Introdução
O impacto das fake news e das bolsas de desinformação no processo democrático nos diferentes países passou a ser amplamente discutido no rescaldo das últimas eleições americanas em 2016 (Albright, 2016; Allcott, 2017; Beckett, 2017; Hofseth, 2017; Schudson e Zelizer, 2017; Richardson, 2017).
A discussão sobre a influência (Lattman-Weltman, 2018) de notícias falsas estrategicamente disseminadas, com o objetivo de mudar intenções de voto e influenciar processos eleitorais, constitui hoje um campo de análise bastante consolidado nos estudos em comunicação, em particular nos países do designado eixo ocidental. De entre a amálgama de definições de notícias falsas, ou fake news, destacamos aquela que se reporta às mesmas como qualquer conteúdo informativo não factual, ilusório ou não verificável, que é recebido e lido por pelo menos uma pessoa, conteúdo esse que é produzido e distribuído via media channels, qualquer que seja o seu teor (satírico, humorístico, propagandístico, publicitário, fraudulento, etc.), por um ou mais atores, por meio de fonte própria ou de outrem, de forma premeditada com o objetivo de distorcer a realidade, desinformar, entreter, manipular a opinião pública ou causar dolo noutrem, ou de forma não intencional como resultado da produção e distribuição de informação imprecisa e descuidada, com um impacto variável nas esferas social, cultural, económica e política dos países (Lima Quintanilha, Torres da Silva e Lapa, 2019: 20).
É com a problemática das fake news como pano de fundo que se desenrola este artigo, que tem como principal objetivo mergulhar num acontecimento importante que marcou a última campanha eleitoral para as eleições legislativas de outubro de 2019, em Portugal.
Tradicionalmente, o último dia de campanha eleitoral em Portugal é reservado para grandes eventos de rua em que os candidatos, rodeados por apoiantes e máquinas partidárias, marcham pelos grandes centros urbanos misturando-se com os cidadãos em ambiente efusivo. As chamadas “arruadas” são comuns ao longo de toda a campanha, sendo os locais mais dinâmicos e povoados (nomeadamente os grandes centros urbanos) reservados para o último dia, com o intuito de dar à narrativa da campanha um sentido de crescimento da mobilização e do apoio popular.
Com o dia das eleições marcado para 6 de outubro, foi nas últimas horas do último dia de campanha eleitoral, no dia 4 de outubro,1 que se assistiu àquele que é, possivelmente, o mais simbólico episódio da campanha, quando um cidadão/eleitor toma a liberdade de interpelar o então e posteriormente reconduzido primeiro-ministro de Portugal, António Costa, sobre aquele que é tido como o assunto mais sensível da sua primeira legislatura, isto é, as 66 mortes e mais de duas centenas de feridos resultantes dos incêndios de 17 de junho de 2017 em Pedrógão Grande,2 no centro do país. Este acontecimento, que gerou uma importante onda de contestação3 relacionada com uma hipotética inaptidão dos serviços de auxílio e socorro da Proteção Civil, que estão sob jurisdição do governo português, voltou à agenda pública neste último dia de campanha, depois de o supraindicado cidadão questionar o primeiro-ministro relativamente às pretensas férias que este teria gozado em plena catástrofe, e sob atenta auscultação de toda a comunicação social que marcava presença na última arruada da campanha eleitoral do Partido Socialista (PS).
Entre a surpresa dos presentes e a rápida disseminação do acontecimento, tanto nos legacy media, como nas redes sociais, os meios de comunicação social portugueses, na voz e escrita dos seus jornalistas, fizeram num primeiro momento a descrição do acontecimento, para, pouco tempo depois, dissecarem e investigarem sobre a acusação produzida pelo eleitor/cidadão, caracterizando-a de falsa e produzindo novas investigações sobre uma alegada proximidade do acusador ao partido conservador democrata-cristão, CDS-Partido Popular, que prontamente se demarcou do sucedido.4
Os eventos do dia 4 de outubro de 2019, último da campanha, e data em que António Costa é interpelado pelo cidadão anónimo, levou a que os principais órgãos de comunicação social se desdobrassem em artigos de fact-checking, todos eles evidenciando que o primeiro-ministro não estava efetivamente de férias durante os incêndios de Pedrogão Grande (17 a 24 de junho), mas sim na primeira quinzena de julho.5
Este artigo procura assim situar este acontecimento, nos seus múltiplos desenvolvimentos, no âmbito da interseção dos estudos de comunicação e impacto das bolsas de desinformação no processo democrático, nomeadamente durante períodos de sufrágio.
O principal objetivo passa por produzir uma observação cuidada de um episódio que fica fundamentalmente marcado pela capacidade que o jornalismo credenciado teve em escrutinar e deslegitimar uma falsa notícia com forte inclinação política, que apontava para um desleixo da figura máxima do governo perante um cenário de catástrofe nacional.
