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Sociologia, Problemas e Práticas
versão impressa ISSN 0873-6529
Sociologia, Problemas e Práticas no.74 Oeiras jan. 2014
Reputação, mercado e território: o caso dos arquitetos
Reputation, market and territory: the case of architects
Réputation, marché et territoire: le cas des architectes
Reputación, mercado y territorio: el caso de los arquitectos
Vera Borges*
* Investigadora do Dinâmia’CET/ISCTE-IUL e investigadora associada do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Av. das Forças Armadas 1649-026, Lisboa. E-mail: vera.borges@iscte.pt
RESUMO
Neste artigo apresentam-se alguns contributos teórico-empíricos para uma discussão preliminar em torno da tríade “reputação, mercado e território”. Para o fazer avaliam-se os mecanismos e os efeitos da reputação nas trajetórias individuais de carreira dos arquitetos. Procura-se mostrar até que ponto as “pequenas forças”, as redes de colaboração e a especificidade da obra arquitetónica publicada ou construída ampliam, sustentam ou alteram os fenómenos reputacionais. Utilizam-se entrevistas biográficas, realizadas junto de arquitetos, para ilustrar a variedade de processos que entram em jogo quando se analisa a reputação dos indivíduos no mercado de trabalho.
Palavras-chave arquitetura, reputação, profissão, mercado, território.
ABSTRACT
This article offers some theoretical/empirical contributions to a preliminary discussion on the triad “reputation, market and territory”. It assesses the effects that reputation has on architects’ individual trajectories and the mechanisms involved in that process. The author seeks seek to show the extent to which “small forces”, collaborative networks and the specificity of published or built architectural works expand, or change reputational phenomena. She uses biographical interviews of architects to illustrate the variety of processes that play a part when individual reputations in the market for architectural services are analysed.
Keywords architecture, reputation, profession, market, territory.
RÉSUMÉ
Cet article présente quelques contributions théoriques et empiriques à un débat préliminaire autour du trinôme “ réputation, marché et territoire ”. Il évalue les mécanismes et les effets de la réputation sur les parcours individuels du métier d’architecte, afin de montrer à quel point les “ petites forces ”, les réseaux de collaboration et la spécificité de l’œuvre architecturale publiée ou construite amplifient, soutiennent ou modifient les phénomènes réputationnels. Des entretiens biographiques avec des architectes sont utilisés pour illustrer la multitude de processus qui entrent en jeu lorsqu’il s’agit d’analyser la réputation des individus sur le marché du travail
Mots-clés architecture, réputation, profession, marché, territoire.
RESUMEN
En este artículo se presentan algunas contribuciones teórico-empíricas para una discusión preliminar en torno a la tríada “reputación, mercado y territorio”. Para llevarlo a cabo se evalúan los mecanismos y los efectos de la reputación en las trayectorias individuales de carrera de los arquitectos. Se procura mostrar hasta qué punto las “pequeñas fuerzas”, las redes de colaboración y la especificidad de la obra arquitectónica publicada o construida amplían, sustentan o alteran los fenómenos de la reputación. Se utilizan entrevistas biográficas a arquitectos para ilustrar la variedad de procesos que entran en juego cuando se analiza la reputación de los individuos en el mercado de trabajo.
Palabras-clave arquitectura, reputación, profesión, mercado, territorio.
Considerações iniciais
A extensa literatura e as investigações empíricas desenvolvidas no domínio das artes têm vindo a explorar a riqueza da temática da reputação e as suas componentes, como o reconhecimento, o renome (Lang e Lang, 1988), a visibilidade e o sucesso (Menger, 2009, 2012), mostrando tratar-se de um fenómeno com o qual lidamos na vida de todos os dias e que tem consequências para toda a sociedade (Cowen, 2000: 1-13; 130-161). No caso da arquitetura, destaca-se desde logo a importância da cadeia de agentes associados à consagração dos arquitetos e das obras de arquitetura — dos colegas aos clientes, investidores e utilizadores dos edifícios ou espaços públicos, curadores, críticos, jornalistas —, passando pelo impacto de um prémio, pela publicação de fotografias das obras ou artigos teóricos em revistas conceituadas e a sua discussão pelos especialistas e pelo consumidor que comenta, publicita, promove e celebra publicamente os “melhores” (Gadanho, 2010).[1]
Muitas das ideias, debates teóricos, metodologias de pesquisa e evidências empíricas em torno da reputação são mobilizados e mesmo oriundos de outros universos. No entanto, os diálogos teórico-empíricos em torno deste conceito nas artes, nos estudos histórico-sociais agroalimentares, cultura material e consumo (Appadurai, 1986; Miller e Rose, 1997; Probyn, 1998), nos média (Harrington e Bielby, 1995), na gastronomia (Surlemont e Johnson, 2005), no desporto (Scully, 1995; Amis, 2003), na ciência (Merton, 1968 e 1988; Huber, 2001), entre outros, não se realizam ou realizam-se ainda de forma muito incipiente.[2]
Na literatura sobre a reputação o foco é, regra geral, o estudo de indivíduos, objetos e instituições célebres, parecendo descurar-se os processos quotidianos que estão subjacentes à conquista, perda e reconquista de reputação. Este artigo pretende relançar esse mesmo debate.
Se, por um lado, os premiados arquitetos portugueses Álvaro Siza Vieira e Eduardo Souto de Moura, as suas obras, esquissos e projetos são cientificamente examinados, por outro, raramente ficam para a história os processos de conquista, perda e reconquista da reputação dos outros arquitetos. Os nomes reconhecidos detêm mais crédito e os seus ateliês de arquitetura beneficiam dessa transferência de valor dos indivíduos para as instituições e para os territórios onde os objetos arquitetónicos se inscrevem.[3] De igual modo, parece ser dada maior atenção à construção de estados de reputação do que à compreensão dos processos de ida e volta nas diferentes posições ocupadas na pirâmide reputacional e às consequências dessas alterações de estatuto. É, pois, na compreensão da volatilidade de estados e processos de construção da reputação e na sua vivência quotidiana que este artigo se enquadra, tendo como ponto de partida a arquitetura e os arquitetos portugueses.
