Introdução
O que permite dizer que uma obra como A Reprodução continua viva, 50 anos depois de ter sido editada? Antes de mais, a sua capacidade de gerar acumulação de conhecimento e de levantar novas questões, sem ferir o “núcleo firme” do seu programa de pesquisa (Lakatos, 1989). As sucessivas aplicações das proposições da obra seminal de Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron (1970, 1964) descobriram zonas de sombra, anomalias e contradições; exigiram esforço de tradução, de adaptação e de ampliação, mas não foram falsificadas, no sentido popperiano do termo, a saber:
1) O sistema de ensino, apesar da sua situação de comunicação oficial e autorizada, não existe numa bolha ou num parêntese, sendo questionada a sua autonomia absoluta, uma vez que ele se relaciona, por via da ação pedagógica, com a reprodução das relações de poder numa dada sociedade (já a configuração, ou campo, em que essa estrutura de relações se mobiliza, é altamente variável).
2) O sistema de ensino dominante tende a promover (sem qualquer mecanicismo ou determinismo simples) uma dada relação de forças entre classes (essas mesmas classes variando de acordo com o espaço social em causa).
3) A ação pedagógica só funciona se for reconhecida pelas classes dominadas como legítima, isto é, a um mesmo tempo desconhecida como efeito de um arbitrário cultural que impõe um arbítrio cultural (mas as suas formas são altamente dependentes dos contextos).
4) O sistema de ensino é violento, ao impor e inculcar dissimuladamente condições de comunicação, receção e decifração.
5) O sucesso escolar no sistema de ensino é indissociável das relações que se estabelecem entre capital cultural objetivado, incorporado e institucionalizado (ou capital escolar) (Bourdieu, 1979b), particularmente pelo peso da herança cultural familiar (mais implícita do que direta) na transmissão de modos de relação com a cultura e de um capital linguístico. O monopólio escolar da certificação escolar permite transmutar o capital cultural herdado por via da socialização familiar em capital escolar, reproduzindo, assim, de um modo simultaneamente dissimulado e reconhecido (e, por isso, constituindo-se como capital simbólico) um património familiar de disposições.
A força heurística destas proposições, assegurada pelo “cinturão protetor” forjado em trabalhos anteriores1 e posteriores,2 tem instigado projetos de pesquisa um pouco por todo o mundo e, em simultâneo (outro indicador de uma teoria atuante), suscitando apropriações, ressignificações e polémicas. Elas são suficientemente gerais para poderem ser transpostas, mas sob condições determinadas e com certos limites. Não o esqueçamos, a obra em causa, e essa circunstância objetivamente situa e desatualiza a sua componente empírica, refere-se à realidade francesa dos anos 60.
Por outro lado, a sua popularidade é também um fenómeno de cultura científica, que mereceria um estudo próprio. Sob que modalidades, mais ou menos fiéis ao texto original, mais ou menos transmutadas em vulgata ou breviário, as suas conclusões foram incorporadas pelos agentes educativos e com que efeitos nas suas práticas, discursos e representações?
É sabido que a receção desta obra suscitou as mais díspares interpretações (Mauger, 2012). Houve quem, particularmente no campo académico, nela encontrasse um suporte sólido para o combate à naturalização das diferenças, às teorias encantadas do “dom” ou à legitimação conservadora de uma escola que seleciona e elimina, dizendo-se justa. Mas houve, também, quem, no ambiente libertário pós-anos 60, nela vislumbrasse uma crítica às possibilidades emancipadoras dos novos modelos pedagógicos assentes na deselitização, na paridade e no empoderamento dos agentes. Encontramos, ainda, perspetivas de desilusão face ao potencial transformador da classe estudantil (afinal, são os “herdeiros”) ou, finalmente, quem esmorecesse perante a ideia de que A Reprodução seria uma elegia a qualquer intuito de transformação ou, mais grave, um olhar etnocêntrico e fixista sobre as formas de cultura popular.
A propósito da celebração dos 40 anos de A Reprodução, num artigo dedicado à discussão da validade e relevância desta obra, Pedro Abrantes (2011) realizou uma sistematização destas críticas, refutando-as a partir de uma argumentação que partilhamos, pelo que nos escusamos de as reproduzir.
Centrar-nos-emos antes nos resultados de algumas pesquisas recentes realizadas em Portugal, no campo da Sociologia da Educação3 com o objetivo de ilustrar os vasos comunicantes que estabelecem com o quadro referencial dos autores franceses, propósito que poderá não ser muito inovador, uma vez que já outros o fizeram (Abrantes, 2011), mas que ainda assim se justifica, dado o desafio renovado que a análise do trabalho de Bourdieu e Passeron implica, à medida que aumenta o tempo que nos separa da data da sua publicação original.
Por conseguinte, daremos conta dos modos de relação das classes sociais com o sistema educativo, salientado aproximações e desvios face à matriz de A Reprodução, convocando dados quantitativos e qualitativos, particularmente no que concerne às classes populares e seus territórios educativos, bem como aos percursos realizados por estudantes de origem africana. Prolongaremos a análise pelos avanços, contradições e insuficiências da educação compensatória. Concluiremos pela atualidade do esquema dos autores franceses, mas sob condições e adaptações, gerando novos horizontes de indagação que permitem reconstruir a teoria sem a destruir e sem o ímpeto de começar sempre do zero.