Assim, a mais-valia deste estudo passa por contribuir para a confrontação de uma leitura que por vezes pode ser considerada reducionista, no sentido em que é recorrentemente defendido6 que o fenómeno das fake news desencadeia transnacionalmente um enfraquecimento do processo democrático. O caso que agora descrevemos vem demonstrar que a disseminação de um conteúdo falso com elevado teor propagandístico em vésperas de eleições não redunda necessariamente numa desvirtuação do processo de sufrágio eleitoral de um país,7 tal como admitido em certos estudos (Lattman-Weltman, 2018), se o jornalismo e os jornalistas fizerem valer os valores da prática profissional voltada para os referenciais da realidade social (Schroder, 2012), com o objetivo de reportar, desacreditar e combater as fake news e bolsas de desinformação.
A pergunta de partida coloca-se assim da seguinte maneira: de que forma se pode considerar que o jornalismo exercido nos principais órgãos de comunicação em Portugal8 - a partir da desacreditação de um conteúdo falso com potencial propagandístico associado ao então primeiro-ministro em vésperas de eleições legislativas - poderá ter contribuído para o normal desenrolar do processo eleitoral de 6 de outubro de 2019, em Portugal?
Revisão da literatura
O fenómeno das fake news e da desinformação não é um fenómeno novo, no sentido em que caminha de braços dados com a história dos próprios mass media (Hofseth, 2017).
Allcott (2017: 214) dá-nos o exemplo dos artigos publicados em 1935, no New York Sun, sobre a descoberta de vida na Lua, num episódio que ficou conhecido por “Great Moon Hoax”, ao passo que Schudson e Zelizer (2017) nos recordam as inúmeras notícias falsas que pululavam nos jornais aquando do evento da Segunda Guerra Mundial.
Contudo, o processo que ficou conhecido como o novo informacionalismo, sustentado na internet, nas arquiteturas e conectividades em rede (Castells, 2002; van Dijck, 2013), acabou por operar transformações consideráveis nas formas de produção, disseminação, receção e consumo de produtos de media, entre os quais constam os conteúdos noticiosos, conferindo-lhes três características essenciais que suportam a era da pletora e hiperabundância informativas (Lewis, 2014; Andrejevic, 2013): ubiquidade, rapidez e imediatismo (Karlsson, 2011) sustentados numa rede global de computadores interligados entre si e em qualquer parte do mundo.
As barreiras entre produtores e consumidores de notícias foram redesenhadas, com a audiência outrora preguiçosa (Castells, 2002) a transformar-se num participante ativo e produtor de conteúdos, e os espaços virtuais de fluxos de informação (Castells, 2011) a multiplicarem-se em resultado do crescimento sustentado da plêiade informativa, seja ela credenciada e disseminada nos legacy media ou potenciada pelos não mercados horizontais e descentralizados de produtos de media (Benkler, 2006).
Nesta amálgama de reconfigurações no mundo dos media, onde a digitalização (Lupton, 2014; Morsello, 2016, Carrozza, 2018) se estabelece como o ponto de partida para a reconceptualização da vida em sociedade, no sentido da reorganização das formas de comunicarmos e de nos relacionarmos com os outros, três fenómenos acabaram por promover aquilo que é hoje o caldeirão de conteúdos não factuais na internet que fortaleceram a designada era da pós-verdade (Ball, 2017; Rodrigo-Alsina e Cerqueira, 2019): (1) a abertura do processo de produção de conteúdos informativos a novos intervenientes (os jornalistas cidadãos, os jornalistas em rede, etc.) (Lima Quintanilha, Torres da Silva e Lapa, 2019), onde as dimensões de objetividade características do jornalismo canónico, que dependem de um código profissional, passam a poder sucumbir à lógica dos todos participativos (Russell, 2018) que disputam o papel central do profissional gatekeeper (Shoemaker e Reese, 1996, 2013; Shoemaker e Tim Vos, 2009) na produção e disseminação de notícias, levando ao fenómeno que ficou conhecido por desintermediação no jornalismo; (2) a consequente sustentação dos subjornalismos e jornalismos derivativos que, em contextos de sofreguidão informativa, exponenciaram o aparecimento das bolsas de desinformação e dos conteúdos imprecisos; e (3) a rapidez na disseminação das notícias falsas e conteúdos não verificáveis, em resultado das próprias características de uma nova mediação sustentada na internet ubíqua e imediatista.
Nas palavras de Waisbord (2018), trata-se do sintoma de um colapso das notícias tradicionais e do surgimento do caos da comunicação pública contemporânea, ao passo que Tandoc, Jenkins e Craft (2019) lhe chamam o incidente crítico que o jornalismo terá de enfrentar, numa assunção semelhante àquela usada por Richardson (2017), autor que se reporta às fake news como desafio existencial do jornalismo, dada a sua magnitude. Uma magnitude que leva Lima Quintanilha, Torres da Silva e Lapa (2019) a citarem um artigo com a chancela Science,9 para lembrarem que as fake news se disseminam mais rapidamente, mais profundamente e também chegam mais longe do que as notícias verdadeiras, constituindo estas três características um desafio extra.
