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Sociologia, Problemas e Práticas

versão impressa ISSN 0873-6529

Sociologia, Problemas e Práticas  no.73 Oeiras set. 2013

https://doi.org/10.7458/SPP2013732811 

Decisão na administração pública: diálogo de racionalidades

Decision-making in the public administration: a dialogue of rationalities

Décision dans l’administration publique: dialogue de rationalités

Decisión en la Administración Pública: diálogo de racionalidades

 

Elisabete de Carvalho*

* Professora auxiliar no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade Técnica de Lisboa (ISCSP-UTL), professora auxiliar convidada no Intituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL) e coordenadora do Grupo de Administração e Políticas Públicas no Centro de Administração e Políticas Públicas (CAPP). E-mail: elicarv@gmail.com

 

RESUMO

A ciência da administração pública tem sido palco de um debate aceso na procura dos modelos de gestão e desenhos organizacionais mais propícios a um sistema que se deseja capaz de cumprir as metas que se propõe realizar, fazendo simultaneamente um uso adequado dos recursos ao seu dispor. Almeja-se uma racionalidade instrumental, gestionária, que decorre de uma modelização teórica da decisão muito adotada na gestão e na economia: o modelo de decisão racional. Porém, não é linear que este modelo corresponda ao que realmente ocorre na realidade que visa descrever e explicar. Outros modelos existem, nascidos de estudos com uma natureza indutiva e pragmática, que propiciam visões e explanações diversas para os processos de decisão, nomeadamente quando se introduzem duas variáveis: o contexto político e decisões sobre problemas ambíguos e tendencialmente complexos. Neste artigo, sistematizaremos sinteticamente alguns desses modelos. Talvez ter em conta tais modelos possa revelar-se um precioso auxílio no processo de transformar, com eficácia, o sistema administrativo.

Palavras-chave: processos de decisão, racionalidade, administração pública.

 

ABSTRACT

The Science of Public Administration has been the stage for a heated debate on the search for the management models and organisational designs that best suit a system which will simultaneously achieve the goals that are set for it and make appropriate use of the resources at its disposal. The desired end is an instrumental, managerial rationale derived from a theoretical modelling of the decision-making process that is widely adopted in both management and economic fields: the rational decision-making model. However, it is not entirely clear that this model matches what actually happens in the reality it seeks to describe and explain. There are other models, born out of studies of an inductive, pragmatic nature, that provide different visions of and explanations for decision-making processes, particularly when two variables are introduced: the political context; and when decisions concern ambiguous problems that tend to be complex. The author synthetically systematise some of these models, in the hope that considering them may provide valuable assistance in the process of transforming the administrative system effectively.

Keywords: decision-making processes, rationality, public administration

 

RÉSUMÉ

La science de l’administration publique est la scène d’un débat enflammé visant à trouver des modèles de gestion et des dessins organisationnels plus propices à un système qui doit être capable d’atteindre les objectifs qu’il s’est fixés tout en faisant un bon usage des moyens à sa disposition. Il s’agit d’atteindre une rationalité instrumentale, gestionnaire, qui découle d’une modélisation théorique de la décision très employée dans la gestion et dans l’économie: le modèle de décision rationnelle. Cependant, il n’est pas linéaire que ce modèle corresponde à ce qui se produit vraiment dans la réalité qu’il est supposé décrire et expliquer. Il existe d’autres modèles, nés d’études de nature inductive et pragmatique, qui offrent des visions et des explications différentes pour les processus de décision, en particulier lorsque l’on y introduit deux variables: le contexte politique et les décisions sur les problèmes ambigus et tendanciellement complexes. Cet article présente une systématisation synthétique de certains de ces modèles. Peut-être leur approche peut-elle constituer une aide précieuse afin de transformer efficacement le système administratif.

Mots-clés: processus de décision, rationalité, administration publique.

 

RESUMEN

La Ciencia de la Administración Pública ha sido palco de un debate vivo en la búsqueda de los modelos de gestión y diseños organizacionales más propicios a un sistema que sea capaz de cumplir las metas propuesta haciendo simultáneamente un uso adecuado de los recursos disponibles. Se ambiciona una racionalidad instrumental, de gestión, que deviene de una modelización teórica de la decisión muy adoptada en administración y en economía: el modelo de decisión racional. Sin embargo, no es lineal que este modelo corresponda a lo que realmente ocurre en la realidad que busca describir y explicar. Otros modelos existen, nacidos de estudios con una naturaleza inductiva y pragmática, que propician visiones y planteamientos diversos para los procesos de decisión, específicamente cuando se introducen dos variables: el contexto político y decisiones sobre problemas ambiguos y tendencialmente complejos. En este artículo, sistematizaremos sintéticamente algunos de esos modelos. Tal vez su contemplación pueda ser un precioso auxilio en lo proceso de transformar, con eficacia, el sistema administrativo.

