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Sociologia, Problemas e Práticas

versão impressa ISSN 0873-6529

Sociologia, Problemas e Práticas  no.75 Lisboa maio 2014

https://doi.org/10.7458/SPP2014753577 

ARTIGO ORIGINAL

As perceções de riscos ocupacionais no setor ferroviário

Perceptions of occupational risks in the railway sector

Les perceptions des risques professionnels dans le secteur ferroviaire

Las percepciones de riesgos ocupacionales en el sector ferroviário

 

João Areosa*

* Investigador no CICS (Universidade do Minho) e docente no ISLA. Rua da Cooperativa — S. Romão, 2414-017 Leiria. E-mail: joao.s.areosa@gmail.com

 

RESUMO

Este artigo tem como objetivo prioritário apresentar os principais resultados de uma pesquisa, realizada em contexto organizacional, sobre as perceções de riscos dos trabalhadores acerca da sua atividade profissional. A organização observada é uma empresa de transportes urbanos, dentro do ramo ferroviário, a qual incorpora diversos tipos de riscos na sua laboração. Verificou-se que os trabalhadores percecionam os seus riscos ocupacionais de forma heterogénea. Contudo, esta diversidade acabou por se constituir numa informação bastante útil, quer para aperfeiçoar a identificação de riscos na organização, quer para melhorar as propostas de prevenção de acidentes. A apresentação dos resultados deste estudo é precedida por um enquadramento teórico sobre o tema, bem como pela metodologia utilizada na investigação (utilizou-se, essencialmente, a observação participante e entrevistas semiestruturadas).

Palavras-chave Perceções de riscos, segurança no trabalho, acidentes de trabalho.

 

ABSTRACT

The primary objective of this article is to present the results of research in an organisational context on the ways in which workers perceive risks linked to their work. The organisation observed by the author is an urban rail transport company, where staff run various types of risk. It was found that workers have heterogeneous perceptions of their occupational risks. However, this diversity ended up providing information that is quite useful for improving both knowledge about the risks in the organisation and the proposed ways of preventing accidents. The article begins by describing a theoretical framework for the topic, and the methodology used in the research (essentially, participative observation and semi-structured interviews).

Keywords Risk perceptions, work safety, accidents at work.

 

RÉSUMÉ

Cet article a pour principal objectif de présenter les résultats d’une recherche, menée au sein d’une organisation, sur la perceptions des risques professionnels par les travailleurs. L’organisation observée est une entreprise du secteur des transports ferroviaires urbains qui comporte plusieurs types de risques au travail. On constate que les salariés ont une perception hétérogène de leurs risques professionnels. Cependant, cette diversité finit par constituer une information utile, tant pour perfectionner l’identification des risques au sein de l’organisation que pour améliorer les mesures de prévention des accidents. La présentation des résultats de cette étude est précédée d’une introduction théorique du thème et de la méthodologie de recherche utilisée (essentiellement l’observation participative et les entretiens semi-directifs).

Mots-clés Perception des risques, sécurité au travail, accidents de travail.

 

RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo prioritario presentar los principales resultados de una investigación, realizada en contexto organizacional, sobre las percepciones de riesgos de los trabajadores acerca de su actividad profesional. La organización en análisis es una empresa de transportes urbanos, dentro del ramo ferroviario, la cual incorpora diversos tipos de riesgos en su funcionamiento. Se verificó que los trabajadores perciben sus propios riesgos ocupacionales de forma heterogénea. Con todo, esta diversidad acabo por constituirse una información muy valiosa, tanto para perfeccionar la identificación de riesgos en la organización, como para mejorar las propuestas de prevención de accidentes. La presentación de los resultados de este estudio fue precedida por un encuadre teórico sobre el tema, así como por la metodología utilizada en la investigación (se utilizó, esencialmente, la observación participante y entrevistas semiestructuradas).

Palabras-clave Percepciones de riesgos, seguridad en el trabajo, accidentes de trabajo.

 

Introdução

A civilização moderna pode estar culturalmente cega, pois onde é percecionada normalidade, possivelmente, espreitam ameaças dissimuladas (Beck, Giddens e Lash, 2000: 30). De certo modo isto significa que os riscos são entidades omnipresentes no mundo social (incluindo os locais de trabalho). Neste contexto, a forma como identificamos e interpretamos os riscos torna-se relevante para a prevenção de eventos negativos. É pertinente referir que as perceções de riscos são entendidas como a forma como os não especialistas compreendem os diversos fenómenos ligados ao risco. Dentro deste âmbito importa destacar que os saberes associados ao senso comum têm vindo a ganhar importância (Santos, 1987), mas o conhecimento especializado de peritos e cientistas tende a ser socialmente mais valorizado. [1] Paralelamente, no imaginário coletivo parece disseminar-se a ideia de que a própria ciência é produtora de novas formas de risco e este facto acabou por originar a quebra do monopólio da racionalidade científica na definição dos riscos (Beck, 1992: 19). É ainda importante referir que nem mesmo as designadas avaliações objetivas de riscos (efetuadas por especialistas) estão isentas de riscos (Perrow, 1999).

Neste trabalho pretendemos centrar a nossa atenção na forma como as pessoas identificam e expressam os riscos aos quais se encontram expostas no seu local de trabalho, [2]tendo em conta que esses mesmos riscos só podem ser alvo de alguma estratégia preventiva após a sua identificação. As perceções de riscos estão diretamente ligadas à forma como os indivíduos pensam, representam, classificam ou analisam as diversas formas de ameaça às quais se encontram sujeitos ou sobre as quais têm conhecimento. Muitos autores discutem o porquê de certos tipos de riscos serem socialmente menos valorizados, e por consequência menos temidos, apesar de os seus efeitos poderem ter um caráter de maior nocividade (Douglas e Wildavsky, 1982; Beck, 1992; Granjo, 2004; Kabat, 2008). As tentativas para explicar este fenómeno são muito diversificadas, embora as justificações estejam relacionadas com a informação que recebemos, com as nossas representações sociais sobre determinadas situações, com os nossos medos mais íntimos, com as nossas histórias e percursos de vida, ou seja, as perceções de riscos estão interligadas com o nosso conhecimento sobre a realidade envolvente e com as nossas experiências vivenciais.

As perceções leigas são, no fundo, uma avaliação subjetiva sobre uma eventual fonte ou forma de risco, que pode incidir, entre outras situações, sobre um acontecimento, uma atividade ou uma tecnologia. A forma como os atores sociais leigos constroem as suas perceções depende de fatores múltiplos, quer microssociais, quer macrossociais, de coercibilidade variável, tendo em conta que estes fatores estão normalmente interligados. No entanto, tal como referem Douglas e Wildavsky (1982), ninguém consegue identificar todos os tipos de riscos aos quais se encontra exposto, por isso as perceções de riscos são sempre parciais, visto que nunca existe um reconhecimento de todas as situações. Para além disso, há determinado tipo de riscos que se constituem como territórios inexplorados ou pouco conhecidos para a humanidade (Beck, 1992).

Apesar de considerarmos as perceções de riscos dos trabalhadores como um ponto importante para a gestão de riscos e para a prevenção de acidentes, não podemos deixar de referir que este é apenas um dos muitos aspetos que podem influenciar ambas as situações. As decisões estratégicas da gestão de topo (Vaughan, 1996; Rasmussen, 1997; Reason, 1997), as estratégias formais e informais de alguns grupos profissionais (Areosa e Carapinheiro, 2008), a escolha de determinadas técnicas e tecnologias (Perrow, 1999), o design dos postos e locais de trabalho, as formas de organização e planeamento das tarefas, a especificidade dos riscos de cada organização (Areosa, 2009a, 2009b), o tipo de gestão efetuada ao nível da manutenção (Reason e Hobbs, 2003), a forma como são planeadas as barreiras protetoras (Hollnagel, 2004), as formas de compreender e “gerir” os incidentes (Areosa, 2009c), a insuficiência e os limites das regras, normas e procedimentos para a prevenção (Areosa, 2012a) são alguns exemplos de fatores que podem contribuir para aumentar os riscos e os acidentes. [3]Para além destes, ainda existem certas dimensões externas à própria organização, tais como as políticas governamentais, legislação ou problemas relacionados com fornecedores externos (Rasmussen, 1997). Todos estes aspetos podem ir fragilizando a própria organização até estarem reunidas as condições necessárias para ocorrer o acidente (Turner, 1978). Porém, não menosprezando todos estes fatores decisivos, o objeto deste trabalho está particularmente estruturado para compreender qual a utilidade que as perceções de riscos podem ter para a segurança nas organizações.

