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Sociologia, Problemas e Práticas
versão impressa ISSN 0873-6529
Sociologia, Problemas e Práticas no.92 Lisboa jan. 2020
https://doi.org/10.7458/SPP20209211728
ARTIGO ORIGINAL
Estudos de implementação de políticas públicas: uma revisão de literatura
Public policy implementation studies: a literature review
Études de mise en uvre des politiques publiques : passage en revue de la littérature
Estudios de implementación de políticas públicas: una revisión de la literatura
Luís F. Mota*
* Professor auxiliar convidado e investigador de pós-doutoramento, Universidade de Aveiro, Unidade de Investigação em Governança, Competitividade e Políticas Públicas (GOVCOPP-UA), Aveiro, Portugal, E-mail: luismota@ua.pt
RESUMO
O objetivo deste artigo é apresentar uma revisão crítica da literatura sobre os Estudos de Implementação de Políticas Públicas, de forma a contribuir para o desenvolvimento desta disciplina em Portugal. A relevância desta análise decorre de a implementação ser ainda pouco estudada no país, sobretudo numa vertente processual, mesmo sendo frequentemente apontada como das principais lacunas da governação pública nacional. O artigo começa por analisar os principais contributos das diferentes gerações de estudos e dos desenvolvimentos recentes da disciplina, concluindo com algumas pistas sobre como desenvolver investigação nesta área disciplinar.
Palavras-chave: políticas públicas, implementação, frameworks de análise.
ABSTRACT
The goal of this paper is to present a critical literature review about Policy Implementation Studies, so to contribute to the development of this discipline in Portugal. The relevance of this analysis derives from implementation still being scarcely studied in the country, particularly with a procedural approach, even if being frequently identified as one of the main lacuna within national public governance. The paper starts with an analysis on the main contributes from the different generations of implementation studies and from its recent developments, and it concludes with a set of clues on how to develop research in this discipline.
Keywords: public policies, implementation, frameworks of analysis.
RÉSUMÉ
Cet article fait un passage en revue critique de la littérature sur les études de mise en uvre des politiques publiques, afin de contribuer au développement de cette discipline au Portugal. Limportance de cette analyse tient au fait que la mise en uvre soit encore peu étudiée dans le pays, surtout sous laspect processuel. Elle est même fréquemment pointée comme lune des principales lacunes de la gouvernance publique nationale. Larticle commence par analyser les principales contributions des différentes générations détudes et des développements récents de la discipline, et il conclut en donnant quelques pistes sur la façon de développer la recherche dans ce domaine disciplinaire.
Mots-clés: politiques publiques, mise en uvre, cadre danalyse.
RESUMEN
El objetivo de este artículo es presentar una revisión crítica de la literatura sobre los Estudios de Implementación de Políticas Públicas, como contribución para el desarrollo de esta disciplina en Portugal. La relevancia de este análisis deviene de que esta implementación aún es poco estudiada en el país, sobre todo en su vertiente procesal, incluso siendo frecuentemente señalada como una de las principales lagunas de gobernación pública nacional. El artículo comienza por analizar las principales contribuciones de las diferentes generaciones de estudios y de los desarrollos recientes de la disciplina, concluyendo con algunas pistas sobre cómo desarrollar investigación en esta área disciplinar.
Palabras-clave: políticas públicas, implementación, marcos de análisis.
Introdução
A implementação é um dos elementos mais complexos, mas também mais decisivos do processo de políticas públicas, já que é nesta fase que as políticas encontram a realidade e produzem (idealmente) os resultados e impactos necessários para resolver, mitigar ou prevenir os problemas ou questões que motivaram a sua formulação (Hill e Hupe, 2009).
Não obstante a importância da implementação, esta fase não tem sido devidamente estudada ao longo da curta, embora diversificada, história da Ciência das Políticas Públicas, que teve início na década de 50 do séc. XX. A implementação não foi, de facto, alvo de grande atenção científica até à década de 70 do séc. XX, uma vez que prevalecia anteriormente a ideia de que esta não seria uma fase crítica do processo de políticas públicas, já que era entendida como a mera execução técnica de decisões previamente formuladas pelos decisores políticos (deLeon e deLeon, 2002). A ideia de simplicidade da implementação tem vindo, contudo, a ser contestada por alguns Estudos de Implementação, cujas conclusões apontam precisamente para o facto de esta fase não ser uma atividade trivial e simples (Knill e Tosun, 2012).
O reconhecimento da complexidade dos contextos de implementação foi, assim, um dos fatores que conduziu a um maior interesse para o estudo da implementação por parte de muitos académicos e profissionais, dando origem a diversas gerações de estudos durante as décadas de 70 e 80 do séc. XX. Tais estudos dedicaram-se, sobretudo, a questões processuais, em oposição aos Estudos de Avaliação, que se dedicam mais aos resultados e impactos das políticas (Hill e Hupe, 2009).
A complexidade e diversidade inerentes a esta área disciplinar têm, no entanto, contribuído também para dificultar a tarefa de desenvolvimento de modelos analíticos (deLeon e deLeon, 2002). Este cenário de difícil modelização tem, por sua vez, conduzido a diferentes posicionamentos quanto ao presente e futuro dos Estudos de Implementação desde a década de 90 do séc. XX (Lester e Goggin, 1998; Hupe, 2014): alguns académicos abandonaram este campo de estudo; outros autores têm-se dedicado a temáticas mais específicas, por considerarem que a análise da implementação na sua plenitude é demasiado complexa; e outros ainda têm continuado a desenvolver estudos da mesma forma.