Este artigo procura, de uma forma introdutória, compreender os efeitos da reputação na estruturação das trajetórias individuais de carreiras, no funcionamento dos mercados de trabalho e, de uma forma ulterior, na organização de territórios urbanos. Assim, interessa-nos questionar: como se constrói a reputação de indivíduos, instituições e mercados? Como circula a reputação entre o mercado das artes e os outros mercados? E o que conta para a sua flutuação? Qual é o impacto de um prémio, os constrangimentos e as oportunidades que daí advêm para os indivíduos e para as organizações onde trabalham? A partir do caso específico dos arquitetos e da forma como relatam e reconstroem os acontecimentos que consideram ter marcado a sua carreira, procuramos avaliar que processos quotidianos ampliam, sustentam e ensombram a sua reputação? Mostraremos como arquitetos com percursos inicialmente muito próximos acabam por progressivamente se afastar, colocando-se numa dependência estreita das suas redes de colaboração e do lugar que o seu nome ocupa na arquitetura.
Por último, o artigo discute as perspetivas da pesquisa em curso que avalia os mecanismos reputacionais e a evolução dos seus efeitos na dinamização dos mercados de trabalho e dos territórios urbanos.
Um quadro teórico cruzado: reputação, mercado e território
A literatura produzida em torno da reputação está fortemente associada aos mundos da arte, da cultura, da criatividade e das suas indústrias (Caves, 2000) e muito implicada no escrutínio de temáticas paralelas, como a fama (Gamson, 1994; Cowen, 2000), as culturas da celebridade (Marshall, 1997; Rojek, 2001; Heinich, 2011), o poder dos winner-take-all-markets e os ingredientes para uma carreira “excecional” (outliers) (Rosen, 1981; Frank e Cook, 1995; Gladwell, 2008), no tempo (Lang e Lang, 2001[1990]). Do lado da sociologia da arte e da cultura, a temática tem sido amplamente escrutinada, destacando-se o trabalho de P. Bourdieu (1992, 1993, 2003[1979]), que entende os fenómenos reputacionais como resultado de lutas internas, por exemplo, no campo literário, onde alguns agentes acumulam mais “capital simbólico” do que outros. H. Becker (1982: 351-371), no capítulo que dedica ao estudo da reputação, segue outra via: mostra-nos como o indivíduo reputado pode ser dotado e desenvolver um trabalho excecional; contudo, pode também ser alguém que segue as regras e faz um trabalho competente que se distingue e é consagrado pela qualidade das suas associações a outros profissionais — appariement selectif, na expressão de P. Menger (2009) —, pelo valor dos resultados finais e pela forma como isso é entendido pelo público. Adianta ainda que a reputação depende dos consensos que existem num dado momento histórico e da linha de participantes que ajudam o indivíduo a construir a obra: a sua ideia é mostrar os “indivíduos a fazerem as coisas em conjunto”, ou seja, as cadeias de cooperação em que o artista está envolvido com muitos outros profissionais.
G. E. Lang e K. Lang (2001 [1990]) seguem a linha beckeriana e consideram que o que preside à construção da reputação artística depende das avaliações do output artístico, realizadas pelos programadores e curadores que permitem a sua visibilidade, pelos pares ou outros stakeholders (intervenientes) importantes para ampliar a reputação, como, por exemplo, os críticos. Apenas alguns chegam ao topo da celebridade, e isso acontece quando um artista consegue obter “renome”, isto é, quando o seu nome está estabelecido fora do mundo mais íntimo dos seus colegas e clientes admiradores. É o grau de visibilidade de um indivíduo ou de uma instituição, fora desse mini art world, que define o seu “renome” (Becker, 1982; Lang e Lang, 1988).
Na sociologia francesa, além de P. Bourdieu, destaca-se ainda R. Moulin (1992), que avaliou o diferente posicionamento da arte, das instituições e dos seus artistas no tempo,[4] e P. -M. Menger (2009), que parte da realização dos indivíduos na incerteza, uma incerteza intrínseca à condição do agir humano, que transporta para a análise do trabalho dos artistas e profissionais da cultura, as suas relações de trabalho e cadeias colaborativas. A incerteza existe, pois, do princípio ao fim das atividades criativas. “Nobody knows”, afirma R. Caves (2000: 3) na introdução do seu célebre livro.
Já N. Heinich (1991) utiliza uma metodologia compreensiva e observa, através das entrevistas aos escritores, as recorrências sobre como é vivida a consagração individual, entre a mitologia do sacrifício e a elite dos artistas (Heinich, 1991, 2005 e 2011). Destaca-se ainda a sociologia da mediação e do intermediário de A. Hennion (1993).
Por seu turno, a economia da cultura de D. Throsby (2001) e F. Behamou (2002) discute os perfis dos artistas e o star-system, enquanto A. Markusen e os seus estudos de economia da arte e da cultura introduzem com originalidade as questões do reconhecimento do território e do placemaking (Markusen, 2006; Markusen e Gadwa 2010). A sociologia económica que avalia os sinais que chegam aos mercados e os seus efeitos na escolha de um produto por parte dos consumidores é desenvolvida também por um amplo número de autores, entre os quais destacamos os franceses Chauvin (2010), François (2011) e Karpik (2007).
De resto, os estudos americanos clássicos já discutiam as questões da reputação e do sucesso, associados a uma confluência de múltiplos fatores; destaca-se, por exemplo, o modelo de R. Merton (1968 e 1988) e o “efeito Mateus”, onde se discute como as desigualdades de reputação e sucesso na ciência se devem a diferenças inicialmente insignificantes na qualidade intrínseca dos indivíduos, que aumentam com o passar do tempo e ampliam as distâncias entre os mesmos na hierarquia dos talentos científicos. Os consumidores e a comunidade profissional percecionam a diferença, por muito pequena que seja, da qualidade dos indivíduos; e é essa perceção que orienta as suas escolhas (Adler, 1985; Merton, 1988). Se o artista fizer uso das inovações tecnológicas que hoje tem ao seu dispor e que lhe permitem uma projeção planetária e mercados cada vez mais alargados, essa perceção estende-se a um número mais elevado de indivíduos. A situação terá consequências mais importantes para a carreira do artista se este se associar a equipas com reputação elevada: a associação de talentos tem um efeito multiplicador, nomeadamente em domínios que se organizam por projeto (Menger, 2012).