Palabras-clave: procesos de decisión, racionalidad, Administración Pública.  

 

The perfectly rational decision maker is to politics what the saint is to religion — an ideal everyone publicly espouses, most people would not want to live by, and precious few attain. (Deborah Stone, 2002: 233)

 

Ciência da administração e contexto político

A ciência da administração pública é uma disciplina que se ocupa do estudo das instituições que visam a satisfação das necessidades coletivas de uma comunidade, procurando assegurar a boa governação, ou seja, a formulação e implementação de políticas públicas conducentes à resolução dos problemas da comunidade, fazendo um uso eficaz e eficiente dos recursos escassos à sua disposição.

Ciência carrefour, na expressão de Chevallier (2002: 50), a ciência da administração pública caracteriza-se pela multidisciplinaridade e pela pluralidade de olhares sobre os fenómenos administrativos (Raadschelders, 2003; Lynn, 2005), o que se traduz numa limitação e, simultaneamente, numa fonte de riqueza. Limitação porque a diversidade induz a que se lhe aponte a falta de um corpo teórico consistente e integrado, o que leva alguns autores a falarem de uma certa crise de identidade (Denhardt, 1990) e outros a atribuir-lhe um cariz autodestrutivo (Peters, 1996). Riqueza porque abraça a complexidade do seu objeto de estudo, recorrendo a diversas áreas disciplinares na procura de quadros interpretativos e explicativos estruturantes da intervenção. Pollitt (2010), procedendo à análise da área disciplinar e da comunidade académica que a ela se dedica, conclui que sofre de múltipla personalidade, devido à variedade de origens, fins e metodologias nela presentes. Contudo, para este autor, tal está longe de ser negativo, constituindo uma inevitabilidade que deverá ser abraçada para que haja uma acumulação de conhecimento sistematizado sobre os fenómenos administrativos, que potencie a capacidade para responder às questões perenes da administração pública, tais como: definir prioridades face à afetação de recursos escassos, garantir a eficiência e eficácia do sistema, assegurar a responsabilização das suas organizações e agentes, e encontrar mecanismos de integração num sistema crescentemente fragmentado.

A ciência da administração pública tem como raison d’être a defesa da especificidade do estudo das organizações da administração pública (Kickert e Stillman II, 1999), argumentando que a gestão da coisa pública implica um conjunto de características que a tornam diferente da gestão privada e que justificam, consequentemente, um domínio científico a ela dedicado (Kickert e Koppenjan, 1999). Entre as características específicas mais apontadas, destaca-se a submissão ao poder político (Pollitt, 1993; Pollitt e Harrison, 1994; Ranson e Stewart, 1994). O que significa que a administração pública, enquanto atividade, plasma-se num conjunto de meios que visam persseguir fins definidos formalmente no nível político. Este facto, a par da necessidade em assegurar a provisão de bens e serviços de cariz tendencialmente público, com o objetivo de servir a coletividade, e que têm como principal fonte de financiamento os impostos, moldam um conjunto de elementos que a tornam única. Semelhanças haverá com outras atividades de gestão, mas as diferenças acabam por ter maior peso (Allison, 1991; Rainey e Chun, 2005), requerendo, consequentemente, competências e valores diversos (Lynn, 2003).

A procura de uma maior racionalidade, do casamento perfeito entre o uso dos meios e a prossecução dos fins, faz parte da matriz genética do seu projeto académico. Stone (2002) chama a esta indagação o Santo Graal, que tornará o processo de decisão mais ajustado à escolha das soluções mais adequadas para os problemas diagnosticados, gerando o máximo de benefícios, a um custo mínimo. Não é difícil perceber que este ideal, levado ao extremo, corre o risco de desembocar numa tecnocracia subversiva da democracia. Criar-se-ia assim um sistema em que reinaria uma racionalidade instrumental, assente no ideal de uma elite de decisores quase omniscientes, que julgariam por si o que seria melhor para todos aqueles que não privassem da sua ciência, afastando do processo decisório o jogo de interesses, em geral não declarados, dos políticos e da política, não fosse este macular a neutralidade, objetividade, frieza e imparcialidade dos decisores “técnicos” (Keller, Green e Wamsley, 1996).

Contudo, a ciência da administração não assume a tecnocracia como um ideal merecedor de concretização. Os seus autores desejam apenas, como Peters (1988) denota, desenhar instituições e sistemas de gestão propícios a atrair profissionais competentes em gerir o processo de políticas públicas, em conformidade com a vontade e critérios de quem politicamente governa.

