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Sociologia, Problemas e Práticas

versão impressa ISSN 0873-6529

Sociologia, Problemas e Práticas  no.88 Lisboa set. 2018

https://doi.org/10.7458/SPP20188810826 

RECENSÃO

Justiça juvenil. A lei, os tribunais e a (in)visibilidade do crime no feminino [João Pedroso, Paula Casaleiro e Patrícia Branco, 2017, Porto, Vida Económica]

 

Sílvia Gomes*

* Investigadora de pós-doutoramento (SFRH/BPD/102758/2014), CICS. Nova Universidade do Minho, Braga, Portugal. Professora auxiliar convidada, Instituto Universitário da Maia, Maia, Portugal. E-mail: silvia.mf23@gmail.com  

 

A obra Justiça Juvenil. A Lei, os Tribunais e a (In)Visibilidade do Crime no Feminino consiste numa compilação de seis artigos da autoria de investigadores/as nacionais e internacionais, de diferentes áreas do saber (como a sociologia, a antropologia e o direito), que se dedicam ao tema da justiça juvenil no feminino. A organização dos textos foi muito bem orquestrada, permitindo a coesão interna da obra, como expõem os/as organizadores/as na introdução geral, “do geral (teoria) para o particular (empiria) e do europeu para o nacional” (p. 19).

No primeiro artigo, Yves Cartuyvels faz uma análise das “mutações da justiça de menores na Europa, desde o final do século XX até aos nossos dias” (p. 26), discutindo, por um lado, o modelo Welfare da justiça e as suas inflexões contemporâneas e, por outro lado, os diferentes fatores que interferiram nas políticas judiciárias em matéria tutelar, tais como: (i) as influências mediáticas que obscureceram a imagem dos jovens, transformando-os em seres perigosos, (ii) o papel paradoxal dos direitos humanos na agenda política, que fez com que houvesse uma escalada punitiva pela maior responsabilização do menor, e (iii) o movimento das vítimas e as medidas de terceira via, que endureceram a legislação a fim de responder às urgências político-mediáticas. Depois desta reflexão, o autor conclui que existe uma “hibridação” das políticas da justiça de menores, pelo cruzamento do desenvolvimento de estratégias gestionárias de natureza neoliberal, do endurecimento punitivo de orientação conservadora, das resistências à cultura de estado providência e da emergência de uma racionalidade restaurativa.

Passando para uma análise das políticas judiciárias em matéria tutelar no contexto nacional, no segundo artigo, Anabela Miranda Rodrigues apresenta, num primeiro momento, de forma bastante clara e objetiva, o modelo educativo português, a Lei Tutelar Educativa, para depois refletir sobre a sua aplicabilidade aos problemas atuais da delinquência juvenil. Neste campo destaca dois problemas: (i) as condições da aplicação prática da lei, apontando, por um lado, a falta de resposta, na prática, à possibilidade de articulação de diferentes sistemas de intervenção, de proteção e de justiça, ao longo de todo o processo e, por outro lado, (ii) a aplicação de uma medida de internamento e as reais condições para alcançar a sua finalidade (educação para o direito).

Ainda que continuando na mesma linha de reflexão teórica, os terceiro e quarto artigos, da autoria de Vera Duarte e Maria João Leote de Carvalho, respetivamente, centram-se com maior acuidade nas questões das raparigas no sistema de justiça juvenil. Vera Duarte trata das preocupações teóricas e dos desafios práticos colocados pelo aumento da visibilidade na cena da delinquência e reflete sobre a importância do género na intervenção no sistema de justiça juvenil, colocando em diálogo contributos internacionais e nacionais. De “imorais a fora do controlo” (p. 79), a autora mostra-nos como historicamente existem continuidades na forma como se pensa a rapariga delinquente, tendo implicações no modo como o sistema de justiça encara e intervenciona este corpo. Defende, portanto, como urgente, mesmo que complexo e exigente, começar por fazer um “exame crítico dos nossos próprios pressupostos e estereótipos sobre as raparigas no sistema de justiça juvenil” (p. 83).

No mesmo sentido, Maria João Leote de Carvalho defende que não é possível debater a delinquência e o género e como os mesmos se veem refletidos na justiça juvenil sem falar “das dinâmicas sociais e de uma multiplicidade de desafios e riscos que influem no desempenho de papéis sociais e na construção identitária de género durante a infância e a juventude” (p. 94). Para ilustrar este debate, recorre a casos práticos, de diferentes investigações que desenvolve(eu) e conclui, num tom crítico e incisivo, que a delinquência não pode ser dissociada da responsabilidade social que comunidades e estado tendem (ou não) a assumir no decorrer da socialização das crianças e jovens, defendendo que “as desigualdades de género acabam por ser promovidas e até reforçadas pela ação do Estado na negação de direitos sociais e jurídicos básicos” (p. 121).