Nas artes avalia-se o valor artístico e a originalidade em termos relativos; por isso utilizam-se os prémios, os rankings, as audições dos atores e bailarinos, para fazer comparações e competições incessantes na “hierarquia de talentos” (Rosen, 1981; Menger, 2012). É no mesmo sentido que A. Collins e C. Hand (2006) descrevem a atribuição de prémios como o resultado de pequenos sucessos acumulados: receber o Prémio Pritzker, o Nobel da Arquitetura, como é designado, pode dizer-nos que o indivíduo já granjeou a atenção de um círculo maior de indivíduos e que foi consensualmente considerado o mais talentoso. C. Camerer e D. Lovallo (1999) consideram que em todo este processo de reconhecimento figuram os “outros” que desenvolvem um sentimento de confiança, por vezes excessiva, nas suas características individuais e na sua vocação criativa. A originalidade, a criatividade, o prazer de realizar uma atividade criativa, a tenacidade e a sua resiliência ajudam a explicar a persistência de atores e bailarinos no mercado de trabalho artístico (Borges e Pereira, 2012) e a tensão que reside no binómio profissão/vocação.
É o que acontece também com os arquitetos, conforme ficou demonstrado no estudo anterior, que ilustrámos com o preceito bíblico: “muitos são os chamados, poucos os escolhidos” (Cabral e Borges, 2006, 2010). No entanto, convém acentuar que, sendo a arquitetura uma profissão de índole artística, a especificidade dos trabalhos aí produzidos, os objetos arquiteturais — ao contrário dos quadros ou dos espetáculos que circulam no mercado de bens artísticos —, os edifícios, têm uma inscrição num espaço e um universo simbólico que lhes fica associado. De facto, como Magali Sarfatti Larson tem mostrado para os Estados Unidos, o ressurgimento do “arquiteto heroico” foi estimulado a partir da década de 1980 pelo boom da construção pós-moderna visível. Foi igualmente estimulado com fins políticos e de competição económica entre cidades, onde os arquitetos foram convidados a deixar a sua marca em territórios urbanos recém-criados (Larson, 1993: 218-242). Da mesma forma, “a lionização de arquitetos tornou-se parte da estratégia de marketing do cliente e um sinal de convergência da arquitetura com a indústria da cultura” (Larson, 1993: 248). O Prémio Pritzker, equivalente ao Prémio Nobel da Arquitetura, funciona desde 1979 como o gatekeeper para as novas tendências arquitetónicas à escala global, incluindo Portugal: Álvaro Siza Vieira recebeu o prémio em 1992 e Eduardo Souto de Moura em 2011.
O reconhecimento que fazemos aqui desta particularidade, a inscrição da obra arquitetónica como marca, é relevante para compreender e testar: (i) os efeitos da obra num território; evoca-se a este propósito o “efeito Guggenheim”, em Bilbau (ver D. Ponzini, 2010), e, no caso português, a reconstrução da cidade a partir da Expo98, procurando criar uma nova “imagem da cidade”, para utilizar o contributo de K. Lynch (1960) e repensar a reputação num contexto competitivo internacional; (ii) a evolução da própria profissão de arquiteto — destaca-se aqui o estudo de P. Brandão (2006), do qual faz também parte um subcapítulo dedicado ao stars-team da arquitetura e o paradigma mediático da autoria — e a mudança da posição social dos arquitetos, entre outros profissionais. Não sendo uma exceção deste grupo profissional, não deixa de ser emblemática da forma como o mesmo se inscreve no profissionalismo moderno (Larson, 1983) e da sua inclusão no debate mais geral em torno das “profissões da forma urbana” (Blau, Gory e Pipkin, 1983; Kostof, 2000).
Uma estratégia metodológica em mosaico
No estudo anterior, Profissão: Arquiteto/a (Cabral e Borges, 2006, 2010), encomendado pela Ordem dos Arquitetos, optámos por um questionário fechado, enviado a 12. 632 indivíduos inscritos na referida Ordem. Obtivemos na altura um total de 3.198 respostas válidas. O modelo interpretativo que construímos nesse estudo (baseava-se nas propriedades sociodemográficas e profissionais dos arquitetos inquiridos) apurou os fatores mais importantes para o sucesso profissional. No centro do modelo, o sucesso profissional contribuiu para explicar os sentimentos de satisfação pessoal e satisfação material dos nossos inquiridos. Entre os fatores que contribuíram para explicar o sucesso profissional aquele que teve maior peso foi a idade (ou seja, o tempo de que todas as carreiras carecem para se consolidarem); depois o facto de ter trabalhado durante a licenciatura, que tem uma relação virtuosa com a entrada na carreira e com o sucesso na mesma, devido não só à aprendizagem (saber-fazer) mas também à inserção nas redes colaborativas. Por seu turno, o fator género tinha um peso menor e jogava contra as arquitetas que se concentravam nas modalidades assalariadas e estavam sub-representadas no fator que mais peso negativo teve no nosso modelo: a acumulação de atividades profissionais. Ou seja, a arquitetura quando é exercida em regime de exclusividade constitui-se como um fator positivo para o sucesso de uma carreira.
No presente artigo analisamos as primeiras 23 entrevistas, realizadas nessa altura e às quais voltámos para fazer uma análise diacrónica, que decorre de uma nova recolha de testemunhos junto dos mesmos entrevistados, para testar a evolução das carreiras. Assim, utilizaremos aqui excertos dessas entrevistas realizadas junto de 17 arquitetos e 6 arquitetas que responderam a questões semiestruturadas, organizadas em torno da carreira, a escolha do curso, o tipo de trabalho realizado dentro e fora do ateliê, os principais obstáculos sentidos no exercício da profissão e as condições de êxito na carreira. Com isto, compreendemos como falam os arquitetos da sua experiência na profissão, as comparações com os seus pares e a relação com fotógrafos, jornalistas, clientes; e, claro está, o efeito do tempo.[5] Utilizamos uma abordagem qualitativa, apreendendo mais do que um aspeto da socialização dos arquitetos e procurando descrever e comparar as configurações e a “pluralidade de contextos” possíveis (Revel, 1996: 26) das suas carreiras. Pode entender-se este procedimento à luz do importante trabalho de N. Elias (1993) e da sua sociologia de um génio. Sublinhamos ainda os importantes trabalhos de M. L. L. dos Santos (2012) e I. Conde (2012, 2013), que discutem e analisam os grandes temas da sociologia da cultura e desafios teórico-metodológicos, a relevância, singularidade e reconhecimento nas “fases dos seus percursos de carreira”.
