derivações, formas as quais indivíduos e grupos lançam mão para a justificação de condutas não racionais (no sentido da correspondência da relação meios-fins na consciência do agente e no contexto empírico). Sua sociologia, ao estudar as condutas não lógicas, não visava construir paralelos com a ideia de utilidade empregada na economia. E menos ainda indicar alguma convergência entre as duas noções. Em Pareto, as ações lógicas e não lógico-experimentais comporiam, tal como sugere Aron (2002), o esforço de construção de uma sociologia totalizante, evidentemente correndo os riscos que tais esforços comumente implicam.

A propósito da obra paretiana, o que os autores da economia ambiental desprezam é justamente um de seus pressupostos fundamentais, qual seja, o da inexistência de sociedades compostas exclusivamente de condutas lógico-exprimentais ou de condutas não lógicas. Tratar-se-ia de modalidades extremas, quase no sentido dos tipos puros weberianos. Como salienta Pareto em seu Tratado de Sociologia:

Embora isso desagrade aos humanistas e aos positivistas, uma sociedade determinada exclusivamente pela razão não existe e não pode existir; e isto, não por que os prejulgamentos dos homens os empeçam de seguir os ensinamentos da “razão”, mas por que os dados do problema que se quer resolver pelo raciocínio lógico-experimental lhes faltam. Aqui aparece de novo a indeterminação da noção de utilidade […]. As noções que os diferentes indivíduos têm a respeito do que é bom para eles mesmos ou para os outros são essencialmente heterogêneas, e não há meio de reduzi-las a uma unidade. (Pareto, 2003: 2143)

A leitura sobre estes limites empíricos das condutas lógico-experimentais é o que vem permitindo, por exemplo, a retomada crítica da obra paretiana. Este é o caso dos esforços de Burns e Roszkowska (2009), que problematizam o princípio abstrato do optimum de Pareto no contexto de situações de conflitos e questionamentos sobre os resultados de processos institucionalizados de negociação envolvendo diferentes agentes sociais. Ressaltando os limites do enfoque paretiano para os estudos sobre conflito, estes autores apontam como os procedimentos de negociação (tais como o voto e a jurisdiciação das relações), e não propriamente seus resultados, adquirem legitimidade nas sociedades modernas (promovendo uma espécie de “alquimia institucional”). Nestes termos, o ponto optimum de equilíbrio para a alocação de recursos se relativiza na avaliação dos resultados das negociações institucionalizadas. Como bem observam os autores, a aceitação geral dos procedimentos é que se torna fundamental na resolução do conflito, e não seu resultado como função de utilidade. Com efeito, talvez não seja por outra razão que a crítica social aos instrumentos econômicos de gestão de águas encontra-se em grande medida centrada na condenação dos procedimentos de mercado como reguladores viáveis das modalidades de uso e acesso a este recurso.[5]

 

Crítica da economia política da água

Criticar esta modalidade de economia política da água não significa simplesmente retificar distorções de detalhes da abordagem neoclássica ou preencher eventuais lacunas. Neste esforço de análise, a crítica da economia política da água sugere o apontamento de uma nova problemática, capaz de superar os impasses inerentes às interpretações centradas no modelo formalista de equilíbrio de mercado. Na direção inaugurada por Marx em sua crítica da economia política clássica, o que este texto coloca em discussão é o próprio objeto da economia ambiental, a saber, a alocação eficiente dos recursos naturais baseada em categorias econômicas de gestão.

Sobre a constituição das categorias econômicas, é importante ressaltar que a sociedade cria formas diversas de trocas, que se relacionam e se retroalimentam. Retomamos, portanto, a assertiva de Mauss (2003) de que os mercados são constituídos de práticas econômicas que são, simultaneamente, políticas e culturais. Como é sabido, em seu clássico Ensaio sobre a Dádiva, o autor interpreta a troca como um fato social total, cujas regras manifestam-se simultaneamente na moral, na religião, no direito, na economia, na política, na organização das relações de parentesco e na estética da sociedade em questão. Neste sentido, os indivíduos não podem ser concebidos como estátuas econômicas, posto que também são agentes políticos, culturais e pessoas morais. É justamente por esta razão que, ao se supor a conduta racional do agente econômico diante dos mecanismos de valoração da água, está-se absolutizando a dimensão econômica da conduta social e refletindo-se sobre um agente abstrato, fracionado em sua integridade social.

