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Sociologia, Problemas e Práticas
versão impressa ISSN 0873-6529
Sociologia, Problemas e Práticas no.89 Lisboa jan. 2019
https://doi.org/10.7458/SPP2019899958
ARTIGO ORIGINAL
A vida sexual sob prova: impactos da vida profissional na construção da experiência sexual
Sex life under fire: impacts of working life on the construction of the sexual experience
La vie sexuelle à l’épreuve: impacts de la vie professionnelle sur la construction de l’expérience sexuelle
La vida sexual bajo prueba: impactos de la vida profesional en la construcción de la experiencia sexual
Verónica Policarpo*
* Investigadora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. E-mail: veronica.policarpo@ics.ulisboa.pt
RESUMO
De que forma a vida sexual dos portugueses é afetada pela vida profissional? Este artigo tenta responder a esta questão a partir de 35 biografias sexuais, recolhidas numa pesquisa mais alargada sobre sexualidade na sociedade portuguesa. Partindo dos conceitos de experiência sexual e prova social, tenta-se compreender como os indivíduos articulam o que lhes acontece nestas duas esferas da vida (profissional e sexual), construindo a sua experiência a partir de três lógicas de ação: integração, estratégia e subjetivação. Os resultados apontam para a diversidade de modalidades de construção da experiência, visível em três plataformas: as relações entre a agenda profissional e a agenda sexual; a gestão da informação, em ambiente profissional, a respeito de experiências fora da heteronorma; e os impactos na vida sexual da mobilidade geográfica decorrente da vida profissional. O sujeito sexual constrói-se assim na tensão entre a adesão a papéis familiares, profissionais e sexuais; na gestão de recursos, oportunidades e estratégias nestes campos da vida; e no maior ou menor distanciamento reflexivo em relação aos mesmos, conquistando para si um espaço emancipatório de identidade.
Palavras-chave: experiência sexual, vida profissional, sexualidade, sexualidade em Portugal, provas sociais.
ABSTRACT
How is the sexual life of the Portuguese affected by their professional life? This article addresses this question drawing on 35 sexual biographies, collected during a wider research about sexuality in Portuguese society. Drawing on the concept of sexual experience and social proofs, the article tries to understand how individuals articulate their experiences in these two spheres of personal life (professional and sexual), building their sexual experience from three different logics of action: integration, strategy and subjectivation. Results highlight the diversity of modalities in the construction of experience, visible in three platforms: the relations between the professional agenda and the sexual agenda; the management of information regarding experiences beyond the heteronorm; and the impacts of geographical mobility, due to professional reasons, on sexual life. The sexual subject is thus constructed in the tension between how individuals adhere to social roles (family, professional and sexual); how they manage their resources, opportunities and strategies in these spheres of life; and the way they distance themselves reflexively from the latter, conquering for themselves an emancipatory space of identity.
Keywords: sexual experience, professional life, sexuality, sexuality in Portugal, social proofs.
RÉSUMÉ
De quelle manière la vie sexuelle des portugais est-elle affectée par leur vie professionnelle? Cet article a pour but de répondre à cette question à partir de 35 biographies sexuelles, recueillies au cours d’une recherche approfondie sur la sexualité des portugais. En partant des concepts d’expérience sexuelle et d’épreuve sociale on essaie de comprendre comment les individus articulent les évènements de ces deux domaines de leur vie (professionnelle et sexuelle), en construisant son expérience sexuelle à partir de trois logiques d’action: intégration, stratégie et subjectivation. Les résultats soulignent la diversité des modalités de construction de l’expérience, visibles sur trois plates-formes: la relation entre l’agenda professionnel et l’agenda sexuel; la gestion d’information dans l’ambiance professionnelle, concernant des expériences en dehors de la hétéronorme; et les impacts de la mobilité géographique, résultant de la vie professionnelle, dans la vie sexuelle. Le sujet sexuel se construit, donc, dans la tension entre l’adhésion à différents types de rôles familiers, professionnels et sexuelles; la gestion des ressources, opportunités et stratégies dans ces domaines de la vie; et la distance plus ou moins grande et réflexive face à ces rôles, qui permet à l’individu de gagner pour lui-même un espace émancipateur d’identité.
Mots-clés: expérience sexuelle, vie professionnelle, sexualité, sexualité au Portugal, épreuves sociales.
RESUMEN
¿Cómo es la vida sexual contemporánea afectada por la vida profesional? En este artículo se intenta dar respuesta a esta pregunta a partir de 35 biografías sexuales, en una investigación más amplia sobre la sexualidad en la sociedad portuguesa. Basado en los conceptos de experiencia sexual y prueba social, trata de entender cómo los individuos articulan los eventos de estas dos esferas de la vida (profesional y sexual), y como construyen su experiencia sexual a partir de tres lógicas de acción: la integración, la estrategia y la subjetivación. Los resultados enseñan la diversidad de formas de construcción de la experiencia, visible en tres plataformas: las relaciones entre la agenda profesional y la agenda sexual; la gestión de la información en experiencias fuera de la heteronorma; y los impactos de la movilidad derivada de la vida profesional en la vida sexual. El sujeto sexual se construye así en la tensión entre la adhesión a roles familiares, profesionales y sexuales; la gestión de recursos, oportunidades y estrategias en estos campos de la vida; y la mayor o menor distancia reflexiva en relación con esos roles, ganando para sí un espacio emancipador de identidad.
Palabras-clave: experiencia sexual, vida profesional, sexualidad, sexualidad en Portugal, pruebas sociales.
Introdução
A integração no mundo profissional constitui um dos modos mais relevantes de construção da experiência, nas sociedades contemporâneas. Do século XIX para o XX, as sociedades ocidentais deixaram de centrar os seus modos de rendimento na propriedade, tendo passado a centrá-los no assalariamento (nomeadamente a partir da industrialização, no século XIX e, no século XX, da terciarização). No modelo capitalista, as relações laborais caracterizam-se por uma intensa competição, que marca a experiência do indivíduo em várias dimensões. Neste artigo, explora-se o impacto desta centralidade da vida profissional na sexualidade dos indivíduos.
O artigo foca-se nos grupos profissionais mais escolarizados e qualificados, que protagonizam trajetórias de grande investimento profissional, nomeadamente no início da carreira. A transição para o primeiro emprego e a primeira etapa da carreira tornam-se particularmente relevantes para compreender as variações que o comportamento sexual pode assumir nesta fase da trajetória. Acresce que esse momento se articula com outros importantes turning points das trajetórias de vida contemporâneas, como sejam a individualização em relação ao grupo doméstico de origem, ou a entrada em conjugalidade. É também conhecida a tendência de adiamento dos projetos de conjugalidade e parentalidade nesta fase da vida (Wall et al., 2013; Cunha et al., 2016). Mas qual o impacto destas provas da vida profissional na vida sexual dos indivíduos? E não só no momento de início da carreira, mas também ao longo do seu desenvolvimento? Como gerem os indivíduos as múltiplas exigências a que estão sujeitos, integrando-as na sua experiência da sexualidade?
A hipótese avançada neste artigo é a de que o modo como os indivíduos se inserem na vida profissional contribui para compreender o modo como vivem a sexualidade, na medida em que é o trabalho profissional que garante, na grande maioria dos casos, a independência económica necessária à individualização das relações sociais, à separação do indivíduo dos seus círculos sociais mais restritos e tradicionais (Simmel, 1908). Sendo essa individualização um dos eixos fundamentais das transformações da sexualidade nas sociedades ocidentais contemporâneas (Beck e Beck-Gernsheim, 2005), a relação dos indivíduos com o mundo profissional estará profundamente articulada com a sua vida sexual. Nomeadamente, as provas de natureza profissional a que vão estando sujeitos (v.g. entrada para novas funções, assunção de cargos de maior responsabilidade, mobilidade, desemprego, entre outros) deverão constituir importantes marcadores da experiência sexual, em torno dos quais se articulam e ganham visibilidade as suas lógicas de ação.
O objetivo principal deste artigo é, pois, dar um contributo para compreender melhor a vida sexual dos portugueses, a partir dos contextos da vida profissional em que os indivíduos se inserem. O olhar que aqui se propõe é exploratório: uma aproximação a (alguns) fatores sociais que ajudam a explicar a sexualidade humana, também ela, como um facto social. Trata-se de um olhar na continuidade de um projeto anterior sobre as trajetórias sexuais dos portugueses, realizado na primeira década deste milénio, e que propôs compreender a sexualidade dos portugueses enquanto construção social atravessada por um processo de individualização crescente das relações sociais, e à luz do conceito de experiência (Policarpo, 2014). Por essa razão, para dar resposta ao objetivo geral do presente artigo, recorre-se a dois conceitos sociológicos : o de provas sociais, decorrente da teoria da individuação social; e o de experiência sexual, decorrente da teoria da experiência e construído empiricamente a partir da referida investigação. A proposta é a de que a articulação destes dois conceitos permitirá começar a desembaraçar o nó complexo das relações causais entre estas duas dimensões da vida (profissional e sexual).