Em Portugal, e ao contrário do que aconteceu nos Estados Unidos da América e em diversos países da Europa Ocidental, os Estudos de Implementação são uma área de investigação ainda pouco desenvolvida em Portugal. O mesmo acontece, aliás, embora em menor grau, com a Ciência das Políticas Públicas, em geral, num contexto que será abordado nas notas finais deste artigo.
A escassez de estudos dedicados às dinâmicas processuais da implementação em Portugal contrasta, contudo, com um cenário de repetidas referências às debilidades na implementação de políticas no país, sobretudo em contextos multiatores e que, por isso mesmo, colocam desafios de colaboração e coordenação interorganizacional (Cardim, 2006; Mota, 2016; Raposinho e Mota, 2019).
O objetivo deste artigo é, assim, contribuir para o desenvolvimento dos Estudos de Implementação em Portugal, nomeadamente através da apresentação de uma revisão crítica da literatura que se debruça sobre esta fase do processo de políticas públicas, complementada com uma reflexão sobre os necessários passos para o desenvolvimento desta em Portugal. Para tal, este artigo está divido em três partes: numa primeira parte, faz-se uma análise histórica e comparativa das várias abordagens que compõem os Estudos de Implementação; numa segunda parte, apresentam-se as principais tendências recentes desta área disciplinar; e, numa terceira e última parte, far-se-á uma reflexão com algumas pistas sobre a forma como se considera que a disciplina deverá evoluir, sobretudo em Portugal.
Gerações de Estudos de Implementação
Como referido na secção introdutória, os primeiros Estudos de Implementação datam apenas do início da década de 70 do séc. XX, muito embora alguns dos temas que viriam a figurar como objeto de análise desta disciplina já fossem alvo de atenção de outras disciplinas, tais como a Ciência da Administração, a Teoria Organizacional ou a Avaliação de Políticas Públicas, ainda que com abordagens relativamente diferentes (Sætren, 2005). Os primeiros Estudos de Implementação terão tido origem, precisamente, a partir de Estudos de Avaliação de diversas políticas públicas nos Estados Unidos da América, nomeadamente as do programa Great Society (Winter, 2012b). Foi, aliás, neste âmbito que surgiu o livro Implementation, da autoria de Pressman e Wildavsky (1973), tido, por muitos, como a obra seminal dos Estudos de Implementação.
Após esta fase de emergência, os Estudos de Implementação registaram uma grande expansão ao nível da produção científica durante as décadas de 70 e 80 do séc. XX, dando origem a diferentes gerações de estudos, as quais são caracterizadas por uma enorme diversidade de abordagens conceptuais, metodológicas e teóricas (Winter, 2012b; Hill e Hupe, 2009). Ao longo desta secção serão apresentadas as três gerações de investigação dos Estudos de Implementação habitualmente referidas nos manuais de especialidade.
Primeira geração de Estudos de Implementação ou estudos pioneiros
É comummente aceite que terão sido realizados poucos estudos subordinados à temática da implementação até ao início da década de 70 do séc. XX, ideia que foi, aliás, expressa pelos próprios Pressman e Wildavsky (1973) no início do seu livro Implementation.
Perante tal contexto, não será de estranhar que os Estudos de Implementação da designada primeira geração se constituíssem como estudos de caso tipicamente exploratórios, descritivos e indutivos (Goggin, 1986; Sætren, 2014). De acordo com Lester, Bowman, Goggin e OToole (1987), incluem-se nesta tendência os estudos New Towns in Town, de Derthick (1972), Implementation, de Pressman e Wildavsky (1973), e The Implementation Game, de Bardach (1977).
Um outro aspecto evidente nesta primeira geração de estudos é o tom pessimista quanto à possibilidade de a implementação ser bem-sucedida, tendo em atenção a complexidade e diversidade de atores (Goggin, 1986; Sætren, 2014). Apesar desse tom negativista, importa assinalar que os estudos de primeira geração terão sido responsáveis por alertar para a complexidade da implementação e por terem despertado o interesse de académicos e profissionais para esta área de estudo (deLeon e deLeon, 2002).
Esta geração de estudos poderá ser, contudo, criticada por não ter formulado modelos generalizáveis (Lester et al., 1987), já que não avançavam variáveis teóricas centrais (Winter, 2012b). Será exatamente na tentativa de suprir essa lacuna que surgiu a designada segunda geração de Estudos de Implementação, que será abordada na próxima secção.
Segunda geração de Estudos de Implementação: o desenho de frameworks e o debate top-down vs bottom-up
A segunda geração de Estudos de Implementação destaca-se por ter maiores níveis de sofisticação e consciência teórica do que os estudos anteriores e por se preocupar com a produção de frameworks de análise que identificassem fatores-chave da implementação (Lester et al., 1987; Sætren, 2014). Esta geração de estudos é caracterizada ainda por um largo debate entre as abordagens top-down e bottom-up, as quais diferem em diversos aspetos, tal como será explorado seguidamente.
Abordagem top-down
A abordagem top-down dos Estudos de Implementação foi iniciada na segunda metade da década de 70 do séc. XX e segue, de certo modo, o legado dos estudos de primeira geração, já que tem como principal base de análise os objetivos formulados pelos decisores centrais no diploma legal (top), analisando, posteriormente, se esses objetivos estarão a ser cumpridos através das tarefas desempenhadas pelos implementadores locais (bottom) (Sabatier, 1986).
A abordagem top-down ficou, assim, marcada pelo desenvolvimento de listas e frameworks analíticas com fatores determinantes para alcançar uma “implementação perfeita” (Lester et al., 1987; Matland, 1995). Numa primeira fase destacaram-se, neste âmbito, algumas listas de fatores críticos para o sucesso da implementação, bem como a framework de Van Meter e Van Horn (1975).