Este superdimensionamento do cálculo econômico na conduta individual em ambientes de mercado, tal como sugere Sahlins (2003), é uma expressão da própria cultura permeada pela hegemonia da razão utilitária. Tal razão, fundamento da visão moderna de racionalidade econômica, é, do ponto de vista cultural, a maneira pela qual as sociedades ocidentais vêm se experimentando desde o início do século XX. Equivocadamente, este modo de experimentação social segue sendo reificado como único fundamento para a explicação das propriedades das relações sociais, desconsiderando que mesmo a utilidade é composta por dimensões simbólicas que escapam ao universo dos fluxos de oferta e demanda dos mercados.

Senão, como interpretar as práticas culturais de grupos sociais distintos em relação às águas tomando como referência as noções de utilidade e conduta racional sustentadas pela economia ambiental? Ou como interpretar a resistência à precificação da água por aqueles que a concebem como recurso sagrado, sem possibilidade de representação no universo das mercadorias? Neste caso, tratar-se-ia simplesmente de uma conduta residual, nos termos paretianos? Ou ainda, no sentido antropológico, como compreender as tradicionais Festas dos Pescadores e as práticas religiosas sobre as águas, tão presentes em cidades ribeirinhas brasileiras, a partir das posições sociais de ofertante e de consumidor do utilitarismo neoclássico? Qual será a resposta racional dos que cotidianamente mantêm com as águas práticas simbólicas que estão para além dos ajustamentos de mercado?

Como sugere Espeland (1998), a suposição de uma conduta racional universal é problemática justamente em razão das dimensões de identidade e cultura que amparam as práticas e a construção social da realidade. Nestes termos, a leitura dos grupos de interesse e de suas estratégias baseada diretamente em suas respectivas posições de mercado despreza, segundo esta autora, a complexidade que envolve as construções de diferentes visões técnicas sobre a natureza, de diferentes disputas políticas envolvidas na regulação do acesso ao meio ambiente e do multiculturalismo envolvido na construção da moderna temática ambiental.[6]

Podemos afirmar que a noção de racionalidade econômica não apenas possui um alcance relativo, mas também contribui para a construção de ausências no âmbito dos saberes regionais sobre as águas. Intimamente articuladas à razão indolente analisada por Santos (2002), as categorias de conhecimento disseminadas pela economia política da água, ao marcarem os horizontes de alcance para aplicação de certos saberes técnicos, também contribuem para a produção da monocultura do saber e das ausências que lhe são decorrentes. Talvez seja um dos caminhos possíveis para a interpretação das formas de exclusão de grupos sociais das possibilidades de participação em estruturas descentralizadas de gestão das águas.[7] Ao realizar-se como saber legítimo, esta razão técnico-instrumental não promove apenas a marginalização de outras epistemologias do saber ambiental. A acumulação seletiva dos sucessos em termos de nominação estritamente econômica dos recursos ambientais pode também levar ao processo descrito por Santos, Menezes e Nunes (2004) como “epistemicídio” dos saberes concorrentes, liquidando por conseguinte os grupos socais cujas práticas se assentavam em tais conhecimentos.

Se, do ponto de vista cultural, a noção estrita da racionalidade do homo oeconomicus reafirma o modo utilitário de experimentação do cotidiano social, do ponto de vista da construção do conhecimento, a mesma dissocia a ação social dos demais processos que lhe compõe. Como também nos esclarece Santos (2002), esta fragmentação da ação social propiciou o reducionismo das concepções modernas de regulação e emancipação. Isto porque a emancipação moderna tornou-se estritamente associada à racionalidade cognitivo-instrumental da ciência, voltada à produção totalitária do saber e promissora da dominação plena da sociedade sobre os recursos naturais. A regulação, por sua vez, foi associada, com larga contribuição do utilitarismo neoclássico, à livre atuação das forças de mercado. Deste modo, o pragmatismo do paradigma da racionalidade econômica, reduzindo em nível analítico as várias dimensões envolvidas nos processos de desenvolvimento social, de produção de saberes e de regulação institucional de práticas sociais, foi alçado à condição de parâmetro supradimensional para a problematização de quaisquer temas relativos à sociedade, política, economia, ciência e cultura em tempos de modernidade.

Com efeito, as relações sociais não são balizadas somente pelas disputas econômicas por benefícios. Como bem acentua Mauss (2003), em sociedade não são apenas as mercadorias que circulam, mas também as pessoas, os nomes, as palavras, os títulos (prestígio), etc. Por esta razão, cálculos de custo-eficácia não refletem os distintos instrumentos sociais empregados nas práticas cotidianas de classes e grupos. Outras regras e recursos sociais interferem nas ações individuais. A experiência dos grupos sociais, por exemplo, através da construção de saberes e valores sobre o ambiente e sobre a própria sociedade, é um instrumento de percepção social decisivo para os eventuais redimensionamentos da relação sociedade-natureza.