Após um primeiro ponto em que se enquadra teoricamente o tema a partir da discussão destes conceitos, bem como das relações de género, enquanto relações de poder estruturantes que atravessam os dois campos em estudo (trabalho e sexualidade), segue-se uma breve nota metodológica, em que se expõem os principais parâmetros que orientaram a recolha dos dados analisados. Os resultados são apresentados e discutidos em três partes: as relações entre a agenda profissional e a agenda sexual; a gestão da informação a respeito de experiências fora da heteronorma, em ambiente profissional; e os impactos da mobilidade decorrente da vida profissional (viagens de trabalho) ou da sua suspensão (férias) na vida sexual. O artigo termina fazendo uma revisão breve de como estes resultados contribuem para compreender melhor a experiência sexual dos portugueses, construída na articulação entre integração, estratégia e subjetivação.
Enquadramento teórico: vida sexual, experiência e prova
O olhar que orienta este artigo e respetiva interpretação dos dados empíricos apoiam-se no conceito de experiência sexual, proposto em trabalho anterior (Policarpo, 2014). Privilegia-se assim um recorte teórico definido e singular, que articula heranças sociológicas que habitualmente não são convocadas para o estudo da sexualidade. Este conceito pretende dar conta de como a sexualidade pode ser explicada socialmente pela articulação simultânea de diferentes lógicas de ação dos indivíduos na sua vida quotidiana. Na sua base está o conceito de experiência social (Dubet, 1995), com as suas três lógicas de ação: integração, estratégia e subjetivação. Estas lógicas são a expressão, ao nível da ação individual, das diferentes dimensões do sistema social em que os indivíduos se movem: integração, mercado e cultural. É na tensão entre estas lógicas que se define o trabalho do indivíduo sobre si próprio. A identidade individual surge assim mais na atividade do que na essência. É mais do domínio do fazer do que do ser (Dubet, 2005). É nesta linha que se propõe compreender a vida sexual, na sua diversidade, à luz de três lógicas da experiência que relacionam o comportamento sexual dos indivíduos com o sistema social em que estes se inserem. A partir da articulação destas três lógicas foi possível construir uma tipologia ideal-típica da experiência sexual (Policarpo, 2014). O conceito tem-se revelado igualmente útil no aprofundamento de tipos particulares de experiência, como sejam as que não se enquadram na heteronorma (Policarpo, 2016), ou a importância das práticas de amizade, durante a juventude, para a construção de um self sexual (Policarpo, 2017).
Mas a que respeitam cada uma das lógicas, ou dimensões da experiência? A primeira, a lógica da integração,[1] traduz-se nos mecanismos de integração do indivíduo em diversas dimensões da vida social, que implicam a aprendizagem e desempenho de papéis, que se fazem de formas múltiplas, contraditórias e plurais (Lahire, 2003). A identidade-integradora dá conta da forma como os atores interiorizam os papéis sociais em que são socializados ao longo da vida, os seus respetivos valores e expectativas. A importância da lógica da integração para a vida sexual pode ser compreendida, por um lado, através da forma como cada ator adere aos papéis, que pode ser total, moderada ou fraca; e, por outro, da forma como gere as normas que regulam a sua sexualidade, que podem ser aceites, negociadas ou rejeitadas. Essa integração acontece em diversas plataformas, decisivas para a socialização primária e secundária. São elas a família de origem, os grupos de pares, a família de constituição (ou equivalente, companheiro, namorado, relação amorosa, outro), a escola, os grupos cívicos, religiosos ou políticos e, o que aqui nos interessa particularmente, o mundo do trabalho e a profissão. A integração implica a pertença a grupos e comunidades: quanto mais forte for esta pertença, mais a identidade do indivíduo será definida pelo grupo, em detrimento da construção de um self para lá do grupo. Logo, menor a individualização face ao grupo. Trata-se, pois, da perspetiva mais clássica da socialização e da forma como o indivíduo gere esse contacto com as instituições sociais.
A segunda, a lógica da estratégia, descreve o modo como os atores sociais representam a sociedade como um campo concorrencial, em que diversos intervenientes competem, e cuja posição relativa nesse campo depende dos próprios recursos. Esse campo é concebido como um jogo, com regras e estruturas de repartição do poder. A identidade-recurso significa que a identidade social dos indivíduos se constitui como um instrumento que lhes permite aceder a um mercado, seja de que tipo for (v.g. sexual), concebido enquanto espaço de concorrência e negociação. O ator social define a sua identidade em termos de estatuto, no sentido weberiano: a posição relativa de um indivíduo face aos recursos, ou seja, a sua capacidade de influenciar os outros graças aos meios que possui ao seu dispor. A estratégia implica uma racionalidade instrumental: os atores buscam, face às oportunidades que vão surgindo, rentabilizar os seus recursos, num meio concorrencial. Para isso é necessário que o ator conheça e mantenha as regras do jogo. No quadro da experiência sexual, a linguagem do jogo traduz a posição subjetiva dos indivíduos face a um “mercado” sexual (e afetivo) que percecionam como competitivo, em que as oportunidades são mais ou menos escassas. Neste contexto, os indivíduos procuram maximizar a sua identidade-recurso, que os coloque numa posição de vantagem face aos restantes competidores e lhes permita realizar os objetivos por si definidos (v.g. encontrar um novo parceiro, ter as primeiras relações sexuais, ter novas experiências, encontrar alguém com quem construir uma relação sexual e afetiva duradoura, etc.). A articulação deste eixo da estratégia com o mundo profissional é fundamental, tendo em conta os modelos competitivos que regem este último (por exemplo no meio empresarial, mas não só), nas sociedades capitalistas.
Finalmente, a lógica da subjetivação descreve a forma como o indivíduo consegue, distanciando-se das identidades já descritas (integradora e recurso), construir um sentido para a sua vida. É a lógica fundamental para a construção de um sujeito ético, resultado da sua construção crítica e reflexiva (Dubet, 1995). Alicerça-se na importância do sentido da ação para o sujeito que a pratica, numa conceção weberiana (Weber, 1989). Este sentido constitui a partícula singular que, tendo origem social, não é socialmente determinada. Ela contém o germe da “irracionalidade”, da emancipação e da mudança. A lógica da subjetivação tem assim um significado latente de emancipação do sujeito.
No quadro da experiência sexual, a lógica da subjetivação permite compreender, por exemplo, de que modo os indivíduos se distanciam de identidades sexuais normativas previamente definidas, aderindo a modelos alternativos de existência e identidade. Por exemplo, um indivíduo com uma “forte” reflexividade e distanciamento crítico em relação a uma identidade profissional, quer integradora (resistindo à definição de papéis institucionalizada pela organização capitalista das relações de trabalho), quer recurso (resistindo a submeter-se às “regras do jogo” da competição nas relações de trabalho), mais facilmente adere a modelos identitários e de ação que se pretendem alternativos aos tradicionais, orientando a sua conduta sexual de forma mais autónoma em relação aos ritmos e imposições da vida profissional. Em contraste, para um indivíduo em quem esse distanciamento seja “fraco”, a vida sexual será mais pautada, regulada pelos ritmos e prioridades da vida profissional, tal como é hegemonicamente definida pelas organizações de trabalho.
Um outro conceito convocado para compreender melhor as ligações complexas entre as duas esferas da vida em análise (sexualidade e trabalho profissional), é o de prova social (Martuccelli, 2005, 2006 e 2009). Tenta compreender como se articulam os grandes fatores estruturais de individuação (v.g. as formas de organização do trabalho numa sociedade), a um nível macro; e o modo como os indivíduos delas participam, a um nível micro. A análise centra-se precisamente nas experiências individuais. Uma ideia importante preside a esta perspetiva: uma vez que as instituições sociais já não transmitem aos indivíduos, de forma coerente, as normas que orientam a sua ação, compete-lhes a eles dar um sentido às suas trajetórias. A procura deste sentido traduz-se numa expansão da reflexividade nas sociedades contemporâneas. Deste modo, o conceito de prova permite-nos articular o nível macro, das grandes transformações e estruturas societais, com o nível micro, do trabalho do ator sobre si próprio. E, para o que nos interessa aqui mais concretamente, com os modos concretos como constrói a sua experiência sexual, no confronto com as provas que advêm na sua inserção profissional.