Jacinthe Mazzocheti, de seguida, apresenta uma reflexão em torno de um estudo de caso de tipo etnográfico, desenvolvido na Bélgica com raparigas em centro de acolhimento, ou que aí tinham estado, por terem praticado factos de natureza delinquente. A autora foca-se quer na “questão da judicialização dos comportamentos de risco através do tratamento diferenciado dos casos” (p. 130), quer nos efeitos desta judicialização, mostrando que a institucionalização tem efeitos marcantes nas trajetórias futuras das jovens que estiveram institucionalizadas. Refira-se que a autora nos traz uma riqueza muito grande em termos de histórias de vida de raparigas que elucidam sublimemente a interseção entre percursos de vitimação e de transgressão, assim como o estigma indelével que marca as raparigas institucionalizadas. O que nos remete para a triangulação, que nem sempre é trabalhada no âmbito dos estudos do crime e da justiça e que a autora aponta, entre “violências sofridas, praticadas (contra si ou contra outrem) e percebidas (em especial pelas instituições públicas e seus atores)” (p. 137).

Depois deste debate interdisciplinar e agregado sobre delinquência e justiça juvenil no feminino, o sexto e último artigo debruça-se de forma extensa sobre os resultados empíricos do projeto de investigação “Desvio e crime no feminino: da invisibilidade dos factos, seleção e percursos no sistema judicial”, do qual os/as organizadores/as desta obra são investigadores/as. João Pedroso, Paula Casaleiro e Patrícia Branco, após uma revisão histórica muito importante das respostas judiciais à delinquência juvenil em contexto nacional, debruçam-se sobre os resultados da investigação, tentando compreender “as eventuais (des)igualdades de género na seleção de jovens, no desempenho e nas respostas do sistema de justiça tutelar relativamente ao desvio criminal, no contexto de todas as desigualdades sociais e económicas” (p. 159). Os autores concluem: (i) a existência de uma estrutura piramidal do processo de seleção dos jovens, sendo esta seleção realizada com base na classe e no género (a maioria dos jovens selecionados pelo sistema e que chegam ao topo da pirâmide são rapazes oriundos de famílias pertencentes a classes sociais mais pobres); (ii) a semelhança de perfil entre rapazes e raparigas que entraram no sistema com um tipo de crime idêntico; (iii) a observação de “um duplo preconceito no sistema de justiça juvenil português” (p. 199): por um lado, as raparigas recebem em geral um tratamento mais benevolente e, por outro lado, a medida mais gravosa – internamento em centro educativo – é proporcionalmente mais aplicada às raparigas do que aos rapazes.

Estes artigos, de forma integrada, remetem para um conjunto de observações que, por sua vez, permitem lançar pistas de reflexão e debate, dentro e fora da academia. A primeira prende-se com a mostra estatística da delinquência juvenil. Nos seus textos, todos/as os/as autores/as afloraram o que mostram (ou o que não mostram) as estatísticas, mas também as contextualizaram e enquadraram para a compreensão do fenómeno. Não obstante as estatísticas serem fundamentais para nos mostrar a abrangência do fenómeno, não podemos descurar o facto de estas serem construídas socialmente e, consequentemente, visibilizarem ou ocultarem o fenómeno, dependendo de transformações sociais ou processos sociais que estejam vigentes na sociedade. Assim, as estatísticas estão dependentes de diversas dinâmicas sociais, e isso faz com que espelhem, por exemplo, uma determinada alteração legislativa, os instrumentos que são utilizados para a recolha dos dados ou um determinado pânico moral em torno de uma representação mediática exagerada relativamente a determinados grupos entendidos como perigosos (Gomes, 2013).

Com efeito, é de extrema importância considerar o campo mediático na compreensão de qualquer fenómeno, e o da delinquência juvenil não é diferente, havendo várias investigações que atribuem a visibilidade social da delinquência juvenil à cobertura mediática do fenómeno. Repescando o que vai sendo apontado na obra, a representação e a visibilidade mediáticas levam à amplificação mediática da insegurança urbana perpetrada por jovens (Anabela Miranda Rodrigues), jovens delinquentes femininas tão ameaçadoras quanto os seus homólogos masculinos (Vera Duarte), criando uma visão estereotipada, estigmatizante, redutora da complexidade e multidimensionalidade que a mesma encerra (Maria João Leote de Carvalho), que tem um peso significativo na transformação da imagem dos jovens e do desvio juvenil e influencia os atores políticos, podendo, inclusivamente, promover campanhas político-mediáticas com vista ao endurecimento de práticas punitivas pela ineficácia observada das práticas educativas (Yves Cartuyvels).