Nos últimos 30 anos, a resposta tida como conducente à concretização desta aspiração foi marcada pelo new public management (NPM), uma corrente que defende a transformação do papel do estado na sociedade e o redesenho do seu aparelho administrativo, quer ao nível estrutural, quer na ação. E, contudo, o NPM parece ter esquecido o elemento político na sua modelização do cosmos da administração pública (Schedler, 2003) ou, então, como refere Pollitt (1993), encarou-o como lamentavelmente inevitável. Questionamos neste artigo até que ponto é que ignorar a política ou minimizar a sua importância não servirá apenas para criar hiatos entre a teoria e a prática, reduzindo a utilidade da ciência da administração pública. Professamos a crença de que a política não poderá ser afastada de qualquer modelo administrativo que se queira condicente com a realidade onde deverá operar. Gerir a administração pública é gerir em contexto político, pelo que emerge a necessidade de saber como é que tal contexto vai influenciar os processos de decisão e até que ponto a polis limitará a exequibilidade de uma decisão racional, no sentido técnico.

 

Racionalidade limitada, decisão incremental e contentor de lixo

Se os decisores, em contexto político, obedecessem às regras do modelo racional de decisão, teriam de definir os seus objetivos de modo claro e preciso, quantificando preferencialmente o grau de prossecução (resultados) desejável. Em seguida, analisariam as alternativas disponíveis para a obtenção dos tais objetivos (idealmente, todas seriam consideradas); avaliá-las-iam segundo os seus custos, benefícios e riscos e, por fim, escolheriam a que lhes maximizasse os ganhos (melhor relação custo / benefício, com menor risco). Este é um ideal que plasma a crença no supremo valor da razão que, contudo, dificilmente encontra concretização na realidade complexa das políticas públicas e das organizações da administração pública (Heineman e outros, 2002; Stone, 2002; Pasquino, 2002), ou na realidade social em geral (Brunsson, 2007). A tradução empírica do modelo sequencial, modelo que visa chegar a uma decisão ótima, implicaria analisar toda a informação disponível sobre (a) o problema, (b) as alternativas para a sua resolução e (c) respetivas consequências. Tal é impossível em contexto social e Herbert Simon (1997) assinalou essa evidência ao realçar que todos os seres humanos estão condenados a uma racionalidade limitada, por possuírem uma capacidade cognitiva que não lhes permite abarcar toda a informação necessária à tomada de decisões ótimas. Como o autor explica, o levantamento da informação tem custos, pelo que se tomam normalmente decisões com base em informação incompleta, ignorando ou conhecendo parcialmente as suas consequências, influenciados pelas emoções e valores, ou tendo em conta apenas o curto prazo. Na prática, a decisão ótima raramente acontece, dando lugar a uma decisão satisfatória.

Se se assumir que os decisores são racionalmente limitados — e Jones (2003) considera que este modelo continua a ser o mais avalizado para analisar a decisão nas organizações, devendo merecer especial atenção por parte da ciência política e da ciência da administração — então a modelização da decisão terá de ser reajustada, contemplando o contexto político em que se desenvolve. Foi o que Charles Lindblom (1991) procurou fazer com o modelo incremental de decisão.

De acordo com este modelo (ver quadro 1), os atores políticos, por possuírem uma racionalidade limitada e terem de lidar com situações complexas, decidem através de uma série restrita de comparações entre alternativas marginalmente diferentes entre si, da situação existente e de decisões anteriormente tomadas, mediante um processo de ajustamentos mútuos entre as partes envolvidas (Lindblom, 1979, 1991). Consequentemente, a mudança resultante das suas decisões é incremental e de dimensão pouco significativa.

 

 

A atitude cautelosa inerente a este tipo de decisão é encarada como uma qualidade: através do muddling through evitam-se erros potencialmente graves (Lindblom, 1991). Mas há ainda outras vantagens a retirar: o processo de ajustamentos mútuos facilita a aceitação política e o estabelecimento de acordos (Lindblom, 1979): (a) ao implicar leves modificações nos programas existentes; (b) ao trazer algum senso de segurança advindo do conhecimento das consequências da mudança; e (c) ao evitar alterar de forma radical e não desejável as políticas prosseguidas. Tem como preocupação central chegar a um acordo entre as partes, pelo que a negociação e o compromisso se assumem como instrumentos essenciais, dado o seu potencial para minimizar o conflito. Acresce a tudo isto uma outra qualidade: a sua eficiência. Quando surge um problema com o qual o decisor já lidou previamente, aplicar a mesma solução, ou outra apenas ligeiramente alterada, requer a aplicação de menos recursos, nomeadamente tempo, variável de particular relevância para o poder político.

O modelo incremental aponta assim para características com especial apelo para quem tem de decidir em contexto político: a minimização de riscos, a negociação com partes potencialmente divergentes, o compromisso, a eficiência.

