Retomando uma questão clássica da sociologia
A estrutura de classes tem constituído um dos temas fortes da sociologia. Os contributos fundadores de Karl Marx e de Max Weber deram origem, ao longo do século XX, a uma ampla discussão teórica e a uma profusão crescente de análises empíricas, sendo a sua relação com o sistema educativo uma das dimensões recorrentes de análise. Adérito Sedas Nunes, autor central na fundação da disciplina em Portugal, prestou particular atenção a esta questão. A sua perspetiva “dualista” da sociedade portuguesa diferenciava um contexto rural e tradicional, cuja estrutura de classes se manteria dominada pelas questões da propriedade, de um contexto moderno e emergente, nomeadamente nas regiões de Lisboa e Porto, em que a indústria e o “escol cultural”, associados aos estudos universitários, estariam na origem de uma estrutura de classes distinta, ainda que o autor nunca a tenha conceptualizado de forma integrada. Nos seus estudos sobre as universidades, com forte influência do trabalho de Bourdieu e Passeron (1964), Sedas Nunes (1968) e a sua equipa analisaram os mecanismos restritos de acesso ao ensino superior, a “seletividade social” e as baixas taxas de diplomação.
A partir dos anos 1980 e procurando articular diferentes quadros teóricos internacionais, uma equipa alargada de investigadores do Iscte-IUL tem vindo a produzir um conjunto alargado de estudos, em contextos sociais diversificados, sobre a estrutura de classes em Portugal (Almeida, Costa e Machado, 1988; Machado e Costa, 1998; Costa et al., 2000; Mauritti e Nunes, 2013; Martins et al., 2016; Costa e Mauritti, 2018). Têm prestado particular atenção ao alargamento dos níveis educativos da população portuguesa e à concomitante recomposição da estrutura de classes em Portugal, em particular na segunda metade do século XX, com o crescimento acentuado dos profissionais técnicos e de enquadramento, bem como dos empregados executantes, em contraste com a redução acelerada dos camponeses e assalariados agrícolas. Neste âmbito, observou-se como a “superioridade” histórica dos homens no acesso às habilitações literárias foi anulada e até invertida, generalizando-se a presença das mulheres no mercado de trabalho, com uma concentração significativa nas duas classes em forte expansão. Estas tendências têm vindo a aproximar-nos da estrutura de classes na União Europeia, ainda que subsistam níveis educativos inferiores à média, uma “sobrerrepresentação” dos trabalhadores nas classes sociais desfavorecidas (Costa, Machado e Almeida, 2007) e padrões persistentes de fechamento de género, sobretudo no acesso à classe empresarial e dirigente (Abrantes e Abrantes, 2014).
Outro “filão” desta linha de estudos incidiu sobre os estudantes universitários (Almeida, Costa e Machado, 1988; Machado et al., 2003; Costa, Lopes e Caetano, 2014; Mauritti, Martins e Vieira, 2016). A tónica central foi a de que, sem prejuízo de uma notável massificação deste nível de estudos nas últimas décadas do século XX, bem como algumas variações entre sexos e entre áreas de estudo, o acesso e o sucesso no ensino superior permaneceram assimétricos, segundo a classe social de origem dos estudantes e, mais especificamente, segundo o nível de escolaridade dos seus pais. A esta desigualdade não é alheio o facto de, a par de um notável alargamento dos percursos escolares neste período, se terem mantido padrões massivos, cumulativos e socialmente seletivos de retenção e de abandono escolar, no ensino básico e secundário (Benavente et al., 1994; Martins, 2005; Sebastião e Vladimira, 2007).
Entretanto, outros contributos sobre a estrutura de classes da sociedade portuguesa têm vindo a ser produzidos. A proposta de Estanque e Mendes (1997 e 1998) reconhece a existência de um “proletariado” mais alargado, englobando a totalidade dos trabalhadores destituídos dos meios de produção e de autoridade nas relações laborais, cuja dimensão se tenderia a manter relativamente estável durante as últimas décadas do século XX, apesar de uma mudança massiva dos sectores da agricultura para a indústria e, sobretudo, para os serviços. Por seu lado, Vilaverde Cabral (1998 e 2003) distingue uma dimensão objetiva das desigualdades socioeconómicas, em que a continuidade seria a tónica principal, de uma dimensão subjetiva em transformação, devido a um sentimento crescente de pertença à “classe média”, associado à perceção de maiores oportunidades de consumo. Focando-se no sistema educativo, Sérgio Grácio (1997) confirma a correspondência entre níveis de escolaridade e classe social dos indivíduos, mas argumenta que o seu impacto na mobilidade social é mitigado por dois fatores: (a) o alargamento recente dos percursos de escolaridade seria transversal às várias classes, mantendo-se a forte correlação entre a origem social e os níveis educativos alcançados pelos indivíduos; (b) à medida que aumenta o acesso a níveis educativos superiores, assistiríamos à “desvalorização dos diplomas” no âmbito das relações de produção (efeito “escada rolante”). Com base neste argumento, Mendes (2003: 146) conclui que “as qualificações, ou seja, o capital cultural, são o grande obstáculo à mobilidade intergeracional”.