A nossa intenção é, em particular, problematizar e compreender sociologicamente os percursos dos arquitetos, como se fossem uma mistura de mosaicos, “pequenas partes da realidade” (Becker, 1970).
A palavra dos arquitetos é fonte de conhecimentos sociológicos (Demazière e Dubar, 1997: 38) para vermos como se inscreve nas linhas e hipóteses de trabalho que privilegiamos, para “dar a conhecer o processo interativo de apropriação de formas sociais e o seu caráter sempre provisório e inacabado. ” Esta operação permite-nos comparar, a todo o momento, os dados das entrevistas uns com os outros. O tipo de escrita e análise sociológica que adotamos neste artigo é essencialmente tributário do contributo de B. Lahire (2002) — utiliza-se mais a perspetiva de Portraits sociologiques (Lahire, 2002) e menos a configuração familiar de Tableaux de familles (Lahire, 1995), passando pelos casos específicos em contexto português (V. Borges, 2008, com os percursos dos atores, e J. T. Lopes et al., 2010, com as “experiências, percursos e ‘retratos’ de mulheres clubbers”). Neste sentido, conciliamos pelo menos três perfis profissionais que concorrem e se misturam no mundo da arquitetura. Primeiro, os mais jovens, com 10 anos de carreira, que descrevem a “inocência” do seu trabalho, a dedicação, resiliência, compromisso, e o ateliê em casa, contam as “experiências que falham”, o estágio internacional e a forma como entendem “servir o cliente”. Segundo perfil, os arquitetos com mais de 10 anos de carreira, que descrevem a necessidade de internacionalizar os seus ateliês, exigindo-se para tal que sejam pivôs com capacidade para analisar o mercado, concentração na atividade, especialização e escala. É no terceiro perfil que residem as gerações que ilustram o glamour da profissão, que consideram ocupar “lugares de poder”, acumular oportunidades (como a conservação de obras nacionais, a requalificação de espaço público) e caminhar para o reconhecimento internacional.
Entre as “pequenas forças” e a transferência de valor
A. Abbott (2001: 1-33), na introdução autobiográfica de Time Matters, escreveu o artigo mais longo do livro. Apresentou a sua história profissional e discutiu criativamente as “pequenas forças” que atuaram no seu percurso até chegar à posição que ocupa no sistema de investigação. A nossa intenção não é produzir aqui a lista de “ingredientes” que fazem as carreiras de sucesso na arquitetura ou as ruturas biográficas que alteram as trajetórias de carreira dos indivíduos,[6] mas antes observar os transferts que se operam em etapas decisivas da constituição da reputação através dos passos e dos acontecimentos que são valorizados pelos indivíduos entrevistados (a este propósito, ver Davies e Schmiedeknecht, 2005).
A. Abbott (2001) e P. -M. Menger (2009: cap. 6; 2012: cap. 2) convergem na importância que atribuem a estas “pequenas forças”. Nas entrevistas que realizámos descrevem-se algumas delas, com resultados notáveis e geradores de diferenças nas trajetórias de carreira, observáveis depois com o passar do tempo. Os exemplos de Gustavo e Rodrigo exprimem a ambivalência desses resultados. Nos anos 50, Gustavo entrou em Belas-Artes, que descreveu como sendo “um curso de artistas”. Quando terminou o curso, foi trabalhar para o estrangeiro. Inesperadamente foi-lhe passado um projeto e, a partir daí, conseguiu outro e mais outro, sem parar, durante mais de uma dezena de anos:
[Fui para fora] Aquilo era um meio muito pequeno, havia poucos arquitetos e os correios tinham uma série de trabalhos para fazer. Éramos quatro. Um deles era difícil e o diretor não se entendeu com ele. Como os outros eram mais acessíveis, cada um teve um trabalho. Um deles disse: por que é que não dá esse ao Luís, que é casado e tem filhos? Fiz isso para os correios, fiz um centro de telecomunicações […] a seguir fiz uma torre que vi onze anos depois construída […] fiz um edifício para a rádio que ainda hoje existe. Aquele foi um episódio muito importante na minha vida [Gustavo, 68 anos, dirige um pequeno ateliê].
Por seu turno, Rodrigo reconhece que no início aceitava todo o tipo de projetos e que “com o tempo é que se começa a selecionar”. No entanto, sublinha a importância do lastro familiar, que, com o passar dos anos, lhe permitiu mobilizar um stock de ligações fortes, redes de apoio que sustentaram e ampliaram a sua reputação:
Venho de uma família de arquitetos. O meu avô foi um arquiteto bastante importante dos anos 30-40 […] e na minha família, da parte da minha mãe, temos arquitetos de várias gerações e, depois, tias minhas que casaram com arquitetos […] Era miúdo e ia muito com o meu avô às obras, o meu avô tinha muito trabalho […] Foi uma escolha orientada pela família? Sim, ao princípio foi, mas depois o meu avô dizia: ah, não venhas para arquitetura, não se ganha nada. Mas eu acho que era o bichinho que estava lá e transmitiu-me imensos ensinamentos [Rodrigo, 67 anos, dirige um ateliê de grandes dimensões].