 

As perceções de riscos no trabalho: alguns resultados de pesquisas empíricas

A pertinência do estudo das perceções de riscos em contexto organizacional reside em tentar compreender como é que as perceções dos trabalhadores podem influenciar os seus comportamentos, as suas atitudes e as formas de realizar o seu trabalho, visto que estes fatores podem afetar a probabilidade de sofrerem acidentes de trabalho ou de contraírem doenças profissionais. Os riscos laborais tendem a ser profundamente heterogéneos, se tivermos em conta a extraordinária diversidade de situações do mundo ocupacional. A segurança das organizações e dos trabalhadores depende, em parte, do tipo de perigos e riscos que emergem nos sistemas, bem como da forma como são detetados e controlados. Atualmente as organizações são vistas como sistemas sociotécnicos, onde interagem continuamente as valências sociais, técnicas e tecnológicas (Burns e Machado, 2009).

As perceções de riscos dos trabalhadores nem sempre refletem fidedignamente os riscos organizacionais, visto que essas mesmas perceções podem ser enviesadas, isto é, podem ser um meio de apreender o mundo exterior de forma distorcida. Porém, qualquer perceção de riscos laboral é sempre um processo interpretativo de uma dada realidade ocupacional, depende das especificidades dos ambientes de trabalho e é atravessada por subculturas organizacionais. Assim, as perceções de riscos no trabalho são construídas a partir dos riscos existentes na organização e estão em articulação com as experiências vividas nos locais de trabalho; são também influenciadas pelos discursos e pelas práticas produzidas socialmente, bem como por fatores político-ideológicos dos sujeitos. Esta dinâmica de interação social no mundo do trabalho produz e reproduz os limites das perceções de riscos laborais, bem como os seus conteúdos mais importantes. É neste contexto que faz sentido afirmar que as perceções de riscos são socialmente construídas, e são também indissociáveis de valorações objetivas ou subjetivas, sendo “mesmo objeto de uma deliberada transmissão e reprodução social” (Granjo, 2004: 131).

Já referimos que o estudo das perceções de riscos no trabalho pode fornecer-nos algumas indicações sobre a forma como os trabalhadores identificam os riscos aos quais se encontram expostos nos seus locais de trabalho. Todavia, as perceções não são constantes, variam de indivíduo para indivíduo (Feliciano, 2003), podem até ser alteradas em momentos diferentes da vida laboral do mesmo indivíduo, e variam particularmente através dos contextos e das situações de trabalho. São também influenciadas pelo setor de atividade onde os trabalhadores se inserem, bem como pelas especificidades culturais de cada profissão. Tentar compreender como funcionam as nossas perceções pode ajudar-nos em diversas situações, mas este é um campo onde ainda existem inúmeros tipos de armadilhas. A forma como a nossa mente funciona pode acarretar alguns tipos de erros, devido, por exemplo, àquilo que os psicólogos cognitivos designam por heurísticas. [4] Regra geral, os trabalhadores tendem a subavaliar os riscos que eles próprios correm, comparativamente com os riscos dos outros (Rundmo, 2000: 52). Certos indivíduos parecem evidenciar uma certa sensação de invulnerabilidade perante o risco; esta crença subjetiva é designada otimismo irrealista (Weinstein, 1980). Isto acontece porque o próprio trabalhador se julga mais competente e com maiores níveis de conhecimento sobre a sua atividade laboral, por comparação com os outros colegas, logo, este facto pode enviesar em grande medida as suas perceções de riscos.

Os primeiros tempos num posto de trabalho podem também corresponder a menores perceções de riscos laborais, devido ao menor tempo de observação/contacto com os riscos específicos aos quais o “novo” trabalhador está exposto. Segundo Madureira Pinto (1996: 115), os habitus profissionais têm como função adaptar o corpo e a atenção aos riscos profissionais. Cordeiro (2002) define as perceções de riscos no trabalho como a capacidade que os trabalhadores têm para identificar e quantificar os seus riscos laborais. Este autor efetuou um estudo comparativo entre trabalhadores sinistrados e não sinistrados e sugere a existência de uma relação inversa entre as perceções de riscos dos trabalhadores e a ocorrência de acidentes de trabalho. Aparentemente, quanto mais baixos forem os seus níveis de perceções maior será a probabilidade de sofrerem um acidente no trabalho. Na verdade, Cordeiro coloca a seguinte hipótese: será que os trabalhadores com níveis de perceções de riscos mais baixos são mais vulneráveis a sofrerem lesões e acidentes durante o trabalho? Embora o autor tenha confirmado este pressuposto no seu trabalho de campo, numa indústria metalúrgica, não deixa de afirmar que este é ainda um campo pouco estudado e que carece de novas investigações.

Numa pesquisa realizada por Takeda (2002) sobre riscos ocupacionais e acidentes de trabalho, na categoria profissional de motorista de ambulância, verificou-se que as perceções de riscos destes trabalhadores não identificam alguns riscos da sua atividade laboral. Isto é, neste estudo foram detetados alguns tipos de riscos aos quais esses trabalhadores estão expostos, mas que não foram reconhecidos por eles como fazendo parte do seu universo de riscos profissionais, particularmente a temperatura excessiva, os níveis elevados de ruído ou vibrações, a fraca iluminação de certos locais ou alguns riscos químicos. Todavia, os motoristas de ambulância detetam e receiam determinados riscos durante o seu trabalho, nomeadamente o risco de agressão física pelo próprio doente, por familiares ou vizinhos, revelam algum medo de serem contaminados por agentes biológicos patogénicos, através do contacto com fluidos ou secreções dos doentes ou ainda por respirarem o mesmo ar que estes durante o transporte para a instituição hospitalar. Receiam também sofrer acidentes com a ambulância, devido à sua deficiente manutenção, ao estado do piso em certas zonas da cidade ou até pela condução agressiva dos outros automobilistas. Dentro do campo dos riscos psicossociais, temem que qualquer doente possa falecer durante o transporte e, posteriormente, possam vir a ser acusados pela sua morte. Podemos verificar que os condutores de ambulância estão expostos a elevados níveis de stresse, provocado pelo desempenho da sua atividade ocupacional, os quais são também partilhados por outros profissionais do setor da saúde. Ainda neste setor de atividade, podemos referir, a título de exemplo, que os riscos biológicos são transversais a quase todas as profissões (e isso influencia as perceções destes trabalhadores).

Outro dos riscos percecionados pelos motoristas de ambulância é o risco de queda, visto circularem em pisos molhados, irregulares, em escadas íngremes ou por terem de transportar doentes idosos, obesos, “engessados” ou com outras dificuldades de locomoção, como, por exemplo, doentes em cadeira de rodas. À organização onde exercem a sua atividade foram apontados riscos referentes ao excessivo horário de trabalho, ao ritmo intenso de trabalho, à ausência de formação para lidar com o público ou para enfrentar situações difíceis, designadamente partos ou doentes com sério risco de vida. É pertinente referir que estes trabalhadores não são profissionais de saúde (apesar de neste caso trabalharem nesse setor de atividade), por isso é natural que desconheçam as melhores formas de atuar perante situações mais complexas que envolvam cuidados especiais para os doentes. Foi também registado por Takeda (2002) que os motoristas de ambulância não têm por hábito considerar todos os doentes como potencial fonte de risco, particularmente como meio de contaminação biológica. Esta situação agrava-se se tivermos em conta que não são utilizados equipamentos de proteção individual (EPI), nomeadamente luvas e máscaras.

Segundo um estudo levado a cabo por Dickson e outros (2004), verificaram-se diferenças significativas entre as perceções de riscos de duas categorias profissionais, nomeadamente enfermeiros e gestores. Nesta pesquisa os gestores apresentam perceções de riscos “menores”, comparativamente com os enfermeiros, relativamente aos riscos de stresse e violência na atividade laboral desses trabalhadores. Pelo contrário, revelaram níveis mais elevados de perceções sobre os riscos para a saúde dos pacientes. Esta investigação conclui também que as perceções de riscos, mesmo que diferenciadas, são uma peça fundamental para a gestão de riscos das organizações.

No campo das perceções de riscos dos trabalhadores na área da saúde parece particularmente pertinente distinguir entre riscos que pertencem à organização e riscos produzidos pelo próprio trabalhador durante o exercício da sua atividade. Nesse último caso, poderemos dar como exemplo a elaboração ou interpretação incorreta de exames imagiológicos, efetuada pelos profissionais de saúde (Areosa e Carapinheiro, 2008). Essa situação pode originar múltiplos riscos para os doentes. [5] Em torno desta temática parece-nos interessante aprofundar novas pesquisas sobre como é que os trabalhadores da área da saúde percecionam os riscos dos seus erros ou lapsos, na elaboração de diagnósticos e execução de terapêuticas aos pacientes.