E, perante a evidência de um intricado sistema de relações que fundam esta era da pós-verdade, o processo de conceptualização do fenómeno das fake news ganhou novo ímpeto (Rubin, Chen e Conroy, 2016; Zaryan, 2017). Seis dos autores mais celebrados neste campo, Tandoc e Oh (2015), Tandoc, Lim e Ling (2017), e Derakhshan e Wardle (2017), utilizam diferentes significados, ainda que muitas vezes convergentes, daquela que passou a ser talvez a dimensão mais discutida de uma taxonomia maior de economia de fakes que se estendem às várias esferas da vida económica, política e social (i.e., fake websites, fake media, fake reviews, deepfakes, etc.).
Tandoc, Lim e Ling (2017), tendo como base de trabalho a análise de 34 artigos académicos, estabelecem uma tipologia que se operacionaliza em seis diferentes formas de caracterizar fake news: (1) fake news enquanto instrumento de sátira, frequentemente como resultado de programas humorísticos; (2) fake news na forma de paródia erguida de material noticioso fictício, pouco plausível, e destinado a fazer humor; (3) fake news como notícias fabricadas, sem base factual e disfarçadas de notícias verdadeiras com o objetivo de desinformar os públicos de notícias; (4) fake news na forma de imagens e vídeos manipulados com o objetivo de criar falsas narrativas; (5) fake news na forma de material com uma dimensão publicitária disfarçada de relatório noticioso genuíno; e (6) fake news como propaganda, com o objetivo de manipular as orientações e atitudes políticas dos diferentes públicos.
Derakhshan e Wardle (2017), por seu turno, introduzem as dimensões de intencionalidade versus negligência involuntária no seu ideal-tipo de fake news, composto por três tipos de desordem informativa: (1) desinformação, (2) informação errada, e (3) má informação, dispostas nas três fases de criação, produção e distribuição de conteúdos informativos. A desinformação (ex: teorias da conspiração) é deliberada e pretende causar dano a uma pessoa, grupo, organização ou país, através de conteúdos falsos. A informação errada (ex: uso errado de estatísticas), sendo falsa, não tem ainda assim como objetivo criar dano. A má informação (ex: enviesamento deliberado de contextos) é baseada em factos reais que são deturpados e utilizados para causar dano a uma pessoa, organização ou país.
Tratando-se talvez das duas definições mais emblemáticas nos estudos sobre fake news, não será despiciendo considerar outros contributos que vieram trazer conhecimento adicional à discussão sobre o fenómeno, como é o caso do termo journalistic deception, utilizado por Rubin, Chen e Conroy (2016), ou a ideia de que perceber o alcance das fake news é olhar a montante para a extensão da receção do conteúdo falso (Zaryan, 2017), uma vez que a única coisa que realmente conta é se as pessoas acedem ou não ao conteúdo, isto é, as notícias falsas só existem verdadeiramente se as pessoas as lerem, num jogo que também é caracterizado pelo posicionamento da audiência relativamente a esse mesmo conteúdo - aquilo que Zaryan (2017) define como a negociação na determinação de fakeness.
Todos estes significados aparecem numa definição mais ampla operacionalizada por Lima Quintanilha, Torres da Silva e Lapa (2019), indicada no ponto introdutório deste artigo.
A discussão sobre a influência que as fake news assumem em fenómenos de viés político durante processos eleitorais sofreu assim um ímpeto considerável no rescaldo das últimas eleições americanas de 2016 (Grinberg et al., 2019; Lee, 2019).
A este respeito, Albright (2016) produziu uma análise bastante minuciosa sobre aquilo que se passara durante as eleições americanas, dissecando o que considerou ser uma perfeita micromáquina de propaganda (um ecossistema de propaganda em tempo real), e decifrando as componentes de uma holística própria que lhe permitiu detetar as fontes das informações falsas, enganosas e hipertendenciosas.
Albright (2016) concluiu ter existido uma vasta rede de sites duvidosos de “notícias”, a maioria tendo design simples e muitos sendo feitos com os mesmos templates. Estes sites, com origem nos hackers russos, rankings algorítmicos e direita alt-right, criaram um ecossistema de propaganda em tempo real, incluindo mecanismos de fraude viral com o potencial de moldar instantaneamente a opinião pública através de uma reação em massa a sensíveis tópicos políticos/eventos noticiosos injetados e disseminados em plataformas de longo alcance, como o Facebook e o Twitter. Em todo o caso, a relação entre media, política e dinâmicas de polarização é tão antiga como a massificação da rádio e televisão nos EUA, com os media a impactar diretamente a relação entre população e poder (Campante e Hojman, 2013). Num primeiro momento, em termos ideológicos, na medida em que alterações significativas no ecossistema mediático materializam mudanças nas perspetivas e intenções de voto dos cidadãos, e num segundo momento, de forma motivacional, com a mudança da composição ideológica do eleitorado a exercer pressão sobre as dinâmicas de polarização das elites (Campante e Hojman, 2013).