A partir da realidade portuguesa: mudanças e permanências no sistema educativo
Portugal é um país onde coexistem assincronismos vários, fruto de um processo de modernização singular, tardio e contraditório. O país sofreu transformações aceleradas, em particular após a Revolução de 25 de Abril de 1974 quando se implementa, em contraciclo com a viragem neoliberal global, um estado-providência (Silva, 2002), que universaliza políticas de acesso e apoio à educação, elevando, igualmente, o volume de transferências sociais que reduzem o peso relativo da ancestral pobreza. A urbanização e o esbatimento das ruralidades, a terciarização e o aumento dos níveis de escolarização, a feminização do mercado de trabalho e a destradicionalização de comportamentos apontam para um “calendário” europeu. Contudo, mantêm-se défices acumulados assinaláveis nos desempenhos educativos.
Desde logo, identificam-se problemas nas retenções entre ciclos de ensino, em níveis persistentemente críticos, apesar de estarem em queda. Mantém-se uma intensa seleção escolar, que afeta mais rapazes que raparigas, mais imigrantes que nativos, mais estudantes oriundos de localidades pequenas. Se tivermos em conta os indicadores de rendimento, “verifica-se que os alunos mais desfavorecidos têm uma probabilidade de serem retidos cinco vezes maior que os alunos de nível socioeconómico mais alto” (Conboy et al., 2013: 17).
Cristina Roldão também analisou as retenções a partir da coorte estudada pelo Observatório de Trajetos dos Estudantes do Ensino Secundário inserido no Gabinete de Estatística e Planeamento da Educação (Roldão et al., 2010). De acordo com esses dados, 38% dos alunos revelaram ter já sofrido pelo menos uma reprovação ao chegar ao 10.º ano. Ainda assim, uma melhor performance face à coorte escolar que não chegou ao ensino secundário e que sofre muito mais reprovações.
De igual modo, as origens sociais inscrevem as suas marcas nos percursos escolares: “entre aqueles que nunca reprovaram sobressaem os filhos de famílias com o ensino superior (83,5%) e, embora em menor vantagem, aquelas com o ensino secundário (68,2%); os filhos de ‘profissionais técnicos e de enquadramento’ (79,4%), mas também os de ‘empresários, dirigentes e profissionais liberais’ (68,5%) e as raparigas (66,5%). Numa posição contrastante, encontram-se os estudantes de famílias que têm o 3º ciclo ou menos (55%); os rapazes (56,8%); os estudantes de famílias operárias (59,8%) e de empregados executantes (58,1%)” (Roldão, 2015: 148).
Num outro estudo, Teresa Seabra, Sandra Mateus, Ana Raquel Matias e Cristina Roldão (2018) procuraram avaliar a igualdade de oportunidades que o sistema de ensino português proporciona aos alunos de nacionalidade estrangeira, em comparação com os alunos nacionais. Constatando que as políticas educacionais de integração, ao nível europeu, são variáveis, e que o desempenho escolar dos alunos oriundos das migrações apresenta contrastes, o trabalho de Seabra et al. (2018) revelou que Portugal é um dos países da OCDE que apresenta as maiores desigualdades em termos de desempenho escolar, estando estas relacionadas com a desvantagem socioeconómica, mas a ela não se circunscrevendo (Seabra et al., 2018: 302). De acordo com esta pesquisa, existe uma crescente distância entre os resultados dos alunos imigrantes e os dos seus pares portugueses, à medida que todos vão progredindo na escolaridade: se no 1º ciclo do ensino básico a distância é mínima (menos de 1%), no 2º ciclo atinge mais de 7% e no 3º ciclo e no secundário ronda os 10% (Seabra, et al., 2018: 308).
A sobrerepresentação dos alunos africanos nas vias profissionalizantes é salientada por Seabra e a sua equipa (Seabra et al., 2016) numa nova investigação que se debruça especificamente sobre os percursos escolares destes estudantes. Constatando que os alunos afrodescendentes têm cerca de duas vezes mais probabilidade do que os alunos portugueses de frequentarem cursos profissionalizantes no ensino secundário (no ano letivo de 2012/13, 76% para 35,6%), aquelas autoras destacam o facto específico de os alunos nacionais dos países africanos de língua oficial portuguesa (PALOP) serem, na sua esmagadora maioria (76%), encaminhados para as vias de ensino profissionalizantes, fenómeno que atinge a sua máxima expressão nos estudantes oriundos de Cabo Verde (84%) e de São Tomé e Príncipe (88%) (Seabra, et al., 2016). No que se refere à conclusão do ensino secundário, em 2011, salienta-se que a percentagem de diplomados afrodescendentes era também distinta: 33%, enquanto este valor atingia os 41%, no caso dos estudantes autóctones (Seabra et al., 2016: 91).
Considerando novamente o ano de 2011, a mesma equipa observou ainda que: (a) os estudantes com nacionalidade dos PALOP tinham metade da probabilidade dos descendentes de portugueses de ingressarem no ensino superior; (b) a taxa real de escolarização do 1º ciclo do ensino superior para os afrodescendentes era cerca de metade da dos autóctones (15%,9 para 34,3%) (Seabra, et al., 2016: 93).