Enquanto “operadores analíticos” que permitem descrever e compreender os modos sociais de construção da identidade individual, as provas sociais têm quatro características principais (Martuccelli, 2009: 23): constituem-se como uma narrativa não linear e complexa com múltiplos momentos a disseminarem-se ao longo da vida; implicam uma conceção particular do ator social, como alguém que se constrói a si mesmo na medida em que se confronta pessoalmente com cada prova; implicam um processo mais ou menos institucionalizado de avaliação, que conduz inevitavelmente a uma seleção social dos que conseguem “ir vencendo” as sucessivas provas; e designam desafios estruturais e históricos particulares, e não acontecimentos particulares da existência de cada um (como os que são descritos pela noção de turning point).
O conceito é particularmente operacional para a questão que nos ocupa neste artigo: estabelecer as relações entre a vida profissional, enquanto uma das mais importantes plataformas sociais em que o indivíduo se move nas sociedades pós-industriais, e a sua vida sexual. Observar os modos como os indivíduos gerem essas provas impostas pela vida profissional permite-nos compreender melhor as suas lógicas de ação individual e, através destas, o processo de construção da sua experiência sexual.
Finalmente, os modos como os indivíduos gerem as tensões que as provas do mundo profissional colocam sobre a sua vida sexual só podem ser compreendidos numa perspetiva relacional, em que o género constitui um eixo central da negociação das relações de poder. Em termos conceptuais, este artigo parte da ideia de que masculino e feminino não são categorias fixas, estáticas e apriorísticas, mas sim condições (circunstanciais) performativas, que decorrem do desempenho ou da ação repetida. Esta definição da identidade de género como performativa (Butler, 2006 [1990]) diz-nos que homens e mulheres não estão assim “presos” numa cápsula de género predefinida e definitiva; antes constroem a realidade e as diferenças de género através do discurso, de certas afirmações e sua repetição; e de certos comportamentos repetidos, inscritos em scripts socialmente construídos e disponíveis. O comportamento de género é assim roteirizado (obedece a scripts). Desempenhando o comportamento previsto nos scripts (performance), os atores transformam esses atos na sua realidade, dia após dia. Neste sentido, o género não é uma expressão do que se é, mas do que se faz (Butler, 2006 [1990]).
Por outro lado, como tem sido amplamente demonstrado, as relações de poder desiguais entre homens e mulheres têm uma dimensão estrutural que atravessa diversos domínios, incluindo o campo da sexualidade. Apesar das tendências de aproximação nos comportamentos e atitudes sexuais de homens e mulheres portugueses, ocorridas ao longo das últimas décadas (Policarpo, 2011; Aboim, 2013; Neves, 2013), persiste um duplo padrão de género em matéria de sexualidade, que resulta em normatividades diferenciadas para homens e mulheres, dentro ou fora da relação conjugal (Bozon, 2001b, 2013; Ferreira e Cabral, 2010), em scripts sexuais, expectactivas e níveis de satisfação também eles diferenciados (Alarcão et al., 2015).
Estas diferenças estão inscritas noutras desigualdades que atravessam a experiência de homens e mulheres, na sociedade portuguesa. Uma dimensão destas desigualdades de género, particularmente relevante para o argumento deste artigo, por ser decisiva para a independência económica das mulheres (condição de maior autonomia nas decisões e liberdade em geral), é a que atravessa as relações laborais. Assegurando a maior parte do trabalho não pago (doméstico, cuidados a crianças, doentes e idosos Torres et al., 2005; EIGE, 2015; Perista et al., 2016), as mulheres portuguesas têm também uma das mais elevadas taxas de atividade dos países da União Europeia (53,5% em 2016)[2] e uma forte presença no mercado de trabalho (em 2016 cerca de 48,7% da população empregada eram mulheres).[3] Porém, esta realidade é atravessada por grandes e persistentes assimetrias, a diversos níveis. Não só as mulheres têm remunerações inferiores às dos homens, como isso acontece dentro da mesma categoria profissional ou tipo de trabalho e, ainda, essa diferença não se esbate antes se acentua entre as profissões mais qualificadas, e no topo dos ganhos salariais.[4] As desigualdades de género fazem-se também sentir na segregação do mercado de trabalho, horizontal (com mais mulheres empregadas nos setores da educação e saúde) e vertical (com menos mulheres a ocuparem posições de liderança dentro das organizações).[5]
A investigação tem também revelado a sub-representação das mulheres em carreiras internacionais e os obstáculos enfrentados para o seu desempenho como os estereótipos de género, que desassociam as supostas “características femininas” dos atributos de uma carreira de liderança, o sexismo, presente nos discursos e práticas, ou ainda os dilemas decorrentes de ordem pessoal/familiar na decisão de partir (Nunes e Casaca, 2015).
Assim, e paradoxalmente, uma maior escolarização feminina não se traduziu numa transversal igualdade de oportunidades no mercado de trabalho, num contexto em que as competências e qualificações foram sendo progressivamente incorporadas como critérios de recrutamento e manutenção da qualidade das organizações. Apesar de as mulheres serem mais qualificadas do que antes, e em maior proporção do que os homens, estamos ainda longe da igualdade: em termos salariais, mas também no acesso ao mercado, no desempenho de funções qualificadas e cargos de decisão, ou até na manutenção do posto de trabalho (v.g. na articulação com o ciclo reprodutivo e a vida familiar). De que modo se refletem estas desigualdades também na construção da experiência sexual é um dos aspetos que tentaremos explorar neste artigo.
Método
Os dados que aqui se apresentam foram recolhidos no quadro de uma pesquisa mais alargada sobre as trajetórias sexuais dos portugueses (Policarpo, 2014), que seguiu uma metodologia qualitativa e o método ideal-típico, tal como proposto por Max Weber (1962). Foram realizadas 35 entrevistas em profundidade, em que se reconstituiu retrospetivamente a biografia sexual dos sujeitos entrevistados.
Uma hipótese central norteou a delimitação da população de referência e, depois, da amostra: a de que os processos de individualização, mais observáveis nos meios sociais mais escolarizados, contribuem para a construção de uma experiência sexual plural, ao mesmo tempo que esta reforça o desenvolvimento de um tal processo de individualização. A população de referência do estudo foi assim teoricamente delimitada em indivíduos que pudessem ser associados ao processo de individualização: as classes médias e médias altas, residentes em meio urbano.
A amostra, de tipo qualitativo, foi de casos múltiplos, por homogeneização, o que permitiu o estudo de um grupo considerado relativamente homogéneo tendo em conta certas características, fazendo-se o controlo da diversidade externa pela escolha do próprio objeto (mais ou menos heterogéneo). O princípio da diversidade interna orientou a escolha dos sujeitos a incluir: selecionaram-se informadores o mais possível diversos entre si, dentro do grupo escolhido. A generalização empírica fez-se por saturação. A técnica utilizada de acesso aos entrevistados foi a “bola de neve”, por ser a mais adequada para aceder a populações ou dados “ocultos”, característica neste caso patente na natureza intimista das informações a obter (comportamento sexual ao longo da vida). Tendo em conta a natureza qualitativa da investigação, o objetivo não é produzir generalizações empíricas sobre o conjunto da população portuguesa, mas sim iluminar heuristicamente determinadas facetas da sua experiência e, através delas, do objeto de estudo.
A amostra foi homogeneizada no que respeita ao meio social, idade e residência em meio urbano. A diversificação interna fez-se em função do sexo, situação conjugal (ou “de vida privada”) e orientação sexual. Integram a amostra final 35 indivíduos, 15 homens e 20 mulheres, em diversos tipos de situação conjugal e familiar, que se identificam com diversas orientações sexuais, e que pertencem às classes médias instruídas, com percursos de mobilidade social intergeracional ascendente ou estável. Todos estão em idade ativa e, no momento da entrevista, a maioria (n = 24) encontrava-se empregada em profissões intelectuais e/ou científicas (grupo 2 da Classificação Portuguesa das Profissões). As entrevistas produziram discursos complexos, ricos e longos, que foram submetidos a uma análise narrativa, de forma a preservar a singularidade da experiência biográfica de cada indivíduo, colocando-a em perspetiva com o contexto sócio-histórico que a produziu.[6]
A vida sexual à prova da vida profissional: entre integração e estratégia
Quando a agenda profissional determina a agenda sexual
A manutenção de uma vida profissional ativa, em profissões qualificadas e contextos de elevada competição, surge como uma das mais importantes provas da vida profissional com impacto na vida sexual dos participantes no estudo. A importância da vida profissional para a construção da experiência sexual faz-se sentir, de uma forma extrema, quando a agenda profissional determina praticamente toda a vida sexual. Nestes casos, a identidade-integradora em termos profissionais determina a vida sexual, articulando-se para reforçar uma identidade-recurso em termos sexuais. É principalmente na tensão entre os eixos da integração e da estratégia que se constrói aqui a experiência. Isto pode acontecer de diversos modos.