A nível internacional, esta questão foi amplamente desenvolvida a partir dos estudos que revelaram e analisaram a forte correlação entre origens e percursos de escolaridade dos indivíduos (e.g., Bourdieu e Passeron, 1964 e 1990 [1970]; Coleman, 1968). Mais recentemente, sem prejuízo de variações observadas entre países, decorrentes de vários fatores, tais como os arranjos institucionais e as políticas educativas (Bol e Werfhorst, 2013), diversos autores têm vindo a focar-se no modo como o sistema educativo se manteve enquanto espaço em que as classes dominantes reproduzem os seus privilégios, nomeadamente através de políticas educativas de corte neoliberal e do simultâneo investimento de recursos privados para assegurar uma educação “distintiva” aos seus descendentes (Reay, 2006; Ball, Apple e Gandin, 2010). Embora raramente o analisem numa perspetiva biográfica, vários destes trabalhos defendem que a consolidação de diferentes “circuitos de escolarização”, bem como políticas muito centradas no desempenho em exames, tendem a socializar os jovens num quadro cultural capitalista que naturaliza e legitima as desigualdades entre indivíduos e entre classes. A transposição destes argumentos para o caso português deve ter em conta como o Estado Novo se serviu da escola enquanto instrumento de controlo social e difusão de uma ideologia autoritária, conservadora e legitimadora das desigualdades (Mónica, 1978), tendo as políticas educativas adotado um certo hibridismo, entre democratização e incorporação de pressões neoliberais, desde então (Teodoro e Aníbal, 2007; Antunes e Peroni, 2017).
Na última década, diversos estudos têm revelado as profundas desigualdades que caracterizam as sociedades contemporâneas, bem como o seu crescente carácter global e a sua íntima relação com as dinâmicas do capitalismo, incluindo riscos de polarização, em algumas regiões do mundo e dimensões da desigualdade (Costa, 2012). Deixando de parte a vasta bibliografia que tem entendido as desigualdades enquanto continuum, mais devedoras de um património teórico e metodológico da economia, várias investigações têm confirmado, através de metodologias diversas, a importância da relação entre educação e classes sociais, entendidas como espaços de interseção de múltiplas desigualdades (Costa e Mauritti, 2018) e elementos constitutivos dos “cursos de vida” dos indivíduos e famílias. Em Portugal, vejam-se vários capítulos da compilação organizada por Carmo (2013) ou a trilogia produzida sobre as classes sociais (Lopes, Louçã e Ferro, 2019).
O aprofundamento desta questão deve equacionar alguns fenómenos ocorridos nas primeiras duas décadas do novo milénio. Por um lado, este período foi marcado pela estagnação económica, um processo de “desindustrialização” e de concentração financeira, um aumento da dívida externa e uma crise grave, entre 2008 e 2014, com um aumento do desemprego e da precariedade, consolidando-se a dependência externa e o lugar “periférico” de Portugal no quadro europeu (Santos, 2011; Reis, 2018). Num estudo recente, Mauritti et al. (2019) concluem que, contra os prognósticos mais otimistas, se mantêm não apenas os traços de “modernidade inacabada” observados por Machado e Costa (1998), mas também a sua relação com dinâmicas territoriais assimétricas, estudadas por Sedas Nunes (1964). Por outro lado, ao nível do sistema educativo, será importante sublinhar o alargamento da escolaridade obrigatória para 12 anos e a diminuição acentuada das taxas de insucesso e abandono escolar, em Portugal, assim como o investimento significativo no ensino profissional e, sobretudo entre 2006 e 2011, na educação de adultos, superando a situação de contraste que existia face ao resto da Europa, apesar da persistência de padrões internos de forte desigualdade (Rodrigues, 2014; Araújo et al., 2020). Por seu lado, o ensino superior atravessou igualmente uma transformação profunda, motivada pelo aumento das ofertas formativas e das vagas disponíveis, a adequação a um modelo integrado europeu (“processo de Bolonha”), bem como a profusão de valores como a empregabilidade, a excelência, a empresarialização e o empreendedorismo (Nóvoa, 2018).
A comparação subsequente dos dados de 2002 e de 2018 permitirá, pois, explorar alguns dos efeitos destas mudanças na relação entre escolaridade e classes sociais, sendo que os mesmos terão de ser aprofundados ao longo das próximas décadas, uma vez que os efeitos das dinâmicas económicas e das políticas educativas ocorrem forçosamente em várias temporalidades.
