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Sociologia, Problemas e Práticas

versão impressa ISSN 0873-6529

Sociologia, Problemas e Práticas  no.89 Lisboa jan. 2019

https://doi.org/10.7458/SPP20198914771 

RECENSÃO

Moda e feminismos em Portugal. O género como espartilho [Cristina Duarte, 2017, Lisboa, Temas e Debates / Círculo de Leitores]

 

Carla Cerqueira*

* Bolseira de pós-doutoramento (SFRH/BPD/86198/2012), Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS), Universidade do Minho e professora auxiliar, Universidade Lusófona do Porto. E-mail: carlaprec3@gmail.com

 

O livro Moda e Feminismos em Portugal. O Género como Espartilho, da autoria de Cristina Duarte, apresenta uma índole académica, que resulta do trabalho desenvolvido no âmbito de uma tese de doutoramento em Sociologia. Trata-se de uma obra que prima pelo rigor científico, escrita num registo que permite que possa ser entendida por qualquer pessoa que se interesse pela temática, pois quando a autora convoca conceitos e abordagens teóricas mais complexas procura desmontá-las numa linguagem simples. Este registo parte do percurso da investigadora que, no antelóquio da obra, refere que o projeto de investigação que dá origem ao livro “parte de um diário fragmentado, com a história pessoal como pano de fundo, num registo que é autoetnográfico, numa atividade realizada como socióloga, jornalista e escritora” (p. 11). Esta não é uma obra apenas de Sociologia da Moda, mas interdisciplinar, pois respira ao longo das suas páginas de abordagens que provêm da história, dos estudos das mulheres, de género e feministas.

Este livro trata dos hábitos de vestir ao longo das décadas em Portugal, e como é que são percecionados, experienciados e mostrados por várias mulheres, com diversas trajetórias de vida e idades. É precisamente neste ponto que me parece que reside um dos aspetos mais inovadores do projeto, nas 41 mulheres entrevistadas e a quem Cristina Duarte deu voz para falar da(s) moda(s). Paralelamente a estas entrevistas, a autora fez uma análise da imprensa periódica portuguesa dedicada às mulheres, quer em arquivos pessoais, quer em arquivos públicos, convocando todos esses materiais para a análise ao longo do livro.

Na introdução refere-se que “o modo como o género e o vestuário estruturam o pensamento coloca as práticas do vestir ao nível dos discursos sem palavras” (p. 19). É disto que se ocupa a obra, de estudar e refletir sobre o fenómeno social da moda e como ele assume um papel crucial nas nossas vidas, muito mais ainda quando somos mulheres. A metáfora, extremamente bem conseguida, do género como espartilho, como algo que nos amarra, que nos prende, que se usa porque fica em conformidade com a lógica dominante da sociedade em que estamos e que muitas vezes nem se questiona, é sublinhada nas diversas entrevistas analisadas. Paralelamente, esse espartilho é desapertado em vários momentos e com recurso a diversas estratégias de resistência, aspeto esse também ressaltado em vários momentos das entrevistas. Aqui percebemos a complexidade que atravessa esta área, muitas vezes imbuída de olhares paradoxais.

“Antes de pensar o corpo como projeto pessoal a partir do vestuário, há que pensá-lo formado pela educação e pela disciplina do corpo” (p. 20). Desde o início do livro que a autora nos alerta para a influência do processo de socialização, sobretudo quando enfatiza que a moda é vestuário, mas é também discurso. Esta ideia remete-nos imediatamente para Erving Goffman (1993 [1959]) e para a o facto de sermos atores sociais, usarmos máscaras nas interações, nas quais se incluem as nossas práticas de vestir, que são práticas de agir e de performatividade.

O livro está dividido em seis capítulos e uma conclusão. Nos dois primeiros capítulos, Cristina Duarte apresenta o enquadramento teórico do trabalho de investigação. Traz para a reflexão várias autoras e autores, perspetivas teóricas, e nunca ignora o percurso histórico e o contexto. Aliás, é muito interessante perceber como está aqui refletida a importância do conhecimento situado (Haraway, 1988).