Alertando para o “perigo da dualização das oportunidades de sucesso no ensino secundário” entre os estudantes de nacionalidade dos PALOP e os autóctones, “provocada pela crescente oferta educativa ‘de compensação’, ou seja, à margem da escola e que depende diretamente das condições socioeconómicas dos alunos e das suas famílias”, conclui-se, em suma, naquela investigação, “que os afrodescendentes não só reprovam mais, como têm menores probabilidades de acederem ao ensino superior, e realizam mais frequentemente percursos escolares não lineares”(Seabra et al., 2016: 112).
Mudemos agora de ângulo. Em Portugal existe já uma abundante literatura sobre os resultados do PISA (Programme for International Student Assessment), promovido pela OCDE. É verdade que a performance dos estudantes tem vindo a melhorar significativamente. Em matemática estão já na média da OCDE, ficando ainda abaixo na leitura e nas ciências.
Todavia, a classe social de origem produz desigualdades vincadas. Apenas entre os jovens das classes de “empresários, dirigentes e profissionais liberais” e “profissionais técnicos e de enquadramento” se verifica uma aprovação nos exames nacionais do 9º ano superior a 50% (Mata, 2015). O nível de escolaridade mais elevado concluído pelos pais exerce ainda uma correlação significativa: “os alunos oriundos das famílias com o maior capital escolar (doutoramento) têm 3,5 vezes mais possibilidades de obter uma classificação positiva nos exames […] do que os discentes do grupo social menos escolarizado” (Mata, 2015: 319). De igual modo, os jovens pertencentes a famílias que estão no decil 10 de rendimento têm 2,3 vezes mais possibilidades de conseguir positiva do que os estudantes provenientes do 1º decil. Conforme subimos nos níveis de ensino, contudo, conta mais o valor escolar do aluno do que a sua origem social, uma vez que estamos a falar de indivíduos mais selecionados e socializados pela cultura escolar.
Por outras palavras: os alunos com o maior capital escolar dispõem de 11,4 vezes mais possibilidades de alcançarem um resultado no grupo dos 20% melhores do que os colegas provenientes dos agregados com menor escolarização. Pelo prisma dos lugares de classe, os filhos de “profissionais técnicos e de enquadramento” possuem 3,5 vezes mais possibilidades de atingirem tal desempenho. Sob o ponto de vista do estatuto socioeconómico, os estudantes de famílias mais ricas têm 4,9 vezes mais possibilidades de conseguirem um resultado em matemática nos 20% melhores, 3,9 vezes mais em língua portuguesa e 6,4 vezes mais se considerarmos os dois exames (Mata, 2015: 320-322).
No cômputo da OCDE, Portugal não é apenas o país que apresenta uma maior concentração de famílias desfavorecidas no índice de estatuto económico, social e cultural, o que constitui um sinal de uma sociedade pobre e com um défice acumulado de qualificação: 44% dos seus estudantes estavam em 2009 no percentil 15, contra, por exemplo, 29% em Espanha. É também uma das nações onde a reprodução social por via de desigualdades escolares se apresenta mais vincada. Como nota Susana da Cruz Martins, Portugal, juntamente com a Alemanha, Dinamarca e Luxemburgo, faz parte do conjunto em que se regista “um reforço de ‘afinidade’ entre o universo escolar e as classes sociais mais favorecidas”. O que significa uma persistente dificuldade em reduzir as desigualdades através do sistema de ensino, necessariamente iníquo (Martins, 2012).
Em suma, na educação como no capital económico, os patrimónios herdados (pela transmissão de capital cultural, principalmente através das modalidades aparentemente triviais e invisíveis que operam pela incorporação da relação com a cultura legítima; pela “naturalização” da cultura escolar; pela proximidade ao capital linguístico mais transacionável e às maneiras “certas” de, quando e como dizer; etc.) contribuem decisivamente para prolongar as desigualdades nos percursos dos herdeiros, cavando distâncias pela transformação das desigualdades sociais em desigualdades escolares e vice-versa.
Um estudo recente sobre sucesso, insucesso e abandono na Universidade de Lisboa, coordenado por Ana Nunes de Almeida (2013), mostra precisamente que os jovens oriundos de famílias mais escolarizadas estão sobrerepresentados na população universitária.
Mas comparemos: na década de 60 do século passado, de acordo com os estudos pioneiros de Adérito Sedas Nunes, os estudantes de origens privilegiadas tinham 160 vezes mais probabilidades de acederem ao ensino superior (Nunes, 1968); para 1999, uma pesquisa de Ana Nunes de Almeida estimava esse diferencial em 20 vezes; a investigação mais recente coordenada pela mesma socióloga (Almeida, 2013) reduzia para três vezes mais o fosso, com uma muito maior seletividade em Medicina, Farmácia e Belas-Artes e uma democratização mais intensa em Letras, Psicologia e Ciências da Educação (ver quadro 1).
Ainda do lado da mudança, importa também salientar um aumento exponencial da escolarização feminina. Segundo dados recentes sobre a distribuição por género nas faculdades que constituem a Universidade do Porto (Gabinete de Avaliação e Qualidade da Universidade do Porto, 2020), as mulheres são minoritárias apenas na Faculdade de Desporto, em Ciências e em Engenharia. Nos prestigiados cursos de saúde elas são já claramente predominantes. Este processo merece especial reflexão, e chama a atenção para a necessidade de se analisarem as relações sociais de género na estruturação das classes sociais, dimensão negligenciada pelos autores de A Reprodução.