Os resultados de um trabalho realizado sobre médicos e técnicos de radiologia, em contexto hospitalar, sugerem que as perceções de riscos podem ser fortemente influenciadas por fatores organizacionais, particularmente quando essas organizações revelam elevados graus de complexidade nas tarefas executadas e dependem de múltiplas interações entre os trabalhadores (Areosa, 2011). Observou-se que as perceções de riscos desses trabalhadores são relativamente heterogéneas, embora quase todos concordem que as suas principais tarefas envolvem riscos ocupacionais elevados e que esses mesmos riscos não são devidamente valorizados pela gestão de topo da organização. Os riscos mais temidos por estes trabalhadores estão relacionados com riscos físicos (exposição a radiações ionizantes) e riscos biológicos (derivado ao eventual contágio com as patologias dos doentes); embora também tenham sido apontados outros tipos de riscos ocupacionais, tais como stresse, trabalho noturno e/ou por turnos rotativos, conflitos com colegas ou chefias e sobrecarga de trabalho no serviço de urgência.

Uma investigação efetuada sobre as perceções de riscos de cirurgiões dentistas Faria (2003) verificou que todos os entrevistados se revelaram convictos de estarem expostos a alguns tipos de riscos no seu local de trabalho. Foram referidos riscos biológicos, físicos e ergonómicos. Surpreendentemente não foram referenciados riscos químicos, no entanto esta atividade profissional utiliza alguns contaminates químicos, nomeadamente, mercúrio, medicamentos diversos ou produtos inflamáveis. Alguns destes profissionais revelaram um conhecimento superficial sobre a nocividade da utilização de raios X, particularmente os mais jovens (os quais indicaram ter maiores preocupações com os riscos biológicos). Relativamente aos riscos físicos, foi referido o ruído, mas não foram referidas as vibrações dos equipamentos. Faria (2003) verificou também que a utilização de EPI nem sempre era efetuada mediante os riscos existentes, embora a maioria dos entrevistados revelasse utilizar, pelo menos, luvas e máscaras simples. Em resumo, a autora conclui que a profissão de cirurgião dentista tende a minimizar os riscos químicos e os riscos decorrentes da utilização de radiações ionizantes. Alguns destes profissionais consideram que certos tipos de riscos são inevitáveis, nomeadamente os acidentes com materiais “pérfuro-cortantes”. Em consonância com esta perspetiva, um estudo recente realizado num hospital português revela que uma parte significativa dos acidentes de trabalho ocorridos nessa instituição têm como causa principal os diversos materiais “pérfuro-cortantes” (Mendes, 2012).

Segundo as pesquisas de Peres e outros (2005a), os trabalhadores rurais tendem a construir as suas perceções a partir de factos concretos, como as experiências vividas, tendo alguma dificuldade em elaborar e interpretar situações abstratas, tais como: colocar hipóteses ou efetuar correlações entre fatores. A aparente “invisibilidade” de alguns riscos químicos na atividade agrícola pode reduzir as perceções de riscos dos trabalhadores, nomeadamente quando os efeitos nocivos são provocados pela inalação de gases e vapores. Regra geral os trabalhadores tendem a relativizar os sinais de alerta do organismo (Peres e outros, 2005b: 1842), minimizando a importância de alguns sintomas que, por vezes, já não conseguem ser “disfarçados”. [6] No entanto, quando um trabalhador rural se depara com uma dada situação perigosa, a formulação das suas perceções de riscos é baseada nas crenças, experiências, imagens e informações construídas ao longo do seu trajeto de vida. Neste setor de atividade, os principais riscos da profissão de agricultor estão relacionados com o manuseamento de produtos químicos (os quais provocam diversos tipos de acidentes e/ou doenças profissionais), com a utilização de máquinas e ferramentas de trabalho (por exemplo, tratores e alfaias agrícolas) e com riscos ergonómicos (devido ao esforço físico que normalmente esta profissão exige).

No ramo da aviação seria esperado que as perceções de riscos dos pilotos fossem elevadas, devido às habituais consequências de um acidente aéreo. Porém, segundo Hunter (2002), esta situação nem sempre se verifica. Parece que os pilotos de aviação tendem a responder com um sentimento de invulnerabilidade aos seus riscos laborais (isto vai ao encontro do designado otimismo irrealista, referido anteriormente). Na perspetiva de O’Hare (1990 — citado em Hunter, 2002) parece que os pilotos de aviação subestimam quer os riscos da sua atividade profissional, quer a probabilidade de ocorrência de acidentes. Contudo, esta profissão enquadra-se num setor de atividade de alto risco, em que a mais pequena falha pode causar danos catasfróficos (Areosa, 2012c). Num estudo efetuado por Williams (1999 — citado em Hunter, 2002) verificou-se que a aversão ou a propensão ao risco por parte dos pilotos de aviação variava com a sua idade e com a sua experiência de pilotagem. Os pilotos mais jovens, bem como os mais experientes apresentavam uma menor aversão ao risco. Hunter (2002) preconiza que perante determinados estados meteorológicos adversos, nomeadamente em condições de densa nebulosidade e consequente fraca visibilidade, alguns pilotos optam por utilizar a condução automática dos aparelhos, mas outros, utilizam a pilotagem tradicional (recorrendo à visão). Isso revela perceções de riscos algo distintas. O autor afirma ainda que aqueles que aceitam voar em más condições atmosféricas tendem a apresentar níveis reduzidos de perceções de riscos. Essas diferenças parecem estar associadas à autoperceção das capacidades individuais e a maiores níveis tolerância ao risco. [7]

No estudo de Zanatta (2002) sobre as perceções de riscos dos trabalhadores de uma indústria cerâmica, verificaram-se algumas diferenças nos padrões dessas perceções. Se a maioria dos trabalhadores conseguiu identificar, por exemplo, o ruído e as poeiras como fatores nocivos para a sua saúde, outras situações de risco, [8] tais como, a exposição a mercúrio, chumbo, solventes e outros contaminantes químicos já são vistas como hipóteses difusas, ou seja, revelam uma perceção reduzida dos eventuais efeitos sobre a sua saúde e segurança. A autora identificou que nessa unidade produtiva os trabalhadores sabiam correlacionar as perdas auditivas e a exposição ao ruído, bem como a exposição a poeiras diversas e os problemas respiratórios. Em resumo, neste ramo de atividade, os níveis elevados de ruído e de poeiras parecem ser os riscos melhor percecionados por parte dos trabalhadores da indústria cerâmica.

Se é verdade que cada categoria profissional tem o seu próprio “portfólio” de riscos laborais, também não deixa de ser verdade que estes mesmos riscos são percebidos, compreendidos e interpretados de formas diversificadas. Cooper (1997) afirma que cada grupo profissional trabalha em diferentes “mundos do risco”, mesmo em atividades similares, visto que o autor concebe o risco como algo culturalmente determinado. [9] Alguns estudos mencionados por Cooper apontam para diferenças significativas entre as perceções de riscos dos gestores e dos restantes trabalhadores. Assim, quando as perceções de riscos dos gestores são caracterizadas pela subestimação dos riscos dos trabalhadores e se esses trabalhadores conseguirem identificar esta atitude, é provável que possam “minar” o seu compromisso e lealdade para com a organização, visto perceberem que a segurança nos seus locais de trabalho não é devidamente promovida pela gestão. Também Dejours (2013) verificou existir uma visão tendencialmente antagónica entre a profissão de gestor e as restantes profissões acerca dos riscos ocupacionais e da forma como o trabalho deve ser organizado. Este assunto é algo que tem merecido particular atenção por parte da psicodinâmica do trabalho (Areosa, 2013).

As perceções de riscos no trabalho estão conectadas com a sensação de que algo negativo ou contraproducente possa acontecer. Já observámos que as perceções de riscos laborais variam entre as diferentes profissões e estão ligadas aos contextos específicos onde se manifestam. Os trabalhadores que exercem elevados cargos de chefia, tais como gestores, administradores ou diretores, tendem a direcionar as suas perceções de riscos não tanto para os riscos associados aos danos físicos (como acontece em outras categorias profissionais), mas antes para os riscos psicossociológicos, que na verdade ocupam uma parcela muito importante das suas perceções de riscos. O medo e a ansiedade surgem como dois fatores indissociáveis das perceções de riscos desta profissão. Aliás, segundo Motta (2002), a sensação de medo nos gestores está relacionada com três fatores, a saber: as perceções de riscos para a organização, a maior ou menor vulnerabilidade das organizações a esses mesmos riscos e a capacidade de resposta para gerir com êxito os riscos das organizações.