A reputação aparece associada à visibilidade do nome de um indivíduo e de um ateliê. Fombrun e Mark Shanley (1990) descrevem o que pode estar nas entrelinhas de um nome de uma “firma”, cujos diretores procuram influenciar os stakeholders e, nesse sentido, mostrar as suas vantagens competitivas, dar sinais para ajudar os consumidores a escolher, atraindo-os e procurando no mercado “os melhores” trabalhadores. Tal como antes fora entendido por R. Merton (1988), a visibilidade alimenta-se, multiplica-se e os seus sinais são evidentes aos olhos dos consumidores, dos investidores, das instituições e do mercado em geral. O testemunho de Rodrigo é disso um exemplo. Tornou-se responsável por um ateliê com seis arquitetos associados e mais de uma dezena de “arquitetos flutuantes” e estagiários. A propósito do trabalho desenvolvido no seu ateliê, Rodrigo destacou a importância de “ir a concurso” pelo caráter formativo das equipas e considerou que os concursos mais importantes são realizados por convite e destinam-se aos arquitetos mais prestigiados, argumentos que acentuam o caráter cumulativo da reputação:
Isto depois é a chamada “pescadinha de rabo na boca”, porque é assim: uma pessoa, para poder ir a um grande concurso de arquitetura, tem de ter no ateliê outros a trabalhar para o ateliê poder estar quatro, cinco meses num grande projeto de arquitetura e muitas vezes, ou grande parte das vezes, corre-se o risco de não ganhar […] é uma experiência que foi feita e uma pessoa consegue ver se o ateliê está a trabalhar bem [Rodrigo, 60 anos, dirige um ateliê de grandes dimensões].
O seu caráter circular, acentuado por R. Merton (1988), citando H. Zuckerman (1965): “O mundo é peculiar na forma como dá crédito. Tende a dar crédito a pessoas que já são famosas”, o que tem importantes repercussões no mercado de trabalho pelo valor dos bens assinados pelos mais reconhecidos e pelas suas remunerações simbólicas e ganhos efetivos. P. -M. Chauvin (2010) mostra que esta situação é semelhante à vivida no mundo da vitivinicultura: a assinatura dos consultores vitivinícolas é uma fonte de reputação que se transfere para as organizações produtivas. O que Rodrigo deixa ver quando refere a concentração das grandes obras nos ateliês de renome e traça o movimento de “ida e volta” das reputações individuais e organizacionais:
Lançam-se sozinhos, mas não têm capacidade financeira para aguentar um concurso, ou então vão a concursos muito pequeninos, não estão nas obras top. As grandes empresas institucionais raramente darão uma obra a um ateliê que não tenha prestígio, porque hoje em dia, e isso deve-se muito ao arquiteto S. Vieira, ao arquiteto S. Moura e a G. Byrne, é o prestígio do arquiteto que conta. Há pessoas que querem ter uma casa feita por nós e usam-na comercialmente. Eu vejo as casas utopia, foi o M. A. Mateus que lançou, convidou uma série de arquitetos, o primeiro standard da publicidade tem sido o nome dos arquitetos, não é o local. Se eles não são conhecidos, não chegam lá [Rodrigo, 60 anos, dirige um ateliê de grandes dimensões].
L. Karpik (2007) descreve os sinais que guiam o consumidor nos seus julgamentos sobre a qualidade dos produtos no mercado — por exemplo, o reconhecimento de um trabalho anterior facilita, uma nota dada por um crítico transmite confiança e amplia a possibilidade de ser escolhido para novos prémios. R. Merton (1988) e P. -M. Menger (2009 e 2012) consideram que o sinal mais importante que o indivíduo dá ao mercado de trabalho reside na capacidade que demonstra ter para desenvolver outras competências. Deste modo, a visibilidade é um fator potencial de crescimento das competências pelas fontes relacionais que confere aos indivíduos, o que é sugestivamente ilustrado na pesquisa de C. Ollivier (2011) sobre os efeitos das relações sociais nas trajetórias profissionais dos arquitetos de interior. Na entrevista de Marco é notada a sua capacidade para se associar ao ateliê de outro arquiteto igualmente reconhecido, considerando que em associação concorre “mais forte” aos concursos que abrem em Portugal e no estrangeiro. Cada um dos ateliês dispõe de equipas próprias que colaboram na conceção e construção de “projetos top”:
Em vez de este ateliê aumentar para 50 ou 60 pessoas, os dois ateliês juntos têm quase 50 arquitetos; portanto, têm uma capacidade maior, temos uma parceria para uma série de projetos grandes em Lisboa e no estrangeiro e tem corrido otimamente […] O grande problema dos ateliês é que quando se fecham muito sobre si não têm um poder crítico muito grande […] Eu acho que o meio da arquitetura em Portugal é muito fechado e depois acontece o seguinte: muitas vezes os arquitetos que fazem mais trabalho são um bocado escorraçados, porque há aquela coisa de small is beautiful [Marco, 65 anos, dirige um ateliê de grandes dimensões].
As experiências formadoras aumentam as competências; se o número e a variedade de experiências aumentam, também as redes de colaboração mobilizadas pelos indivíduos se alargam. A formação na escola e o trabalho ainda durante o curso no interior dos ateliês aparecem como variáveis correlacionadas com o êxito de uma carreira, sobretudo quando se apresentam como momentos paralelos e combinam eventos básicos do contexto escolar e do aprender-fazendo no ateliê com a progressão técnica dos arquitetos, que aperfeiçoam conhecimentos sobre os materiais, fazem a apropriação do vocabulário específico e as primeiras “saídas para a obra” com o arquiteto principal e conhecem outros arquitetos e ateliês; aventa-se, desta maneira, a capacidade para durante esses momentos de formação paralela se produzirem contactos de trabalho (Cabral e Borges, 2010). Foi o que aconteceu a Carlos, 27 anos, quando descreveu o início da sua carreira, difícil e demorado na aprendizagem das “sínteses próprias da arquitetura”, mas aberto a “pequenas forças”:
Eu fui para Madrid, foi o meu primeiro trabalho. O que é que um jovem arquiteto faz quando acaba o curso? Faz o que pode […] Estive em Paris e, durante o Erasmus, conheci pessoas e convidaram-me para ir para Madrid porque precisavam de um arquiteto que falasse português e francês para colaborar nos projetos das antigas colónias portuguesas em África [Carlos, 27 anos, ateliê próprio que partilha com um colega].