Os percursos escolares de contratendência
A transformação nas probabilidades de acesso ao ensino superior das camadas populares anteriormente enunciada leva-nos a ter presente a existência cada vez mais frequente de percursos de contratendência nos estudantes do ensino superior, cujas trajetórias revelam “uma não congruência entre as condições sociais estruturais do estudante e a trajetória escolar” (Costa, Lopes e Caetano, 2014: 97).
Um olhar que procure perscrutar processos e dinâmicas microssociológicos, à escala da produção social dos patrimónios individuais de disposições (Lahire, 2004) permite-nos, portanto, num outro ângulo de análise, salientar a existência de percursos escolares bem-sucedidos por parte de jovens oriundos das classes sociais mais desfavorecidas, que contrariam as macrotendências aqui identificadas e nos levam a relativizar a homologia identificada por Bourdieu entre a posse de capital cultural, o tipo de estratégias educativas promovidas pelas famílias e os resultados escolares obtidos pelos estudantes.
Com efeito, em Portugal, há já algumas pesquisas que têm analisado os “trajetos improváveis” realizados por alunos das classes populares (Costa, Lopes e Caetano, 2014; Roldão, 2015; Seabra et al., 2016), desvendando como muitos percursos escolares não só não são lineares, como podem ser atravessados por múltiplas variáveis e condições escolares dinâmicas, ora contrárias, ora facilitadoras do sucesso escolar.
A partir de uma análise aprofundada dos elementos que enformaram o trajeto escolar de 17 jovens de origem africana, provenientes de contextos familiares de fracos recursos socioeconómicos e escolares, que acederam ao ensino superior, Seabra et al. (2016) identificaram diferentes perfis de acesso ao ensino superior que ilustram condições de partida de grande improbabilidade de entrada na universidade, mas para a qual terá sido decisiva (a) a presença de estratégias familiares focadas na escolarização prolongada dos descendentes (das quais são exemplo o cuidado com a preparação para a entrada na escola, a ida às reuniões escolares, o diálogo sobre a escola, a verificação da realização dos trabalhos de casa, o recurso a explicações - pagas ou não - sempre que surgem dificuldades na aprendizagem, o uso da escrita no quotidiano e o evitamento de contextos de exclusão social) ou (b) a existência de uma rede de apoios extrafamiliares (constituída por vizinhos, professores e instituições comunitárias) que possibilitou a construção de um capital social sustentável das aspirações de mobilidade social ascendente (Seabra et al., 2016: 132-134).
No caso dos jovens que usufruíram do acesso a recursos e relações extrafamiliares, é de destacar a relevância do papel exercido por determinados professores ou diretores de turma (“verdadeiras âncoras” nos caminhos escolares de alguns destes estudantes), a influência do tipo de turma em que foram integrados (turmas de alunos excluídos versus turmas de alunos empenhados) e a importância de terem frequentado atividades extracurriculares proporcionadas pelas escolas (Seabra et al., 2016: 133-156).
Perante estes resultados, justifica-se que se coloque a hipótese de poder existir um efeito de professor ou um efeito de escola que contribua para alterar a relação de forças que é, em regra, promovida entre o sistema de ensino dominante e as classes sociais (Bourdieu e Passeron, 1970).
O efeito de escola e/ou o efeito de professor
Justamente com o propósito de apreender as especificidades escolares que potenciam o poder da escola de promover a igualdade de oportunidades e atenuar o peso das condições sociais das famílias na diferenciação dos resultados académicos, uma equipa coordenada por Teresa Seabra (2014) efetuou um estudo com o sugestivo título: Escolas Que Fazem Melhor. O Sucesso Escolar dos Alunos Descendentes de Imigrantes na Escola Básica.
Reconhecendo que o efeito relativo da escola nos resultados académicos é pequeno quando comparado com o efeito da condição social e étnica, mas ainda assim relevante, a investigação em causa adverte para o facto de serem os alunos com condições sociais mais desfavoráveis aqueles que mais sensíveis são aos efeitos do contexto escolar e que saem beneficiados quando estão inseridos em contextos mais favorecidos do ponto de vista das condições sociais (Seabra et al., 2014: 16).
Realizado por etapas, o estudo empírico de natureza extensiva começou por comparar o desempenho das escolas do 1º e 2º ciclos do ensino básico que pertencem à área metropolitana de Lisboa, nas provas de aferição do 4º e 6º anos, no decurso de três anos letivos (2008/09, 2009/10 e 2010/11), considerando o perfil sociocultural da sua população escolar. Foram identificados três clusters de escolas, diferentes entre si, mas relativamente homogéneos no seu interior quanto às origens sociais dos alunos que as frequentam, a que correspondiam três perfis sociais diferenciados de escolas: as que concentram uma população escolar mais desfavorecida; as que têm uma população escolar considerada socialmente intermédia e as que acolhem uma população socialmente mais favorecida.
Em forte consonância com a tese de Bourdieu, os resultados revelaram, tanto para o 4º ano como para o 6º ano, mas especialmente para este último ano, que os resultados médios das escolas do 1º e 2º ciclos do ensino básico da área metropolitana de Lisboa tendem a variar em relação direta com o perfil social das famílias a que pertencem as crianças em idade escolar, ou seja, os melhores resultados nas provas de aferição ocorreram nas escolas nas quais o peso dos pais com mais escolaridade e de classe média/superior era mais significativo, e vice-versa (Seabra et al., 2014: 52).