Para concluir este ponto, podemos afirmar que as perceções de riscos dos trabalhadores são passíveis de ser influenciadas por diversos fatores, os quais nem sempre são de apreensão fácil ou imediata, mas tendem a ter uma relação muito próxima com o ambiente de trabalho. As motivações psicossoais oferecem elasticidade às perceções e à aceitabilidade dos riscos. Este é um dos motivos pelo qual os estudos sobre as perceções de riscos podem revelar resultados aparentemente contraditórios. Todavia, é importante destacar que os resultados destes estudos têm contribuido para a melhoria a segurança das organizações, dado que permitem gerar referenciais para perceber como é que os trabalhadores podem reagir perante determinadas situações específicas.

 

Metodologia utilizada na investigação

Das múltiplas abordagens metodológicas possíveis para a condução deste trabalho, escolhemos aquela que nos pareceu mais adequada: o método de pesquisa no terreno com observação direta e participante. Essa metodologia intensiva e de análise em profundidade é normalmente utilizada em unidades sociais de pequena dimensão. A pesquisa no terreno caracteriza-se pelo contacto direto com os agentes sociais em estudo (onde é estabelecida uma interação pessoal com os membros do grupo ou comunidade), e por uma presença relativamente prolongada do investigador no próprio local onde decorre a ação, ou seja, no habitat natural do grupo. Neste tipo de metodologia o principal instrumento de pesquisa é o próprio investigador (Costa, 1986: 136), embora, no entender de Bourdieu (1989: 51), a observação participante não seja mais do que uma “falsa” participação num grupo estranho. O objetivo desta metodologia é descrever e compreender as ações e relações dos atores sociais, mediante a observação das suas atitudes, expetativas, motivações, comportamentos, práticas, etc. Neste tipo de trabalho o investigador insere-se no contexto social e cultural dos sujeitos observados, compartilha com eles o seu quotidiano, acompanha as suas preocupações e compreende a sua “visão do mundo”, com o objetivo de integrar no seu estudo a visão dos atores sociais observados (Moreira, 2007).

A observação direta dos atores sociais em estudo foi realizada em Lisboa, numa empresa de transporte urbano de passageiros, e teve uma duração aproximada de quatro anos. Esse período relativamente extenso de observação ultrapassou em larga medida aquilo que seria esperado inicialmente, mas dificilmente poderia ser reduzido devido às múltiplas especificidades apresentadas pelo universo estudado. A compreensão das diversas técnicas e tecnologias utilizadas pelos profissionais, o posicionamento que cada ator social ocupa na organização do trabalho, bem como o tipo de interação que se estabelece entre os diversos trabalhadores, o tipo de relacionamento que as múltiplas áreas da empresa apresentam entre si e ainda a enorme diversidade de riscos e de acidentes existentes na organização, são apenas alguns dos aspetos que compõem a complexidade deste estudo, mas que influem nas perceções dos trabalhadores.

Após termos concluído o período de observação no terreno, realizaram-se entrevistas semiestruturadas aos trabalhadores. As referidas entrevistas foram sempre efetuadas individualmente, garantindo desta forma a confidencialidade da informação e do próprio entrevistado. [10] Relativamente aos locais de realização das entrevistas, elas foram efetuadas em duas salas, em edifícios distintos, disponibilizados pela empresa para esse efeito. As 24 entrevistas tiveram uma duração média aproximada de 40 minutos cada, embora seja pertinente referir que algumas tiveram a duração de cerca de 20 minutos, enquanto outras tiveram mais de uma hora. Todas as entrevistas foram gravadas em suporte áudio, sempre com a prévia anuência dos entrevistados, e posteriormente transcritas para texto (em suporte informático). As entrevistas foram realizadas pelo próprio investigador, embora a transcrição de áudio para texto tenha sido uma tarefa realizada por terceiros (devido ao elevado tempo que esta tarefa consome). Após a receção das entrevistas em formato de texto, todas as elas foram novamente corrigidas pelo investigador, através de nova audição das respetivas gravações áudio. Posteriormente foram trabalhados os dados, os quais são apresentados no ponto seguinte.

 

Perceções de riscos ocupacionais numa empresa do ramo ferroviário

Após termos exposto os resultados de alguns estudos sobre as perceções de risco em contexto organizacional (em diferentes profissões e setores de atividade), bem como a metodologia da presente investigação, iremos agora passar para a apresentação dos resultados de um estudo realizado numa empresa do ramo ferroviário, sobre as perceções de riscos dos trabalhadores dessa organização. Na referida investigação observou-se que os riscos ocupacionais são muito diversificados, variam de local para local e estão longe de ser homogéneos. Todos estes aspetos estão em consonância com um significativo número de pesquisas apresentadas anteriormente. Ao longo deste ponto iremos centrar a nossa atenção, maioritariamente, nas situações de risco mais “problemáticas”, ou seja, naqueles casos em que os riscos para a saúde e segurança dos trabalhadores pode ser mais ameaçador, bem como na forma como os trabalhadores percecionam e lidam com esses riscos durante a sua atividade laboral, quer seja em tarefas frequentes, quer seja em trabalhos pontuais ou excecionais.

Os processos de socialização, particularmente os que emergem dos grupos profissionais, podem contemplar diferentes mecanismos protetores e de vigilância que permitem aos trabalhadores lidar e enfrentar determinados tipos de riscos laborais. Dado que a organização pesquisada já tem mais de meio século de existência, podemos afirmar que existe uma cultura específica da empresa, e este fator é bastante vincado em algumas categorias profissionais, particularmente nas áreas operacionais. A socialização dos novos membros faz-se, em grande medida, através da transmissão de conhecimentos, experiências e práticas por parte dos trabalhadores mais antigos. Esta reprodução de saberes gera alguma coesão dentro de cada grupo profissional e permite a integração dos novos membros (recém-recrutados). Apesar de se observar que alguns relacionamentos interpessoais sofreram diversas alterações ao longo dos últimos tempos, nomeadamente entre trabalhadores e hierarquias, ainda é visível uma cultura fortemente hierarquizada, especialmente nas profissões da área oficinal ou da área de exploração. Pontualmente, observou-se a tentativa de introdução de algumas mudanças sugeridas por alguns membros mais novos, relativamente à organização do trabalho, mas raramente estas sugestões são de aceitação imediata; regra geral, carecem da aprovação formal ou informal dos trabalhadores mais antigos. A título de exemplo, referimos que a utilização dos equipamentos de proteção individual é ainda algo bastante invulgar nos trabalhadores mais velhos, mas esta prática foi lentamente introduzida por trabalhadores mais jovens, particularmente nas áreas oficinais.

No caso dos trabalhadores da organização pesquisada, as suas perceções de riscos decorrem da experiência profissional, das situações vivenciadas pelos próprios, quer as que presenciaram, quer as de que tiveram conhecimento através de outros colegas. Os acidentes ocorridos tendem a ser lembrados (pelo menos aqueles que foram mais graves) e são os riscos que estiveram na origem desses sinistros que normalmente permanecem na memória individual e coletiva dos trabalhadores. Mediante as entrevistas que realizámos, pudemos verificar que alguns trabalhadores tinham memorizado alguns acidentes, mas outros tiveram dificuldade em lembrar-se desses eventos. Alguns trabalhadores também referiram que perceberam a existência de alguns riscos através da comunicação social ou do contacto com pessoas próximas, a partir do seu leque de relações pessoais.

Para algumas categorias profissionais existentes na empresa observada os principais riscos do seu trabalho estão relacionados com as tarefas que têm de ser desenvolvidas mediante a utilização de energia elétrica de alta tensão ou com a execução de trabalhos quando permaneça a circulação de comboios sem interrupções e que, simultaneamente, incluam a descida de trabalhadores à via. [11] Nestes casos os riscos de eletrocussão e atropelamento são aqueles que causam maior preocupação. Outro risco identificado com grande preocupação por parte dos trabalhadores é o eventual esmagamento de alguma parte do corpo provocado pela movimentação das agulhas. Embora este risco seja mencionado com alguma frequência, nem todos os trabalhadores que circulam na via o conseguem identificar.