Notas metodológicas
A partir de um programa de investigação que envolve 16 instituições científicas, o European Social Survey (ESS) é um questionário aplicado, de dois em dois anos, em dezenas de países, cujos princípios metodológicos, instrumentos de inquirição e bases de dados se encontram publicados em linha. Tem a vantagem de incluir um conjunto de resultados relativos a origens sociais, níveis educativos, atividades económicas e posicionamentos individuais face a um vasto conjunto de questões sociais e políticas de amostras da população portuguesa, sendo que os dados relativos à 1.ª e 9.ª edições (2002 e 2018) já permitem cobrir um período suficientemente longo para explorar algumas tendências recentes. Por seu lado, algumas limitações emergem da dimensão da amostra e do facto de as perguntas (e categorias de resposta) serem definidas a priori, não sendo passíveis de controlo pelos investigadores que recorrem a estas bases de dados no quadro das suas pesquisas.
A partir do quadro teórico esboçado na secção anterior e do naipe de questões incluídas neste inquérito, orientámos a análise de dados para responder a quatro hipóteses de trabalho, relativamente ao período entre 2002 e 2018:
1. continuidade das tendências de transformação estrutural da segunda metade do século XX;
2. perda de relevância da classe de origem na escolaridade (democratização educativa);
3. desvalorização dos diplomas na distribuição dos indivíduos pelas classes sociais;
4. redução das assimetrias de género decorrente da “vantagem educativa” das mulheres.
Ao nível da estrutura de classes, adotámos a tipologia ACM, desenvolvida no Iscte-IUL pelo programa de investigação discutido na secção anterior, que prevê, na sua formulação mais sintética, a existência de cinco diferentes classes:
- os “empresários, dirigentes e profissionais liberais” (EDL), detentores dos meios de produção e/ou de direção nas organizações produtivas e no estado;
- os “profissionais técnicos e de enquadramento” (PTE), a quem o conhecimento específico e altamente formalizado confere uma posição de autoridade técnica que se traduz em maiores rendimentos, autonomia e estatuto (capital social, cultural e económico);
- os “trabalhadores independentes” (TI), simultaneamente trabalhadores e detentores dos meios de produção, no sentido em que vendem diretamente o produto do seu trabalho e não têm trabalhadores subordinados;
- os “empregados executantes” (EE), trabalhadores dependentes de carácter administrativo, dos serviços e do comércio, para os quais as relações interpessoais desempenham um papel central;
- os “operários” (O), trabalhadores dependentes, em funções manuais, rotineiras e altamente controladas.
Beneficiámos do trabalho de Roldão (2008) sobre a aplicação desta tipologia ao ESS. É certo que, nas primeiras versões desta tipologia, o número de classes era mais numeroso, devido à autonomização das classes de “camponeses” e de “assalariados agrícolas” (e dos “pluriativos”). Entretanto, estas classes tornaram-se muito minoritárias, além de que a industrialização e especialização das atividades agrícolas e piscatórias conduziu a uma aproximação dos seus membros às classes EDL, TI ou O, consoante a sua relação com os meios de produção. Foi também introduzida uma variação à tipologia ACM, ao transferir os serviços mais desqualificados da classe EE para a classe O. É o caso, em particular, dos trabalhadores (por conta de outrem) domésticos (não os cuidadores de crianças, idosos ou outros), de limpeza de estabelecimentos comerciais (não os assistentes na área da educação ou saúde), dos ajudantes de cozinha e dos varredores de rua. Esta adaptação é sensível aos argumentos de Estanque e Mendes (1997) sobre a existência de um “operariado dos serviços”, embora reconhecendo que o mesmo não se aplica a todo o emprego de execução nos serviços. É também devedora de estudos sobre os percursos de vida da classe trabalhadora em Portugal (Abrantes, 2013) e, em particular, sobre o trabalho doméstico e de limpeza, os quais têm revelado como este tende a ser altamente desqualificado, físico, rotineiro e informal, expondo as suas ocupantes (quase sempre mulheres, crescentemente imigrantes) a situações de exploração e de exclusão (Cruz e Abrantes, 2014), mais próximas do observado entre os operários do que entre os empregados executantes. E resulta ainda dos próprios dados do ESS, onde se confirmou o carácter mais precário e desqualificado das relações laborais nestas atividades face à generalidade daquelas que se integram na classe EE.
