SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número99Educação e classes sociais em Portugal. Continuidades e mutações no século XXIEmigração e política. Análise aos programas eleitorais e iniciativas legislativas, 2011 a 2019 índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Sociologia, Problemas e Práticas

versão impressa ISSN 0873-6529

Sociologia, Problemas e Práticas  no.99 Lisboa ago. 2022  Epub 12-Jul-2022

https://doi.org/10.7458/spp20229921552 

Artigos Originais

Transformações do trabalho em contextos de pressão para o desempenho profissional

Work transformations in contexts of pression for professional performance

Transformations du travail dans les contextes de pression pour la performance professionelle

Transformaciones del trabajo en contextos de presión para el desempeño profesional

David Tavares1  2  , concetualização, curadoria dos dados, análise formal, aquisição de financiamento, investigação, metodologia, administração do projeto, recursos, software, supervisão, validação, visualização, redação do rascunho original, redação - revisão e edição
http://orcid.org/0000-0003-4473-8595

Noémia Lopes3  4  , concetualização, curadoria dos dados, análise formal, aquisição de financiamento, investigação, metodologia, administração do projeto, recursos, software, supervisão, validação, visualização, redação do rascunho original, redação - revisão e edição
http://orcid.org/0000-0002-5789-7766

Carlos Manuel Gonçalves5  6  , concetualização, curadoria dos dados, análise formal, aquisição de financiamento, investigação, metodologia, administração do projeto, recursos, software, supervisão, validação, visualização, redação do rascunho original, redação - revisão e edição
http://orcid.org/0000-0003-4050-3094

1 Escola Superior de Tecnologia da Saúde de Lisboa (ESTeSL-IPL)

2 Iscte - Instituto Universitário de Lisboa, Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES-Iscte), Lisboa, Portugal

3 Instituto Universitário Egas Moniz (IUEM), Monte da Caparica, Portugal

4 Iscte - Instituto Universitário de Lisboa, Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES-Iscte), Lisboa, Portugal

5 Faculdade de Letras da Universidade do Porto

6 Instituto de Sociologia da Universidade do Porto, IS-UP, Porto, Portugal


Resumo

O presente artigo consubstancia-se numa reflexão teórica sobre as transformações na natureza e nos tempos de trabalho em contextos de elevada pressão para o desempenho, tendo por base três grupos profissionais: jornalistas, enfermeiros e polícias. Salientam-se as tendências para o aumento das competências tecnológicas e digitais, do controlo sobre o trabalho sob a forma de tecnovigilância, do escrutínio sobre a atividade dos profissionais, e do caráter totalizante do trabalho, em termos temporais e espaciais, o que gera uma sobreposição entre os domínios profissional e pessoal/familiar.

Palavras-chave: transformações do trabalho; pressão para o desempenho; grupos profissionais; natureza do trabalho; tempos de trabalho.

Abstract

This article is based to a theoretical reflection on the changes in the nature and times of work in contexts of high pressure for performance, based on three occupational groups: journalists, nurses and police officers. We highlight the trends for increasing technological and digital competencies; control over work in the form of technosurveillance; scrutiny of the activity of the professionals; and the totalizing trace of work, in temporal and spacial terms, which generates an overlap between the professional and personal/family domains.

Keywords: transformations of work; pressure for performance; professional groups; nature of work; times of work.

Resumé

et article s’appuie sur une réflexion théorique sur des changements de la nature et des temps du travail dans des contextes de forte pression pour la performance, en prenant pour base trois groupes professionnels: journalistes, infirmiers et policiers. On relève les tendances pour l’augmentation des competences technologiques et digitales, du contrôle du travail sous forme de techno-surveillance, de la surveillance sur l’activité des professionnels, et le caractère totalisant du travail, en termes temporels et spatiaux, ce qui génère un chevauchement entre les domaines professionnel et personnel/familial.

Mots-clés: transformations du travail; pression pour la performance; groupes professionnels; nature du travail; temps de travail.

Resumen

Este artículo parte de una reflexión teórica sobre las transformaciones en la naturaleza y los tiempos de trabajo en contextos de alta presión por el desempeño, a partir de tres grupos profesionales: periodistas, enfermeros e policías. Se destacan las tendencias de aumento en competencias tecnológicas y digitales, control sobre el trabajo en la forma de tecnovigilancia, escrutinio de la actividad de los profesionales, y el caráter totalizador del trabajo, en términos temporal y espacial que genera una superposición entre el ambito profesional y personal/familiar.