A eletrocussão. Isso é que é o maior… o maior medo, digamos, e isso é que me faz estar de olho mais aberto, porque nós trabalhamos em quadros muitas vezes em tensão e são meios muito apertados, qualquer “descuidozinho” com um membro ou até mesmo a ir espreitar, com um cabelo, já me aconteceu algumas vezes, nada de muito grave, mas, só o suficiente para sentir assim um “formigueirozinho” … “Ai, espera aí, isto não está aqui nada bem” … Mas, é com alta tensão, aí é que não há mesmo margem nenhuma para erros, tem que ser mesmo tudo bem pensado antes de se fazer. [Entrevista 12]

Para a minha área temos algumas situações. A eletrocussão é das piores situações que temos. Raramente temos contacto com material circulante a não ser mesmo nessas idas à galeria, quando, por vezes, há esse perigo de eletrocussão… há pessoas de outras áreas que têm esses perigos todos os dias, todos os dias… eletrocussão, atropelamento, esmagamento… [Entrevista 21]

Conforme se pode verificar pelos excertos de entrevista anteriores os riscos percecionados como sendo mais graves são aqueles que podem provocar a morte (eletrocussão ou atropelamento por material circulante — comboio) ou lesões de elevada gravidade, tais como esmagamento e/ou amputação de membros (superiores ou inferiores) decorrendo da movimentação de agulhas. Porém, os riscos percecionados pelos trabalhadores vão muito para além dos referidos anteriormente (os quais podem provocar consequências mais graves), visto que também conseguem identificar alguns riscos que, por vezes, dão origem a acidentes de trabalho com consequências mais “ligeiras”.

Olha, riscos… é, lá está, é um pouco difícil falar sobre isso, porque há riscos em que um simples virar para procurar uma melhor posição para executares o trabalho, aí podes dar um jeito às costas, podes fazer um entorse, é pá, são situações que a gente pensa que não há risco nenhum, mas acontecem, por vezes, acontecem. Olha, como, por exemplo, furar um bogie. Isto é assim, digamos que usando, por vezes, mesmo usando o equipamento de proteção estás tão entusiasmado, entusiasmado entre aspas, estás tão concentrado a fazer determinado trabalho que só estás a ver aquilo, depois de repente viras com qualquer movimento, está aqui uma peça, tu sabes que ela está lá, mas, pronto, como estás concentrado vais para apanhar uma ferramenta ou uma coisa parecida, pronto, lá está, vai… pronto, podes bater com o queixo ou com a cabeça ou outra parte do corpo qualquer. [Entrevista 1]

Observou-se que a visão das hierarquias de topo (atores sociais que têm o poder para tomar decisões e, por consequência, influenciar o nível de segurança da organização) e a dos restantes trabalhadores nem sempre é similar acerca dos riscos existentes nos locais de trabalho. Já vimos que o risco elétrico é algo presente em alguns locais e as suas consequências podem ser desastrosas para a segurança de quem lá trabalha. Se é verdade que a tendência ao longo dos últimos anos tem apontado para a redução de alguns riscos laborais, também é verdade que este “caminho” nem sempre é uniforme. Pontualmente surgem algumas situações que podem contrariar esta tendência. Um dos exemplos mais marcantes surgiu aquando da substituição do cabo que liga a energia elétrica da “sapata” para o comboio. [12]

A justificação para o aumento da zona de risco elétrico (em termos área/extensão) deveu-se, essencialmente, a questões de natureza económica, isto é, os cabos com revestimento isolante partiam-se com maior facilidade e exigiam uma manutenção mais assídua. O novo tipo de cabo (sem isolamento) foi colocado em todas as carruagens motoras, porque, além de mais barato, tem um “período de vida” mais longo, logo, a médio prazo exige menos recursos para executar a sua manutenção/substituição. Porém, com esta nova realidade, o risco para a segurança dos trabalhadores aumentou. Os serviços de Segurança e Saúde no Trabalho (SST) da empresa elaboraram um relatório onde foi apontado um aumento do risco de eletrização ou eletrocussão, mas a área de manutenção resolveu não atender à indicação deste serviço. Foi sugerido que se voltasse a utilizar o cabo anterior (com isolamento) ou, em alternativa, que fosse adquirido um spray isolante para revestir o novo tipo de cabo, mas nenhuma das sugestões foi aceite. Este aspeto é um dos muitos exemplos que ilustram a fragilidade dos serviços de SST perante as outras áreas da empresa, ou seja, os seus pareceres não têm um caráter vinculativo dentro da organização. Isto significa que as suas indicações nem sempre são tidas em consideração, no sentido de produzirem alterações para a melhoria das condições de trabalho.

Porque aqui está alta tensão e às vezes o pessoal não se apercebe bem, o comboio pode estar com a alta [tensão] ligada, mas o comboio desligado sem estar a trabalhar, e as pessoas podem… e agora foi realizado um trabalho, um novo trabalho, que eu acho que ainda veio a agravar mais a situação; porquê? Porque trocaram-se os cabos que vão do patim para… que liga diretamente ao comboio que recebe a alta tensão. Foi trocado esse cabo, mas esse cabo não tem proteção nenhuma, uma pessoa sem querer pode roçar ali com o braço ou com a própria camisa, aquilo é malha de aço e com a própria camisa (pode) ficar lá presa ou uma coisa assim qualquer. Acho que esse trabalho ainda veio a agravar mais a situação que estava. O risco mais grave é o risco de eletrocussão. [Entrevista 6]

Outros exemplos da fragilidade da segurança no trabalho na organização observada podem ser encontrados nos múltiplos relatórios sobre o nível insuficiente de iluminação em algumas zonas oficinais ou na avaria do equipamento sonoro para avisar que uma determinada linha irá ser colocada em tensão. Aliás, esta situação também já foi identificada no trabalho de Gonçalves (2010). De modo a que o leitor possa compreender melhor esta situação, passamos a explicar, de forma abreviada, quais os procedimentos que devem ser tomados antes de colocar em tensão alguma das linhas que se encontram dentro das oficinas (zonas eletrificadas de acesso restrito). Quando um trabalhador pretende ligar a energia elétrica em alguma das linhas existe um sistema sonoro que tem de ser previamente acionado. Conforme referimos, este sistema é iniciado com um forte sinal sonoro, emitido durante alguns segundos, ao qual se segue a indicação por voz (previamente gravada) de qual será a via que irá ser colocada em tensão. Simultaneamente são também ligadas umas luzes vermelhas ao longo de toda a linha que irá ficar sob tensão. Estes procedimentos visam alertar todos os trabalhadores sobre a colocação em tensão de uma das linhas. Aquilo que pode gerar alguma perplexidade (do ponto de vista da segurança no trabalho) é a indicação de que em uma das oficinas o sistema sonoro se encontra avariado há bastante tempo, apesar dos múltiplos relatórios dos serviços de SST; isto implica que o trabalhador que pretende ligar a corrente elétrica, em alguma das vias, tenha de gritar para avisar os seus colegas acerca daquilo que pretende fazer. Esta situação, além de bastante caricata, apresenta-se como um risco muito elevado, pois pode haver trabalhadores situados nos diques que, porventura, poderão não estar em condições de ouvir este “sinal de alerta”, devido, por exemplo, ao ruído existente na zona oficinal.

Quando os trabalhadores foram questionados sobre se considerariam os seus locais de trabalho seguros, as respostas foram bastante diversificadas. Esta heterogeneidade decorre quer das diferenças existentes entre os diversos postos de trabalho (em termos de riscos), quer da própria perceção que cada trabalhador tem acerca daquilo que considera como um padrão de segurança aceitável. Já referimos anteriormente que os níveis de tolerância ao risco variam de trabalhador para trabalhador e dependem muito das circunstâncias específicas de cada momento (Hunter, 2002). A literatura sobre as perceções de riscos indica-nos uma tendência: os riscos mais familiares parecem ser menos valorizados, enquanto os riscos menos conhecidos surgem como sobrevalorizados (Slovic, 1987). Na nossa pesquisa nem sempre conseguimos confirmar este pressuposto, dado que, por exemplo, os riscos elétricos foram amplamente identificados e valorizados pela generalidade dos trabalhadores. Pelo contrário, pudemos confirmar o desígnio teórico que aponta os acidentes ocorridos no passado como um fator que tende a ampliar a perceção dos trabalhadores sobre os riscos que estiveram na génese desses mesmos acidentes.

Apesar da heterogeneidade de respostas verificou-se que houve uma ligeira tendência para os trabalhadores considerarem os seus locais de trabalho relativamente seguros, embora, em certos casos, com algumas reservas. A título de exemplo, foram apontadas determinadas tarefas menos seguras e/ou certos locais menos seguros. A via férrea é quase sempre referida como o local onde a segurança é menor, ou seja, onde o medo de sofrer um acidente é maior, dado que existem riscos cuja gravidade é superior (mais suscetível de afetar a integridade física dos trabalhadores).