João é outro jovem arquiteto que trabalha por projeto. Na sua entrevista conta que esses projetos surgem no interior de um grupo de colegas e amigos que se associam quando existe uma oportunidade de trabalho ou quando há um concurso para desenvolverem ideias. Esta associação informal dos jovens arquitetos tem a vantagem de tornar regular, tanto quanto possível, a prática da arquitetura e fazer nascer mais depressa as ideias. João gostaria de trabalhar num ateliê em Lisboa em obras de grande envergadura que possibilitassem aprender, conhecer e saber como se utilizam novos materiais, mas isso não acontece. As expetativas sobre o seu futuro são moderadas, seis ou sete colegas já saíram do país, encontrando-se em Madrid, Londres, Roterdão, Barcelona, Suíça. Alguns deles estão a fazer o estágio através de um patrono português que se responsabiliza pela sua formação. Todos são remunerados. Porém, o fraco investimento relacional, muitas vezes decorrente de ausência prolongada (por exemplo, necessidade de sair do país por falta de trabalho), não permite fazer circular informação sobre o nome e as respetivas obras. O reconhecimento dos pares demora tempo e exige o reforço dos mecanismos de engagement e investimento ativo em redes específicas. Luís regressou do estrangeiro e não viu reconhecido o seu trabalho. As “pequenas forças” que lhe permitiram trabalhar e construir obras arquitetónicas fora do país não tiveram impacto interno junto dos seus pares:
Não, antes pelo contrário. Quando saí de lá foi esquisito porque havia muito, ainda hoje há, essa desvalorização das pessoas, dos arquitetos que tinham feito a sua prática, a sua experiência, no estrangeiro… Mas quem tem mais aspirações, quem não se contenta com a malfadada sorte, quem tem projeto, acaba por ir procurar um sítio onde se possa realizar como pessoa humana […] Fui ignorado, sim [Luís, 67 anos, dirige um ateliê de pequenas dimensões].
No fundo, as vantagens que as redes e as associações de nomes reconhecidos produzem funcionam como um mecanismo concorrencial que pode gerar monopólios no mercado de trabalho da arquitetura, à semelhança daquilo que acontece noutros mercados.
Da altura das barreiras às “vantagens acumuladas”
Como vimos anteriormente, três importantes estudos em sociologia da arte examinam a construção da reputação, o problema da sua definição e de como esta persiste no tempo (Becker, 1982; Lang e Lang, 1988 e 2001 [1990]). Lang e Lang (2001) definem duas das mais importantes componentes da reputação: o reconhecimento e o renome. O primeiro amplia-se quando uma convenção acerca do valor de um artista, instituição ou mercado é partilhada por um número mais amplo de indivíduos. O “renome” de um indivíduo avalia-se, em geral, pela sua visibilidade na imprensa, nas vendas ou noutro tipo de atenção que o trabalho ou o artista conseguem obter, como veremos nesta secção.
No mercado da arquitetura há um grande número de aspirantes que se confrontam com um sistema de triagem implacável que deixa a maior parte pelo caminho (Cabral e Borges, 2010) ou obriga a criativas mas difíceis alternativas de carreira: Rui e Catarina, da geração intermédia, trabalham por conta própria na sua casa, que criativa e rapidamente transformam num ateliê todas as manhãs: “para não sermos papados pelos grandes”, justificam. Duarte lamenta a estagnação de muitos colegas e considera que esse é o maior risco da profissão, a “estagnação criativa” daqueles que não assinam os projetos, mas permanecem nos grandes ateliês e ajudam a montar os projetos, e são por vezes afastados pelos responsáveis dos ateliês, sempre à procura de “sangue novo”, para utilizar a sua expressão:
Acabei o curso, fui trabalhar. Durante nove anos estive a colaborar com um arquiteto que tinha sido meu professor. Nove anos nesse gabinete e aí o problema que se põe é que não há evolução, ficamos estagnados… Acaba-se por entrar num processo onde tudo já está decidido […] É um trabalho de desenhador um bocadinho mais qualificado… Tenho colegas que permanecem a trabalhar para outros, mas depois acontece que quando chegam a esta idade começam a ser despedidos e a ser trocados pelos mais novos. O problema é que ou têm conhecimentos pessoais que lhes permitem angariar trabalho ou ficam mesmo sem trabalho [Duarte, 40 anos, trabalha em casa].
Para os artistas, ou, se quisermos, para os arquitetos reconhecidos, os ganhos simbólicos e materiais, que resultam do reconhecimento em círculos mais alargados, são muito fortes (sobre os efeitos masterpieces, ver Galenson, 2002). Numa discussão crítica sobre este tema, R. Frank e P. Cook (1995) descreveram o poder dos indivíduos mais reputados, os “açambarcadores de mercados”, em profissões onde o talento é um fator multiplicador que conta com as avaliações produzidas pelos pares e por toda a cadeia de opinion-makers, como os críticos (Moulin, 1967: 183; Lang e Lang, 1988: 84-85) e o colega e a proximidade que cada um consegue manter com os mesmos (Ollivier, 2011):
Depois há aquele império do Norte…, quem não fizer arquitetura branca e pura e neorrealista e neonacionalista não só não…, como é uma ameaça ao poder estabelecido, porque é fácil as pessoas instalarem-se nos chavões, a arquitetura do Siza é bestial, está dentro do modelo, do padrão, é reconhecida no estrangeiro […] O diferente tem de passar por uma aceitação que vem sempre de fora, dos média… […] A dinâmica da sociedade contemporânea não vai no sentido da confrontação, vai muito mais no sentido da pacificação, do mainstream [Pedro, 64 anos, dirige um ateliê de pequenas dimensões].
Por seu turno, as palavras de um casal de arquitetos, Mário e Deolinda, mostram as diferentes fases de duas carreiras: a entrada na arquitetura, o reconhecimento dos colegas e, por fim, a importância dos fotógrafos de arquitetura para a consolidação da sua reputação e a divulgação dos trabalhos. Mário começa a sua entrevista assinalando a importância do capital familiar como fonte de concorrência que assegura a posição dos indivíduos contra a inevitabilidade de ficar na sombra. De outro modo, Deolinda começa a entrevista descrevendo a “altura das barreiras” no início da carreira de uma arquiteta que tentava provar a si mesma que conseguiria “vencer”:
O arquiteto ou tem uma família ligada à arquitetura ou uma família muito metida no meio, um pai arquiteto, ou então tem de ele próprio fazer o seu marketing, dar todos os pequenos passos para ser persuasivo, dizer “estou aqui”, dizer o que pode fazer […] O meu pai era o desenhador de província conceituado que fez durante muitos anos o papel de arquiteto. O bichinho estava lá desde o princípio [Mário, 58 anos, responsável pelo ateliê].