Para o aprofundamento do presente objeto de estudo e considerando que hoje a larga maioria das mulheres está incorporada a tempo completo no mercado de trabalho, tal como os homens, considerou-se preferível aferir a relação individual entre nível de escolaridade e posição na estrutura de classes. A análise das posições sociais do agregado doméstico implicaria entrar em linha de conta com estratégias matrimoniais e, em termos mais amplos, com as dinâmicas familiares e laborais no Portugal contemporâneo. Assim sendo, no presente estudo, apenas se utilizou esta categorização na análise dos rendimentos, assumindo que os padrões de consumo dentro dos agregados domésticos estão fortemente interligados, assim como no indicador da escolaridade da família de origem, sendo considerado o mais elevado entre os níveis obtidos pelo pai e pela mãe.
Em algumas análises, referimo-nos a classes dominantes ou favorecidas (EDL e PTE) ou a classes trabalhadoras ou desfavorecidas (TI, EE, O), uma vez que essa é a segmentação que tem revelado maior espessura, em termos de desigualdades simultaneamente económicas, sociais e culturais (ver quadro 1, relativo aos rendimentos dos agregados domésticos). Se, em termos de relações de produção, há uma assimetria clara entre EDL e PTE, sendo o tecido produtivo português ainda muito dominado por micro e pequenas empresas, uma grande parte dos empresários não têm uma condição privilegiada, nos indicadores económicos, sociais e culturais, face aos profissionais técnicos e de enquadramento. De forma idêntica, a classe TI, ainda que teoricamente liberta da exploração dos assalariados desqualificados, tem sido composta, no nosso país, por agentes em situações muito heterogéneas, em termos económicos, sociais e culturais, uma grande parte deles sofrendo de privações e exclusões várias (não sendo inusuais relações de dependência “mascarada”), ou seja, não se encontram numa condição inequivocamente favorecida face aos membros das classes EE e O, entre as quais a mobilidade tem sido intensa, marcada por traços de género e, frequentemente, não se traduzindo em processos efetivos de mobilidade social (Abrantes, 2013).
Cingimos o universo em análise à população entre os 17 e os 64 anos, segmentando-o em três faixas etárias de 16 anos cada, refletindo etapas distintas do percurso laboral e de vida, bem como períodos diferenciados em que ocorreu a sua escolarização. Além disso, a comparação dos resultados de 2002 e 2018 permite diferenciar quatro coortes, bem como acompanhar duas delas (sombreadas a diferentes tons nos quadros infra) e, assim, explorar os efeitos da educação de adultos e da mobilidade “intrageracional”, de acordo com o esquema seguinte:
- nascidos entre 1986 e 2001 (17 a 32 anos em 2018): escolarização já no quadro da Lei de Bases do Sistema Educativo, no contexto de expansão do ensino profissional e do “processo de Bolonha”;
- nascidos entre 1970 e 1985 (17 a 32 anos em 2002; 33-48 anos em 2018): escolarização durante o período revolucionário e de consolidação democrática;
- nascidos entre 1954 e 1969 (33-48 anos em 2002; 49-64 anos em 2018): escolarização realizada antes da revolução e/ou durante o período revolucionário;
- nascidos entre 1938 e 1953 (49-64 anos em 2002): escolarização durante o período da ditadura.
Relativamente aos níveis educativos, utilizamos uma tipologia básica de quatro categorias, distribuindo os indivíduos entre diplomados do ensino superior, do ensino secundário (12.º ano), do ensino básico (9.º ano) e aqueles que não concluíram este nível educativo. Tendo em conta a evolução do sistema educativo e o alargamento do acesso que afetou, de forma muito desigual, as várias gerações do universo em estudo, esta tipologia é a que permite alguma inteligibilidade e comparabilidade, ainda que, no caso da coorte mais recente, se tenha procurado igualmente explorar algumas diferenças entre os diplomados com dupla certificação (CITE-4 e CITE-5) e aqueles que terminaram o ensino secundário através dos cursos científico-humanísticos (CITE-3), assim como entre os mestres ou doutorados (CITE-7 e CITE-8) e os que detêm, apenas, diploma de bacharelato ou licenciatura (CITE-6).
Apresentação e discussão de resultados
Em seguida apresentam-se e discutem-se os principais resultados da análise, tendo como eixos orientadores as quatro hipóteses definidas anteriormente1
Continuidade das tendências de transformação estrutural (com nuances)
Aprofundando a tendência das décadas anteriores, assistiu-se a um crescimento acentuado dos níveis de escolaridade da população em idade ativa, entre 2002 e 2018 (quadro 2), com uma redução drástica do segmento sem a escolaridade básica completa (de 49% para 21%) e um aumento concomitante dos adultos com habilitações de nível superior (13% para 28%) e de nível secundário (de 18% para 32%). O seguimento de coortes mostra que este progresso resultou, não apenas do alargamento dos percursos de escolaridade dos jovens, mas também dos programas de educação e formação de adultos. De 2002 a 2018, a geração nascida entre 1954 e 1969 aumentou de forma considerável as suas qualificações: a percentagem que concluiu a educação básica aumentou de 53% para 62%, sendo que a proporção com qualificações secundárias (22%) ou superiores (19%) também se alargou, tendo em conta que era apenas de 16% em cada um dos níveis, em 2002.