É quando eu vou à via. Por acaso a via me assusta, e eu respeito muito a via, mas acabo por estar sempre dependente de alguém lá de cima que é os meus olhos e é mais isso que me assusta, porque eu confio nos meus olhos e ter que confiar noutros olhos para segurar o comboio para eu poder ir à via… e infelizmente a gente não tem os sapatos adequados para ir à via, portanto, a culpa também é dos próprios trabalhadores. A via me assusta, assim que a gente vai à via me assusta, a via está suja, está escura, está… devia ter mais luz, lá está, voltamos à história da luminosidade. [Entrevista 9]

Anteriormente já tinha sido referido que as profissões que trabalham diretamente com o público enfrentam diversos problemas decorrentes dessa interação (Takeda, 2002). Numa empresa brasileira do setor ferroviário os trabalhadores referiram que receavam as agressões por parte dos passageiros (Seligmann-Silva, 1997). Corroborando esta ideia observou-se que o relacionamento e os conflitos com os passageiros são alguns dos aspetos mais problemáticos em determinadas categorias profissionais. Regra geral há a sensação, numa parte significativa dos trabalhadores, que a sociedade (em geral) está a tornar-se mais violenta e agressiva. E isto reflete-se numa maior dificuldade no relacionamento com o público. Além deste aspeto, no excerto de entrevista seguinte são também apontadas algumas características desadequadas das cabinas de vendas de títulos de transporte, nomeadamente, aspetos de natureza ergonómica.

Riscos? É o trabalho com o passageiro, às vezes é um bocado ingrato, não é, nós temos que sair da cabine e entrar em contacto com eles o que às vezes é complicado, não é, é que eles podem mesmo partir para violência, é complicado. Tenta-se gerir isso da melhor forma não é, mas, um dos riscos que nós temos é mesmo esse, é o contacto pessoal com a pessoa, não é, nós estamos dentro da cabine, mas também saímos de dentro da cabine, para atender uma reclamação, e uma reclamação nunca é nada agradável. […]. Em relação à segurança das bilheteiras, são os degraus, é uma coisa extraordinária, eles fazem tudo com degraus, eu não consigo perceber porquê, eu não sou engenheira, nem arquiteta, mas são os degraus, e os degraus são uma coisa que a pessoa “espalha-se” constantemente… e as cadeiras são péssimas, eu não sei como é que fazem os estudos para as cadeiras, mas ainda agora há pouquíssimo tempo mudaram as cadeiras, o espaço é curto, a bancada é baixa e puseram as cadeiras com braços, quer dizer, não dá espaço nenhum, estamos ali numa posição incorreta durante “N” de horas seguidas. [Entrevista 13]

Alguns dos nossos entrevistados manifestaram um certo receio sobre a eventual falta de qualidade do ar na via. Apesar de já terem sido feitas análises sobre a qualidade do ar nas cabinas dos maquinistas, onde os resultados não apontavam valores preocupantes nos diversos parâmetros monitorizados, existe a sensação quase generalizada de que a qualidade do ar é bastante deficiente. É verdade que a manutenção dos aparelhos de ar condicionado existentes nas cabinas do maquinista é profundamente desajustada às reais necessidades daquele posto de trabalho. Os filtros deste equipamento não são adequados e a limpeza geral é excessivamente espaçada no tempo. Para além disso, ainda existe a agravante de alguns maquinistas fumarem dentro da cabina, mesmo sendo esta situação ilegal, quer pela legislação que proíbe fumar dentro das instalações da empresa, quer pela legislação de segurança e saúde no trabalho que restringe o ato de fumar a espaços devidamente isolados e com ventilação/renovação do ar suficiente (e não é o caso desta situação). Porém, verifica-se, na prática, que o cheiro a tabaco existe, em certos casos é até bastante intenso e, como é natural, isto acaba por incomodar e prejudicar os trabalhadores, em particular os não fumadores. Esta situação também motiva algumas reclamações e conflitos entre pares, mas como a condução do material circulante é, essencialmente, uma tarefa executada por um único elemento, normalmente não existem testemunhas que confirmem quem são os “infratores”.

Nos períodos em que as temperaturas são mais amenas alguns maquinistas optam por abrir uma ou ambas as janelas da cabina; nestes casos voltamos ao “problema” da má qualidade do ar existente na via, além dos níveis de ruído aumentarem substancialmente para quem conduza com a janela aberta. Contudo, onde existem verdadeiramente problemas ao nível da qualidade do ar é nos trabalhos de retificação da via-férrea, quando é utilizado o Speno[13] ou quando são ligados dentro da zona oficinal os diversos tipos de material circulante movidos a gasóleo (como é o caso do Speno). A título de exemplo, quando questionámos um dos trabalhadores que conduz o Speno sobre se a empresa controla devidamente os riscos laborais dos trabalhadores, a resposta foi afirmativa, exceto durante a utilização deste equipamento.

Eu acho que sim, acho que sim, a única parte que acho que devia de haver um melhor controlo, não em termos de riscos momentâneos, mas ao longo curso, é pá, é o Speno. Aquilo é, como sabe, as poeiras e isso, e o barulho, mas isso é a longo prazo que isso pode causar danos, não é momentâneo. [Entrevista 15]

Um dos fatores que provoca acidentes de trabalho nos maquinistas é o manuseamento da porta da sua cabina; inclusive, alguns entrevistados referiram que, por vezes, a porta da cabina abre em andamento (eventualmente por deficiência de conceção no mecanismo de fecho). Todavia, uma das situações que mais receio provoca nesta categoria profissional está também relacionada com a abertura das portas, neste caso concreto, com as portas existentes no salão de passageiros (dado que o maquinista é agente único, ou seja, na maioria das vezes é o único elemento da empresa presente no comboio e, como é óbvio, é ele que efetua a abertura e o fecho das portas nas estações). O medo de errar no ato de carregar no botão para a abertura das portas, isto é, abrir as portas no momento errado ou do lado contrário àquele que seria esperado é algo que preocupa verdadeiramente o quotidiano dos maquinistas.

Ao contrário daquilo que acontece noutras situações dentro da empresa, aqui não existe nenhum mecanismo redundante que permita controlar uma possível falha de origem humana; não existe, por exemplo, nenhum dispositivo que iniba a abertura das portas do lado contrário ao cais de partida. Embora este seja um assunto quase tabu dentro da organização, pois “todos” sabem que este problema existe, mas ninguém toma medidas que permitam solucionar ou minimizar a reocorrência destes casos; no entanto, esta situação é bastante grave para a segurança dos passageiros. Já ocorreu algumas vezes o maquinista abrir a porta do lado contrário do cais de entrada e saída de passageiros (ou seja, o lado onde circula o outro comboio no sentido inverso), mas até ao presente sem consequências fatais. No caso de algum passageiro estar encostado à porta do comboio (e isto é frequente, por exemplo, em horas de ponta, quando os comboios transportam grande número de passageiros) este pode cair para o leito da via, em cima do terceiro carril (carril em tensão com 750V cc) ou, ainda em caso de queda, ser atropelado por outro comboio que circule em sentido inverso. Este tipo de eventos (carregar no botão errado) ocorre devido à rotinização desta tarefa (abertura e fecho das portas em todas as estações do percurso). Aliás, entre muitos outros autores, Areosa e Dwyer (2010) já identificaram que alguns acidentes ocorrem devido à rotina de algumas tarefas.

A priori agente tem o controlo, não é, mas há tarefas, como… há tarefas que, como são feitas com tanta frequência, não é, que o corpo ganha vícios, tendências, não é, e já tem acontecido o comboio parar antes da estação por qualquer motivo, há o risco da mão… o risco da mão tentar ir abrir as portas. […] eu, pá, é um dos medos que eu tenho, uma pessoa entrar direto e abrir as portas do lado errado… e é um medo… é um medo que eu pá… viro a cadeira para um lado, está ali, vira para li, vira a cadeira, conduzo às vezes com a mão… ponho esta mão aqui… é verdade, porque é um receio muito grande… que é aquela tendência da gente parar e abrir. O comboio está cheio, pode acontecer… é um problema, não é, mas aí não há, digamos, não há como dar a volta, mesmo tecnicamente, quer dizer, podia existir, mas é muito difícil. [Entrevista 17]

Eu sei qual é o perigo dessa situação, nós por vezes, nós, portanto, quando encostamos o comboio, mudamos de cabine e nós costumamos abrir a betoneira do lado, daquele lado, nessa situação nós ficamos com essa betoneira para o lado da via que está livre; há sempre a possibilidade, pronto, nós fazemos uns movimentos muito repetitivos, não é, e há sempre a possibilidade da pessoa ir lá e abrir as portas do lado contrário e algum passageiro eventualmente cair. [Entrevista 19]

Numa das zonas oficinais onde é efetuada a inspeção do material circulante os trabalhadores identificam determinados riscos que podem afetar a sua segurança. Os riscos mais referenciados estão relacionados com quedas, quer por obstáculos diversos no piso (fixos ou móveis) e que se encontram dispersos neste local, quer nos diques, ou mesmo em trabalhos em altura. Em determinadas situações a substituição dos faróis (colocados na zona frontal do comboio) implica que os trabalhadores estejam a fazer uma espécie de equilíbrio em cima do carril, de modo a conseguir aceder a este dispositivo. Outra situação referida é a manutenção das escovas limpa-vidros da frente do comboio; embora esta seja uma tarefa pontual, acaba por ser um trabalho que envolve alguns riscos, visto que tem de ser executado com recurso a um escadote (devido às próprias características do local). Os trabalhadores que executam esta tarefa identificaram esta situação como um dos principais riscos da sua atividade.