Mas o período pós-eleições americanas não constitui caso único. Meses antes, e de acordo com o Polígrafo,10 verificou-se que todo o processo de campanha pré-referendo sobre o Brexit esteve sempre “encharcado” de fake news disseminadas entre a população britânica na forma de material xenófobo, segundo o qual uma boa parte dos problemas da sociedade poderiam ser explicados pelo excessivo número de imigrantes. Refere o artigo que “as pessoas foram tratadas como se fossem sub-humanas, instrumentalizadas em nome de uma ideia: a de que a sua presença em território britânico era perigosa e que só havia uma maneira de acabar com o fenómeno: a saída da União Europeia”.
No caso do Brasil e da eleição de Bolsonaro, em 2018, que também constitui um importante foco de discussão sobre o poder da desinformação na desvirtuação de processos eleitorais,11 uma das fake news mais disseminadas foi a de uma pretensa distribuição de um KitGay para crianças de seis anos, por parte do outro candidato, Fernando Haddad, do Partido dos Trabalhadores (PT).
O paralelo entre a vitória de Trump e o voto no Brexit está bem documentado, naquilo que constitui um contributo que se encaixa na operacionalização do termo “política da pós-verdade” (Ball, 2017) sustentada nos apelos à emoção, ao invés de substância política e dos factos. No entanto, todos estes casos estão longe de poder garantir que bolsas de desinformação orientadas para a desvirtuação do processo democrático têm um impacto igualmente significativo em todos os países, em todos os contextos, e em todos os momentos.
Metodologia
O método de recolha de informação que suporta este artigo baseia-se na colheita e sistematização das headlines das notícias publicadas nos principais órgãos de comunicação social portugueses (principais marcas de imprensa, televisão e rádio de alcance nacional nas suas vertentes tradicional e digital), durante as últimas seis horas do dia 4 de outubro de 2019, tempo este que se desenrola desde o momento do acontecimento até ao fim do mesmo dia e início do dia de reflexão (5 de outubro de 2019).
O estudo beneficia ainda da análise aos dados recolhidos no último Reuters Digital News Report Portugal 2019, um estudo desenvolvido em estreita colaboração entre o Reuters Institute for the Study of Journalism e o Observatório da Comunicação de Lisboa, para o caso português. Estes dados foram recolhidos através da aplicação de um questionário a utilizadores de internet em Portugal, entre final de janeiro e inícios de fevereiro de 2019. Ainda que o questionário tenha sido dirigido unicamente à população utilizadora de internet - foram inquiridas 2010 pessoas -, a amostra é representativa da população portuguesa a três níveis (idade, género e escolaridade). O facto de o processo de inquirição ter decorrido online significa que existe uma sub-representação de um conjunto de práticas tipicamente associadas a pessoas que não utilizam a internet, ou seja, portugueses tradicionalmente mais velhos, menos escolarizados e situados em perfis socioeconómicos mais baixos.
Dos dados recolhidos no contexto do Reuters Digital News Report 2019, os módulos sobre fake news, confiança em notícias e confiança nas marcas noticiosas12 revestem-se de especial importância para este estudo, constituindo por isso o conjunto de dados avaliados para compreensão do nosso objeto de estudo e para a contextualização e compreensão da cobertura mediática observada nas últimas horas da campanha para as eleições legislativas, a 4 de outubro de 2019 (AA.VV, 2017, 2018, 2019).
Resultados
A coleta de notícias nas últimas seis horas do dia 4 de outubro de 2019 (pós-acontecimento)
A notícia falsa produzida sobre António Costa, que serve de base a este estudo e que se situa nos subtipos 3 e 6 definidos por Tandoc, Lim e Ling (2017) para uma tipologia maior de fake news,13 e que poderá igualmente ser definida pelo subtipo “desinformação” na tipologia de desordem informativa de Derakhshan e Wardle (2017), reentrou na agenda mediática e levou muito provavelmente à primeira grande matéria para discussão sobre o impacto eventual das fake news na desordem de um processo de sufrágio no país.
Esta notícia, que já havia sido disseminada antes, como explicado na introdução, em redes sociais como o Grupo PSD Europa,14 página no Facebook alegadamente utilizada para disseminação de conteúdos falsos referentes aos partidos de esquerda com assento parlamentar na Assembleia da República portuguesa (Cardoso, Moreno, Narciso e Palma, 2020), acabou por ter o seu momento de maior impacto aquando da sua apropriação pelo cidadão que, em plena arruada socialista, decidiu interpelar o primeiro-ministro António Costa tecendo considerações sobre as suas férias aquando dos incêndios de Pedrógão Grande.
O momento tenso que é resumido na introdução deste artigo deu rapidamente lugar a uma (re)mediatização e propagação do acontecimento pelos diferentes jornais, rádios e televisões do país. Essa (re)mediatização ocorre essencialmente em dois momentos: um primeiro momento que se traduz no relato do acontecimento, em que há fundamentalmente uma descrição do mesmo, com maior ou menor tendência para utilizar termos mais qualificativos (quadro 1); e um segundo momento onde há uma tentativa generalizada de interpretar a notícia e aquilo que está na sua base (a notícia falsa sobre as férias do primeiro-ministro), desconstruindo-a e deslegitimando o seu significado, rotulando-a como falsa (quadro 2).