O trabalho mais destacado da abordagem top-down será, contudo, a framework de Sabatier e Mazmanian (1980), na qual os autores referem a relevância dos seguintes fatores-chave: (1) objetivos claros e consistentes; (2) teoria causal adequada; (3) estruturação legal para promover o cumprimento dos implementadores e dos grupos-alvo; (4) implementadores empenhados e competentes; (5) apoio dos grupos de interesse e dos decisores soberanos ao longo de todo o processo; e (6) um contexto socioeconómico cujas mudanças não debilitem o apoio político ou a teoria causal subjacente à formulação da política.
Apelidando a abordagem top-down por “modelo instrumental”, Stoker (1989) referiu que as suas principais características seriam: (1) entendimento da implementação como um meio de executar as diretivas superiormente definidas; (2) valorização da centralização da autoridade; (3) separação clara entre formulação e implementação; (4) assunção de que a deficiente comunicação ou distorção das intenções formuladas seriam os principais problemas da implementação; (5) consequente observação do desvio face aos objetivos centralmente definidos como comportamento disfuncional e ilegítimo; e (6) valorização da conformidade (compliance) em detrimento da cooperação.
Tendo em atenção estas características, Matland (1995) refere que esta abordagem é, frequentemente, alvo de três grandes críticas: (1) a assunção da linguagem estatutária como ponto de partida e como algo racional, desvalorizando o nível de negociação subjacente aos processos de formulação dos diplomas legais; (2) o entendimento da implementação como um processo administrativo de cumprimento de objetivos claros e libertos de qualquer disputa política; (3) o enfoque exacerbado nos formuladores da política enquanto atores-chave, o que representa, para os críticos desta abordagem, um duplo erro, não só porque os implementadores locais estão na posse de maior conhecimento para darem resposta aos problemas a intervencionar (erro normativo), mas também porque o poder discricionário dos funcionários de base será inevitável (erro positivista).
Muitas destas críticas apresentadas terão constituído a base da emergência da abordagem bottom-up, cujas características serão apresentadas de seguida.
Abordagem bottom-up
A abordagem bottom-up surgiu, igualmente, no final da década de 70 e início da década de 80 do séc. XX, e foi formulada como uma clara crítica à abordagem top-down. De acordo com os autores que defendem esta abordagem (bottom-uppers), o que realmente se constitui como política pública é aquilo que se passa ao nível da implementação no “terreno” (bottom). A este propósito, Lipsky, por muitos entendido como o pai desta abordagem, defende que “as decisões dos street-level bureaucrats, as rotinas que estes estabelecem, e as ferramentas que estes inventam para lidar com as incertezas e pressões do trabalho tornam-se efetivamente nas políticas públicas que eles implementam” (Lipsky, 1980: xii).
De igual modo, a abordagem bottom-up advoga a enorme relevância dos contextos e redes locais e a necessidade de se atribuir maior liberdade de adaptação dos programas e políticas públicas às condições locais, sob a pena de os mesmos falharem (Matland, 1995).
Na exploração da temática das redes locais de implementação destacam-se os trabalhos de Hjern e seus colaboradores (D. Porter, K. Hanf e C. Hull), os quais foram influenciados pelos estudos organizacionais da década de 70 do séc. XX, que começavam a atribuir uma crescente atenção à dimensão interorganizacional (Hjern e Hull, 1982). No conjunto de trabalhos destes autores sobre a temática das redes merece destaque um artigo de Hjern e Porter (1981), no qual os autores advogam que a unidade de análise dos Estudos de Implementação não deverá ser uma única “organização”, mas antes as “estruturas de implementação”, ou seja, redes constituídas por múltiplos atores organizadas em torno de um programa específico.
A temática da negociação entre atores no âmbito da implementação terá sido, por sua vez, amplamente analisada por Barrett e Fudge, dois autores britânicos cujo trabalho terá sido influenciado pela noção de “estruturas de implementação” de Hjern e Porter e pelos já referidos estudos organizacionais (Hill e Hupe, 2009), Barrett e Fudge (1981) advogam, na sua obra Policy and Action, que a “política” (entendida enquanto conjunto de objetivos centralmente definidos) não deverá ser vista como uma constante, já que esta será necessariamente modificada pela “ação” ao nível da implementação. Ademais, os autores defendem ainda que as atividades dos implementadores poderão ser “controladas” pelos decisores centrais, não apenas através de incentivos ou ameaças de sanções (postulado top-downer), mas também através de mecanismos de negociação e compromisso, numa lógica de “ordem negociada” (Barrett e Fudge, 1981). Neste sentido, Barrett e Fudge (1981) defendiam ainda que a variável dependente dos Estudos de Implementação deveria ser o desempenho dos implementadores (performance) em detrimento da conformidade com os objetivos (conformance).
Tendo em atenção o interesse da abordagem bottom-up pelos contextos, atores e dinâmicas locais, Hjern e os seus colaboradores (vide, inter alia, Hjern e Hull, 1982) terão ainda desenvolvido uma metodologia que, ao invés de ter como foco os objetivos centralmente definidos e uma alegada unidade de comando (que designaram constitucionalismo formal), sujeitava as unidades de análise a uma lógica indutiva de empirismo (que apelidaram constitucionalismo empírico). Para tanto, a abordagem metodológica começava por identificar os diversos atores intervenientes no processo de implementação, inquirindo-os, posteriormente, não apenas quanto aos objetivos pessoais e organizacionais subjacentes às estratégias de implementação utilizadas, mas também quanto às redes de contacto erigidas, o que permitiria mapear a estrutura de implementação inerente à intervenção sobre um determinado problema (Hjern e Hull, 1982).