Foi, no entanto, demonstrado que, mesmo estando agrupadas por clusters, algumas escolas tinham resultados acima do que seria esperado: “foi possível identificar escolas que ‘fazem melhor’, ou seja, escolas com populações escolares socialmente semelhantes que podem obter resultados escolares superiores às suas congéneres, ou escolas com populações escolares distintas que obtêm resultados semelhantes” (Seabra et al., 2014: 115).
A regressão linear múltipla realizada - na qual se consideraram como variáveis a explicar as médias dos resultados obtidos a língua portuguesa e a matemática e como variáveis independentes (ou explicativas) a presença na escola de pais (pai ou mãe) que completaram no máximo o 2º ciclo, a presença na escola de famílias PTE e a presença na escola de alunos descendentes de imigrantes (Seabra et al., 2014: 57-58) - permitiu concluir que: (i) no 6º ano, os resultados das provas de aferição estão muito mais relacionados com a condição sociocultural da família; (ii) o poder da escola para fazer melhor é sempre mais elevado em matemática, quer no 4º quer no 6º ano; (iii) o potencial de a escola fazer melhor é muito maior no 4º ano que no 6º ano, uma vez que nesse ano há uma menor relação entre as notas nas provas de aferição e o padrão sociocultural dos pais (Seabra et al., 2014: 59, itálicos da autora).
A fim de se compreender a que condições e processos intraescolares se deviam os resultados obtidos pelos alunos acima do “esperado”, realizaram-se quatro estudos de caso com o objetivo de comparar entre si duas escolas do 1º ciclo e duas escolas do 2º ciclo, bastante diferenciadas no que respeita à sua área de implantação geográfica, instalações e recursos, perfil das suas populações docente e discente e organização e dinâmicas pedagógicas desenvolvidas (Seabra et al., 2014).
A comparação entre as duas escolas do 1º ciclo permitiu sublinhar positivamente: (i) a importância de existir uma dinâmica de funcionamento cooperativa e pró-ativa entre os docentes, quer na busca de soluções para os constrangimentos enfrentados, quer na mobilização de famílias e parcerias para o envolvimento na ação educativa; (ii) o desenvolvimento de práticas pedagógicas atentas à singularidade do aluno, adaptadas às dificuldades identificadas, ancoradas noutro tipo de apoios complementares (Seabra et al., 2014: 115).
No que se refere à comparação entre as duas escolas do 2º ciclo, entre os processos escolares que podem contribuir para a produção de resultados académicos acima do “esperado”, destacaram-se: (i) o trabalho colaborativo entre os professores resultante da intensidade do seu relacionamento, mais do que de encontros formalmente instituídos para o efeito; (ii) a multiplicação dos apoios aos alunos em dificuldades de aprendizagem, o que requer meios humanos e físicos; (iii) o envolvimento e responsabilização dos alunos na resolução dos problemas: mentoria interpares; apadrinhamentos (Seabra et al., 2014: 116).
Os estudos de caso comprovaram, por fim, que o efeito de escola é muito mais percetível ao nível do 1º ciclo do ensino básico e muito mais efetivo junto das populações escolares socialmente mais desfavorecidas (Seabra et al., 2014: 116).
Ainda que relevantes, serão estes resultados suficientes para se pôr em causa o núcleo duro da teoria da reprodução?
É certo que existirão fatores que diversificam os modos de relação das classes sociais com o sistema educativo, mas poder-se-á ignorar a persistência da influência das condições socioculturais das famílias nos resultados escolares dos estudantes tão claramente demonstradas pelos trabalhos aqui referenciados?
Um dos maiores méritos do trabalho de Bourdieu foi o de ter inspirado a conceção e implementação de políticas educativas de compensação das desigualdades sociais. Na realidade, há cerca de 50 anos que muitos países ocidentais desenvolvem programas de intervenção prioritária com o objetivo de promover a mobilidade social das famílias desfavorecidas e a integração das minorias (Karsten, 2006), precisamente com a convicção de que as dinâmicas organizacionais da escola e as práticas pedagógicas dos professores poderão corrigir os “déficits” daquelas populações escolares ou contribuir decisivamente para o seu empoderamento (Rochex, 2011; Melo, 2016).
No entanto, e paradoxalmente, os resultados “dececionantes” (na expressão de Karsten, 2006), dos diversos programas estatais que têm vindo a ser desenvolvidos parecem recorrentemente demonstrar como o sucesso escolar no sistema de ensino continua a ser indissociável das relações que se estabelecem entre a herança cultural familiar (mais implícita do que direta) e os modos de relação dos estudantes com a cultura escolar.
As contradições da educação compensatória
Existe, com efeito, na educação compensatória uma aparente contradição: se “as escolas não fazem a diferença” e se as grandes desigualdades estão a montante, por que razão apostar recursos nas medidas de compensação e nos apoios pedagógicos acrescidos? Não contribuirão estas políticas para aumentar “os riscos de polarização social entre escolas, territórios e ‘grupos’ sociais” (Roldão, 2015: 159)?
Parte da resposta inscreve-se, assim o pensamos, no modelo vigente de política social de “mínimos”, direcionada para a redução da intensidade dos fenómenos (e não para a sua erradicação). Outra parte, mais imediata, reside na pressão social sentida para repor uma certa “ordem escolar”, abalada pelo peso das reprovações e desistências, pela desmotivação docente e pela visibilidade crescente dos fenómenos de “indisciplina” na escola (Melo, 2012).