Desta feita, além da compreensão histórica dos processos de uso e apropriação dos recursos ecossistêmicos, também faz-se necessária a análise da transformação social da natureza através de um dado território, com formação histórica específica e relações próprias de dominação. Neste âmbito, a produção social de valores excedentes nos espaços sociais ganha nova dimensão, porquanto abre caminho para a problematização da relação sociedade-natureza a partir da disputa entre grupos e classes sociais pela hegemonia nas formas de uso, regulação e apropriação da natureza local. E são justamente as especificidades destas disputas que escapam ao instrumental da economia política da água e poderão ser decisivas, por exemplo, para os rumos da gestão descentralizada das águas em Portugal. Isto por que, não bastasse a necessidade de inscrição de seus instrumentos de gestão nos marcos da Diretiva Comunitária da UE, as bacias hidrográficas dos rios luso-espanhóis constituem cerca de 2/3 do território de Portugal Continental, integrando 56% dos recursos hídricos superficiais portugueses. Por esta razão, cumprirá ao país a manutenção e/ou elaboração de acordos neste domínio com autoridades e grupos de interesses espanhóis, situação esta que trará ainda maior relevo às especificidades das políticas interna e externa do país.

Em síntese, o resgate das dinâmicas regionais e das especificidades políticas de cada sociedade permite que, do ponto de vista analítico, os processos ecológicos circunscritos aos ambientes de produção de valor adquiram um conteúdo histórico que ultrapasse a simples condição de base biofísica dos processos de acumulação. Por outro lado, o que a concepção da relação sociedade-natureza presente no instrumental conceitual da economia ambiental deixa de esclarecer são justamente as contradições locais das formas capitalistas de sociabilidade. Deste modo, mantém obscuros os processos que revelam mais elementos da crise da sociedade produtora de valores excedentes.

Não é por outra razão que Leff (1995) destaca que a tentativa de pensar a articulação entre sociedade e natureza exclusivamente em função das categorias de investimentos de capital e utilidade marginal dos fatores de produção impossibilita a compreensão dos processos ecológicos como integrantes da história social. Na medida em que as condições ecológicas do processo produtivo surgem como externalidades do sistema econômico, as contribuições dos processos ecossistêmicos e da própria produtividade ecológica à geração de riqueza passam a ser negligenciadas, juntamente com as diferenças entre a produção de valores de uso e valores excedentes. Isto impediria uma análise da transformação ecossistêmica derivada da apropriação social dos recursos naturais como objeto e meio de trabalho para a produção de mercadorias, o que, por sua vez, repercutiria negativamente na construção de alternativas políticas para os grandes temas da moderna crise socioambiental — como é o caso da questão hídrica.

Portanto, no âmbito histórico-estrutural, é importante o estabelecimento de conhecimentos complexos para a promoção de políticas para o uso e acesso sustentáveis das águas em níveis nacional e regional. No caso da água, considerando as especificidades regionais de disponibilidade e qualidade do recurso, torna-se de grande relevância o esforço de integrar as disputas locais às relações dinâmicas da dialética do particular-universal. Este esforço, ao dispor-se a interpretar a complexidade das esferas de sociabilidade historicamente inscritas nos modos de interação da sociedade com a natureza, permite a construção de cenários mais condizentes com o cotidiano dos grupos e classes que possuem interesses concretamente situados diante das potencialidades ecológicas e sociais.

 

Considerações finais

A expectativa sobre o aprofundamento da crise de acesso à água em várias partes do mundo vem estimulando não apenas disputas materiais, mas sobretudo lutas simbólicas em torno dos diagnósticos da crise e das possibilidades de sua mitigação. Nestas disputas, se o utilitarismo econômico neoclássico não se destaca pela consistência de suas explicações sobre a verdade da crise hídrica, o mesmo se autorrepresenta como melhor aparência da verdade através de seu receituário para o alcance do equilíbrio optimum de consumo social do recurso.

Neste artigo, buscou-se sistematizar alguns elementos críticos que permitem compreender o cenário de criação de uma modalidade de economia política de água, que atualmente ampara práticas de gestão de águas em países da Europa e das Américas. À guisa de conclusão, nos parece adequado interpretar a conveniência social da atribuição de mecanismos de mercado na gestão de águas com base em dois critérios não excludentes de apreciação de políticas públicas, quais sejam, os de extensão e densidade. Conforme se espera ter evidenciado no curso do texto, a extensão pretendida pelos princípios conceituais dos instrumentos econômicos de gestão dos recursos naturais é bastante ampla, posto que, em um contexto lógico-dedutivo, dissemina as hipóteses do utilitarismo econômico para todas as esferas da vida em sociedade. Entretanto, justamente por aprisionarem os referenciais da experiência social aos mecanismos de conduta econômica, as estratégias de mercantilização da água apresentam baixa densidade informacional, uma vez que não fornecem suportes em seus princípios de gestão para as dimensões extraeconômicas da relação sociedade-natureza.