Por seu lado, manteve-se o crescimento da classe PTE (de 17% a 29%) e a diminuição da classe O (de 39% para 25%), com uma relativa estabilidade das três restantes. A expansão da classe PTE ocorreu, tanto pela captação de 1/3 da geração nascida entre 1986 e 2001, como pela mobilidade ascendente de uma parte dos membros das classes desfavorecidas, sobretudo, entre os 33 e os 48 anos: a geração nascida entre 1970 e 1985, cujo segmento na classe PTE aumentou de 15% para 33%, entre 2002 e 2018 (quadro 3). Quanto à redução do operariado, neste início do século XXI, parece resultar efetivamente de uma quebra acentuada da mão-de-obra na indústria, uma vez que os assalariados agrícolas já eram muito minoritários na viragem do século e os sectores mais desqualificados dos serviços apresentaram uma certa estabilidade. No total, a proporção da população no sector primário, entre 2002 e 2018, manteve-se nos 3%, enquanto o sector secundário caiu de 31% para 25% e o sector terciário cresceu de 66% para 72%.
* A classificação internacional de tipos de educação (CITE), coordenada pela UNESCO, constitui a principal tipologia de níveis educativos utilizada, hoje, a nível internacional. No caso português, entre 2002 e 2018, o nível de mestrado/doutoramento foi recodificado, em consequência da criação do espaço europeu de ensino superior (“processo de Bolonha”), sendo que uma parte dos detentores de licenciatura, em função da duração da mesma, foram incorporados no nível CITE-7. Fonte: European Social Survey (1.ª e 9.ª edições 2002 e 2018), cálculos próprios
Uma nota final para destacar a estagnação da classe EDL, após algum crescimento na segunda metade do século XX (Machado e Costa, 1998). A proporção atual está próxima da média europeia e parece ter sofrido uma quebra com a crise económica, bem patente nos dados recolhidos pelo ESS em 2012 (Mauritti, Martins e Vieira, 2016). Quando comparamos as gerações, podemos constatar um padrão complexo: se o acesso a esta classe é mais comum depois de algum tempo no mercado de trabalho (16% entre os 33 aos 48 anos face a 9% entre a população ativa entre os 17 e os 32 anos), há uma quebra na faixa etária dos 49 aos 64 anos (11%), tanto mais significativa quando se observa igualmente, face à mesma coorte, em 2002 (15%). Será importante lembrar que esta classe, em Portugal, ainda é composta maioritariamente por proprietários de pequenas empresas, com taxas de falência bastante elevadas, sobretudo em períodos de crise económica. Ou seja, o que parece ter ocorrido, sob a capa de uma estabilidade da sua dimensão, foi uma renovação parcial desta classe, no período em análise.
Democratização educativa (ou “reprodução suavizada”)
A comparação dos níveis de escolaridade da população adulta com os dos seus pais, em 2002 e 2018, permitiu observar, apesar de assimetrias consideráveis, uma perda relativa da relevância da origem social nas oportunidades educativas. Por outras palavras, operou-se um alargamento transversal dos níveis de educação e formação da população ativa em Portugal, mas simultaneamente reduziram-se as desigualdades educativas associadas à escolaridade dos progenitores. Assim, em 2018, um filho de diplomado/a do ensino superior tinha quatro vezes maior probabilidade de deter um diploma do ensino superior e duas vezes maior probabilidade de possuir um diploma do ensino secundário do que um adulto cujos pais não haviam completado o ensino básico. Contudo, em 2002, essa assimetria era de cinco e três vezes, respetivamente (quadro 4).
* Os valores tomam como padrão as oportunidades de diplomação da população ativa cujos pais não terminaram o ensino básico. Por exemplo: a população ativa cuja máxima escolaridade dos pais foi o ensino básico (pelo menos, um dos pais completou este nível e nenhum deles concluiu o secundário ou o superior), em 2002, tinha 2,1 vezes maior probabilidade de ter concluído o ensino básico do que aqueles cujos pais não haviam completado esse nível.