Abrantes et al., a partir dos resultados de pesquisas francesas e inglesas que procuraram avaliar a eficácia destes programas, constataram os parcos resultados por eles alcançados em termos de fortalecimento significativo das oportunidades de mobilidade social, e salientaram o facto de a inclusão nestes programas poder inclusivamente, nalguns casos, provocar a estigmatização e segregação das zonas e escolas (Abrantes et al., 2013: 15). No mesmo sentido, Roldão realçou a tendência dos estudos internacionais para constatarem a inexistência de resultados significativos no combate ao insucesso escolar, e referiu um conjunto de autores que assinalam “efeitos perversos”, nomeadamente o aumento da estigmatização sócio-territorial que tem conduzido à “fuga” das famílias da classe média, fortalecendo, assim, os “efeitos” segregativos dessas escolas (Roldão, 2015: 160).
Num outro estudo português (Lopes, 2012), em que se analisaram em densidade e profundidade alguns TEIP (territórios educativos de intervenção prioritária)4 portugueses, recolheram-se fortes indícios destes processos de estigmatização, na medida em que se constatou que os pais de classe média que tinham filhos naquelas escolas se queixavam dos segmentos mais “marcados” da população estudantil (os alunos dos cursos de educação de adultos, os filhos dos beneficiários do rendimento social de inserção e os estudantes pertencentes a comunidades ciganas ou a populações imigrantes), tidos como os principais responsáveis pelo mal-estar escolar e pela imagem negativa da escola. Desenvolvia-se, assim, “uma tática de distanciamento” e de “desvio do descrédito”, em que os segregados se tornam, por sua vez, segregadores (Quaresma e Lopes, 2012: 118).
Em contrapartida, uma avaliação recente também realizada em Portugal conduziu a resultados um pouco mais otimistas: redução do abandono e da indisciplina com melhoria dos resultados escolares, embora existam disparidades significativas consoante os agrupamentos estudados, os ciclos de estudo e as avaliações internas e externas (Abrantes, Mauritti e Roldão, 2011). Nos melhores exemplos, aperfeiçoou-se a cultura colaborativa entre os docentes, a monitorização dos recursos escolares e o ambiente pedagógico (fruto de atividades de enriquecimento curricular, do reforço do pessoal técnico e de mediação, da diversificação pedagógica na sala de aula, da melhor oferta curricular).
Contudo, persiste um anátema simbólico: estas são escolas estigmatizadas, por vezes consideradas de “fim de linha”, onde se concentram e acumulam “problemas sociais” raramente pensados sociologicamente, isto é, frequentemente encarados como caraterísticas intrínsecas àquelas pessoas, classes e territórios, uma espécie de segunda natureza que se lhes cola inexoravelmente na pele sob a linguagem dos handicaps (Benavente, 1990).
Texto 1 Escolas de “fim de linha”
Ao longo dos focus group e entrevistas notámos também o sentimento generalizado de escola de “fim de linha”: invariavelmente todos os assuntos/temas propostos para debate levavam os participantes a referirem as condições e características extremas da escola e, principalmente, dos alunos e da comunidade / encarregados de educação. A referência contínua às famílias como sendo “desestruturadas, inadequadas, que não cumprem os seus papéis, que não garantem que os filhos adquiram as competências sociais básicas, que interferem com o normal funcionamento da escola, …” é exemplo disto mesmo. Estes factos parecem constituir para a maioria dos professores um forte bloqueio ao desenvolvimento de projetos/atividades mais “ambiciosos”, que associam à necessidade de mais meios e recursos (por exemplo no FG de diretores de turma foi claramente afirmado que as práticas pedagógicas estavam muito limitadas pelas condições dos alunos e pelos recursos existentes). O discurso mais frequente vai, assim, no sentido de que em primeiro lugar é necessário colmatar as falhas que os alunos têm, que se situam aos níveis mais básicos, como a alimentação e o “saber-estar”, e que só depois se poderá trabalhar para outros objetivos, tendo sido este discurso muito mobilizado quando se abordava a questão da melhoria nos resultados escolares. (Excerto de diário de campo, Abrantes, Mauritti e Roldão, 2011: 26).
É interessante compararmos algumas das palavras-chave mais referidas nos projetos educativos das escolas para as elites analisadas em Os Burgueses (Louçã, Lopes e Costa, 2014) e as representações patentes nos discursos das escolas TEIP (Lopes, 2012, Abrantes, Mauritti e Roldão, 2011) (ver quadro 2).
Fontes: Louçã, Lopes e Costa (2014); Lopes (2012); Abrantes, Mauritti e Roldão (2011); Lopes, Louçã e Ferro, 2016.
Nas escolas TEIP surge frequentemente uma constelação discursiva sobre a ausência de normas, de disciplina, de sucesso, de ordem. Por outro lado, alguns dos projetos de escola naturalizam o estigma, essencializando as populações-alvo e colocando o cerne do “problema social” nas caraterísticas estereotipadas das famílias desfavorecidas:
Revelam graves debilidades ao nível da sua estruturação, com problemas que vão do desemprego, à toxicodependência, ao alcoolismo, baixa escolarização e outros. […] na sua maioria com baixa escolarização e beneficiários de rendimento social de inserção. […] Fatores que ajudam a compreender quer a falta de expectativas que manifestam em relação à aprendizagem dos filhos, quer as dificuldades evidentes em interiorizar regras e limites (Projeto de Escola TEIP - Abrantes, Mauritti e Roldão, 2011: 55).