Pasquino (2002) considera-o um modelo apto à descrição de processos de decisão rotineiros, em que existe relativa estabilidade dos intervenientes, das suas expectativas, dos meios de que dispõem e do público a que se dirigem. Mas e quando tal não acontece?

Em condições tendencialmente opostas às que acabámos de descrever emerge um outro modelo de decisão: o garbage can model (modelo de contentor de lixo), o processo de decisão em “anarquias organizadas”, retratado por Cohen, March e Olsen (1988), e que estes consideram aplicar-se com particular acuidade às organizações públicas.

As anarquias organizadas são um tipo de organização que se caracteriza por três fatores principais — preferências problemáticas, tecnologia imprecisa e participação fluida:

- as preferências problemáticas referem-se ao facto de os indivíduos não definirem precisamente as suas predileções, o que pode significar, por exemplo, que os atores num dado sistema não conseguem, não podem ou não querem definir de forma clara os seus objetivos;

- a tecnologia imprecisa está relacionada com a incompreensão que os membros da organização demonstram face ao todo em que se inserem; eles poderão conhecer muito bem as suas funções — e a organização, globalmente, até poderá ser eficaz —, contudo detêm uma compreensão fragmentada e rudimentar do rumo organizacional pretendido e de qual o papel que terão de desempenhar;

- a participação fluida prende-se com a entrada e saída constantes de determinados membros do processo de decisão e com a variabilidade de tempo e esforço devotados por cada um deles às questões na agenda.

O processo de decisão nestas organizações terá de ser visto como um contentor de lixo, onde são despejados vários tipos de problemas e soluções, à medida que vão sendo gerados pelos participantes. Quando surge uma oportunidade, estes podem ir ao caixote e retirar uma solução para “colar” a um problema que entretanto urja resolver, ou extrair um problema para justificar a implementação de uma dada solução. Os resultados do processo de decisão irão depender da mistura de lixo processado, isto é, do mix de problemas, soluções, participantes e oportunidade surgida.

O modelo de contentor de lixo contraria o modelo racional de decisão. Nele não há necessariamente uma sequência entre o aparecimento do problema, a sua definição, o levantamento e avaliação das diferentes alternativas de resolução e a opção por aquela que oferece a melhor relação custo / benefício. Poderá acontecer, e defende-se que tal é relativamente comum, que exista uma solução disponível que alguém quer ver aplicada e que, consequentemente, e para esse efeito, terá de ser relacionada com um problema.

Para Hill, este modelo ocorre com frequência no contexto em que se desenrola a ação da administração pública. O autor convida-nos a imaginar a seguinte situação (1997, 2005):

- surge um problema de difícil resolução para o governo: desconhecem-se as suas causas, a sua resolução está para além da capacidade de intervenção governamental, ou trata-se de um fenómeno com o qual este tem alguma relutância em lidar;

- todavia, os atores políticos chave querem demonstrar que controlam a situação ou que, pelo menos, estão a fazer algo para resolvê-la;

- alguns dos atores são motivados por uma forte componente ideológica.

Perante tais ingredientes, o desfecho de um problema resulta num conjunto de ações, apresentado como o resultado de um processo racional de resolução desse mesmo problema, independentemente de poder ser só o produto de um contentor de lixo, de um sistema que necessita de se mostrar ativo, embora não se saiba com segurança qual o caminho a seguir. A linguagem, nestas circunstâncias, passa a ser um instrumento vital para a racionalização, a posteriori, da decisão.

 

Racionalidade em contexto de ambiguidade

Como lembra Forester (1984), o que se entende por racional depende do contexto em que os atores no processo de políticas públicas se encontram, do grau de complexidade, incerteza, ambiguidade, conflituosidade e urgência com que têm de lidar. Normalmente, os decisores sentem-se pressionados a tomar posição sobre questões complexas, num quadro temporal restrito, o que limita a sua capacidade de proceder a diagnósticos exaustivos. Perante rivalidades intra e interorganizacionais, lutas de poder e territórios em disputa, a discrição torna-se filha do bom-senso e a sensatez é contingente, nas palavras do autor (1984: 23), “in ordinary life no less than in public administration”.

Se assumirmos que os atores, na polis, têm de lidar com problemas sociais complexos, de representação variável, teremos de admitir o papel fundamental exercido pela ambiguidade na decisão, discurso e prática desses mesmos atores.

A ambiguidade é a capacidade de determinados fenómenos estarem sujeitos a múltiplas interpretações e, como tal, assumirem significados diversos. Ela é vista como uma característica omnipresente em ambientes políticos, dada a complexidade, em geral, dos assuntos aí tratados (Jones e Baumgartner, 2005; Stone, 2002; Fisher, 2003; Zahariadis, 2003). É um constrangimento e simultaneamente um trunfo que os atores podem e devem saber manejar, para assegurar a eficácia da sua ação.