Comparando os dados da geração nascida entre 1954 e 1969, em 2002 e em 2018, é possível constatar que a educação de adultos contribuiu para esta redução da relevância da classe social de origem, ainda que o seu impacto seja bastante transversal ao nível das origens socioeducativas dos indivíduos. A “vantagem educativa” dos descendentes de diplomados do ensino superior face àqueles cujos pais não haviam concluído o ensino básico, reduziu-se de 6,4 para 5,8 vezes, nas qualificações superiores, assim como de 3,0 para 1,7 vezes nas qualificações de nível secundário. Em suma, a educação de adultos tanto permitiu aos segmentos minoritários com níveis de escolaridade inferiores aos dos seus pais corrigir essa assimetria como abriu oportunidades aos provenientes de famílias pouco escolarizadas de superar as habilitações literárias dos seus progenitores. Mas, tendo em conta as desigualdades “de partida”, acabou por contribuir para a democratização educativa.
Os dados da geração nascida entre 1985 e 2001, recolhidos em 2018, permitem-nos fazer uma primeira aproximação às tendências ocorridas na primeira década do século XXI, incluindo a expansão do ensino profissional e a reorganização do ensino superior no âmbito do “processo de Bolonha”. Estes dados sugerem que, por um lado, os diplomados do ensino profissional têm origens socioeducativas muito heterogéneas e, por outro, a distribuição dos jovens entre aqueles que apenas obtêm o nível de licenciatura e aqueles que prosseguem para o mestrado e doutoramento também não varia de forma linear consoante os níveis de escolaridade dos pais. Assim, estas medidas não parecem colocar em causa o processo de relativa democratização educativa observado, visível no facto de a vantagem probabilística de um filho de licenciados obter um diploma de ensino superior em comparação com um filho de pais sem o ensino básico completo se ter reduzido de 2,8 para 2,1 vezes, tendo sido praticamente anulada no nível secundário. Ainda assim, estas tendências devem ser confirmadas ao longo dos próximos anos, pois esta será ainda uma coorte “de transição”, além de que o período de vida entre os 17 e os 32 anos de idade poderá ser prematuro para observar diferenças nos níveis de qualificações superiores.
Os diplomas (de nível secundário ou superior) não perdem valor na estrutura de classes
A comparação do “valor” do diploma para o acesso às diferentes classes sociais, entre 2002 e 2018 (quadro 5), aporta escassas evidências que suportem a hipótese da desvalorização dos diplomas escolares durante um período que, como vimos, foi marcado por um alargamento muito significativo dos níveis de escolaridade da população. É certo que a posse de um diploma do ensino superior conferia uma probabilidade ligeiramente maior de acesso às classes dominantes (EDL e PTE) em 2002 (88%), comparativamente a 2018 (83%). Contudo, as oportunidades de acesso a estas classes para aqueles que não detêm um diploma do ensino superior também se degradaram. Ou seja, a expansão dos níveis de escolaridade foi mais célere do que o alargamento das classes dominantes, mas os níveis de escolaridade não perderam relevância na alocação dos indivíduos a estas diferentes classes. Assim, o diploma de ensino superior mantém o seu valor, sendo cada vez menos uma garantia, mas cada vez mais um requisito para o acesso às classes dominantes (de resto, não existe registo de período histórico em que o diploma de ensino superior garantisse, per se, o acesso imediato e permanente às classes favorecidas).
Num olhar mais detalhado e tomando o “valor” de cada diploma pelo acréscimo de oportunidades que proporciona no acesso às classes dominantes face ao nível de qualificações inferior (por vezes designado “prémio educativo”), podemos observar que, entre 2002 e 2018, o valor do diploma do ensino superior parece até aumentar no acesso à classe EDL (recomposição desta classe), compensando uma ligeira quebra no acesso à classe PTE. Ao invés, o diploma de nível secundário parece perder valor no acesso à classe EDL, mas vê o seu valor aumentar no acesso à classe PTE, o que é possível que se associe a um crescimento das formações de dupla certificação, tanto para jovens como para adultos. Entre aqueles que não obtiveram um grau superior, o acesso à classe PTE é mais frequente entre os diplomados das ofertas de dupla certificação (46%) do que entre os diplomados dos cursos científico-humanísticos do ensino secundário (20%). Na análise por coortes também não se vislumbram variações de monta, existindo um movimento de mobilidade ascendente, decorrente de processos de progressão profissional ao longo da vida, mas que é bastante minoritário e transversal aos vários níveis educativos. O único diploma que parece perder valor é o diploma do ensino básico para acesso tanto à classe PTE como à classe EE.