Fonte: Elaboração própria a partir das notícias publicadas pelas principais marcas informativas portuguesas(televisão, imprensa e rádio).
Fonte: Elaboração própria a partir das notícias publicadas pelas principais marcas informativas portuguesas(televisão, imprensa e rádio)
Numa segunda fase de escrutínio do próprio conteúdo veiculado nos media, os títulos de imprensa, rádio e televisão começaram a dissecar a veracidade da mensagem que está em causa (férias de António Costa), indo à origem da notícia que está na base dessa mensagem e, em alguns casos, investigando sobre uma pretensa pertença partidária do cidadão que decide interpelar António Costa.
Relativamente ao objeto de estudo, aquilo a que assistimos foi precisamente a uma tentativa de os principais grupos de comunicação social em Portugal, por via da desconstrução da notícia falsa que dá origem a um acontecimento impactante, se consolidarem como um veículo de combate à desinformação de uma notícia com forte pendor propagandístico, e à minimização de potenciais efeitos que esta pudesse trazer a um processo de sufrágio, num quadro de análise mais amplo em que a ameaça das fake news e a desinformação têm suscitado alguma preocupação relativamente ao seu potencial de interferência em atos eleitorais (Cardoso, Narciso, Moreno e Palma, 2020).
Paralelamente, alguns autores mencionam este poder escrutinador do jornalismo para referir, de forma mais ou menos controversa, que as fake news se tornaram provavelmente na melhor coisa que podia ter acontecido ao jornalismo (Beckett, 2017), no sentido em que constituem uma oportunidade única, segundo Beckett (2017), e Odriozola-Chéné e Rodrigo-Mendizábal (2017), para o jornalismo credenciado e de qualidade poder demonstrar que a sua mais-valia advém da perícia profissional e dos códigos de ética e de conduta que não são replicáveis por aquilo que Curran (2019) designa como os subjornalismos.
Em resumo, importa salientar o impacto que o potencial informativo dos principais órgãos de comunicação social portugueses possa ter tido no desenrolar de um momento importante que antecedeu um ato eleitoral no país. Ao atuarem como projetores da verdade e dos factos, desconstruindo e desacreditando informação falsa, destruíram o potencial que um conteúdo de índole política poderia assumir nas intenções de voto dos portugueses. Neste sentido, e tal como mostra a cronologia dos estudos de sondagens pré-eleições e resultados finais (quadro 3) e quadro 4, todas as projeções feitas para os resultados de cada partido evidenciam que os resultados finais se localizam nos intervalos projetados pelas principais empresas/grupos de sondagem portugueses, o que equivalerá a reconhecer que o episódio relatado neste artigo não teve qualquer impacto nas intenções de voto dos portugueses, não sendo pois despiciendo relevar o papel que o jornalismo português teve na desconstrução e combate a uma desordem informativa (Derakhshan e Wardle, 2017) de índole propagandística com o objetivo de manipular (Tandoc, Lim e Ling, 2017) as orientações políticas de um público maior.
Fonte: Sondagens CESOP/UCP para Público e RTP; Pitagórica para TVI.https://www.publico.pt/2019/10/01/infografia/sondagem-mostra-ps-frente-psd-seis-pontos-345https://www.publico.pt/2019/10/01/infografia/sondagem-mostra-ps-frente-psd-seis-pontos-345
A relação dos portugueses com as notícias, com as marcas noticiosas e com as fake news
A edição de 2019 do Reuters Digital News Report Portugal deixa perceber que a maioria dos inquiridos não só confia nas notícias (como um todo e aquelas que escolhem consumir), como confia nas diferentes marcas noticiosas. Com efeito, 57,5% dos inquiridos declararam confiar na generalidade das notícias e 60,4% consideraram ter confiança nas notícias que consomem. Adicionalmente, praticamente todas as marcas noticiosas consideradas no estudo são classificadas como confiáveis pela grande maioria dos inquiridos respondentes (SIC = 78%; TVI = 68,9%; RTP = 78,6%; Correio da Manhã = 47,6%; Jornal de Notícias = 74,9%; Público = 71,7%; Diário de Notícias = 72,6%; Expresso = 73,4%; Observador = 56,8%; Rádio Renascença = 71,4%; e Antena 1 = 68,2%).
No caso das marcas Correio da Manhã e Observador, caracterizados pelos níveis mais baixos de confiança, importará sublinhar que, de acordo com o relatório Reuters Digital News Report de 2017 (pp. 86-87), o Observador foi considerado como o mais polarizado título de imprensa em Portugal, com uma aproximação à direita no espectro político. E no caso da publicação Correio da Manhã, a mesma é vista por académicos em Portugal como estando mais próxima do formato tablóide (Alves, 2014; Zacarias, 2017). Estas são características que poderão pesar nos níveis de confiança que são atribuídos a estas duas marcas, pelos portugueses utilizadores de internet, sendo de referir que o Correio da Manhã é, independentemente da baixa confiança atribuída, o título de imprensa com maior circulação impressa paga em Portugal.15
No que concerne à relação dos portugueses com as fake news, 74,5% manifestam-se preocupados relativamente às mesmas.