De acordo com a análise comparativa entre as abordagens top-down e bottom-up elaborada por Sabatier (1986), esta metodologia de Hjern e seus colaboradores tem a vantagem de aferir a importância relativa de uma variedade de programas, de conseguir identificar um importante conjunto de consequências inesperadas e de conseguir analisar domínios de políticas públicas com diversos programas.
Designando a abordagem bottom-up por “modelo de acomodação”, Stoker (1989) refere que esta abordagem se destaca por ter as seguintes características: (1) a conceção do processo de implementação como uma arena política e de relações de troca, ao invés de um simples cumprimento de objetivos superiormente definidos; (2) a valorização da autoridade difusa e do conhecimento particular e situacional; (3) a defesa da ideia de que a política pública evolui ao longo da implementação, daí que não faça especial sentido conceber a separação estanque entre formulação e implementação; (4) o entendimento da dificuldade de acomodação das diferenças dos contextos locais e das mudanças nas práticas, perspetivas e valores ou dos contextos locais, como os principais problemas da implementação; e (5) a valorização da resolução de conflitos, em detrimento da conformidade com os objetivos inicialmente definidos.
Muito embora reconhecendo diversas virtudes à abordagem bottom-up, nomeadamente à metodologia desenvolvida por Hjern e seus colegas, Sabatier (1986) aponta também algumas críticas à abordagem bottom-up, no geral, e à metodologia referida, em concreto, nomeadamente: a não consideração da capacidade que o “centro” tem em influenciar a estrutura de implementação, quer seja através de sanções, quer seja através do poder de decidir quais os atores que têm legitimidade para participar na implementação; e, a incapacidade de formulação de uma teoria explícita, já que, ao basear-se sobretudo nas perceções dos participantes, não consegue determinar que fatores influenciam indiretamente o comportamento destes.
Matland (1995) refere, ainda, que a abordagem bottom-up é recorrentemente alvo de uma crítica normativa relacionada com a defesa da provisão de autonomia e flexibilidade a atores não eleitos pelos cidadãos. Já Stoker (1989) acrescenta que a abordagem bottom-up poderá ser também criticada por três razões: (1) por supor que os funcionários de base seriam, necessariamente, agentes facilitadores e solucionadores, ao invés de agentes de bloqueio de mudanças; (2) por não ter standards para avaliar as variáveis de desempenho dos implementadores; e (3) por não conseguir explicar porque é que é possível alcançar a cooperação entre atores em alguns cenários e noutros não.
***
Tal como foi possível constatar, as abordagens top-down e bottom-up apresentam claras diferenças quanto ao principal enfoque de análise, à variável dependente, à estratégia metodológica, aos objetivos de análise e até à própria conceção de democracia. Considerando as pronunciadas diferenças e que ambas as abordagens tendiam a ignorar-se mutuamente e a extremar claramente as suas posições, diversos autores terão optado por abandonar esta disputa, dedicando-se à elaboração de propostas contingenciais e sintetizadoras.
De acordo com alguns autores (vide, inter alia, Fox, 1987, e Yanow, 1987), os Estudos de Implementação realizados até meados da década de 80 padeciam de alguns problemas decorrentes de um forte enviesamento a favor da utilização da abordagem top-down, do modelo racional-compreensivo e de uma orientação ontológica.
Um conjunto de outros autores defendiam, por outro lado, que o principal problema da dita segunda geração de Estudos de Implementação seria a falta de acumulação de conhecimento e a inexistência de proposição e teste de hipóteses e consequente formulação de teorias (Lester et al., 1987). No sentido de ultrapassar estes problemas, Goggin e os seus colaboradores (Goggin, 1986; Lester et al., 1987) elaboraram ainda um conjunto de sugestões para os estudos de implementação vindouros que se relacionavam com a clarificação das “variáveis cruciais”, a formulação e teste de hipóteses teoricamente fundamentadas, um maior recurso a dados quantitativos e a técnicas de análise estatística, ou ainda o desenvolvimento de estudos comparativos (entre contextos e entre políticas) e longitudinais.
A proposta da terceira geração de Estudos de Implementação revela, assim, preocupações em conciliar as abordagens top-down e bottom-up através de perspetivas sintetizadoras ou contingenciais, mas também preocupações de promoção teórica e metodológica. No ponto que se segue, são apresentadas os principais autores e linhas orientadoras desta geração.
Terceira geração de Estudos de Implementação ou teorias híbridas
Tal como anteriormente referido, em meados da década de 80 registavam-se diversas críticas aos Estudos de Implementação, que posteriormente viriam a ser designados de segunda geração. Neste sentido, foi desenvolvido, no final da década de 80 e início da década de 90 do séc. XX, um conjunto de estudos que ultrapassaram, de certo modo, a disputa estéril entre as abordagens top-down e bottom-up, ao prosseguirem abordagens sintetizadoras e contingenciais (OToole Jr., 2004).
Por um lado, os estudos contingenciais destacaram-se por abandonar a ideia de uma estratégia “ideal” de implementação única, já que defendem que diferentes condições de contexto requerem diferentes estratégias de implementação e da sua análise (deLeon e deLeon, 2002). Nesse grupo de estudos merecem destaque, entre outros, os estudos de Ripley e Franklin (1982), mas sobretudo o de Matland (1995).