Outros indicadores sobre as oportunidades no mercado laboral apontam tendências idênticas. Por exemplo, em 2018, uma maior proporção da população ativa (57%) revelou já ter estado desempregada e à procura de emprego por mais de um ano, em comparação com 2002 (45%). Contudo, esta situação continuou a ser mais recorrente entre a população sem o ensino básico completo (47% em 2002 e 70% em 2018) do que com o ensino superior (33% em 2002 e 49% em 2018), sendo que os níveis de escolaridade intermédios obtêm igualmente níveis de desemprego intermédios. No caso dos rendimentos líquidos do agregado doméstico, embora os dados de 2002 não permitam comparações, os dados de 2018 revelam uma forte relação com o nível de escolaridade dos indivíduos. Assim, a probabilidade de estar entre o quintil mais pobre é de 35% para aqueles que não têm o ensino básico completo e apenas 3% para aqueles que têm ensino superior. No quintil mais rico sucede o oposto: 6% para os menos qualificados, 37% para os detentores de qualificações superiores.
Uma nota final: a proporção de diplomados do ensino superior entre a população que se dedica a atividades primárias (19%) e secundárias (20%), em 2018, é já muito significativa, tendo em conta os valores residuais 16 anos antes (3% e 6%, respetivamente). O sector terciário continua a absorver a grande maioria dos diplomados do ensino superior, mas observa-se uma pequena redução durante este período (87% para 82%), tendo o seu crescimento numérico ocorrido nos níveis qualificacionais inferiores. Isto não significa uma desvalorização dos títulos académicos, mas uma transformação do tecido produtivo, o que é bem patente no facto de, em 2018, 24% da população dedicada à indústria se encontrar na classe PTE, contra apenas 9%, em 2002. A par de uma concentração das atividades produtivas no sector dos serviços, teve lugar uma relativa qualificação do trabalho nos outros dois sectores.
Permanência das assimetrias de género: quando mais escolaridade equivale a menos privilégios
Se é verdade que, em Portugal, as mulheres têm, já há várias décadas, um aproveitamento escolar médio superior ao dos homens e uma maior proporção de ingresso e diplomação no ensino superior (Grácio, 1997), entre 2002 e 2018, esta “vantagem” apenas se consolidou no nível básico, não aumentando nos níveis secundário e superior. Aliás, as taxas de diplomação dos homens cresceram a um ritmo superior, neste período, sobretudo no nível secundário, tendência à qual não será alheia a expansão do ensino profissional. A educação de adultos parece ter contribuído, sobretudo, para que as mulheres menos escolarizadas concluíssem a educação básica, mas foi mais útil para a qualificação dos homens, nos níveis secundário e superior, eventualmente devido a dinâmicas familiares que, sistematicamente, atribuem mais direitos aos homens e mais deveres às mulheres (Perista et al., 2016).
Além disso, os dados do ESS apontam para que não apenas o acesso à classe EDL se manteve claramente assimétrico, entre 2002 e 2018 (quadro 6), com a proporção de homens a quase duplicar a de mulheres (apesar de uma maior correlação com os níveis educativos), mas também o acesso à classe PTE, embora fortemente subsidiário do diploma do ensino superior, parece ter sido facilitado mais aos homens do que às mulheres (que, aliás, se encontravam em maior proporção nesta classe em 2002 e deixaram de estar em 2018). No espectro oposto, a “fuga” ao operariado, pelas condições mais duras que frequentemente implica, esteve mais acessível aos homens do que às mulheres, ainda que os homens se mantenham maioritários nesta classe, enquanto as mulheres continuam a concentrar-se na classe EE. Apenas no caso do desemprego de longa duração (mais de 1 ano), se observa alguma redução das assimetrias de género, mas que resulta sobretudo de um aumento acentuado desta situação entre os homens com níveis baixos de escolaridade, aproximando-se do padrão entre as mulheres com níveis educativos análogos.
Em terceiro lugar, uma análise mais detalhada do “valor” dos diferentes níveis educativos para acesso às classes dominantes (ver ponto anterior) permite constatar que este é sistematicamente superior no caso das mulheres, tal como observado em estudos anteriores, e utilizado para explicar o maior investimento das raparigas na educação (Grácio, 1997). A posse de um diploma do ensino superior passou a ser uma característica mais comum entre os EDL e os PTE, entre 2002 e 2018, mas essa correlação é sempre mais forte no caso das mulheres, não por uma “sobrerrepresentação” das licenciadas nesta classe, mas pelo carácter residual do acesso das mulheres com baixas qualificações (quadro 6). Por exemplo, em 2018, a probabilidade de uma mulher com o ensino superior estar na classe PTE é 18 vezes superior à de uma mulher que não concluiu o ensino básico e quatro vezes maior do que uma mulher com habilitações de nível secundário, enquanto no caso dos homens estas proporções são de oito e duas vezes, respetivamente.