A decisão em contexto político, um contexto em que a ambiguidade tende a ser fator dominante, passará a refletir cambiantes divergentes do ideal da decisão racional técnica / instrumental (quadro 2).

 

 

O modelo racional estabelece que o decisor deverá definir explícita e claramente os objetivos a prosseguir, estabelecendo assim um referencial para avaliar a eficácia da decisão. Contudo, em contexto político, a formulação de objetivos não se reduz à explanação de um desejo ou intenção; é um meio para arregimentar apoio; é a representação de uma visão futura com o propósito de encontrar outros atores disponíveis para concretizá-la.

A ambiguidade é inerente à racionalidade política, sendo um fenómeno inescapável, porque os objetivos, os problemas, as decisões, a sua execução e avaliação serão alvo de representações com diferentes significados para os atores. Estabelecer metas ambíguas é algo vantajoso para os decisores, dado o potencial de manipulação oferecido. Através da ambiguidade, pode-se estabelecer coligações entre atores com diferentes expectativas quanto à política a aprovar, ganhar margem de manobra para a negociação e para o compromisso, criar as condições favoráveis para que se afirme publicamente algo e se faça, na prática, outra coisa (Stone, 2002; Brunsson, 2007). Ou seja, a ambiguidade permite satisfazer interesses múltiplos e conflituantes (Brunsson, 2002). Além disso, a ambiguidade na definição dos objetivos permite a sua adaptação ao longo do processo de decisão, tentando acomodar os diferentes interesses em jogo (Baier, March e Saetren, 1988).

O modelo racional considera que se deverão considerar todas as alternativas possíveis, dentro dos inescapáveis constrangimentos decorrentes dos recursos disponíveis, da incerteza e dos valores prevalecentes. Porém, em contexto político é fundamental controlar o número e tipo de alternativas a merecer inclusão na agenda e no processo decisório (Bachrach e Baratz, 1962). Nas palavras de Stone (2002: 245), “se uma alternativa não emergir à superfície e assim aparecer na lista de possibilidades a ponderar, não poderá ser selecionada. Mantê-la afastada é derrotá-la com eficácia.” Ou seja, o estudo compreensivo da ação pública deverá contemplar não só a análise da decisão como também a não decisão (Howlett e Ramesh, 2003), isto é, as decisões decorrentes de um processo em que as alternativas que procuram mudar as condições existentes são sistematicamente afastadas de qualquer consideração.

Em contexto político, convém ainda representar a alternativa preferida como sendo a melhor entre as disponíveis, fazendo parecer, no entanto, que o assunto está em aberto para possível reconsideração.

No modelo racional, constrói-se uma lista com alternativas mutuamente exclusivas. No contexto político, os símbolos veiculados pela linguagem permitem esbater as alternativas, conciliando o que, de outro modo, poderia parecer incoadunável, oferecendo uma escapatória a trade-offs previsíveis (Stone, 2002).

No modelo racional deverão ser contabilizados desejavelmente todos os custos e benefícios das alternativas. Como tal é impossível, terão de se selecionar os custos e benefícios críticos. Esta seleção cria uma oportunidade, em contexto político, para manipular a decisão, fazendo com que as consequências positivas suplantem as negativas ou vice-versa. Até porque, como Stone (2002: 254) realça, “aquilo que no modelo racional é concebido como custos e benefícios abstratos, traduz-se no domínio da política em perdas e ganhos reais para as pessoas”.

No modelo racional, o decisor tem acesso a informação decorrente de uma espécie de omnisciência que lhe permite fazer a escolha que garante o máximo de benefícios para a coletividade, ao menor custo. No palco da realpolitiks, não há omnisciência e, para além do mais, convém ter presente a hipótese de os atores políticos estarem ao serviço de todos, mas serem mais sensíveis aos interesses de alguns. Daí que Stone (2002) conclua que os decisores, na prática, aferem a racionalidade de um dado curso de ação pelo seu contributo para a manutenção e crescimento dos benefícios dos constituintes com maior poder, embora o tenham de retratar e justificar como um meio que visa o interesse geral da comunidade.

O retrato que Stone traça da racionalidade na governação poderá ser melhor compreendido se traçarmos uma divisória entre a racionalidade ao nível do indivíduo e a racionalidade num processo de escolha coletiva. É ao nível da escolha coletiva que a racionalidade instrumental, técnica, tende a diluir-se, no meio do confronto de interesses e forças em jogo no sistema, acompanhados de um conhecimento e capacidades de intervenção parciais. Como refere Adriano Moreira (1989: 85), “os analistas sabem que o confronto das criatividades originadas em centros de decisão diferentes, e a impossibilidade de cada um desses centros totalizar o conhecimento do processo, se traduzem numa resultante que se verifica ninguém ter querido”.