Com o objetivo de tornar a análise mais sustentada do ponto de vista estatístico, utilizámos dois modelos de regressão linear com o propósito de perceber se a preocupação relativamente às fake news influencia a confiança em notícias e a confiança nas principais marcas noticiosas. Para tal, agregámos as duas variáveis afetas às questões relativas à confiança em notícias (confiança nas notícias em geral + confiança nas notícias por si escolhidas) na sua escala de Likert original de 1 (menor confiança) a 5 (maior confiança), de onde se obteve um Spearman-Brown (split half) de 0,841, que aponta para uma boa reliabilidade/consistência interna.
Posteriormente, o mesmo processo foi desencadeado para as variáveis afetas à confiança nas marcas noticiosas16 (SIC + TVI + RTP + imprensa + CorreiodaManhã + Jornal de Notícias + Público + Diário de Notícias + Expresso + Observador + Rádio Renascença + Antena 1), de onde se obteve um alpha de Cronbach de 0,937 com a criação de um índice ao qual chamámos “confiança nas principais marcas noticiosas portuguesas”. Estas duas novas variáveis, criadas a partir da agregação dos conjuntos de variáveis identificados, permitiram-nos prosseguir com os modelos de regressão linear, utilizando como variável independente aquela concernente à preocupação dos portugueses relativamente às fake news. No primeiro modelo de regressão linear constatámos que a percentagem de variação da variável dependente (confiança em notícias) explicada pela independente (preocupação com fake news) é praticamente nula, com um R2 de 0,001, o que equivale a dizer que apenas 0,1% da variância da variável dependente é explicada pela variância da variável independente.
No segundo modelo de regressão linear, apurámos que a variação da variável dependente (confiança nas marcas noticiosas) que é explicada pela variável independente (preocupação com fake news), assume um R2 também praticamente nulo de 0,006.
Chegamos assim à conclusão de que a confiança em notícias e a confiança nas marcas noticiosas por parte dos portugueses não são influenciadas pela sua preocupação relativamente às fake news.
Discussão
Tal como observado nas últimas eleições americanas, no referendo do Brexit, e na eleição de Bolsonaro, a disseminação de conteúdos falsos de índole política encerra em si um potencial considerável na transformação e determinação de resultados eleitorais (Balmas, 2014; Allcott 2017; Pennycook e Rand, 2017; Pennycook, Cannon, e Rand, 2018), podendo esse potencial traduzir-se em oscilações rápidas e circunstanciais que muitas vezes os estudos estatísticos e sondagens poderão não conseguir prever. Exemplos recentes como a eleição do presidente Donald Trump, que bateu Hillary Clinton com uma margem negativa de 2,09 pontos percentuais, tendo tido menos votos que a candidata democrata, ou como o referendo ao Brexit, ganho pelo “Leave” com 51,9% dos votos, demonstram como diferenças percentuais mínimas podem influenciar o futuro das nações ocidentais, colocando uma pressão aos cientistas sociais na sua capacidade de reconhecer, medir e analisar as dinâmicas de opinião eleitoral.
A problemática das fake news em Portugal tem sido discutida em estudos do Reuters Institute for the Study of Journalism (2019) e explorada de forma mais sistemática/teórica noutros estudos (Lima Quintanilha, Torres da Silva e Lapa, 2019) que analisam a relação do fenómeno com os índices de confiança em notícias no país, estabelecendo linhas de diferenciação para outros contextos noutros países, e apontando cenários explicativos para essas linhas de diferenciação.
Contudo, o país viveu, até ao dia 4 de outubro de 2019 (data fundamental no posicionamento deste artigo), uma situação de relativo distanciamento no que diz respeito ao verdadeiro significado do impacto complexo e variado das fake news na vida democrática de um país como Portugal. Não existia, dito de outra forma, uma transferência de um problema que já era discutido na esfera pública, de um ponto de vista mais amplo, mas que ainda não tinha sido suscetível de implicar possíveis transformações do processo democrático ou qualquer tipo de conflito verdadeiramente impactante na vida política do país, com uma transposição igualmente relevante para a vida das pessoas. Por outras palavras, pelo facto de Portugal não ter ainda assistido a um caso Brexit, a umas eleições similares às americanas, ou até à eleição de uma figura como Bolsonaro - para continuar a referenciar aqueles que são os três casos mais relatados na imprensa portuguesa.
No entanto, a problemática das fake news ganhou no dia 4 de outubro de 2019 outro significado em Portugal: o desafio de tentar perceber o alcance de uma notícia falsa relacionada com o primeiro-ministro do país, António Costa, no processo eleitoral que viria a decorrer daí a dois dias, bem como a reação dos órgãos de comunicação de referência à situação e seus desenvolvimentos (figuras 1 e 2).