Como procurou-se ressaltar através dos marcos críticos aqui abordados, há sempre uma intencionalidade simbólica corporificada no código de recursos socialmente desejáveis. Isto significa dizer que um recurso natural não pode ser reduzido à sua dimensão econômica mesmo para os que o observam como tal; ele também é recurso simbólico que corporifica signos culturais, ocupando assim posição no conjunto hierárquico das trocas simbólicas. Evidentemente, em razão de sua posição neste conjunto hierárquico, suas dimensões políticas e econômicas assumem significado particular para sociedades e grupos sociais distintos.

Por fim, mesmo na análise histórico-estrutural das condutas econômicas nos mercados capitalistas, o formalismo da análise utilitarista impede a problematização do mercado como instituição política, palco de disputas que se estruturam em outros contextos (ou campos) de sociabilidade. Ou seja, no curso da análise socioambiental, este formalismo impede a constatação de que os grupos e classes não apenas criam bases materiais distintas para seus modos de vida, mas também interpretam de formas diversas a construção dos modos de vida, das identidades culturais e da experiência social sobre as potencialidades ecológicas. Para o contexto das sociedades brasileira e portuguesa, que encontram-se em vias de consolidação de novos princípios para a gestão das águas, a leitura crítica deste formalismo a-histórico nos parece decisiva para a construção do olhar plural que o tema requer.

 

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Notas

[1] Este artigo reúne resultados de estudos desenvolvidos pelo autor com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp-Brasil), do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientifico eTecnológico (CNPq-Brasil), da Maison des Sciences del’Homme (MSH-França) e do Programa Jovens Investigadores do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (Portugal).

[2] Neste mesmo sentido, o Banco Mundial (1998: 80) pressupõe que “as tarifas de água e incentivos fiscais podem incentivar as firmas a adotarem tecnologias para economizar e conservar a água, incluindo sistemas de reciclagem. Tais tecnologias e alternativas de gerenciamento tornarão fácil a conservação da água e a reutilização.” No caso da agricultura, o banco acredita que “da mesma forma, as tarifas podem servir de incentivos aos agricultores para alternarem seu trabalho agrícola para culturas que utilizem pouca água”.

[3] Neste sentido, a própria economia ambiental, com as noções de equilíbrio e externalidade, surge como derivação do neoclassicismo no campo da ciência econômica. A propósito deste caráter lógico-dedutivo do utilitarismo neoclássico, ver Wolff e Resnick (1988).

[4] Para apontamentos sobre a construção política destas vantagens competitivas no contexto da economia norte-americana (berço dos ideais do “livre-mercado”), ver estudo de Fligstein (2001) a propósito da emergência do valor acionário como concepção do moderno controle das empresas, e do crescimento do Vale do Silício, força motriz da indústria informática naquele país.

[5] São muitos os críticos que no âmbito do debate público (principalmente no campo jornalístico) ressaltam o caráter excludente da gestão estritamente econômica da água. Para uma síntese dos principais argumentos envolvidos em tal crítica no cenário da opinião pública nas duas últimas décadas do século XX, ver Laimé (2003).

[6] Espeland (1998) exemplifica esta complexidade através do caso dos conflitos envolvidos na construção de uma barragem no oeste dos Estados Unidos. Destaca, em particular, os diferentes universos simbólicos presentes no processo de desocupação territorial para tal construção, que envolvia os Yavapi, comunidade indígena do Arizona que, por considerar a terra como parte de sua herança étnica, não a concebe como alvo de atos de compra ou venda; os engenheiros planejadores da obra, que por quarenta anos argumentaram sobre seu mérito técnico; e os burocratas de estado envolvidos na elaboração de modelos de consenso para mitigar a tensão social em torno da construção da barragem.

[7] A despeito do caráter de “parlamento das águas”, os Comitês de Bacias Hidrográficas no Brasil revelam circunstâncias crescentes de exclusão de grupos sociais. No contexto específico da construção social da governança das águas no estado de São Paulo, este processo vem sendo interpretado por Martins (2006, 2007) através da posição dos agentes nos aparatos de governança, da construção dos discursos, dos critérios de autoridade para as falas / posições no debate descentralizado e das hierarquias sociais resultantes destes atos de distinção.

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