Em suma, entre 2002 e 2018, nem a “vantagem feminina” nos níveis educativos alcançados se acentuou, nem o seu impacto na redução das desigualdades de género no sistema produtivo se reforçou. Pelo contrário, reduziu-se a proporção das mulheres com baixos níveis de escolaridade nas classes EDL e PTE, mas não a dos homens, ou seja, o acesso das mulheres às classes dominantes tornou-se mais dependente da aquisição anterior de um diploma, nomeadamente, de nível superior.
Notas conclusivas
A partir de uma análise dos dados do European Social Survey relativos a Portugal foi possível observar que a relação entre educação e estrutura de classes se manteve forte, entre 2002 e 2018, aprofundando as tendências observadas nas décadas anteriores por várias equipas de sociólogos, nomeadamente o alargamento exponencial dos percursos de escolaridade e dos níveis de diplomação no ensino superior, intimamente associado com o crescimento do contingente dos profissionais técnicos e de enquadramento (PTE) e com a redução do operariado (O), alcançando ambas as classes uma dimensão bastante semelhante e próxima também à dos empregados executantes (EE).
É certo que não existe (nem nunca existiu) uma correspondência perfeita entre educação formal e posição social, pois o acesso a (ou exclusão de) qualquer classe decorre de uma pluralidade de mecanismos simultâneos, mas a relação forte entre nível de escolaridade e o lugar de classe dos indivíduos não deixa de ser um traço da modernidade (mais forte, ainda, no caso das mulheres do que no caso dos homens), sendo que a mesma não se alterou, no cômputo geral, durante as últimas duas décadas. A este propósito, aliás, as principais mutações observaram-se na classe EDL, cuja dimensão se contraiu ligeiramente, devido à exclusão parcial e a limitações ao acesso dos segmentos menos escolarizados da população (que eram ainda maioritários na classe empresarial do final do século XX), representando um reforço do “valor” dos diplomas, sobretudo, do ensino superior no acesso a posições sociais privilegiadas.
A um nível mais fino, foi possível observar que estes movimentos foram fortalecidos por uma relativa democratização das oportunidades de educação e formação, no sentido de uma redução do peso das origens sociais nas qualificações dos indivíduos, para a qual contribuíram a expansão das ofertas de dupla certificação de nível secundário e os programas de educação de adultos. Em contraste, entre 2002 e 2018, ficou patente uma estagnação ao nível das desigualdades de género na estrutura socioprofissional, decorrente da preservação de um acesso minoritário das mulheres às classes dominantes, apesar de padrões de qualificação superiores aos dos homens.
Numa perspetiva mais de fundo, estes resultados permitem relativizar quer a tese de que políticas de corte neoliberal, a partir dos anos 1980, teriam conduzido a um reforço da relação entre origens sociais e percursos educativos, quer a tese de que a democratização do ensino teria redundado numa menor relevância desses percursos no acesso às classes sociais mais privilegiadas. Cabe recordar que, se em grande parte do mundo as décadas seguintes à II Guerra Mundial foram marcadas pela democratização, Portugal apenas começou esse caminho já nos anos 1970, pelo que, em 2002, a maior parte da população ativa tinha ainda sido (escassamente) escolarizada pelo Estado Novo. Além disso, será necessário continuar a acompanhar estes padrões, uma vez que, por exemplo, as medidas educativas introduzidas no contexto das políticas de austeridade, entre 2011 e 2014, poderão ter efeitos mais a médio e longo prazo na estrutura social e na sua relação com os percursos escolares.
Por seu lado, a falta de crescimento das classes detentoras dos meios de produção (EDL e TI), bem como a persistência de assimetrias de género no acesso às classes dominantes e disseminação (transversal às várias classes sociais e níveis educativos) de experiências de desemprego de longa duração, nas últimas duas décadas, são já motivos de sobra para nos preocuparmos com as transformações em curso na estrutura social portuguesa e que não deixam de ter reflexos no sistema educativo.
Relativamente ao desenvolvimento desta linha de investigação, será importante aprofundar a comparação com as transformações observadas noutros países e regiões do mundo, durante o mesmo período, entendendo a realidade nacional no quadro das relações globais de (re)produção (“sistema-mundo”) e, em particular, tendo em conta a integração no espaço económico e político europeu. À luz dos estudos anteriores que têm observado diferenças entre regiões e territórios nacionais, esta análise também poderá ser adensada, considerando as dinâmicas observadas em níveis de escala mais reduzidos, tanto nos percursos educativos como no sistema produtivo, ainda que os dados do ESS não sejam indicados para o efeito. Por seu lado, torna-se fundamental aprofundar a articulação entre as análises estatísticas e as pesquisas etnográficas e biográficas sobre esta relação entre percursos educativos e de classe social, explorando as transformações dos mecanismos concretos que, na sociedade contemporânea, contribuem para a reprodução e aqueles que efetivamente têm criado oportunidades para a mobilidade social e a transformação estrutural.