Apesar de alguns estudos (Martinho, Paisana e Cardoso, 2019) reconhecerem que os portugueses não ligam suficientemente à política, e que essa particularidade tem influência na sua relação com as notícias, o rescaldo do episódio de 4 de outubro exponenciou na internet um interesse claro relativamente à principal pessoa visada no polémico episódio relatado na introdução deste artigo, o primeiro-ministro António Costa.
A título exemplificativo, se introduzirmos as palavras António Costa no Google Trends, verificamos que o nível de interesse registado nas pesquisas durante o dia 4 de outubro atinge o valor máximo de 100, por contraponto com o interesse registado nas semanas anteriores e seguintes.
Do ponto de vista dos poucos estudos teóricos que abordaram a relação das fake news em Portugal com o índice de confiança em notícias (Lima Quintanilha, Torres da Silva e Lapa, 2019), um dos eixos explicativos para o alto nível de confiança sentido, por comparação com outros países (EUA, Reino Unido), foi explicado pelo facto de Portugal, a viver um clima de relativa paz social, não ter experimentado até aí um episódio de ingerência de notícias falsas nas importantes fases do processo democrático, com repercussão na relação entre cidadãos e confiança em notícias.
Em termos gerais, o estudo de Lima Quintanilha, Torres da Silva e Lapa, (2019), fazendo uso dos dados recolhidos pelo Reuters Institute for the Study of Journalism no relatório Digital News Report (2018), enfatiza um cenário que sugere uma contenção da assunção generalista de que, por não conseguirem distinguir de forma clara entre notícias verdadeiras e notícias falsas, os utilizadores de internet tendem a sentir uma desconfiança generalizada nos media (Fletcher e Nielsen, 2017).
O estudo concluiu que, para o caso português, e apesar de os utilizadores de internet se considerarem atentos à problemática das fake news, tal preocupação não redunda, ao contrário de outros países, numa relação de desconfiança generalizada perante as notícias, particularmente aquelas que são produzidas e disseminadas pelos media tradicionais e legacy media (a confiança obtida é um pouco menor para as redes sociais).
Para além da factual mensagem que o estudo deixa, de que Portugal ainda não havia experimentado um episódio Brexit, por exemplo, outras explicações são dadas no sentido de compreender o porquê de os portugueses estarem, junto com os finlandeses, entre os cidadãos nacionais que mais confiança manifestam em notícias.
São assim elencadas algumas características e singularidades do sistema mediático português, tais como o facto de o país ser considerado como tendo um sistema mediático menos polarizado de entre todos os países do eixo pluralista-polarizado (Santana-Pereira, 2016), o que resulta de uma diminuição do paralelismo político, da despolitização do sistema mediático e de uma aversão à instrumentalização dos media (Hallin e Mancini, 2004, 2017), que parecem direcionar Portugal muito mais para o modelo liberal caracterizado pela função democrática e de accountability dos media, e que levará os portugueses a depositar maior confiança nos media noticiosos escolhidos e no seu produto informativo.
Em segundo lugar, Lima Quintanilha, Torres da Silva e Lapa (2019) sustentam-se nos estudos de Silva (2013) e Martins (2015), para recordarem que a fraqueza do mercado de media em Portugal não se traduz necessariamente em ameaças à liberdade de imprensa, apesar das pressões políticas e económicas existentes e de uma permeabilidade considerável à instrumentalização dos jornalistas (Silva, 2013). Prevalecem, adicionalmente, as conceções democráticas e pluralistas na elaboração dos principais diplomas legislativos que regulam o setor dos media (Martins, 2015), o que levará à perspetiva de um sistema mediático que contribui para o jornalismo independente.
Por outro lado, contribuirá também o facto de a consolidação da profissionalização do jornalismo em Portugal ter sido rápida (Brüggemann et al., 2014), o que poderá explicar também a resistência dos profissionais ao controlo político e à instrumentalização, e ajudado a direcionar o sistema mediático português do modelo clássico pluralista-polarizado para o modelo liberal dos media.
Contudo, e balizando o nosso argumento, a confiança em notícias por parte dos portugueses ficará fundamentalmente a dever-se à confiança dos públicos de notícias relativamente aos jornalistas portugueses e ao seu trabalho. Como referem Silva et al. (2017a, 2017b), os públicos de notícias em Portugal têm uma perceção francamente positiva dos jornalistas e dos media credenciados em termos da sua credibilidade, confiança e papel na democracia, uma vez que estudos qualitativos sobre o consumo de media em Portugal, segundo os autores, concluem que os portugueses preferem as ideias normativas de produção de notícias características do jornalismo profissional exercido em organizações de media reputadas.
Esta constatação, aliada ao facto de os principais títulos de imprensa e televisão portuguesas terem desempenhado o seu trabalho de investigação na noite do dia 4 de outubro de 2019, poderá ajudar a compreender de alguma forma o impacto nulo que tal notícia gerou nas intenções de voto dos portugueses, ou seja, o facto de os resultados finais das eleições se terem cifrado dentro daquilo que foram os intervalos previstos pelas sondagens, independentemente de outros fatores.