Um dos aspetos mais problemáticos para a maioria dos trabalhadores surge quando ocorre a queda à via de algum passageiro e o consequente atropelamento pelo material circulante. [14] Apesar de estas situações não serem frequentes, acontecem pontualmente. Quando estes casos sucedem podem estar envolvidos os trabalhadores presentes na estação (operadores de linha e/ou agentes de tráfego), o próprio maquinista que atropelou o passageiro, os inspetores de movimento e, se for caso disso, os próprios trabalhadores de piquete (normalmente eletromecânicos). Em certas situações chega a ser necessário levantar o comboio para permitir a retirada do cadáver, e este trabalho é realizado pelo piquete (o excerto seguinte de entrevista é expresso por um dos trabalhadores que realiza turnos de piquete). Nestas situações a circulação pode estar suspensa durante várias horas (com todos os transtornos que isso acarreta para os passageiros). Nas conversas informais que fomos mantendo com os trabalhadores, bem como nas próprias entrevistas, foram diversos os maquinistas que referiram que o seu maior medo seria ou bater com o comboio ou atropelar algum passageiro. Existem relatos na empresa de trabalhadores que ficaram bastante afetados, ao nível psicológico, por terem presenciado este tipo de situações.

No meu caso pessoal não tenho assim grandes problemas. Nem sei se é por hábito, já fui lá várias vezes. Mas já vi companheiros meus ficarem brancos, em situações, portanto… e, aliás, até se desviam em situações quando chegam ao pé do corpo, desviam-se, pronto. Inconscientemente, por terem… por si ou por… várias questões psicológicas e, pronto, afastam-se um bocadito e outros avançam, como é natural; [o trabalho] tem que ser feito. Mas há situações assim um bocado complicadas. [Entrevista 2]

Conforme se pode verificar pela exposição anterior, os riscos existentes na organização pesquisada são muito diversificados. Alguns são de extrema gravidade, embora outros sejam algo residuais ou pouco significativos. Todavia, é pertinente ter em conta que as diversas situações de risco podem interagir em simultâneo durante a realização da mesma tarefa (e isto amplia o próprio nível de risco). Por exemplo, quando são analisados os níveis de ruído, o tipo de iluminação ou a pressão para executar uma tarefa com maior rapidez, se estes riscos forem analisados isoladamente acabamos por não ter em consideração as reais condições e circunstâncias de determinados tipos de trabalho (caso estes fatores de risco estejam todos presentes em simultâneo). Mas é relevante lembrar que nos locais de trabalho existem normalmente vários riscos em simultâneo.

 

Considerações finais

Os estudos sobre as perceções de riscos dos trabalhadores podem revelar muitos dados importantes sobre os riscos organizacionais. Na verdade, a análise das perceções de riscos pode traduzir-se numa enorme vantagem para as organizações, visto que a recolha desta informação permite compreender como é que os trabalhadores veem os riscos aos quais eles próprios estão sujeitos (esta visão é normalmente diferente daquela que é partilhada pelos especialistas em segurança ou pelas hierarquias superiores). Do ponto de vista da prevenção isto abre um enorme leque de possibilidades para que sejam identificados alguns “novos” riscos, por exemplo, não identificados pelos técnicos de segurança. Permite também compreender quais os riscos que os trabalhadores deveriam ter identificado e que porventura não o fizeram, talvez por falta de formação e/ou informação. Permite ainda planear as estratégias de prevenção de riscos profissionais, tendo em conta os riscos não percecionados pelos trabalhadores, oferecendo-lhes, por exemplo, formação profissional (este fator pode, por exemplo, ajudar a reduzir o número de acidentes).

O quadro 1 pretende apresentar de forma sintética e sistematizada quais foram os principais riscos percecionados pelos trabalhadores durante a investigação. Importa destacar que os riscos são distribuídos de forma desigual no mundo do trabalho e que as perceções dos trabalhadores estão relacionadas (tal como seria expectável) com os riscos inerentes à sua própria atividade laboral, embora estas mesmas perceções estejam longe de ser “perfeitas”.

 

 

As perceções de riscos dos trabalhadores, dentro da organização observada, não são algo que possa ser considerado uniforme, pelo contrário, estas perceções são até bastante heterogéneas. Os riscos indicados como mais graves por parte dos trabalhadores estão relacionados com trabalhos em que é utilizada energia elétrica de alta tensão, bem como com a realização de diversas tarefas na via-férrea (em túnel) sem a paragem da circulação de comboios. Foi também identificado o risco de esmagamento de alguma parte do corpo provocado pela movimentação das agulhas. Contudo, este último, nem todos os trabalhadores o conseguiram identificar. Nas áreas oficinais foram percecionados riscos de quedas em altura e problemas relacionados com iluminação, em determinados tipos de trabalho. Na área de exploração os trabalhadores que contactam diretamente com o público referiram os conflitos inerentes que essa relação pode acarretar (risco de agressão física ou verbal), além de riscos ergonómicos do seu posto de trabalho. Os maquinistas detetaram que a rotina do seu trabalho é suscetível de potenciar o designado erro humano.

Verificámos que existe uma certa tendência para os trabalhadores mais jovens revelarem maior sensibilidade para compreender e tentar controlar os fatores de risco dos seus locais de trabalho. Um dos exemplos que ilustra esta situação é o facto de utilizarem com maior frequência os equipamentos de proteção individual disponibilizados pela empresa, por comparação com os seus pares mais velhos. De certo modo, podemos afirmar que houve uma mudança cultural dentro da empresa, mas esta situação apenas se torna visível se considerarmos um período de tempo relativamente longo. Seguramente que serão vários os motivos que contribuem para esta “nova” visão dos trabalhadores mais jovens sobre como lidar com os seus riscos ocupacionais. Mas se os trabalhadores mais jovens parecem estar mais despertos para as questões da sua própria segurança, verifica-se que lhes falta a experiência e os saberes dos seus pares mais velhos. Neste caso, talvez possamos afirmar que existe um certo equilíbrio no âmbito das questões da segurança ocupacional, dado que a inexperiência dos mais jovens tende a ser compensada com uma nova cultura de prevenção.

Observou-se também que uma parte significativa dos trabalhadores conseguiu identificar os principais riscos das suas tarefas, embora, por vezes, algumas destas perceções possam surgir algo “enviesadas ou distorcidas”. [15] Mas, durante a pesquisa, constatou-se que as perceções de riscos dos trabalhadores são para eles próprios absolutamente “reais e objetivas”, e que estes tendem a atuar mediante essas mesmas perceções. Assim, integrar as diferentes perceções de riscos dos trabalhadores nas análises de riscos é um passo fundamental para o sucesso de um programa de gestão de riscos nas organizações. Em consonância com esta ideia, talvez a grande “mais-valia” da pesquisa aqui apresentada tenha sido a compreensão do quanto os saberes dos trabalhadores podem ser úteis para a gestão de riscos nas empresas, bem como para a prevenção de acidentes.

 

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Receção: 14 de outubro de 2013. Aprovação: 16 de janeiro de 2014

 

Notas

[1] Contudo, este aspeto não é totalmente consensual. Alguns autores defendem que pode não existir uma diferença tão marcante entre o conhecimento de especialistas e leigos (Lindell, 1996). Segundo Smallman (1996) podem existir visões contraditórias nesses dois tipos de conhecimento; porém, essas diferenças talvez não sejam tão pronunciadas como seria expectável à partida, visto que ambas as formas de conhecimento resultam de interpretações e julgamentos humanos (os quais revelam sempre os seus limites). Granjo (2006: 1173) sugere ainda que em determinadas situações a visão dos trabalhadores sobre os riscos laborais pode ser considerada “mais científica” do que a visão dos peritos.

[2] Ao longo deste artigo irão aparecer expressões como risco no local de trabalho, riscos ocupacionais, riscos em contexto organizacional, riscos no trabalho, riscos laborais, ou riscos dos trabalhadores, as quais devem ser consideradas, no essencial, como sinónimos, dado que na literatura desta temática não existe uma uniformização conceptual.