Vencer as primeiras barreiras é logo a seguir, quando se acaba o curso. Eu vejo muito poucas arquitetas em obra, muito poucas. Acabei de sair de uma reunião com cinco homens, eu não me importo nada, eles já se habituaram à minha presença. Já tenho alguma idade, já estou a trabalhar com este cliente há muitos anos. Mas não é fácil. Não há mulheres em obra… [Deolinda, 56 anos, responsável pelo ateliê].
No mesmo sentido, as palavras de Clarisse, arquiteta sénior, quando recorda a sua resposta a um anúncio que pedia arquitetos, no final dos anos 70:
Claro que senti alguma segregação no princípio. A primeira vez que respondi a um anúncio publicado num jornal mandei o curriculum e depois chamaram-me, havia dois arquitetos, eu e outro, e perguntaram-me como é que me sentia, sendo mulher, num meio onde só havia homens… [Clarisse, 64 anos, trabalha numa câmara municipal].
Voltemos a Mário e Deolinda. Depois dos primeiros anos começaram a acumular-se “vantagens” no seu percurso. Em conjunto, descreveram duas formas de reconhecimento do trabalho de um arquiteto no mercado: a arquitetura publicada (que pode ser construída ou não, inscrevendo-se no âmbito dos projetos) e a arquitetura fotografada (Corbusier e o fotógrafo Lucien Hervé são o exemplo de uma dupla de renome). Estes exemplos mostram-nos até que ponto o engagement de diferentes profissionais num continuum de práticas amplia a reputação de uns e outros:
M — A mais pequena moradia que nós fizemos foi para um amigo. D — Deu mais projeção e tem sido publicada em todo o sítio. Reconhecida e publicada. Quem é que faz esse reconhecimento? M — São os outros. Tem a ver também com os fotógrafos que divulgam muito o seu próprio trabalho. Eles próprios são os divulgadores das suas fotografias. D — Depois aparece uma, e então, e não têm mais trabalhos? E nós começamos a mostrar. Temos uma série de publicações.
H. Becker (1982: 351-371) chama a atenção para que, com o tempo, os mundos das artes fazem e desfazem as reputações de indivíduos, escolas, trabalhos, géneros. O tempo, tal como é descrito por Mário, da antiga geração de arquitetos, mostrará o valor de “uma boa cerejeira”. O tempo que leva a construir a “boa cerejeira” contrasta com a rapidez com que esta pode consumir-se.
Costumo dizer que a arquitetura é como uma boa cerejeira: se as cerejas são boas, não se tira apenas uma, vai-se buscar outra, e outra, até que ela comece a ter algum problema […] O que se constrói demora muito, muito tempo, constrói-se pedra a pedra, mas a demolição de um gabinete pode ser muito rápida [Mário, 58 anos, dirige um ateliê de grandes dimensões].
ou, simplesmente, alterar-se. Jorge, da antiga geração de arquitetos, assumiu, num tom nostálgico, o “império dos jovens”, “as superstars”, “os ídolos efémeros” dos dias de hoje:
Praticamente, não tenho trabalho… Nós estamos num período do triunfo dos jovens, um tipo está muito na berra… Os ídolos hoje consomem-se muito rapidamente, mas o André ainda há poucos meses era uma superstar com aquele livro que trazia coisas dele. É um património ser novo [Jorge, 65 anos, dirige um pequeno ateliê].
Os concursos: quanto é preciso experimentar até ganhar?
No trabalho anterior (Cabral e Borges, 2010) verificámos que cerca de um terço dos arquitetos concorreram a um ou mais concursos públicos nacionais, com uma média inferior a um concurso por ano. Na realidade, porém, só um quarto participou num máximo de três concursos, enquanto menos de 7% participaram em mais de três. Temos aqui uma medida aproximada da forma drástica como o acesso à procura de novos bens arquitetónicos promovida pelo maior cliente do país — o Estado central, regional e local — se restringe a uma percentagem pequena de ateliês. Considerámos que esta concentração de oportunidades refletia, necessariamente, a concentração de recursos por parte de um segmento pequeno da profissão. Predominam os vencedores de prémios entre os mais velhos: 23% dos homens já ganharam pelo menos um prémio; só 12% das arquitetas estão nessa situação.
Em 2011, quando Eduardo Souto de Moura ganhou o Prémio Pritzker, estiveram expostos na Faculdade de Arquitetura do Porto, onde estudou e lecionou, cerca de 50 trabalhos seus realizados para os concursos nos quais participou — e nem sempre ganhou — nos últimos 31 anos (1979-2010). Este conjunto de trabalhos dá a noção de quanto é preciso experimentar até ganhar um prémio de prestígio.
Para Miguel, jovem arquiteto, os fatores de êxito numa carreira relacionam-se com o tempo de trabalho (uma carreira demora a fazer-se), o volume de trabalho, a “obra feita” ou simplesmente publicada nas revistas da especialidade e a dimensão do ateliê:
Para se alcançar êxito é preciso trabalhar muito. O meu primo, que neste momento tem cerca de 40 anos, já trabalha há quinze e só agora começa a ter clientes mais importantes, até aqui foram sempre pequenos trabalhos […] Relativamente ao panorama geral, ele é um arquiteto com êxito, porque tem um ateliê já grande, com trabalho suficiente. O que eu acho é que não tem aquelas obras… marcantes. Obra feita é sempre um privilégio […] Outro fator de êxito, falando não só em Portugal, mas no mundo inteiro, são os arquitetos que aparecem nas revistas. Pode ser um arquiteto que tem pouquíssima obra construída e pode ser conhecido por ter muita obra publicada, isso é importante, obra publicada em revistas da especialidade… São projetos. Essa obra publicada pode ser acompanhada por um pensamento teórico ou não, pode ser puramente exploração de imagem, novas formas, novas abordagens. Há muitas obras que não chegam a ser construídas, mas que são importantes para o avanço da teoria da arquitetura [Miguel, 30 anos, trabalha por projeto].