O estudo de Matland (1995) foca-se em dois fatores que o autor considerava serem características inerentes e inevitáveis de uma política pública: (a) o nível de ambiguidade dos objetivos e recursos, o qual influencia a capacidade de monitorização da política pelos atores do topo, a probabilidade de compreensão uniforme da política em diferentes contextos de implementação, a probabilidade de maior impacto dos fatores contextuais locais, ou ainda a diversidade de stakeholders envolvidos entre diferentes contextos; e (b) o nível de conflito no que se refere às visões e interesses de diferentes stakeholders, o qual produz efeito sobre a facilidade de acesso ao processo de implementação e sobre os tipos de ações de resolução de conflitos (negociação vs, coerção).
Tendo em atenção estas duas variáveis, Matland (1995) elaborou uma matriz 2X2, na qual refere quatro situações:
as políticas públicas claras e com pouco conflito, que tendem a ter um processo de implementação de caráter administrativo e em que os decisores de topo têm maior nível de influência, daí que a abordagem top-down tradicional seja mais adequada; as políticas públicas com objetivos muito ambíguos, mas com pouco conflito quanto aos objetivos e interesses envolvidos, que tendem a ter processos de implementação de natureza experimental e em que microimplementadores têm maior poder e as variações entre locais são geralmente incentivadas, pelo que a abordagem bottom-up será a mais adequada; as políticas públicas com elevados níveis de conflito, mas com reduzidos níveis de ambiguidade, que tendem a ter um processo de implementação de natureza política, no qual o acesso e a provisão de recursos estarão envoltos numa atmosfera politizada, revelando-se os novos modelos top-down como mais adequados; as políticas públicas com elevados níveis de ambiguidade e de conflito, que tendem a ter processos de implementação de caráter simbólico e em que os atores locais desempenham papéis bastante relevantes, mas em que existe uma elevada carga política, pelo que ambas as abordagens são adequadas.No grupo dos estudos sintetizadores, os estudos que mais se destacam são o “modelo de comunicação de implementação intergovernamental de políticas”, desenvolvido por M. Goggin, A. Bowman, J. Lester e L. OToole Jr., a “framework de regimes de implementação”, de R. Stoker, e o “modelo integrado de implementação”, de S. Winter.
Começando pelo modelo de Goggin et al. (1990), importa referir, desde logo, que este tem o objetivo de compreender as dinâmicas da implementação intergovernamental americana nos seus três níveis governativos federal, estadual e local. Dirigindo especial atenção ao nível estadual, Goggin et al. (1990) consideram que a implementação deverá ser avaliada com base na conformidade (compliance) dos resultados com os objetivos estabelecidos na lei, utilizando, para tal, um continuum com quatro gradações: “desobediência imediata” (outright defiance); “atraso” (delay); “atraso estratégico” (strategic delay) e “cumprimento” (compliance).
Já em relação às variáveis independentes, Goggin et al. (1990) consideram que o cumprimento dos objetivos estabelecidos na lei, de forma imediata e sem modificações, no nível estadual estará dependente dos seguintes fatores:
as “mensagens” federais serem: (a) acompanhadas por recursos, (b) credíveis enquanto soluções viáveis para o problema, (c) claras; (d) consistentes com outras políticas; (e) frequentemente repetidas; (f) efetivamente recebidas, (g) proferidas por decisores federais percecionados como possuidores de legitimidade e credibilidade; as “mensagens” provenientes de atores estaduais e locais cumprirem os mesmos critérios que as mensagens federais e existirem, ao nível estadual, coligações alargadas, fortes e apoiantes da política; existir capacidade organizacional, expressa através de um reduzido número de unidades organizacionais envolvidas no processo de implementação e de uma significativa quantidade de recursos humanos e financeiros alocados à política; existir capacidade ecológica, revelada através de disponibilidade de recursos financeiros e de estabilidade política ao nível estadual e da saliência pública e mediática do problema.Como foi possível observar, o “modelo de comunicação de implementação intergovernamental de políticas” incorpora um conjunto de hipóteses passíveis de teste sobre os fatores que facilitam e constrangem a comunicação entre os diferentes níveis de atores intervenientes na implementação. Contudo, esta poderá ser alvo de críticas por se concentrar num aspeto particular da implementação (a comunicação entre níveis) e pela dificuldade de manuseamento de um tão elevado número de variáveis (Hill e Hupe, 2009).
Na “framework de regimes de implementação”, Stoker (1989) dedica-se, igualmente, às questões dos desafios da implementação em contextos federais, incorporando contributos das abordagens top-down e bottom-up, ou daquilo que o autor designa, respetivamente, modelo instrumental e modelo de acomodação. Da análise da framework do autor (Stoker, 1989) é possível constatar, desde logo, que a cooperação entre atores e níveis ocupa especial destaque. De acordo com Stoker (1989), este caráter dinâmico do processo de implementação reflete-se em duas tendências que se revelam com o desenrolar do tempo:
a diminuição do custo/risco de cooperação ao longo do processo, já que, após um período inicial em que os atores adotam uma postura de desconfiança para evitar comportamentos abusivos, as relações de confiança começam a desenvolver-se por força do historial de interações que torna o comportamento mais previsível e reduz o risco de “exploração”; o aumento do custo/risco de abandono por parte dos atores intervenientes ao longo do processo, já que, após um período em que o habitual elevado turnover de atores inicial não comporta problemas por ainda não estar criado um grupo coeso de elementos, segue-se uma fase em que o grupo já está coeso e em que a perda de um parceiro significa uma maior perda.Considerando estas duas dinâmicas de evolução, Stoker (1989) refere que as expectativas de bom desempenho deverão ser menores no início do processo de implementação, já que, à medida que o tempo for passando e o regime de implementação se for desenvolvendo, a cooperação e a adaptação mútua tornar-se-ão mais prováveis. A propósito destas dinâmicas, Stoker (1989) menciona, ainda, que a complexidade e a elevada multiplicidade de atores tendem a dificultar os processos de implementação, já que se torna mais difícil identificar e reconhecer os interesses dos restantes parceiros, coordenar os atores em torno de um interesse comum e monitorizar os diferentes participantes. Apesar desta proposição, Stoker (1989) afirma que a complexidade não deverá ser encarada como uma necessária perda de eficácia, já que esta pode servir propósitos como uma defesa da representação de interesses e uma forma de evitar o abuso de poder por parte dos atores centrais.