[3]De certo modo podemos afirmar que os riscos são uma espécie de antecâmara para a ocorrência de acidentes (Areosa, 2009a). Os riscos estão direcionados para aspetos futuros e a sua definição pode ser entendida a partir das seguintes perspetivas: (1) abordagem quantitativa — associada à probabilidade de ocorrência de um evento; (2) abordagem qualitativa — associada à possibilidade incerta de ocorrência de um qualquer evento (não quantificável). Em sentido etimológico, a noção de acidente significa qualquer evento não planeado, fortuito, imprevisto ou fruto do acaso. Na linguagem do senso comum um acidente é entendido como algo nefasto, maléfico e aleatório que provoca danos ou prejuízos.

[4] A palavra heurística é originária do Grego heuriskein, que significa encontrar ou descobrir. Atualmente, este termo aplica-se para obter a simplificação (cognitiva) de regras em processos complexos de avaliação, com vista à tomada de decisões. Segundo Kahneman e Tversky (1979), verifica-se uma certa tendência para as pessoas reduzirem determinadas questões complexas a uma questão mais simples: quantos casos conhecem de situações similares? Este mecanismo psicológico de simplificação de raciocínio explica o facto de existir uma certa tendência para sobrestimar a ocorrência de acontecimentos conhecidos e subestimar a ocorrência de acontecimentos de que não temos memória ou que nunca ocorreram (mas podem ocorrer). Em suma, pode-se definir as heurísticas como um mecanismo “simplificador” para questões complexas, mas cujos outputs podem revelar-se enviesados. Regra geral, as heurísticas cumprem bem o seu papel, permitem-nos alcançar eficácia nos desempenhos quotidianos, pois, entre outras coisas, evitam que possamos ficar “bloqueados”(Kahneman, 2012). Quando tomamos decisões no seio de cenários de risco utilizamos, diversas vezes, as nossas crenças, as nossas perceções, os nossos saberes e, em certos casos, julgamos a realidade de forma simplificada (esquecendo que ela é normalmente complexa). Voltamos a sublinhar a ideia de que as simplificações cognitivas — heurísticas — são na maior parte das vezes bastante úteis, mas em determinadas situações podem conduzir-nos a cometer erros graves (Kahneman, 2012) e quando nos esquecemos disso elas tornam-se perigosas (Taleb, 2012).

[5] A terminologia utilizada para definir os efeitos nocivos da atividade clínica e terapêutica sobre os doentes é designada por Illich (1977) “iatrogénese clínica”.

[6] Dentro desse âmbito vejamos a seguinte afirmação de Carlos Ferreira: “Para Luc Boltanski as atitudes dos indivíduos e grupos face à doença dependem, essencialmente, do lugar de classe que estes ocupam na estrutura social. A maior incidência e o tratamento tardio de muitas doenças estão subordinados à precariedade das condições sociais, à dificuldade de acesso aos serviços médicos e também à impossibilidade de escutar o corpo, “o grito dos órgãos” pelas classes populares. Esta impossibilidade inibe a expressão das sensações físicas e a perceção de sintomas anunciadores da doença. Esta menor escuta do corpo está ligada à utilização mais intensiva do próprio corpo, às imposições económicas e à vida do dia a dia que torna difícil o abandono do trabalho. Assim, a doença para as classes populares é um fenómeno ”brutal” que torna impossível a atividade quotidiana normal (Ferreira, 1996: 14).

[7] A tolerância ao risco pode ser definida como a “quantidade” de risco que cada indivíduo ou grupo está disposto a aceitar na procura de um dado objetivo. Hunter (2002) verificou que os pilotos de aviação estão dispostos a correr mais riscos em determinadas situações específicas (quando em condições normais não correriam), como, por exemplo, no regresso a casa para um período de férias na época do Natal. O mesmo autor sugere que os níveis mais elevados de perceções de riscos estão relacionados com baixos níveis de tolerância aos riscos, ou seja, os pilotos que se envolvem em eventos de maior grau de perigosidade apresentam “menores” perceções de riscos e níveis mais elevados de tolerância aos riscos.

[8] Dentro das múltiplas categorias em que se pode classificar a noção de risco, poder-se-á subdividi-lo em três formas distintas, a saber: os comportamentos de risco, os grupos de risco e, finalmente, as situações de risco. “Como tem sido referido, comportamento de risco refere-se ao que os indivíduos fazem por sua iniciativa. Grupo de risco refere-se a um grupo com determinadas características. Parece um conceito adequado para qualificar os portadores de determinada anomalia genética, acerca da qual os indivíduos pouco podem fazer. Situação de risco é um conceito adequado para exprimir uma situação transitória, influenciada por múltiplos fatores: é um termo mais adequado a uma perspetiva sistémica” (Ribeiro, 1998: 232).

[9] Autores como Douglas e Wildavsky (1982) e Granjo (2004) também partilham esse ponto de vista.

[10] No total foram realizadas 24 entrevistas distribuídas do seguinte modo pelas categorias profissionais da empresa: eletromecânico (7 entrevistas); eletricista (2 entrevistas); maquinista (4 entrevistas); mestre (2 entrevistas); agente de tráfego (3 entrevistas); técnico auxiliar (1 entrevista); oficial de via (1 entrevista); inspetor de movimento (1 entrevista); e técnico de eletrónica (3 entrevistas). Nesta divisão por categorias profissionais há ainda a salientar que os trabalhadores pertencentes à mesma categoria podem desempenhar funções muito distintas na empresa, dependendo da área onde estejam colocados. Este aspeto é particularmente notório no caso dos eletromecânicos, dado que esta categoria profissional exerce funções em áreas muito distintas da organização.

[11] A descida de trabalhadores à via eletrificada durante o período de exploração pode implicar a movimentação de trabalhadores no túnel — por exemplo, entre estações — sem que seja suspensa/parada a circulação de comboios.

[12] O material circulante apresenta composições motoras e não motoras, ou seja, respetivamente com e sem capacidade de locomoção autónoma. Nas carruagens motoras existe uma pequena parte, junto à zona da sapata, que apresenta diversos componentes não isolados, isto é, suscetíveis de estarem em tensão. Esta parte do material circulante é particularmente perigosa, quer em exploração, quer em contexto oficinal, pois qualquer pequeno lapso ou falha pode levar a que um trabalhador toque acidentalmente em algum componente em tensão; e esta situação já ocorreu algumas vezes. A sapata é uma espécie de patim que assenta no carril de energia ou terceiro carril e que permite transmitir energia ao comboio para circular. A ligação da sapata para outros componentes do comboio é feita através de um cabo, inicialmente revestido comum material isolante, e que foi substituído por outro cabo não isolado, ou seja, aumentaram os locais de possível contacto entre os trabalhadores e as partes não isoladas (eletricamente) do comboio.

[13] Quando este equipamento é utilizado, apesar de todos os trabalhadores estarem dentro da cabina, o cheiro e as poeiras são tão intensas que mesmo ali é difícil respirar sem utilizar uma máscara protetora. A nossa presença no terreno poderia, aparentemente, constituir-se como um fator dissuasor para certos comportamentos de risco, no entanto alguns trabalhadores (neste caso, oficiais de via e técnicos auxiliares) recusam-se a utilizar a máscara, alegando que já estão habituados àquela tarefa e que ela só é executada pontualmente, logo, não lhes fará “grande mal”. A literatura sobre riscos ocupacionais já identificou que quando os riscos não produzem efeitos imediatos tendem a ser desvalorizados, dado que existe um desfasamento entre o momento da exposição aos riscos e as consequências dessa mesma exposição (Arezes, 2002; Areosa, 2011); este fenómeno é designado severidade dissipada.

[14] A queda de passageiros à via aquando da passagem do comboio, normalmente, deve-se a tentativas de suicídio (regra geral, “bem-sucedidas”, se nos é permitido utilizar esta expressão num ato tão dramático).

[15] É verdade que determinado tipo de riscos podem tornar-se ilegíveis para a maioria dos trabalhadores, particularmente os riscos demasiado técnicos ou ainda alguns riscos que não são percecionados diretamente pelos nossos sentidos. Referimo-nos em concreto a certos riscos pouco conhecidos ou “invisíveis”, cuja perceção pelo saber leigo pode encontrar dificuldades cognitivas. Designámos esta condição como uma certa “iliteracia” pública para a perceção ou avaliação de determinados tipos de riscos (Areosa, 2012b). Foi neste contexto que Adams e Thompson (2002) efetuaram uma distinção entre riscos percecionados diretamente e riscos percebidos através da ciência.

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