Os impasses e as tensões constantes entre o modelo punitivo e o modelo educativo, nas políticas, mas também nas práticas das instituições e dos seus atores, estão presentes de forma direta ou indireta nos contributos desta obra. Maria João Leote de Carvalho acautela sobre a tendência crescente para a punição, assente numa orientação de tolerância zero, que tem crescido na Europa, para um controlo social e judicial mais restritivo sobre crianças e jovens. Outros autores, como Yves Cartuyvels, Jacinthe Mazzocheti, João Pedroso, Paula Casaleiro e Patrícia Branco, apontam a hibridação das políticas de justiça de menores, entre o punitivo, o educativo e o restaurativo; o que, no limite, nos envia para ambiguidades e reconfigurações várias que pautam diferentes espaços e atores, em diversos níveis: individuais, interacionais, institucionais e estruturais (ver Silva, 2005).

Um elemento que aparece mascarado na obra, mas que não é trabalhado pelos/as autores/as de forma direta, é a importância do uso de uma abordagem interseccional na análise do fenómeno da delinquência juvenil feminina. Vera Duarte admite que a ideologia tem guiado a teoria, influenciado as práticas e contribuído para a (in)visibilização de determinados grupos sociais com base no género, classe social, raça/etnia. Refere ainda que a indústria de reintegração torna periféricas as características excludentes das condições objetivas de vida, condições estas, acrescento eu, que não estão desligadas das suas diferentes pertenças identitárias. Maria João Leote Carvalho reforça que, para compreender a delinquência juvenil feminina, temos de compreender as socializações diferenciadas, os papéis sociais e a construção identitária de género durante a infância e juventude. Jacinthe Mazzocheti e João Pedroso, Paula Casaleiro e Patrícia Branco revelam e discutem a seleção do sistema de justiça e a presença sobrerrepresentada de determinados jovens de meios desfavorecidos. Como afirma Jacinthe Mazzocheti: “os jovens imigrantes combinam os estigmas da pobreza execrável e da origem repreensível” (p. 133). Portanto, as pertenças identitárias de género e idade, associadas a outras pertenças como classe social, etnia, nacionalidade, saúde mental, entre outras, são centrais enquanto elementos analíticos para a compreensão da delinquência juvenil no geral e da delinquência juvenil feminina em particular, e do sistema de justiça juvenil de uma forma mais fina (ver Duarte e Gomes, 2015).

Por fim, é fundamental fazer aqui uma destrinça conceptual entre a prática criminal e a delinquente. Em Portugal, do ponto de vista jurídico, só a partir dos 16 anos de idade se considera que uma pessoa reúna condições para responder no sistema penal pelos seus atos. Qualquer infração cometida até esse limite etário, mesmo que à luz da lei penal pudesse vir a ser qualificada como crime, apenas pode ser objeto de uma intervenção que conduza ao estabelecimento de medidas de proteção e educativas, nunca podendo a criança ou jovem ser submetido a julgamento criminal. Deste modo, em contexto nacional não é possível falar de criminalidade juvenil a não ser para atos praticados por maiores de 16 anos, idade em que já são considerados criminalmente imputáveis (ver esclarecimento de Duarte e Carvalho, 2015: 103).

Antes de concluir, sublinha-se o facto de esta obra surgir numa comunidade académica – o Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra – onde a reflexão na área da Sociologia do Direito tem sido vincada e frutífera. Importa ainda referir que esta breve incursão e reflexão sobre a obra está longe de fazer jus à riqueza dos seus textos e cada leitor/a que se embrenhe nesta obra levantará, certamente, outras reflexões.

 

Referências bibliográficas

Duarte, Vera, e Maria J. L. Carvalho (2015), “Da delinquência juvenil: contributos para a problematização de um conceito”, em Manuela I. Cunha (org.), Do Crime e do Castigo – Temas e Debates Contemporâneos, Lisboa, Mundos Sociais, pp. 99-112.

Duarte, Vera, e Sílvia Gomes (2015), “A (des)construção de uma história única: cruzando crime, género, classe social, etnia e nacionalidade”, Psiquiatria, Psicologia & Justiça, 8, pp. 139-189.

Gomes, Sílvia (2013), “A construção do pânico moral sobre os ciganos e os imigrantes na imprensa diária portuguesa”, revista Latitude, 7 (2), pp. 187-217.

Silva, Manuel Carlos (2005), “Desigualdades e exclusões sociais: olhares sociológicos cruzados”, Configurações, 1, pp. 7-14.

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