Em quase 100% dos casos o problema está nas famílias, “nós temos famílias muito problemáticas (…) depois reflete-se nos alunos, desde falta de dinheiro, famílias monoparentais, álcool nas famílias, famílias desestruturadas…” (Coordenador TEIP, Abrantes, Mauritti e Roldão, 2011: 56).
Os TEIP pretendem, assim, antes de mais, estabelecer as condições mínimas de comunicabilidade entre famílias, estudantes e escolas. Para tal, apostam forte na disciplinarização e pacificação dos estudantes mais incómodos das classes populares. Nos discursos dos técnicos (animadores, educadores sociais, assistentes sociais, psicólogos) perpassa abundantemente uma ideia de repor um clima afetivo mínimo, de estabelecer a possibilidade de uma relação pedagógica, conciliando estratégias de envolvimento interpessoal com a vigilância e a punição, a cenoura e o pau. Multiplicam-se, por exemplo, as atividades que visam conferir autoestima e confiança, numa “lógica doméstica e singularizada” de tratamento dos problemas educativos (Vieira e Dionísio, 2012: 96). Mas também gabinetes de gestão de ocorrências disciplinares, que sinalizam e encaminham os alunos desordeiros (Melo, 2012), onde, por vezes, o enfoque paliativo vence o punitivo:
Texto 2 Momento zen - A terapia depois da desordem
A sala do Gabinete de Intervenção Pedagógica e Educativa, assim como o Gabinete de Apoio ao Aluno, constituem-se como uma estratégia pedagógica que tem procurado resolver problemas de indisciplina e mau comportamento. Na ocorrência de uma situação de indisciplina, o aluno é ”convidado" a sair da sala de aula e é encaminhado para este gabinete assegurado por professores. Quando tal acontece, o aluno é convidado a assistir a um pequeno filme com imagens de locais considerados paradisíacos (dez minutos), acompanhado de uma fonte com água a correr e cheiro a incenso. Tudo isto serve para o aluno ficar mais calmo. A seguir, o educando relata oralmente o sucedido em sala de aula ao professor responsável pelo gabinete, fazendo em seguida a descrição escrita. Por fim, o aluno passa para o outro espaço do gabinete, que está dividido por armários, para realizar trabalhos (Lopes, 2012: 55).
A psicologização das respostas esconde a politização das causas. Investir “na pessoa do aluno”, na sua “personalidade” e “autoestima”, de maneira a que cada um possa “acreditar em si”, pode ser uma aposta necessária, mas é decerto insuficiente. A ação bem-intencionada destes técnicos (que, não raras vezes, revelam maior confiança na relação com os jovens do que os próprios professores, que duvidam das suas possibilidades de superar pedagogicamente os “handicaps” familiares e territoriais) não leva os estudantes a questionarem-se sobre a relação entre as suas ações, percursos, projetos e contextos. Compensa-os do excesso de agressividade ou indiferença, o que é positivo, mas não basta para instaurar relações sociais refundadas.
Não obsta, ainda, a que estes jovens sejam os “perdedores” da era da reflexividade, na medida em que, imersos nas “desordens escolares”, não descortinam os nexos entre origens, práticas sociais e futuros possíveis.
Falta, em suma, organizar um trabalho difícil de conscientização, no sentido atribuído por Paulo Freire, isto é, de domínio sobre os processos que levam à consciência de si como sujeito numa instituição (a escola) e numa sociedade de classes, em que as desigualdades permanecem ocultas ou emergem tantas vezes de forma contraditória, oblíqua ou difusa. As indisciplinas podem ser oportunidades pedagógicas para que os estudantes se pensem como sujeitos, interpretando e contextualizando as suas práticas; fazendo as perguntas mais duras; estabelecendo as conexões que faltam. Para isso, é preciso ligar o “psi”, ao “sócio” e ao “cultural”.
Em certa medida, os TEIP são um sinal da “escola das incertezas” de que fala Rui Canário (Canário, Alves e Rolo, 2000), na medida em que o acréscimo generalizado de credenciação e capital humano não impede, antes parece concorrer, para a desregulação do capitalismo, cada vez mais desorganizado e atravessado pela insegurança laboral, a desindustrialização, o crescimento dos serviços executados por mão-de-obra mais qualificada mas mais precária e tendencialmente mal paga (excetuando o núcleo central que concebe e desenha conteúdos), a destruição cumulativa e sistemática das estruturas públicas de suporte social (com o argumento da redução de custos e da otimização de recursos).
O crescimento de largas franjas excluídas das classes populares, para quem as pertenças construídas na esfera do trabalho e das comunidades territoriais sofrem um lento mas doloroso processo de erosão, contribui para um crescente descrédito da escola como passaporte de inclusão e mobilidade social. Sem alternativa no mundo do trabalho, a escola é obrigada a recriar uma crença, mas com menos recursos e mergulhada num contexto onde os universos do populismo, do consumo de massas, dos espaços híbridos (online/off-line) e das afirmações subculturais a desafiam constantemente.