No terceiro capítulo explicam-se as opções metodológicas. Volto aqui a sublinhar a relevância das escolhas feitas pela autora, nomeadamente no que diz respeito às participantes no estudo: 41 mulheres que nasceram entre 1926 e 2000, de origens sociais, culturais e geográficas diversas, mas que têm o ponto comum de viverem no meio urbano. Esta diversidade de olhares marcados por trajetórias de vida muito diferenciadas vai ser fundamental para pensar o fenómeno da moda do ponto de vista autobiográfico. A questão da memória pessoal e social é aqui também um fator de relevo e que vai ser explorado ao longo da análise. Além das entrevistas, os materiais que foram disponibilizados pelas mulheres e os que foram consultados ao longo deste processo tornaram-se fundamentais para a análise que se ancora não só nos discursos, mas nos registos visuais existentes e que vão marcando a vida destas mulheres ao longo de décadas.

As quatro dimensões analisadas são muito relevantes para perceber estas trajetórias e a moda como dispositivo de género: a relação que estas mulheres sempre tiveram, ao longo da sua vida, com o vestir/vestuário; o vestuário, o feminino e o masculino, a função do desempenho do género; a representação de si através do dispositivo da moda; e as peças de vestuário que as marcaram (p. 189). Ao olharmos para estas dimensões parece que somos transportadas para refletir sobre as nossas próprias histórias e a relação que estabelecemos com o vestir e com a(s) moda(s). Esta interpelação perpassa todo o livro, pois como mulheres que vivemos na mesma sociedade destas entrevistadas, que somos quotidianamente bombardeadas pela indústria da moda, percebemos que muitas vezes cedemos ao normativo, e outras tantas vezes usamos o que vestimos como atos de resistência.

A discussão dos resultados das entrevistas está escrita de modo que conseguimos perceber o contexto de vivência das mulheres, que começa com as marcas de um passado fechado, conservador, e do silenciamento das vozes durante o Estado Novo. Numa altura em que se abriam horizontes, trazidos pelo cinema e pelas várias indústrias culturais, verifica-se um fechamento do país que se vai refletir nas vivências destas mulheres. É com a II Guerra Mundial que as vozes começam a aparecer timidamente, num início de abertura ao exterior. Tempos entre a clausura e a libertação que são contados pelas entrevistadas e que são os alicerces para as vozes de mudança da década de 1970, que vão antecipar aquilo que viria alguns anos depois a acontecer, a revolução. Nas narrativas das mulheres entrevistadas percebe-se que chegam os ventos de mudança e as vozes de contestação com o 25 de Abril, mas as mudanças de mentalidade parece que custam a acompanhar os tempos. E em seguida dá-se voz às filhas da revolução e à forma como falam das pressões em relação ao corpo. Numa sociedade em que alguns aspetos são de resistência e outros são de dominação. Nas trajetórias contadas percebe-se que as questões em torno da moda e de como ela é genderizada não são assim tão simples de analisar, muitas vezes são mesmo paradoxais, oscilando entre a submissão e a libertação.

No capítulo 6 a autora apresenta uma comparação intergeracional entre mães, filhas e netas, de forma a mostrar como os estereótipos de género são passados pelos vários agentes de socialização, entre os quais a família. Nestas narrativas autobiográficas são sublinhados atos de empoderamento (exemplo: cortar o cabelo a uma filha), bem como atos de reprodução das normas sociais. Ao longo dos seus discursos as entrevistadas sublinham os espartilhos, mais literais ou mais metafóricos, mas que acabam por estar presentes na sua relação com a moda. Também os média são aqui sublinhados pela projeção que fazem de determinados modelos de corpo, do ideal normativo da beleza e do imperativo da moda, tal como nos chegou a mencionar Jean Baudrillard (2008 [1970]).

Assim, considero que se trata de um livro de referência na área, que vem colmatar uma lacuna existente neste campo de investigação em Portugal e que permite refletir sobre a moda como fenómeno social genderizado. No que concerne à relevância social, contribui para a discussão sobre a forma como o corpo e a moda comunicam e de que forma é que podem ser usados como mecanismos de opressão e/ou de resistência social.

Para concluir, a metáfora do espartilho fica como mote para pensar nas várias formas de dominação simbólica que persistem, muitas delas extremamente subtis e que nos fazem pensar nesta questão da ilusão da igualdade e como é que esta se manifesta no nosso quotidiano.

 

Referências bibliográficas

Baudrillard, Jean (2008 [1970]), A Sociedade de Consumo, Lisboa, Edições 70.         [ Links ]

Goffman, Erving (1993 [1959]), A Apresentação do Eu na Vida de Todos os Dias, Lisboa, Relógio D´Água.         [ Links ]

Haraway, Donna (1988), “Situated knowledges: the science question in Feminism and the privilege of partial perspective”, Feminist Studies, 14 (3), pp. 575-599.

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