Orientação individual e reforço de identidade-recurso
Nesta modalidade, a agenda de encontros profissionais determina a agenda sexual, por exemplo na frequência e número de parceiros. Uma vida profissional intensa, isto é, uma forte identidade-integradora nesta dimensão, comanda a sexualidade, ao mesmo tempo que é posta ao serviço da identidade-recurso. Os atributos físicos, de personalidade e relacionais, articulam-se com finalidades bem definidas, de diversificação da experiência. Por outro lado, a carreira profissional proporciona o contexto, percebido como um “mercado”, em que as oportunidades de novos contactos sexuais se multiplicam, e em que os recursos profissionais do indivíduo se confundem com os seus recursos sexuais.
Vejamos o caso de Filipe [E10, 37 anos]. Gestor, heterossexual, casado, com dois filhos, o seu modo de integração em papéis familiares à margem dos modelos dominantes (v.g. fidelidade conjugal) articula-se com uma forte identidade-recurso, conduzindo a uma experiência sexual individualista; a sexualidade conjugal é vivida em paralelo com uma experiência em rede, na linha do que Bozon (2001a) chamou “orientação íntima em rede”. É aqui que as provas da vida profissional desempenham um papel importante. Com uma profissão muito exigente e competitiva, com deslocações frequentes a outros países, as oportunidades de encontros sexuais multiplicam-se, até pelo facto de a distância física facilitar a manutenção do segredo. A forma de recrutar as parceiras “acontece” o seu discurso “naturaliza” os processos de produção destes encontros, e assim oculta as ações efetivas que são empreendidas com esse fim. Dá dois exemplos, ambos associados ao mundo profissional: encontra-se com uma colega com o objetivo de ter relações sexuais sempre que vai aos Estados Unidos, assim como sempre que ela que vem a Portugal; o mesmo acontece com uma outra colega, sempre que vai à Índia. Apesar de nada ser “planeado”, “não fazem de propósito”, sempre que se aproxima uma nova viagem profissional “já sei que me vou encontrar com ela”. Estes encontros sexuais, neste caso extraconjugais, surgem subordinados às exigências profissionais (calendários, tarefas): “Eu tenho que organizar a minha vida em termos profissionais e não em termos pessoais. O resto [o sexo] encaixa nisso. Na minha agenda profissional, claro.” Estas pessoas constituem uma rede simultaneamente profissional e sexual, um capital social valioso: alguém a quem poderia pedir um favor, pelo menos de natureza profissional, se fosse caso disso, configurando uma orientação íntima em rede (Bozon, 2001a).
Orientação individual, mas ao serviço do casal
Uma segunda modalidade de experiência em que a intensa vida profissional de indivíduos com carreiras qualificadas e ascendentes influencia de modo importante a sua vida sexual está, em contraste, associada a um tipo de sexualidade que, ainda que individual, tenta articular-se com a manutenção do casal. Dito de outra forma, embora o indivíduo tenha uma experiência da sexualidade prioritariamente individual, tenta encontrar modos de a viver (à margem, ou alternativos, dos modelos dominantes) que preservem a existência do casal. Como pano de fundo está a prioridade dada às necessidades impostas pela vida profissional.
É o caso de Madalena [E1, 32 anos], médica, casada, sem filhos. Na sua carreira, tem de fazer inúmeras viagens internacionais, em diversos continentes, tendo vivido fora de Portugal nos anos que antecedem o momento da entrevista.
Sinto isto dos dois lados. Na minha vida pessoal não tem sido fácil, acompanhar a minha vida familiar não tem sido nada fácil, mas do ponto de vista profissional tem sido uma oportunidade única. [Desde que casou, ambos sabiam que] por muito que custasse isto ia acontecer […] Custou-me imenso e a ele também. Porque da mesma maneira que eu vou sozinha ele também fica sozinho.
No entanto, isto significa também que a vida sexual do casal é “geograficamente variada”: o marido junta-se-lhe muitas vezes em várias partes do mundo, ou ambos combinam encontrar-se num ponto intermédio. Esta mudança de cenários, possível devido a um elevado grau de individualização (independência económica e heterogeneização da experiência) contribui para a diversificação dos scripts e para manter aceso o interesse sexual entre os dois.
Problematização ou suspensão da vida sexual
Outra importante prova diz respeito à experiência feminina de grande competição no mundo do trabalho. Como vimos atrás, apesar de as mulheres portuguesas terem níveis de escolarização superiores aos dos homens, são mais atingidas pelo desemprego e pela pobreza, tendo maior representação do que a média nacional em trabalhos não qualificados, menor acesso a cargos de decisão, e ainda auferindo menores salários do que os homens pelo mesmo trabalho (Carvalho, 2010; Cantante, 2015; CIG, 2012; CITE, 2012). A extrema competitividade a que as mulheres estão sujeitas, para conseguirem aceder a, e manter-se em lugares qualificados e de responsabilidade, tem custos diretos na sua vida pessoal e, especificamente, sexual. É o caso de Cláudia [E23, 34 anos]. Com duas licenciaturas e médica, é diretora de um serviço hospitalar, o que lhe exige recorrentes horários prolongados, com uma frequência mais do que semanal. Estas condições objetivas de trabalho refletem-se na sua relação afetiva e sexual com o marido, v.g. na diminuição da frequência e gratificação atribuída às relações sexuais. Neste caso, uma forte identidade-integradora e uma forte identidade-recurso em termos profissionais contribuem para um posicionamento do sujeito em que este “problematiza” a sua experiência: ao longo de toda a entrevista, Cláudia coloca-se em causa, revelando sentimentos de culpabilidade pelo seu sucesso profissional, como se dele dependesse um eventual fracasso da relação e da vida sexual. Cruzando-se estes fatores com problemas de saúde física, as etapas e provas da vida profissional colocam a vida sexual sob uma pressão difícil de gerir. No seu discurso, tornam-se invisíveis as causas estruturais, associadas às provas da vida profissional a que está sujeita, e que condicionam a sua vida sexual. Tal como alertam Beck e Beck-Gernsheim (2005), nas sociedades contemporâneas de “individualismo institucionalizado”, os indivíduos são colocados perante problemas de raiz institucional, cuja solução é, no entanto, para si transferida. Compete-lhes a eles encontrar uma solução à escala individual, biográfica, para problemas de origem estrutural. As provas sociais são, assim, integradas pelos atores como sendo da sua responsabilidade individual, e a sua superação é associada a um processo de avaliação (Martuccelli, 2009). Ainda que não institucionalizado, este não deixa de conduzir a uma seleção, mesmo que operada no plano normativo e simbólico separando os que (se imagina que) têm sucesso na articulação destas exigências, com a manutenção de uma vida sexual maximamente gratificante, dos que o não têm.
Diversificação da vida profissional, mas não da sexual
Nesta modalidade, um acontecimento de natureza profissional constitui o turning point significativo que, na vida de alguns entrevistados, os faz reorientar as suas escolhas, tornando-se mais autónomos e individualizados. Este turning point proporciona, não diversificação, mas uma diminuição da frequência e/ou intensidade da vida sexual. O investimento em novos projetos profissionais ganha uma importância tal que absorve completamente os indivíduos, conferindo-lhes uma forte identidade. A sexualidade deixa de ser uma prioridade, pelo menos temporariamente. O mais importante passa a ser “descobrir-se” a si mesmo, à sua “verdadeira natureza”, mas através da profissão. Como resultado, há um “abrandamento”, ou mesmo uma “suspensão da vida sexual”, ou outros modos que refletem a indisponibilidade (temporária) do indivíduo para esta dimensão da vida.