Como se pode observar pela exposição apresentada, apesar de ambas as frameworks se proporem proceder a uma conjugação das abordagens top-down e bottom-up na análise das relações entre atores em regimes federais, é possível constatar que apresentam uma clara identificação com uma das abordagens da segunda geração dos Estudos de Implementação. Na sua comparação entre as duas frameworks, Cline (2000) terá chegado a essa mesma conclusão, referindo que o modelo comunicacional (CM) se aproxima da abordagem top-down, enquanto que a framework de regimes de implementação (IRF) se aproxima da abordagem bottom-up.
Por fim, destaca-se ainda, no âmbito da terceira geração de Estudos de Implementação, a framework apresentada por Winter, cujo propósito “não é estabelecer uma verdadeira síntese entre as abordagens top-down e bottom-up, mas sim integrar um conjunto dos elementos teóricos mais frutíferos a partir de várias peças de investigação de implementação ” (Winter, 2012b: 242). Esta framework foi originalmente formulada em 1990, sendo atualmente considerada como uma das mais completas e integradoras do campo de estudo da implementação. Tal é comprovável por ter constituído a base de uma secção do Handbook of Public Administration (editado pela Sage e organizado por Peters e Pierre em 2003) dedicada exclusivamente ao tema da implementação (Winter, 2012a) e por a maioria das suas considerações sobre as variáveis dependentes e independentes serem similares às formuladas num dos mais conceituados manuais sobre implementação da atualidade (Hill e Hupe, 2009).
No âmbito da formulação desta framework, Winter (2012a) destaca, entre outros aspetos, que as variáveis dependentes mais adequadas para os Estudos de Implementação não seriam o mero “cumprimento dos objetivos” ou o impacto das políticas, mas sim os produtos diretos do desempenho dos implementadores (outputs), alinhando-se, assim, com a proposta de Barrett e Fudge já referida. Já em relação às variáveis independentes, Winter (2012a) destaca diversos grupos de variáveis que podem influenciar, positiva ou negativamente, os processos de implementação, nomeadamente:
os processos de formulação e desenho das políticas, nomeadamente porque o nível de conflito no decorrer destes processos influencia a clareza nos objetivos das políticas ou o nível de coerência entre os objetivos e os meios disponibilizados; o comportamento organizacional e interorganizacional, nomeadamente porque cenários de implementação que envolvam necessariamente vários atores de diversos níveis de atuação (local, regional, nacional e supranacional) e de diferentes tipologias de instituições (públicas, privadas e do terceiro setor) incorporam maiores exigências ao nível de compromisso e coordenação entre atores; a gestão organizacional, nomeadamente quanto ao nível de autonomia no desenho das estruturas organizacionais e na alocação de recursos e à relação com os funcionários do terreno; os comportamentos dos funcionários do terreno (street-level bureaucrats), na medida em que as estratégias que esses indivíduos adotam para lidar com as pressões inerentes aos processos de disponibilização de bens e serviços (geralmente, muitas requisições e poucos recursos) podem conduzir a alterações da política face ao estabelecido estatutariamente; o comportamento dos grupos-alvo, já que as atitudes de maior ou menor resistência à mudança destes grupos (sejam eles, cidadãos ou organizações) condicionam geralmente a atuação dos funcionários do terreno; o contexto socioeconómico, na medida em que fatores como a riqueza disponível num determinado contexto territorial ou a estabilidade do sistema político influenciam o contexto no qual as políticas são formuladas e implementadas; o feedback, já que a análise dos processos de implementação e dos seus resultados e impactos pode dar origem a processos de aprendizagem e consequentes processos de reformulação e/ou reajuste da implementação.Como se pode constatar, a terceira geração de Estudos de Implementação também não conseguiu produzir a desejada síntese parcimoniosa entre as abordagens da segunda geração, o que terá conduzido a que muitos académicos deixassem de se dedicar a este campo de investigação a partir de meados da década de 80 do séc. XX. No entanto, outros autores mantiveram-se firmes na defesa da continuidade dos Estudos de Implementação, muito embora divididos quanto ao futuro que este campo científico deveria tomar. Na próxima secção deste artigo debate-se o percurso de evolução dos Estudos de Implementação desde o final da década de 80 do séc. XX.