Acresce ainda saber quem serão os constituintes poderosos a que Stone se refere e em que medida estes poderão limitar a capacidade de decisão autónoma de quem governa. Em que medida poderá um decisor seguir a sua própria agenda sem cuidar dos interesses daqueles a quem deve, direta ou indiretamente, a sua posição de poder? Geddes (1994) procura responder a esta questão. Partindo de uma visão dos participantes no processo de governação ao nível político, como seres racionais, indica que a sua principal preocupação é a chegada ao poder. Uma vez este conquistado, o objetivo seguinte é manter e, se possível, reforçar o poder alcançado. Trata-se de um jogo de sobrevivência política e esta pode passar por distribuir as prebendas inerentes ao sistema administrativo e por não alterar as regras do jogo que possam perturbar o processo de recompensar quem ajudou a conquistar o poder. Nestas circunstâncias, o processo de garantir uma ação capaz por parte dos estados depende de vários fatores, de que se realçam o consenso entre os grupos políticos mais influentes quanto aos objetivos a prosseguir, a vontade em desencadear políticas conducentes a maior desenvolvimento socioeconómico e, por fim, a capacidade do sistema administrativo (conhecimentos, recursos humanos e recursos financeiros) para implementar as políticas públicas formuladas face aos constrangimentos políticos impostos em dado momento. O desafio que muito políticos enfrentam é ter de optar por políticas que reforcem a capacidade do seu sistema para atingir objetivos de desenvolvimento, a médio e longo prazo, garantindo simultaneamente a satisfação das necessidades e expectativas das clientelas que os acompanharam na senda do poder. Quando essa conciliação é difícil, se não impossível, surge o dilema (Geddes, 1994): sobrevivência política ou adoção de políticas de reforma que incrementem a capacidade do estado? A fuga para a ambiguidade e para o uso do discurso como mecanismo de persuasão e negociação poderá apresentar-se como a escapatória para a resolução do dilema, procurando conciliar aquilo que à partida é irreconciliável.

 

A perspetiva gestionária da administração pública e o mito da racionalidade técnica

A partir da década de 1980, a ciência da administração pública passou por uma fase de grande dinamismo, sustentada nas experiências de inovação administrativa protagonizadas por vários países, designadamente os de matriz anglo-saxónica. Estas práticas foram alvo da atenção e divulgação de organizações internacionais e da academia, tendo sido aplicadas, ainda que de modo heterogéneo, a nível global (Kettl, 2000). Assim surgiu o new public management (NPM), uma doutrina, filosofia ou paradigma que influenciou as políticas de reforma administrativa prosseguidas pelos governos, provocando uma quase equiparação dessas políticas de reforma — políticas institucionais que visam promover mudanças deliberadas nas estruturas e processos das organizações do setor público — às políticas de gestão pública (Barzelay, 2001).

O poder político tem necessidade de demonstrar aptidão para decidir sobre os complexos problemas que afligem a sociedade (Christensen e Laegreid, 2003), e um desses problemas consiste na má imagem prevalecente da administração pública e dos seus trabalhadores.

De um período de crescimento do aparelho administrativo, em que o estado era chamado a intervir para acorrer a inúmeros males sociais, substituindo-se aos privados, passámos para uma fase em que a administração pública e quem nela trabalha são muitas vezes retratados como os responsáveis pela inércia demonstrada pelos países ao nível do desenvolvimento socioeconómico e da competitividade. Como esta policy image é, em geral, consensual, o modelo burocrático em que assentou todo o desenvolvimento da administração pública tornou-se um alvo de crítica e o receituário para a solução dos seus reveses não parou de crescer, vivendo uma fase de esplendor com o NPM e a exaltação dos modelos de gestão oriundos do setor empresarial.

O NPM consiste num conjunto de pretensas boas práticas e preceitos que os governos têm assimilado no seu discurso e na sua ação. Segundo Bevir, Rhodes e Weller (2003: 2), o NPM é um rótulo que engloba todos os diferentes tipos de reforma do setor público, sem deixar nada de fora. As práticas e preceitos defendidos passam por (Hood, 1991; Dunleavy e Hood, 1994; Pollitt, 2002a, 2002b; Osborne e McLaughlin, 2002):

- avaliação do desempenho assente na quantificação, fazendo jus à ideia de que só se pode gerir o que se consegue medir;

- ênfase no controlo dos resultados, em detrimento dos inputs e processos;

- introdução de mecanismos conducentes à competição na provisão de bens e serviços;

- recurso à contratualização, em substituição das relações hierárquicas clássicas;

- desagregação e achatamento das organizações e descentralização de funções, fortalecendo a denominada administração indireta do estado e a administração autónoma e diminuindo o peso da administração direta;

- reforço das competências de gestão e da autonomia dos dirigentes dos organismos públicos;

- adoção de sistemas de gestão da qualidade;

- aproximação dos sistemas de gestão do setor público dos sistemas vigentes no setor privado;

- mudança de valores, dando primazia à economia, eficácia e eficiência, em prejuízo da equidade e universalidade;

- estabelecimento de redes de cooperação com o setor privado e com o terceiro setor, esbatendo fronteiras entre público e privado.