A história de Eva [E18, 45 anos] ilustra esta modalidade. Jornalista, nas suas duas primeiras relações amorosas e sexuais duradouras existia uma intensa, embora difusa, complementaridade entre vida profissional, amorosa e sexual. Com ambos trabalhou, aprendeu e cresceu profissionalmente. Em determinado momento da vida, Eva decide abandonar a cidade de província em que vivia, e ir viver para Lisboa, procurando, ao estabelecer-se longe dessas “influências”, a sua própria identidade profissional. Tem 36 anos e inicia uma vida e carreira completamente novas e “sem rede”. Desde então, tem alguns trabalhos precários, tendo vindo lentamente a aproximar-se dos seus objetivos profissionais. Fá-lo diversificando estratégias (recursos, objetivos), mas não na dimensão sexual, antes na dimensão profissional. Considera-se “numa fase muito embrionária” da carreira e pensa que novas relações a dispersariam do seu grande objetivo: aperfeiçoar-se na profissão que a realiza e lhe traz identidade. Uma vez que se encontra numa fase de transição (lançando-se numa nova área profissional), não é completamente independente do ponto de vista económico. Mas, quando tem um problema de ordem financeira, tem por trás uma rede de suporte que, ainda que diminuída, lhe permite continuar: um dos irmãos, “bons amigos”, que constituem uma rede de suporte, uma parte importante da sua “comunidade pessoal” (Pahl e Spencer, 2003; Spencer e Pahl, 2006).
Deste modo, a importância da carreira profissional sobressai de um modo completamente diferente das modalidades anteriores: neste caso, é palco de uma mudança radical de vida para algo que se gosta de fazer, que revela o indivíduo, o realiza, ao mesmo tempo que contribui para abrandar a vida sexual. De facto, desde que vai viver para Lisboa, Eva volta a ter algumas relações, mas “sem muita importância, não havia assim namoro”. Para isso contribui também o enfraquecimento da sua identidade-recurso em termos sexuais, motivado pela mudança geográfica (v.g. falta de integração em redes que lhe proporcionem novos conhecimentos e parceiros). A sua nova rede pessoal não é fonte de conhecimentos sexuais. “É muito difícil, porque eu não estou nada inserida no meio…” Descreve a sua vida sexual presente como “ligeiramente inexistente”, “uma vida muito calminha, em que não acontece assim nada”.
Todas estas diferentes modalidades, apontam para uma crescente e intensa integração dos indivíduos na dimensão profissional, associada a percursos de mobilidade social ascendente, que implicam uma forte adesão a papéis e valores impostos pelo mundo do trabalho, em dado momento da sua trajetória. Está assim em causa uma forte identidade-integradora, de tipo profissional. Por outro lado, e sendo esse mundo tão competitivo, esta não poderia deixar de estar associada a estratégias desenvolvidas para garantir ao indivíduo vantagem no jogo, ou seja, a uma forte identidade-recurso. O facto de, nestes casos, uma parte muito importante da identidade destes indivíduos ser preenchida pela vida profissional influencia assim de modo decisivo a sua vida sexual, ainda que de modos bastante diversos.
Meio profissional, discriminação e gestão do segredo
Uma importante prova relativa à vida profissional diz respeito à experiência de todos aqueles que não têm uma sexualidade normativa e que são levados a gerir a informação a esse respeito no seu local de trabalho, de modo a evitar a discriminação que, mesmo não sendo declarada, continua a ser efetiva, podendo mesmo ir até ao despedimento. Esta discriminação ou a sua possibilidade constitui-se como um obstáculo a transpor na experiência destes indivíduos, perante a necessidade de integração profissional, não só por motivos identitários, mas também por proporcionar a independência económica necessária à individualização.
LGB: gerir a informação sobre a identidade sexual no local de trabalho
As lésbicas, gays e bissexuais (LGB) que integram a amostra falam-nos sobre a necessidade de gerir a informação sobre a orientação sexual no local de trabalho e das estratégias que desenvolvem com esse objetivo. Tal como já foi dito, quando a orientação sexual é percebida como um “estigma desacreditável”, é sobre o indivíduo que recai a gestão da informação a seu respeito (a quem, como, quando, em que condições revelar a característica que os desvaloriza socialmente; Goffman, 1963).
É assim que José Luís [E19, 36 anos] se relaciona durante seis anos com um colega de empresa, sem que nenhum dos restantes colegas tenha conhecimento. Pensa que as pessoas se interrogam sobre como chegara aos 35 anos sem casar, mas nunca ninguém lho perguntou diretamente. Se o tivessem feito, “teria talvez dito a verdade, mas não considero importante fazer da orientação sexual uma bandeira, chamar toda a gente para lhes contar”.
Também Manuela [E7, 34 anos], uma engenheira civil empregada por conta de outrem numa empresa de média dimensão, relata a gestão cuidadosa da informação sobre a sua vida privada, e da orientação sexual em particular, que faz no local de trabalho. Se para si a família (alargada) constitui um lugar de integração, onde vive abertamente a sua relação amorosa e conjugal com outra mulher, o mesmo não acontece no local de trabalho, onde ninguém tem conhecimento da sua orientação sexual. Relata como, em tempos, um chefe fazia questão de expor a suas ideias “nada abonatórias sobre o assunto”, o que atuou como um “fator desmotivador muito grande” em relação ao eventual coming out no meio profissional. Além disso, considera que não é importante partilhar esse aspeto da sua vida privada com os colegas, com quem não tem qualquer relação pessoal fora daquele espaço. Tem assim uma vida social completamente apartada das relações profissionais. Uma tal separação pode traduzir-se, no longo prazo, numa desvantagem, num contexto profissional em que a socialização e as relações informais, fora do espaço/tempo profissional mais restrito, constituem formas essenciais de integração, pela valorização do networking.
Manuela já receou que o seu trabalho fosse ameaçado pela sua vida privada, e essa foi uma das razões pelas quais resolveu ser discreta em relação ao assunto. A gestão do silêncio vai para além da sua vida privada: evita mesmo manifestar-se contra opiniões homofóbicas de colegas:
Essa é uma das razões que me levou a nunca, enfim, nunca ter nenhum tipo de manifestação no meu emprego. Nem sequer defender aquilo que eu acho que seria o correto ou opor-me às vezes a certas opiniões de alguns colegas meus. Precisamente por isso, porque achei que podia eventualmente ser prejudicada profissionalmente por causa da minha vida pessoal. […] as pessoas dizem que já não há preconceitos, mas isso é uma mentira, ainda há. Sei que há porque conheço várias pessoas que infelizmente até já perderam o seu emprego por isso e pronto. Nunca é diretamente, porque as pessoas nunca dizem diretamente que vão despedir por causa disso, não é, mas enfim. […]. Apresentam alguns argumentos… fracos que… que não são aquelas as verdadeiras razões. Atualmente essas coisas também estão previstas na lei, as empresas também se defendem nesse aspeto. Eles não vão dizer nunca diretamente. Aliás, a empresa onde eu trabalho tem uma política muito rigorosa a esse respeito, estão completamente proibidos de todos os tipos de discriminação, portanto abertamente ninguém pode discriminar. Agora, podem é não abrir as mesmas portas, não é? Podem não dar as mesmas oportunidades. É uma outra forma de discriminação, um bocadinho mais oculta.
As formas dissimuladas de discriminação tornam-se, assim, difíceis de combater. Ao mesmo tempo, configuram um tipo de violência simbólica mais difícil de identificar e, igualmente, de erradicar.
Já o caso de Carlos [E14, 41 anos] ilustra a experiência oposta: a inserção num meio profissional em que ser gay parece contribuir para uma maior integração e sucesso. Fotógrafo free-lancer, Carlos constrói as suas próprias condições e oportunidades de trabalho, nomeadamente para as poder articular com a vida privada: trabalha amiúde com o companheiro, a fusionalidade profissional convertendo-se em fusionalidade sexual e amorosa. Deste modo, para além de garantir liberdade e independência (face a entidades empregadoras eventualmente discriminatórias), a vida profissional proporciona-lhe um espaço de exploração da intimidade. Nestes meios, o assumir da identidade sexual, e respetiva visibilidade, são não só a regra, como ainda fonte de capital simbólico, que pode ser mobilizado em benefício do sujeito e da sua afirmação profissional, mas também sociopolítica.
Os indivíduos LGB que integram a amostra definem, assim, a sua ação a partir dos eixos da integração e da estratégia, contribuindo paradoxalmente para um reforço da sua subjetivação. Em trabalho anterior (Policarpo, 2014, 2016), tentei mostrar como, precisamente, a dimensão da subjetivação é fundamental na construção da experiência sexual dos indivíduos LGB. No confronto com a heteronorma, gera-se uma reflexividade que contribui para operar um distanciamento face a papéis e valores convencionais, problematizando-os ou, mesmo, adotando modelos alternativos. O mesmo acontece aqui, em relação aos constrangimentos heteronormativos do meio profissional (incluindo a homofobia, o heterossexismo, a discriminação).