As políticas públicas de educação compensatória são uma expressão da urgência em lidar com problemas sociais graves (embora os investimentos escasseiem ou regridam em tempos de austeridade, o que é paradoxal), mas também da necessidade de navegar a crise e dentro da crise, gerindo-a (Sarmento et al., 2000) e monitorizando-a de forma a impedir o pânico moral (Hall e Jefferson, 2014), exercendo a batuta escolar para controlar a cacofonia territorial e social.
Poderiam ser mais consequentes, se superassem a lógica da intervenção escolar por um efeito territorial de envolvimento em rede de parceiros, em que a escola estabelecesse “nós” com as autarquias, as associações, as entidades formativas, os movimentos sociais, as empresas. Arriscam-se, todavia, para os mais pobres dos pobres, apesar de alguns resultados positivos já mencionados, a ser uma espécie de parêntese, uma ilha de suspensão, entre uma origem social desfavorecida e uma inserção desqualificada e desqualificante no mercado de trabalho de ocupações temporárias sem saída nem futuro.
Notas conclusivas: prolongar e desafiar a teoria
As pesquisas mobilizadas neste artigo permitem concluir pelo potencial heurístico das proposições teóricas do núcleo duro de A Reprodução aplicadas ao estudo do sistema de ensino português. Na verdade, existe ampla abundância empírica que comprova a transmutação das desigualdades sociais de base familiar em desigualdades escolares e estas, novamente, em desigualdades sociais, pela conversão de capitais e pelas relações que se estabelecem entre famílias, escola e mercado de trabalho no quadro de uma sociedade de capitalismo avançado.
É possível descortinar, ainda, elementos de produção de “excluídos do interior”, de eliminação diferida, absorvendo, num primeiro tempo, a “explosão escolar”, para, posteriormente, a regular em hierarquias próprias ao sistema de ensino e à sua imbricação com entradas desqualificadas e desqualificantes no mundo do trabalho. Não faltam exemplos, igualmente, de relegação por fileiras, estabelecimentos de ensino ou territórios. Assim, dentro de um modo de funcionamento gerencialista, selecionam-se as “clientelas”, recusam-se os “clientes de alto risco” (crianças e alunos desfavorecidos), destacam-se as escolas (rankings), oneram-se as famílias (“partilha de custos”).
Do mesmo modo, a arquitetura do sistema de ensino mostra como se tem acentuado, em Portugal, a tendência para as escolhas curriculares e vocacionais serem cada vez mais precoces, diminuindo a matriz integrada e aumentando a estratificação e hierarquização entre percursos (cursos, diplomas, ofertas formativas) que, apesar das proclamações de vasos comunicantes, acabam por ser paralelas que dificilmente se encontram.
Mesmo os esforços de política pública em educação compensatória não escondem a dificuldade em lidar com os novos públicos escolares e a aposta prioritária na identificação das “patologias sociais”, familiares e escolares, como estratégia de gestão, normalização e pacificação dos territórios onde se inserem as escolas da desordem.
No entanto e em contrapartida, a um nível meso, organizacional, o efeito de escola, o efeito de turma ou mesmo o efeito de professor, patentes, por exemplo, nas medidas de educação compensatória, dão origem a alguns resultados positivos que não são de ignorar.
Sugere-se, deste modo, um olhar mais atento às possibilidades das políticas educativas; às suas inovações e experiências, ao potencial de exploração, disseminação, partilha e incorporação de práticas pedagógicas de natureza colaborativa, não seletivas. Afinal, o campo escolar é atravessado por disputas e está longe de ser monolítico no que respeita às posições, disposições e tomadas de posição dos agentes.
Por outro lado, um exercício de sociologia pluriescalar, combinando variáveis micro, meso e macrossociológicas, revelará uma maior diversidade de percursos, onde se tornarão visíveis os modos ativos através dos quais, sob certos limites e circunstâncias, os agentes lidam com as suas condições estruturais de origem. À escala individual, como referimos, ganham maior significado os percursos “inesperados” e “improváveis” de contratendência.
Finalmente, importará desenvolver análises interseccionais e consubstanciais, onde as desigualdades de classe, género e etnia interagem entre si, com lógicas por vezes singulares, mesmo que contribuindo para um sistema mais vasto de desigualdades. Para cada situação, ganhar-se-á se salientarmos as influências recíprocas e as conexões dinâmicas (com aproximações e divergências) entre os vários tipos de desigualdade, resgatando a autonomia, ainda que relativa, das dimensões de género e evitando, deste modo, o reducionismo que torna invisíveis certas relações sociais.
A consideração do espaço social implica, de outra banda, que superemos o viés fragmentário (tão patente em análises essencialistas das identidades), encarando como relações sociais consubstanciais à classe, o género e a etnia, sem cair na tentação da reificação (Galerand e Kergoat, 2014) e destacando, a um mesmo tempo, o que é comum e o que é diferente em cada processo. O caso concreto da intensa feminização do acesso e sucesso universitários, inclusive nas fileiras mais prestigiadas, merece, por si só, um estudo aprofundado, pois põe em causa a tese da mera “translação para cima da estrutura das oportunidades escolares” (Bourdieu e Passeron, 1970: 294, 1964). O campo de possíveis das mulheres portuguesas é hoje bem distinto, o que exige novas indagações e trilhos de pesquisa. É esse, porventura, o maior desafio que atualmente se coloca à matriz de A Reprodução.