Seria enganoso julgar que estes componentes decorrem de estudos aturados em que se analisam cuidadosamente os problemas, se procede a um levantamento e avaliação das alternativas mais adequadas à sua resolução e, por fim, se escolhe a que oferece os maiores benefícios, ao menor custo, recorrendo a métodos objetivos e neutros. Embora não se negue o apelo persuasivo de tal retrato, é mais provável que o predomínio global desta doutrina se deva mais à moda, ao trabalho de divulgação das organizações internacionais, ao mimetismo, e à pressão de policy communities e empreendedores políticos, do que à conformidade com uma lógica problem solving e com o modelo de decisão racional nela implícito.

Estas condições criam um ambiente propício ao advogar de soluções que serão posteriormente justificadas, mediante a construção de relações de causalidade entre a solução advogada e uma determinada representação de um problema, num processo de racionalização, que tem por fim aumentar a capacidade para garantir o consentimento de quem terá de intervir ou será implicado na ação a prosseguir. Como explicam Christensen e Laegreid (2003: 5), “a definição das reformas como modernas e racionais desencadeia, por norma, a esperança de crescente eficácia e eficiência, na prática”.

A natureza conflitual e ambivalente do palco em que se desenrolam as políticas de reforma administrativa ajuda a compreender e aceitar esta racionalização e o móbil que a desencadeia.

As políticas de reforma são compostas por numerosos dilemas, isto é, as diferentes alternativas em jogo incluem inevitavelmente custos que penalizam as metas visadas e afetam de modo diferenciado os atores (com uns a saírem ganhadores e outros perdedores). Wright (1997) aponta, a título de exemplo, que a maioria dos estudos refere que a eficácia da reforma prosseguida dependerá do envolvimento dos grupos mais afetados. Contudo, estes também são, provavelmente, aqueles que mais terão a perder se a reforma for eficaz, o que poderá torná-los alérgicos e hostis aos propósitos reformistas dos decisores políticos. Na expressão de Wright (1997: 9), “só o peru mais excêntrico fica ansiosamente à espera do Natal”. Nestas condições, a racionalidade decorrente do contexto político, no seu jogo de sombras, matizes e compromissos, destinados a propiciar a aquiescência dos envolvidos e a tentar combater possíveis resistências às medidas advogadas, poderá ser preferível a uma racionalidade técnica incapaz de lidar com a ambiguidade, os paradoxos e os trade-offs do sistema. A racionalidade em contexto político não pode, no entanto, deixar cair a máscara da racionalidade técnica, devido à capacidade persuasiva que lhe é inerente (Frederickson e Smith, 2003).

A capa de “racionalidade técnica” é imprescindível, porque simboliza o rigor da objetividade científica. Os estudos feitos a nível governamental, concebidos como justificação para as políticas encetadas e elaborados por consultores (oriundos quer de empresas especializadas, quer da academia), membros do staff político ou dirigentes de organismos públicos, plasmam-se em instrumentos de persuasão que têm como objetivo convencer quanto à bondade do que se propõe, “e que, como tal, tendem a estar carregados de retórica e a ser leves na autocrítica” (Pollitt, 2000: 182). São peças tecidas com a finalidade de garantir a adesão à reforma, bem como legitimar a decisão política e a ação do aparelho administrativo (Christensen e Laegreid, 2003; Schmidt, 2002).

As ciências sociais, como a ciência da administração pública, a gestão, a sociologia das organizações ou a economia, contribuem para esta racionalização a posteriori, porque, como lembrou Peters (1998), encerram dentro de si teorias que legitimam a aplicação de soluções contrárias para um mesmo problema. Pollitt e Hupe (2011) dão como exemplo desta ambivalência a descentralização (conhecimentos da realidade local / decisões mais rápidas / melhor comunicação / maior participação) e a centralização (economias de escala / massa crítica de expertise / uma estratégia e orientação unas).