A gestão desses constrangimentos está particularmente dependente da gestão da informação e, consequentemente, da fala ou, inversamente, do silêncio: a respeito da orientação sexual, bem como de outros aspetos da vida privada fora da heteronorma. Nos casos em que esse modo de gestão se traduz no silêncio, e no segredo, estes são tacitamente incentivados pelas estruturas organizacionais e dinâmicas laborais que as habitam. Até que ponto configuram resquícios de uma “conspiração do silêncio” (Zerubavel, 2006) em torno das identidades sexuais não normativas, que sustenta a heteronorma? Um silêncio em que a negação de cada um, como sugere Zerubavel (2006), é reforçada pela de outros, de forma tanto mais intensa quanto mais pessoas contribuírem para ele, e maiores forem as diferenças de poder entre elas. Ficam, porém, por conhecer os custos ocultos da manutenção deste silêncio, na vida destes indivíduos em termos pessoais, mas também profissionais.
Em todo o caso, seja pela fala (identidade sexual assumida, num meio favorável à diversidade identitária), ou pelo silêncio (identidade sexual oculta, num meio hostil à manifestação de identidades não heteronormativas), todos se constituem como sujeitos singulares, com uma identidade reivindicada e esculpida nos limites dos modelos dominantes. Isto é possível na medida em que desenvolvem estratégias que permitem, simultaneamente, a manutenção de uma identidade sexual em rutura com a heteronorma, por um lado; e a integração num meio profissional em que vigora essa heteronorma, por outro.
Mulheres, género e relações (extraconjugais) com colegas de trabalho
O silêncio e a gestão do segredo a respeito da vida íntima e pessoal habitam também as experiências das mulheres que, relacionando-se com colegas de trabalho, devem gerir cuidadosamente a informação a esse respeito, sob pena de desvalorização da identidade, quer sexual, quer profissional. Nas relações heterossexuais, esta questão evoca duplamente uma relação de poder: com base no género, e nas relações de trabalho. Por um lado, um duplo padrão em matéria de sexualidade penaliza claramente as mulheres, em relação aos homens, por uma conduta sexual considerada desviante em relação a uma norma (v.g. de fidelidade conjugal, no quadro das relações heterossexuais). Por outro, a posição relativa destas mulheres nas relações de trabalho, nomeadamente quando ocupam posições hierárquicas inferiores em relação aos homens com quem se relacionam, desencadeando estereótipos negativos sobre as mulheres a este respeito (por exemplo, sobre o seu sucesso profissional, e as formas de o obter). A questão complexifica-se quando um ou ambos os indivíduos vivem em conjugalidade, pesando desigualmente a crítica e eventuais represálias profissionais mais sobre as mulheres do que sobre os homens. Trata-se assim de uma experiência atravessada por um efeito de género: enquanto para os homens os relacionamentos sexuais no contexto das relações profissionais podem constituir uma valorização da sua identidade-recurso, já para as mulheres podem corresponder a uma desvalorização, nomeadamente tendo em conta os valores e representações mais tradicionais sobre o comportamento sexual feminino, que o enquadram dentro das fronteiras de uma relação (namoro, conjugal).
Isabel [E5, 42 anos] mantém, no momento da entrevista, uma relação com um colega de trabalho. A gestão dos encontros e da própria relação é mantida em segredo, a vários níveis: dos outros colegas e superiores hierárquicos, da sua própria rede de amigos (com algumas exceções) e das respetivas redes familiares. Vários fatores contribuem para isso: o facto de o colega ser casado, por um lado; o facto de a sua rede pessoal (família e amigos) a representar como lésbica, após quase 20 anos de conjugalidade com outra mulher, por outro. Gerir a situação coloca-a na tensão entre o eixo da integração e o da subjetivação: a manutenção da integração profissional (do lugar, mas também da reputação) condiciona o processo de redefinição da identidade sexual que atravessa. Ao mesmo tempo, revela estratégias restritas na construção desta experiência: é no próprio meio profissional que conhece esta nova relação, facto a que não é estranha a centralidade da vida profissional na vida dos indivíduos, atualmente. Está também em causa a experiência feminina de reentrada no “mercado sexual”, após uma conjugalidade longa, em que a identidade-recurso da mulher tem de ser reconstruída (em torno de atributos físicos, de personalidade, relacionais), num contexto concorrencial em que a idade constitui uma desvantagem (v.g. em relação a outras mulheres mais jovens) e as oportunidades são menos frequentes.
Assim, viver uma sexualidade fora da heteronorma tem implicações concretas na relação dos indivíduos com o mundo do trabalho, incluindo a forma como eles são chamados a gerir a informação a seu respeito (o que revelar, a quem, em que circunstâncias). A gestão do silêncio e da fala torna-se crítica para quem sente que a sua experiência, por ser diferente da heteronorma, pode ser alvo de discriminação, rejeição, eventualmente despedimento (ainda que de forma encapotada), danos na reputação. Os efeitos destes fatores conjugam-se de modo diferente conforme estamos a falar de indivíduos com mais ou menos poder nas relações de trabalho, por um lado; e homens e mulheres, por outro. Mas para todos, o silêncio e a sua gestão podem oscilar entre um espaço de opressão e um outro de emancipação (Policarpo, 2017), colocando pressão adicional sobre estes indivíduos e a sua integração no mundo profissional.
Vida profissional, mobilidade geográfica e construção da experiência sexual
Um outro aspeto relacionado com as provas impostas pelo mundo profissional, e já parcialmente abordado, diz respeito à necessidade de viajar, mais ou menos frequentemente, imposta pela vida profissional. Estas viagens podem fornecer um contexto para uma maior diversificação da experiência sexual, pelo acesso a um leque de oportunidades maior e mais variado. Isto acontece principalmente quando os indivíduos têm uma integração fraca em papéis familiares (v.g. conjugais), ou não se encontram em relação. Neste aspeto, o “estar em viagem” sugere uma permanência numa espécie de não-lugar (Augé, 1994), sem consequências do ponto de vista da vida estabelecida no país de origem, mas relevante para a construção da experiência e da história pessoal que sobre ela irá ser contada. A curiosidade desempenha também um papel importante: experimentar o que, em terra de origem, ou não parece possível (pela forte adesão a papéis e valores integradores), ou não parece tão atrativo. A experiência da viagem permite assim aos indivíduos pôr à prova os seus recursos, diversificando as suas estratégias sexuais.
As viagens e o sexo pago: usos masculinos e individuais
Para alguns participantes do estudo, do sexo masculino, as viagens de trabalho surgem associadas ao sexo pago e/ou ao turismo sexual. Ainda que o recurso à prostituição sugira uma prática masculina em desuso (Policarpo, 2014), nomeadamente como forma de entrada na vida sexual ativa e quando comparada com a moral sexual rígida que vigorou durante o Estado Novo (Policarpo, 2011), a verdade é que a prostituição não desapareceu da vida social da vida de quem a pratica, nem da vida de quem a ela recorre. Num inquérito realizado em Portugal em 2007, cerca de um quarto dos homens inquiridos admitiam ter recorrido ao sexo pago (Aboim, 2013: 60). É neste grupo que se enquadra Filipe [E10, 37 anos].
Desde a adolescência, recorre ocasionalmente ao sexo pago, principalmente na companhia do grupo de amigos. Ao longo da vida, continua a frequentar casualmente locais de prostituição, casas de striptease “onde se pode beber um copo”, na companhia de amigos ou colegas, mas sempre no estrangeiro. Em Portugal não o faz, apenas quando está fora do país esse interesse surge.
Mesmo que eu estivesse aqui sozinho de férias, com a minha mulher fora, como ela vai às vezes, eu não iria a uma coisa dessas de livre vontade. É caro e não tenho interesse. Imagine, eu vou para um determinado país, gosto muito das mulheres de lá, e vou a uma casa dessas com um amigo, ah… e vou com uma prostituta para o quarto, pronto, é diferente, é engraçado, ah… Sei que sexualmente vai ser gratificante, tenho a certeza e pronto, faço isso duma maneira esporádica, mas aqui não.
A sua experiência de sexo pago é enquadrada por uma forte integração profissional pela necessidade de corresponder a exigências que fazem parte do papel profissional do qual não se distancia (profissional qualificado com perfil de internacionalização). É esta identidade-integradora (de tipo profissional) que proporciona o contexto da viagem e a consequente distância em relação à “casa”, que representam, física e simbolicamente, o reforço do seu modo de conduzir a vida sexual: um modo marginal de viver os papéis (eixo da integração), temperado por estratégias diversificadas (recursos, finalidades e oportunidades variadas de concretização de experiências) e, consequentemente, uma forte identidade-recurso (em termos profissionais, mas também sexuais).