Presente e futuro dos Estudos de Implementação: entre o abandono, o revivalismo e a reconceptualização
A propósito da diversidade de posições face ao futuro do campo de estudo da implementação referida, Lester e Goggin (1998) consideravam, no final do séc. XX, que se perfilavam naquele período quatro grupos com diferentes posições face ao futuro dos Estudos de Implementação:
os reformadores, em cujo grupo se incluíam eles próprios, Stoker e Matland e que defendiam a continuidade dos Estudos de Implementação, embora advogando a necessidade de mudanças nas abordagens conceptuais e metodológicas; os testadores, tais como Mazmanian e Sabatier, que se apresentavam bastante confortáveis com a forma como a investigação em implementação vinha sendo desenvolvida, pretendendo apenas testar e validar as frameworks que haviam desenvolvido; os céticos, entre os quais se destacava deLeon, e que apresentavam uma perspetiva negativa face à continuidade dos Estudos de Implementação, pelo menos se continuassem a ser desenvolvidos da mesma forma; os terminadores, que, perante argumentos relativos à falta de clareza conceptual e ao esgotamento intelectual do estudo da implementação, advogavam a deriva para outros objetos de investigação mais elementares.Muito embora existissem autores que advogavam a necessidade e o interesse da continuação da existência dos Estudos de Implementação, importa, contudo, tentar perceber o porquê do desânimo e desmobilização de outros autores. A este propósito, Sætren (2005) refere que os principais motivos referidos eram: (1) a esterilidade e confusão normativa, metodológica e teórica em torno do debate top-down vs, bottom-up; (2) o esbatimento das relações hierárquicas no domínio da implementação, a favor das relações horizontais; (3) a inclinação dos Estudos de Implementação para a análise de policy failures; (4) o debate sobre o valor heurístico do modelo estagista, que era acusado de simplificar demasiado o processo de políticas públicas; (5) a tentação em enveredar por novos “rótulos” de investigação, de forma a aumentar as possibilidades de publicação; e (6) a suscetibilidade a novas “modas” por parte dos “analistas de políticas públicas”.
Contrapondo alguns destes argumentos, Sætren (2005) refere, por exemplo, que o modelo estagista ainda mantém muito do seu valor heurístico ou que os Estudos de Implementação terão perdido parte da sua tendência para analisar apenas situações de insucesso, defendendo que estes não teriam perdido a sua relevância. O autor é, aliás, da opinião que as mudanças nas relações estado-sociedade registadas no final do séc. XX e início do séc. XXI terão feito o interesse pela temática da implementação crescer novamente (Sætren, 2005).
Com efeito, após uma diminuição de interesse pela implementação durante a segunda metade da década de 80 e o início da década de 90 do séc. XX, que se deveu, entre outras razões já referidas, também à ascensão do managerialismo, assistiu-se ao retomar das preocupações com a implementação no início do séc. XXI, muito por força da emergência do “paradigma da governança” (Hill e Hupe, 2009).
No mesmo sentido, Schofield e Sausman (2004) dão conta que os Estudos de Implementação se terão dedicado a temas relacionados com novos contextos de implementação, nomeadamente a governação pós-burocrática e multinível, as novas formas de organização e estruturação das organizações implementadoras, ou as mudanças na relação entre o Estado e os cidadãos. Terá sido neste sentido que OToole Jr. (2004) menciona que o campo de Estudos de Implementação havia sido alvo de uma reconceptualização, tendo sido afetado por influências teóricas como a “análise institucionalista”, a “governance” ou a “gestão de redes”, uma tendência que viria mais tarde a ser confirmada por Sætren (2014).
A propósito da diversidade que caracteriza o reavivar dos Estudos de Implementação, Hupe (2014) referiu ainda que existem atualmente três tipos de estudos de implementação:
1. os estudos convencionais (mainstream studies), que usam maioritariamente a metodologia de estudo de caso único e qualitativa e adotam uma abordagem top-down, os quais têm sido publicados, sobretudo, em revistas de âmbito setorial;
2. os novos estudos de implementação (neo-implementation studies), que têm uma abordagem multinível especialmente dedicada à implementação nacional de políticas formuladas pela União Europeia, nos quais identificam fatores promotores do não cumprimento das normas europeias, tais como atores de veto ou tradições administrativas, e que usam, maioritariamente, metodologias de estudo de caso e qualitativas e uma abordagem top-down (vide, inter alia, Knill e Lenschow, 1998; Tsebelis, 2002; Börzel et al., 2010); e
3. os estudos de implementação avançados (advanced implementation studies), que se caracterizam pelo uso de metodologias mais sofisticadas e que podem ser subdivididos entre aqueles que têm uma abordagem top-down, e que analisam o grau de cumprimento dos objetivos ao nível do terreno, e os que têm uma abordagem bottom-up, que procuram explicar a variação empírica de resultados e impactos entre diferentes casos e que se focam, na sua maioria, em relações interorganizacionais e no comportamento dos funcionários do terreno (vide, inter alia, May e Winter, 2009; Tummers e Bekkers, 2014).
Tal como descrito nesta secção, os percursos de evolução recente dos Estudos de Implementação têm sido variados e têm contribuído para uma certa revitalização da importância científica atribuída a esta disciplina. Apesar destas tendências de evolução, o desenvolvimento desta área científica continua a sofrer de alguns problemas de afirmação relacionados com a permanência de algumas ideias relacionadas com a conceção tradicional de implementação, sobretudo em contextos em que a governação pública é tendencialmente mais hierárquica como é o caso de Portugal, tal como será analisado na secção final deste artigo.
Considerações finais: da necessidade de afirmação de uma nova conceção de Estudos de Implementação (em Portugal)
Como foi possível observar ao longo deste artigo, o estudo científico da implementação tem sido profícuo em distintas abordagens analíticas, que diferem bastante entre si. Este contexto tem dificultado o desenvolvimento de um modelo analítico amplamente aceite, mas tem contribuído também para um certo afastamento da conceção tradicional da implementação, que a encarava como a fase em que ocorria a aplicação/concretização quase automática dos objetivos, previamente definidos por decisores políticos, através da estrutura da administração pública.