Será que a consolidação teórico-científica das áreas supra-apontadas poderia contribuir para uma decisão cada vez mais técnica, sobrepondo-se à racionalidade política anteriormente descrita? Quem se dedica a desenvolver saber em ciência da administração pública duvida. Mesmo supondo que um maior desenvolvimento científico poderia vir a eliminar a ambivalência teórica das ciências sociais, nada garante que estariam criadas as condições para o triunfo da racionalidade técnica sobre a racionalidade política. No mundo empírico da administração pública e das políticas públicas, “a superioridade técnica de uma análise subordina-se frequentemente à necessidade política” (Howlett e Ramesh, 2003: 4). A reforma administrativa não foge a este padrão. Mais do que um exercício técnico é um exercício político, propício a que os atores escolham unicamente as teorias e as evidências que se adequam às opções tomadas a priori, ignorando ou minimizando a relevância das teorias e provas de sinal contrário (Hood e Peters, 2004). Como Peters (1998: 100) denota: “o reformador poderá estar à procura das razões teóricas que justificam a reforma que ele, de qualquer modo, iria defender, e não tanto à procura de balizas para o desenho inicial das mudanças”.

Acresce ainda que a ciência da administração é marcada por uma literatura ambivalente: por um lado, emergem obras de investigação científica que procuram encontrar quadros compreensivos, interpretativos e explicativos dos acontecimentos; por outro, aparecem obras centradas na “argumentação”, no diálogo entre quadros normativos sobre o que se deveria fazer e uma descrição de como a realidade se distancia da referência escolhida (Barzelay, 2001). Esta literatura, em especial a do segundo tipo, ajuda a consolidar doutrinas administrativas que oferecem aos decisores políticos um discurso de reforma hegemónico e totalizador, imbuído de uma suposta racionalidade, que facilita o afastamento da consideração e discussão de contrapropostas, por se desviarem do ideal racional prometido e, consequentemente, serem menos meritórias (Moriconi Bezerra, 2011). A eficácia do referido discurso depende frequentemente do nível de utilização de termos cujas características revelam tal apelo que Pollitt e Hupe (2011) os batizaram como “conceitos mágicos”, dando como exemplos “governance”, “accountability”, “redes”, “performance”, “participação” e “inovação”. Essas características são: (a) a sua amplitude e ambiguidade, uma vez que podem adotar múltiplos significados; (b) atratividade, por serem modernos e progressistas; (c) consensuais, por obscurecerem, negarem ou diluírem lógicas e interesses conflituantes apontados tradicionalmente pelas ciências sociais; e, por fim, (d) são vendáveis globalmente, dado o seu amplo uso nos meios profissionais e académicos da administração pública. Os “conceitos mágicos” desencadeiam entusiasmos em torno de um dado curso de ação e legitimam perspetivas parciais da realidade. Contudo, convém não esquecer que são igualmente o produto efémero de modas. Quem cair sob o seu feitiço ilusório arrisca ficar abandonado no “cemitério das ideias extintas” (id., ibid.: 653).

Para além da admissão da utilidade da análise do discurso e das vantagens decorrentes da ambiguidade, estudar as diferentes racionalidades presentes na administração pública, mormente a racionalidade política e a racionalidade gestionária que se visa consolidar, poderá ajudar a compreender melhor o que nelas está em jogo e, consequentemente, conceber sistemas mais aptos à prossecução de melhorias na governação através de projetos de transformação administrativa bem-sucedidos. É essa a preocupação de Schedler (2003). Numa contraposição de racionalidades semelhante à de Stone (2002), já referida previamente neste artigo, Schedler apresenta as principais diferenças entre as perspetivas gestionária e política quanto aos pressupostos e ferramentas do NPM (quadro 3). Aspira a que o diálogo entre os dois posicionamentos desencadeie um processo de compreensão mútua que incorpore a variável poder como fundamental para a condução do sistema administrativo, gerando uma “cross-fertilizing cooperation” (Schedler, 2003: 549).

 

 

Conclusão

Toda a decisão e ação na administração pública decorre num contexto marcadamente político. Desse contexto nasce a especificidade da ciência da administração e a justificação para a sua autonomização face às tendências hegemónicas da gestão, sobretudo nos últimos 30 anos de exaltação de uma conceção gestionária da máquina administrativa. O modelo que serviu de ideal para os diferentes exercícios de inovação assentou na miragem do estabelecimento de condições favoráveis ao isolamento da decisão política, para que ela não pudesse macular os benefícios a retirar da aplicação de uma racionalidade técnica na análise dos fenómenos administrativos. Incentivou-se a gestão por objetivos, a avaliação de desempenho baseada em métricas quantitativas, o predomínio de atividades de controlo propiciatórias da concretização de uma visão positivista e “científica” da realidade político-administrativa que, por sua vez, almeja beneficiar, ao triunfar, a própria realidade social mais ampla em que se insere. Persegue-se o ideal da razão e, nesse intuito, isola-se e ignora-se a natureza das organizações públicas e do seu contexto. Fica por saber se não se estará a enveredar por um processo de fuga, mediante o desenvolvimento de um constructo que, ao querer negar a presença do elemento político, acaba por realçá-lo ainda mais.

 

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