Já a história de Miguel [E15, 45 anos], casado há cerca de 20 anos, dois filhos, compreende-se no quadro de uma sexualidade relacional e conjugal, vivida de modo convencional, com estratégias limitadas, ou ad hoc (Policarpo, 2014). Por vezes, quando está de viagem, “quase que se proporcionam as oportunidades”. Porém, o sexo pago é apenas representado ao nível da fantasia, justificado pela “natureza” do desejo masculino e colocado “fora” da vontade individual (o efeito do álcool, o “assédio” de outrem, o cenário distante onde os atos são representados sem consequências).
Uma vez estavam a acontecer algumas coisas e eu disse para mim mesmo que, se se proporcionasse… e depois os hotéis, aquilo dá para tudo, temos um sítio onde ninguém nos conhece e onde se pode estar à vontade. Se a moça estivesse interessada ou se houvesse alguma coisa, eu nessa altura não diria que não, estava disposto a ir até ao fim. […] Eu aqui tenho um problema: não vou atrás [à procura]. Mas se me assediarem… nunca me assediaram de uma forma tão frontal, mas em certas circunstâncias não sou capaz de garantir se paro ou não paro. […] Racionalmente, se eu tiver que tomar a decisão, friamente, a resposta é sempre não. Agora se as coisas ocorrerem, se eu estiver com os copos… aí já não respondo pela situação. Mas essas situações é melhor não andar à procura.
No seu discurso perpassa a “naturalização” do comportamento sexual masculino, como que ancorado em impulsos biológicos não controláveis, e apenas balizados pela falta de oportunidades. Aqui, o sujeito não se coloca, ao contrário do que acontece com Filipe, na posição do “predador” que tem como objetivo angariar oportunidades e parceiras e, assim, diversificar a experiência, mas antes numa posição passiva, de estratégias, recursos e diversificação limitados, e não ativamente promovidos. Esta narrativa compreende-se melhor à luz do seu contexto de relação conjugal de longa duração, de uma “orientação relacional da sexualidade” (Bozon, 2001a), em que o sexo é colocado ao serviço da manutenção da própria relação.
É também este o contexto de experiência de Hélder [E20, 36 anos], casado há 12 anos, dois filhos. A única vez que experimenta o cibersexo é com a própria mulher, quando esta tem de viajar por motivos profissionais. Aproveitam assim os novos meios de comunicação para terem relações sexuais, num uso que reforça a orientação relacional da sua experiência sexual. Deste modo, a forma como as provas da vida profissional influenciam a vida sexual cruza-se sempre com disposições prévias, adquiridas ao longo do tempo. As viagens constituem um contexto de interrupção da rotina que, conforme as disposições adquiridas, e a orientação íntima (mais individualista, em rede, ou relacional), pode ser visto como uma oportunidade (para ter novo/as parceiro/as, aumentar o número e o tipo de experiências), ou um obstáculo (à sexualidade habitual, contornado por via, por exemplo, das novas tecnologias da comunicação).
A viagem como interrupção da rotina e afrodisíaco: usos relacionais
Em contraste, a viagem pode ser usada com objetivos de manter, reforçar ou recuperar os laços de uma relação amorosa, com ou sem conjugalidade. Trata-se de um uso enquadrado por uma orientação relacional para a sexualidade (feminina ou masculina). Esta articula-se, quer com a integração em papéis familiares, v.g. conjugais, quer com a integração profissional, ainda que pelo seu lado negativo: os tempos de férias surgem como os momentos em que os indivíduos, libertos da rotina diária e das exigências profissionais, podem dedicar-se à revitalização da vida sexual. Um aspeto que tem sido identificado como um elemento a explorar na sexualidade dos casais (v.g. Bozon, 2001b).
As viagens, nomeadamente em tempo de férias, ou as “escapadelas” em fins de semana prolongados ou outras oportunidades, surgem como um momento de revitalização da relação e da vida sexual do casal. Embora no quadro da conjugalidade (logo, num modelo de sexualidade relacional), está em causa um distanciamento do indivíduo em relação a determinados papéis (parentais, outros papéis familiares ou profissionais), reclamando um espaço reservado só para si e para a vida sexual do casal. Na medida em que implica distanciamento em relação a identidades predefinidas, a viagem reforça a construção da experiência sexual do indivíduo no eixo da subjetivação.
Vejamos o caso de Paula [E3, 43 anos]. A sua história sexual caracteriza-se pela abertura a novas experiências, ao desejo e à realização sexual. Em determinados momentos dessa trajetória, as viagens constituem a metáfora do espírito de aventura que deseja conferir à sua experiência sexual, ao mesmo tempo concretizada. Por exemplo, quando era estudante e teve um namorado com quem experimentou “muitas coisas novas”, entre as quais fazer sexo numa praia, num sítio escondido, ou ir para uma praia deserta fazer nudismo. Relata como, certa vez, fizeram uma longa viagem a pé, de vários quilómetros, que foi uma grande experiência do ponto de vista da sexualidade, pelos sítios recônditos e isolados que percorreram e em que pernoitavam. Há assim uma diversificação dos cenários que integram os seus scripts sexuais e que têm como componente importante o contacto com a natureza (outros entrevistados descreveram cenários como a praia à noite e ao luar, os parques naturais, a natureza que rodeia uma pequena quinta de província). Mais tarde, já casada, Paula refere o papel das viagens para combater os períodos de cansaço e de rotina motivados pela intensidade da vida profissional, por um lado, e da vida familiar, por outro. Com filhos pequenos, o casal tem o hábito de fazer períodos de férias a sós. Um hábito que só seria interrompido numa fase mais avançada do casamento, após longos anos de conjugalidade, devido à diminuição do rendimento familiar, em virtude do despedimento do marido. Não podendo viajar devido à falta de recursos económicos, Paula considera que perderam essa “lufada de ar fresco” que também os estimulava sexualmente.
Também Mariana [E08, 46 anos] descreve o tempo de férias como uma solução para revitalizar a vida sexual do casal, num momento em que esta “não é muito famosa”. Quando o seu grau de satisfação com a vida sexual não está “lá em cima”, e assumindo que o do marido também não esteja, as viagens surgem como uma estratégia “afrodisíaca”: “o que vou fazer, para já, é ir de férias, para ver se a nossa vida sexual se levanta [risos]”, o que, aliás, costuma fazer todos os anos. Considera que ter mais tempo livre é uma condição essencial para ter uma vida sexual melhor, “mais disponibilidade, mais tempo, mais tudo”.
Deste modo, as viagens, enquanto provas impostas pela vida profissional, tanto podem ser vividas e integradas na biografia como formas de suporte a uma orientação íntima mais individual, ou a uma orientação mais relacional. No primeiro caso, pelo acesso a um leque de oportunidades maior e mais variado, as viagens fornecem contextos e oportunidades propícias à diversificação da experiência sexual pelo reforço de estratégias e de uma identidade-recurso. Estas práticas contribuem para a construção de uma certa ideia de masculinidade performativa (em que a diversidade de parceiro/as e experiências é importante). No segundo caso, a integração forte em papéis familiares contribui para viver a viagem como forma de diversificação de uma sexualidade conjugal que se sabe desgastar-se com o tempo de vida em comum, em usos eminentemente relacionais. Estas práticas contribuem não tanto para a construção de identidades de género distintas, mas principalmente de uma orientação íntima relacional tanto de homens como de mulheres.
Notas finais
Ainda que a vida profissional, com os seus “altos e baixos”, seja facilmente identificada no discurso de senso comum como uma das fontes de pressão a que a vida sexual está sujeita atualmente, é menos frequente debruçarmo-nos sobre a complexidade da relação entre ambas e os modos como os indivíduos gerem essas complexidades, integrando-as na sua biografia sexual. Os resultados aqui apresentados, e que se enquadram numa investigação mais alargada sobre a experiência sexual dos portugueses, deixam antever a diversidade com que os indivíduos gerem essas pressões, na tensão entre diversas lógicas de ação, através das quais interagem com o meio social em que se inserem.
Um dos resultados mais interessantes apontados neste artigo é o facto de existir uma modalidade de articulação entre estes dois mundos, profissional e sexual, em que a agenda profissional determina praticamente toda a vida sexual dos indivíduos, principalmente quando estão em causa carreiras profissionais qualificadas e exigentes, associadas a cargos de responsabilidade e a percursos de mobilidade social ascendente. Uma vida profissional intensa significa uma forte identidade-integradora nesta dimensão, que assim determina o que acontece em termos sexuais.