De uma certa forma, as duas fases de tratamento e investigação da informação veiculada e tratada neste artigo remetem-nos para a sempre revisitada discussão sobre as definições mais ou menos adquiridas de jornalismo, no sentido daquilo que o jornalismo pode fazer pela democracia, num conjunto de interpretações que, hegemonicamente, tendem a desembocar numa ideia de função social positiva (Nossek, Adoni e Nimrod, 2015) e de esclarecimento público (Sparks, 1996) com um impacto fundamental no desenrolar do processo democrático (Curran, 2011; Fenton, 2012) - o jornalismo como quarto poder (Neveu, 2005; Manrique, 2012).
Ainda que, tal como Hellmueller e Mellado (2015) referem, as definições de jornalismo sejam fortemente influenciadas pela forma como, no Ocidente, se olha para o mesmo, a sua definição conflui historicamente para uma análise funcional e instrumental (Deuze, 2017) daquilo que este pode fazer pela democracia, no sentido da sua proteção, e projetando-se assim como um elemento indispensável à estabilidade do sistema social (Tuchman, 2002).
Por outras palavras, os jornalistas desconstruíram a notícia, deram-na como falsa, o significado dessa desconstrução terá passado para a opinião pública, e o impacto da notícia falsa que encerrava em si um potencial considerável de manipulação - passível de ser enquadrado nas definições de Tandoc, Lim e Ling (2017) e Derakhshan e Wardle (2017) - acabou por ser nulo numa hipotética relação com as intenções de voto.
Conclusão
Com o episódio relatado neste texto, em que António Costa é interpelado por um cidadão no último dia de campanha sobre as suas pretensas férias durante a catástrofe nacional vivida em junho de 2017, a discussão sobre o impacto das bolsas de desinformação transitou em definitivo para a agenda mediática portuguesa, no sentido em que se passou a discutir sobre o potencial transformador dessa notícia falsa nas intenções de voto dos portugueses. Aquilo que se começou por questionar foi até que ponto este episódio poderia prejudicar as intenções de voto no Partido Socialista (PS), partido no poder e cujo secretário-geral também é António Costa, atual primeiro-ministro novamente indigitado.
Depois de, numa primeira fase, a notícia sobre a exaltação do primeiro-ministro ser profundamente disseminada por todos os órgãos de comunicação social, observámos que, numa segunda fase, o jornalismo, e mais especificamente as notícias produzidas pelos jornalistas afetos às principais marcas de comunicação, contribuíram para a confrontação e desacreditação da notícia em causa. Esta relação triádica consubstanciada naquilo que o jornalismo pode fazer no combate e mitigação das fake news, no sentido da sua contribuição para o normal funcionamento democrático, é explanada por Lakshmanan, Simpson e Thirumuruganathan (2019), autores que referem que o fenómeno das fake news se constitui como uma grandíssima ameaça à democracia global e ao jornalismo, sendo a deteção das fake news um dos problemas fundamentais do nosso tempo, e constituindo-se o fact-checking e outras relações sinergéticas resultantes da integração de dados, do crowdsourcing, das bases de dados probabilísticas e das comunidades de investigação, figuras incontornáveis na deteção e combate às mesmas.
Concluímos assim que, em virtude do trabalho de investigação e verificação levado a cabo pelos jornalistas afetos às principais marcas noticiosas portuguesas, caracterizadas por uma relação positiva com os públicos de notícias, no sentido da credibilidade que lhes é associada e que não é posta em causa pelo fenómeno mais amplo das fake news, esta notícia falsa - que se enquadra nas noções de desordem informativa (Derakhshan e Wardle, 2017) e propaganda com o objetivo de desinformar e manipular orientações e atitudes políticas (Tandoc, Lim e Ling, 2017) - não produziu qualquer impacto nas intenções de voto dos eleitores, como demonstra a ausência de diferenças registadas nos resultados apontados antes pelas principais sondagens.
Por outras palavras, defendemos a tese de que o papel escrutinador e de fact-checking dos media portugueses neste último dia de campanha, sustentado num sistema mediático português mais vasto que é gerador de confiança em notícias e marcas noticiosas junto dos portugueses que, atentos ao fenómeno das fake news, não deixam que a confiança sentida na grande maioria das marcas de media seja abalada, terá contribuído para que o impacto do conteúdo falso disseminado no dia 4 de outubro, último dia de campanha eleitoral em Portugal, tenha sido nulo na determinação de oscilações nos resultados eleitorais, ao contrário daquilo que é explorado em estudos conduzidos noutros países, relativamente a casos semelhantes.
O estudo de caso desenvolvido neste texto tem assim a mais-valia de contribuir para uma discussão mais ampla e descentrada de fake news, e do ímpeto muitas vezes determinista que tem atribuído à desordem informativa de teor propagandístico uma condição quase apriorística no enviesamento de resultados eleitorais.