Em primeiro lugar, será necessário assinalar que as tarefas inerentes à implementação em grande parte dos sistemas político-administrativos ocidentais são atualmente asseguradas, não apenas pelos diversos níveis das estruturas administrativas dos ministérios, mas também, e crescentemente, por atores sobre os quais o poder político não tem autoridade hierárquica direta, nomeadamente os governos regionais ou locais, agências públicas (semi)autónomas, bem como organizações do setor privado e da sociedade civil (Knill e Tosun, 2012). Desta feita, os contextos de implementação que envolvem múltiplos atores comportam fortes desafios ao nível de coordenação e negociação interorganizacional quanto aos objetivos e atividades a desenvolver (Hjern e Porter, 1981; Stoker, 1989; Cardim, 2006; Mota, 2016; Raposinho e Mota, 2019).
Por outro lado, as recomendações de alguns autores apontam para a necessidade de não se ter em consideração apenas os objetivos centralmente definidos, na medida em que os eventuais “desvios” que estes sofram ao longo do processo não deverão ser necessariamente considerados como perniciosos, podendo ser também necessários eventuais ajustes aos contextos de implementação (Knill e Tosun, 2012). Para além de ser mais conforme com a realidade, esta abordagem mais ampla da implementação tem também a vantagem de evitar conclusões precipitadas quanto ao (in)sucesso da implementação.
De acordo com alguns autores (vide, inter alia, Winter, 2012a; e Hill e Hupe, 2009), a comparação entre objetivos e resultados das políticas não é sequer uma forma adequada para analisar a implementação, sobretudo porque os impactos das políticas (outcomes) são também fortemente influenciados por fatores externos à intervenção e a sua análise pertence, sobretudo, ao domínio dos Estudos de Avaliação de Políticas. Assim, os autores advogam a utilização de indicadores de desempenho direto dos implementadores enquanto variáveis dependentes nos Estudos de Implementação (Winter, 2012a; Hill e Hupe, 2009).
Por último, considera-se particularmente adequada a adoção de abordagens contingenciais na análise da implementação (vide, inter alia, Matland, 1995), na medida em que a maior ou menor adequação das abordagens top-down e bottom-up tradicionais e suas sucedâneas depende dos objetos e objetivos de estudo. Tal como Sabatier (1986) refere, a abordagem top-down é particularmente adequada para analisar questões de eficácia de um programa único e quando se pretende obter uma visão do desempenho médio dos implementadores, ao passo que a abordagem bottom-up é mais adequada para analisar contextos de implementação com múltiplos atores e múltiplos programas e em que se pretende aferir a variação entre diferentes dinâmicas locais.
Assim, e à semelhança dos argumentos apresentados por Winter, considera-se que o futuro da Ciência das Políticas Públicas, tal como das Ciências Sociais genericamente falando, passa pelo acolhimento da diversidade teórica e metodológica e pela utilização de estruturas de pensamento e de investigação mais contingenciais.
Em relação a Portugal, considera-se que, apesar do bastante meritório esforço desenvolvido na última década, os Estudos de Políticas Públicas desenvolvidos no país têm, na sua grande maioria, um enfoque ainda demasiadamente setorial ou formal, dedicando-se sobretudo, ora à análise dos objetivos e instrumentos de políticas referidos na lei, ora à avaliação dos resultados e impactos de políticas de âmbito setorial, São exemplos destas tendências uma significativa parte dos estudos desenvolvidos no âmbito do Fórum de Políticas Públicas (vide, inter alia, Rodrigues e Silva, 2012, 2015) ou da conferência “O Futuro de Portugal” (Soromenho-Marques e Pereira, 2014), nos quais existe uma bastante rica e diversificada análise de políticas de setores tão diversificados como a saúde, a educação, a segurança social, a justiça, o território, a economia, entre outros.
Embora reconhecendo a enorme importância que estas e outras publicações têm tido no fortalecimento da Ciência das Políticas Públicas em Portugal e no conhecimento produzido sobre as dinâmicas societais e políticas no país, considera-se que será necessário o desenvolvimento de uma abordagem mais processual e transversal a diversos domínios de políticas públicas. Esta abordagem implica, por exemplo, o desenvolvimento de estudos com enfoque em temas que vão ao encontro dos fatores-chave mencionados por autores como Winter (2012a) e Hill e Hupe (2009), tais como as relações interorganizacionais verticais (UE-Portugal e estado central-municípios) e horizontais (governação em rede) no setor público, a autonomia atribuída a dirigentes públicos e a funcionários do “terreno”, ou ainda as relações estado-sociedade alguns estudos especificamente dedicados à implementação desenvolvidos em Portugal (Cardim, 2006; Mota, 2016; Raposinho e Mota, 2019) já vão ao encontro desse desígnio, o mesmo acontecendo com alguns capítulos dos volumes coletivos dedicados análise de políticas de educação (Rodrigues, 2014), de ensino superior (Rodrigues e Heitor, 2015) e da justiça (Fonseca et al., 2017).
Espera-se que este artigo tenha contribuído para o desenvolvimento desta abordagem, ao permitir que mais investigadores nacionais tenham contacto com a literatura específica desta fase do processo de políticas públicas e assim desenvolvam mais estudos de implementação de políticas públicas em Portugal.
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Este artigo foi desenvolvido com o apoio de bolsa de pós-doutoramento da Fundação para a Ciência e Tecnologia (SFRH/BPD/115117/2016). O autor gostaria de agradecer às doutoras Maria Engrácia Cardim e Sara Diogo e aos revisores desta revista pelos comentários a versões preliminares deste artigo.
Receção: 16 de março de 2017 Aprovação: 07 de junho de 2018