Outro contributo importante do presente artigo é mostrar que o modo como esta identidade-integradora se reflete no tipo de experiência sexual varia em função de outros fatores sociais, como as relações de género, a fase do ciclo de vida profissional (v.g. início ou mudança de carreira) ou o tipo de orientação íntima (mais relacional ou mais individualista). Para alguns, esta identidade-integradora em termos profissionais é posta ao serviço de uma identidade-recurso em termos sexuais, traduzindo-se numa diversificação dos encontros, dos parceiros e da experiência sexual. A carreira profissional proporciona o contexto de acesso a um mercado mais alargado de oportunidades e contactos (por exemplo, por via das viagens), os recursos profissionais confundindo-se com os sexuais, numa orientação individualista, quer da sexualidade, quer da vida profissional. Estes são principalmente relatos masculinos.
Em contraste, nos indivíduos para quem a sexualidade é prioritariamente orientada para a relação (amorosa, conjugal orientação relacional, Bozon, 2001a), a carreira profissional e as viagens que a integram frequentemente funcionam não como meios de alargar as oportunidades fora da relação conjugal, mas antes de estimular o que acontece entre o casal, em termos sexuais. Enquanto interrupções da rotina da “conjugalidade instalada” (Torres, 2000), tanto mais importantes quantos os anos de conjugalidade, as viagens tornam-se metáforas do poder dos indivíduos para revitalizarem a sua sexualidade sem, contudo, abdicarem do imperativo relacional, em que o sexo é colocado ao serviço da manutenção da relação e a fidelidade uma norma não negociável (Marquet, 2004). A sexualidade é aqui ditada por uma forte identidade-integradora em termos profissionais, mas também conjugais, que se sobrepõem a uma identidade-recurso.
De um modo diferente, a imersão completa numa vida profissional muito intensa pode ter efeitos de suspensão da vida sexual. Isto acontece quer por razões negativas (porque o indivíduo está sobrecarregado com trabalho), quer positivas (porque está perante novos desafios que o absorvem totalmente). Quando protagonizadas pelas mulheres, ambas estas declinações assumem contornos mais intensos, dadas as pressões múltiplas a que estão sujeitas (com exigência sobreposta de desempenhos impecáveis em diversas plataformas, incluindo trabalho e família). Para as profissionais de carreira, o ambiente de grande competitividade em que vivem tem custos diretos na sua vida sexual.
A vida e o meio profissional podem também ser palco de uma gestão exigente do segredo em torno de práticas ou identidades fora da heteronorma. Acontece com gays, lésbicas e bissexuais, que são levados a ocultar, no seu local de trabalho, o sexo da pessoa com quem se relacionam, para evitar a discriminação. Acontece também com homens e mulheres heterossexuais, que se relacionam no seu local de trabalho com colegas casados. Nestes casos, a gestão do segredo é mais exigente para as mulheres, por implicar simultaneamente a gestão de danos na reputação. Estes indivíduos partilham uma consciência aguda das formas de preconceito e discriminação dissimuladas no seio das organizações, e das suas consequências: no limite, a perda do emprego, logo da independência económica, pilar da sua autonomia e individualização. Um risco que não se está disposto a correr, precisamente porque representa a base de construção livre de uma vida sexual que desafia a heteronorma.
Os resultados sugerem assim que as formas como os indivíduos gerem as pressões que resultam do confronto com o mundo profissional são diversificadas e resultam na construção de uma experiência plural. Longe de se submeterem sem reação às exigências de uma vida profissional com contornos que se podem descrever como quase totalitários, ativam estratégias variadas para vitalizar a vida sexual, de modos diferentes conforme estejam também principalmente orientados por uma lógica de jogo, competição e satisfação de necessidades individuais; ou por uma lógica que privilegia a integração em papéis (v.g. familiares, conjugais) e a manutenção das relações afetivas. O conceito de experiência sexual (Policarpo, 2014), construído empiricamente a partir do de experiência social (Dubet, 1995, 2005), com as suas três dimensões ou lógicas (integração, estratégia subjetivação), revela-se assim um interessante operador analítico a partir do qual observar o modo como o indivíduo contemporâneo gere as tensões entre plataformas distintas da vida social (profissional e sexual) e, nesse processo, se constrói como um sujeito sexual. Do mesmo modo, o conceito de prova social (Martuccelli, 2005, 2006, 2009) permitiu identificar como se vai construindo uma narrativa não linear da vida sexual, enquanto sucessão de provas que são simultaneamente profissionais e sexuais. Confrontando-se pessoalmente com cada prova da vida profissional (crescente competição nas relações laborais, crescente mobilidade geográfica numa economia global, desemprego, descontinuidades dos percursos profissionais e correspondentes transições de carreira, etc.), os indivíduos vivem-nas frequentemente como faltas pessoais e, superando-as (ou não), vão-se construindo enquanto sujeitos sexuais.
Centrando-se este estudo apenas nas classes médias, brancas, instruídas, com profissões qualificadas e com recursos económicos (importantes para proporcionar certos cenários à vida sexual, como ir de férias, ou viajar em trabalho ou lazer), fica por responder até que ponto as tendências aqui encontradas caracterizam também outros contextos de pertença étnica e socioeconómica. As modalidades de experiência identificadas neste artigo refletem a tendência recente da sociedade portuguesa para uma maior individualização, social e da sexualidade, precisamente mais protagonizada pelas classes médias. Fica, contudo, em aberto explorar como se expressam as relações entre vida profissional e sexualidade em contextos socioprofissionais mais precários: profissões menos qualificadas, incluindo manuais, menores graus de instrução, menores recursos económicos, mais precariedade no emprego, trabalhos menos gratificantes. Esta é certamente uma pista de investigação que merece ser explorada no futuro.
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Data de receção: 12 de setembro de 2016 Data de aprovação: 28 de julho de 2017
Notas
[1] Para uma descrição mais detalhada de cada uma das lógicas da experiência sexual, bem como dos ideais-tipos que a partir delas se construíram, cf. Policarpo (2014).
[2] Fonte: INE/Pordata, consultado em 22/06/2017.
[3] Fontes/entidades: INE/Inquérito ao Emprego, Pordata. Última atualização em 08/02/2017, consultado em 22/06/2017.
[4] Em 2015, a remuneração média das mulheres foi cerca de 83% da dos homens, valor ainda mais baixo entre os quadros superiores cerca de 74% (Fonte: GEP/MTSSS, até 2009; GEE/MEC, a partir de 2010; Pordata). Última atualização: 06/01/2017. Consultado em 22/06/2017). A desigualdade remuneratória entre homens e mulheres é também muito mais acentuada em Portugal, quando comparada com a média da Europa dos 27 (EIGE, 2015). As mulheres estão ainda muito menos representadas nos quantis de topo dos ganhos salariais, com um diferencial de 39% a favor dos homens entre os 10% mais bem pagos, muito acima do da média da população (em que esse diferencial é de 12,7%; Cantante, 2015).
[5] Apesar da acentuada escolarização das mulheres, a taxa de feminização é maior no setor terciário (56% em 2010 CITE, 2012). Aliás, nos vários estados membros da UE, uma maior terciarização surge associada a maiores oportunidades para a segregação de género no mercado de trabalho (EIGE, 2015). As mulheres estão também mais representadas no grupo dos trabalhadores não qualificados(74% em 2010),entre o pessoal administrativo (64,9%) e pessoal dos serviços pessoais, proteção, segurança e vendedores (62,9%). Já entre os representantes do poder legislativo, órgãos executivos, dirigentes, diretores e gestores executivos a taxa de feminização é bastante mais baixa: 32,7% (com 4,3% de mulheres identificadas como estando em cargos deste tipo, versus 7,8% dos homens) (Fonte: INE, Estatísticas do Emprego, resultados de 2011; CIG, 2012). No que respeita aos cargos de decisão, e segundo dados da Comissão Europeia, “as mulheres representam 7,4% dos membros dos conselhos de administração das maiores empresas cotadas em Portugal (índice PSI 20). Esta percentagem é consideravelmente inferior à média da EU (15,8%). Não existem mulheres com o cargo de presidente executivo ou presidente do conselho de administração nas empresas abrangidas pelo referido índice (Comissão Europeia, 2013). Portugal encontra-se assim na cauda da Europa nesta matéria. Apesar de a percentagem de mulheres portuguesas em conselhos de administração ter aumentado de 3,5% em 2003 para 7,4% em 2012, o ritmo desta mudança é lento, não assegurando num futuro próximo uma maior igualdade de género a este nível (Comissão Europeia, 2013). Não obstante esta assimetria, e segundo dados do Eurobarómetro, a esmagadora maioria dos portugueses (86%) e europeus (88%) é a favor de que as mulheres estejam igualmente representadas nos cargos de liderança das empresas, quando têm competências semelhantes às dos homens.
[6] Para uma descrição detalhada da metodologia desta investigação, cf. Policarpo (2014).