Todos os fatores reunidos não chegam ao impacto que um prémio prestigiado tem, pelo consenso sobre o valor de uma obra. Os prémios representam para os seus vencedores um lugar no topo da pirâmide reputacional. Rui, arquiteto sénior, chegou a ficar bem colocado nos concursos nacionais, mas assinala que nunca ganhou e mostra-nos a expressão do seu profundo desapontamento:
Eu ia a concursos… Ficava sempre em segundo lugar… não ganhava e depois até isso mesmo me tiraram [Rui, 60 anos, dirige um ateliê de pequenas dimensões].
Conclusão e perspetivas
Este artigo apresenta algumas das dinâmicas mais fortes e intrínsecas à reputação, os seus mecanismos e efeitos nas trajetórias individuais de carreira, num grupo profissional específico, os arquitetos. A arquitetura e o nome de alguns arquitetos portugueses estão hoje associados a importantíssimos prémios internacionais, a uma participação intensa e de grande qualidade (assim entendida também pelos pares) nas bienais internacionais de arquitetura. Tendo como pano de fundo as trajetórias individuais de carreira de alguns dos arquitetos que entrevistámos, procurámos mostrar como se organiza, amplifica ou altera a reputação destes indivíduos e o que isso pode significar para a valorização desta área de trabalho e para a organização geral desta profissão.
Desde logo, como tivemos oportunidade de discutir na primeira parte, quer a discussão teórica, quer as evidências empíricas estão muito para além daquelas que têm sido as perspetivas mais convencionais e consolidadas sobre os processos de reputação, apontando-se aqui o caminho de um estudo dinâmico em torno da reputação de indivíduos, organizações, mercados e territórios. Os processos reputacionais necessitam de uma análise consistente e aprofundada dos mecanismos da sua construção e sustentabilidade, associando o reconhecimento dos artistas, das obras, das organizações onde se movimentam e dos territórios onde se inscrevem (cidades, países), seguindo os pressupostos de uma investigação mais alargada, como aquela que se está a realizar.
A diversidade de lógicas, formas e objetivos inerentes aos processos de reputação requer ainda uma análise comparativa destes mecanismos de construção das reputações e das lógicas em que assentam ao longo do tempo. É o que procuraremos fazer, articulando nomeadamente os mundos da arquitetura e do teatro.
No caso dos arquitetos, que sustentam aqui a vertente empírica desta investigação preliminar, mostra-se que a sua vivência da reputação está profundamente ligada às “pequenas forças”, como a saída para outro ateliê, a sugestão de um colega, e a um conjunto de “vantagens acumuladas”, como a associação a redes colaborativas de diferentes profissionais num continuum de práticas que ampliam o conhecimento de uma obra — um fotógrafo que faz uma boa imagem, um projeto que é publicado numa revista — ao longo do tempo. O prémio é o culminar do processo. No caso da arquitetura, os sinais que se emitem para um mercado singular como este passam pela inscrição de um nome reconhecido no mercado, capaz de “iluminar” e chamar a atenção para um território.
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Receção: 14 de maio de 2013. Aprovação: 30 de outubro de 2013
Notas
[1] O projeto de pós-doutoramento “Reputação, mercado e território: entre o teatro e a arquitetura” é financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia. Este texto foi parcialmente apresentado pela primeira vez no ICS-UL, no seminário de pós-graduação de 8 de abril de 2011, a convite de Sofia Aboim, “Reputação à luz da sociologia da arte”, e na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, no colóquio internacional musiCULT, 28 de fevereiro de 2012, a convite de Paula Guerra, “Para lá das estrelas: reputação e criatividade”. Gostaria de agradecer os comentários dos colegas e alunos durante estas sessões. Agradeço ainda todas as sugestões e correções, muito pertinentes e valiosas, propostas pelos revisores deste artigo.
[2] “Do reconhecimento à fama: diálogos em marcha”, de V. Borges, M. Truninger e J. Gomes Ferreira, apresentado no seminário de almoço, no ICS, de 24 de abril de 2012 (inicialmente apresentado em poster no Encontro de Investigação no ICS, em abril de 2012). A ideia é refletir sobre o modo como se organizam, amplificam e alteram os processos subjacentes aos fenómenos de reputação e quais as consequências de tornar visível aquilo que somos, aquilo que fazemos e produzimos, os objetos e materiais com que vivemos e os lugares onde trabalhamos (Conselho de Programa: Manuel Villaverde Cabral, Luísa Schmidt, José Manuel Rolo). No ICS-UL decorre o projeto, liderado por Vítor Sérgio Ferreira, sobre as “profissões de sonho”. Espera-se assim que os diálogos já mantidos pelos investigadores das artes se possam alargar, de forma produtiva, a outros domínios.
[3] A este propósito, cf. “What’s in a name?” (Frombrun e Shanley, 1990).
[4] Sublinha-se que na Idade Média os artistas apareciam menos, uma vez que a produção estava organizada em torno das corporações. Já no período do Renascimento ser artista—e desejar ser um artista famoso — era uma motivação vulgar (Zilsel, 1993 [1926]).
[5] Excluímos aqui a apresentação de excertos de entrevistas com clientes, investidores e utilizadores dos edifícios ou espaços públicos, uma vez que o objetivo inicial das entrevistas era conhecer o terreno e avaliar o grau de congruência entre os resultados estatísticos do estudo anterior, as observações in situ e as opiniões expressas pelos entrevistados (ainda por publicar até ao momento)sobre os seus percursos de carreira e sobre a forma como entendem o sucesso profissional. Ao longo deste artigo, a apresentação dos excertos das entrevistas será seguida do nome (fictício) do entrevistado, da idade e das dimensões do ateliê. Convém sublinhar que consideramos que um ateliê de pequena dimensão tem entre 1 e 4 colaboradores, um ateliê de média dimensão tem entre 5 e 10 colaboradores e um ateliê de grandes dimensões tem mais de 10 colaboradores.
[6] A propósito, v. o conceito de turning point de Abbott (2001) e “bifurcações e as ciências sociais” de Bessin, Bidart e Grossetti (2010) e, no universo da arquitetura, Brausch e Emery (1996) e as entrevistas que realizam a arquitetos reconhecidos. J. Donaghey (1980), que se assume como arquiteto/autor, descreve os seus primeiros dez anos como arquiteto e apresenta as “regras de ouro” que os arquitetos deviam conhecer quando entram no mercado de trabalho (trata-se de um manuscrito do autor).