Palabras-clave: transformaciones del trabajo; presión por el desempeño; grupos profesionales; naturaleza del trabajo; tiempos de trabajo.

Introdução

O presente artigo consubstancia-se como um contributo teórico sobre as mudanças que estão a ocorrer no domínio do trabalho em atividades e contextos de elevada pressão para o desempenho, considerando dois domínios distintos: as transformações na natureza do trabalho e nos tempos de trabalho.

Em ambos os casos, as alterações decorrem num contexto de amplificação das recentes inovações tecnológicas e, em particular, da tecnologia digital e informática que influencia o processo de mudança no seu conjunto. Relativamente às que se reportam à natureza do trabalho, salientam-se os efeitos da tecnologia nas práticas profissionais e o controlo da atividade dos profissionais sob a forma de tecnovigilância. Relativamente aos tempos de trabalho, discutem-se as transformações geradas pela intensificação da carga e dos ritmos de trabalho e as suas consequências na vida quotidiana, expressas sobretudo na sobreposição entre as esferas profissional e pessoal/familiar.

Em determinados contextos profissionais e organizacionais, verifica-se uma tendência para o aumento da elevada pressão para o desempenho, que está fortemente relacionada com as transformações do trabalho influenciadas pelas inovações tecnológicas, em particular a introdução de novas competências digitais, o desempenho simultâneo de múltiplas tarefas e funções no quadro de uma cada vez maior polivalência na execução do trabalho, a intensificação do controlo sobre o trabalho exercido através da tecnovigilância, as novas formas de relação entre os profissionais e a população, a intensificação da carga e dos ritmos de trabalho, que se reflete nos tempos de trabalho em termos de extensão, irregularidade e flexibilidade dos horários, bem como a sobreposição entre os tempos para a vida profissional e pessoal/familiar.

Não obstante o presente artigo se consubstanciar como um ensaio teórico acerca das transformações do trabalho em contextos de elevada pressão para o desempenho profissional, o ponto de partida, bem como o âmbito da reflexão apresentada, foram suscitados pela experiência, em curso, de um projeto de investigação empírica1 sobre as dinâmicas sociais subjacentes aos consumos de performance (consumo de medicamentos, suplementos alimentares e outros produtos naturais, para a melhoria do desempenho físico, intelectual e social) em contextos laborais. O estudo toma por referência três grupos profissionais2 em que as principais transformações no domínio do trabalho nas sociedades contemporâneas se revelam de modo particularmente significativo: jornalistas, enfermeiros e polícias. Os resultados parciais e preliminares obtidos nesta fase provêm da aplicação da pesquisa bibliográfica e documental, grupos focais (n = 7) e inquérito por questionário (n = 539), no quadro de uma estratégia metodológica que privilegia a adoção de métodos mistos.

Enquadramento geral das relações entre a tecnologia e o trabalho

Na atualidade, a discussão sobre as relações entre a tecnologia e o trabalho ganhou uma saliente expressão, quer nos meios de comunicação social, quer nas instituições governamentais, quer ainda no campo científico. As inúmeras publicações do Eurofound, da OCDE e da OIT são ilustrativas disso. Embora vivamos um momento em que informática, automação e digitalização incorporam, de um modo extensivo, uma panóplia ampla de objetos, de artefactos, algumas das questões básicas sobre o papel da tecnologia nas dinâmicas sociais mantêm-se idênticas às que existiram, pelo menos, no início da primeira revolução industrial. Dessas questões sobressai notoriamente a questão do emprego versus desemprego tal como, entre outros, Sauvy (1980) equacionou na sua análise sobre o “progresso técnico” do século XIX.

A discussão sobre as relações entre a tecnologia e o trabalho e emprego balançaram entre dois polos: determinismo tecnológico versus determinismo social e cultural. Podemos considerar que a conceção das tecnologias como determinantes principais, se não mesmo únicas, da vida social e, em particular do “mundo do trabalho”, nas suas várias dimensões, deixou de ser vinculada explicitamente. Esta recusa verifica-se, igualmente, face à forma pura de determinismo social e cultural que omite as tecnologias das plurais dinâmicas sociais. Para tal negacionismo, no campo da sociologia concorreram, por exemplo, os estudos sobre a mudança social (Sztompka, 1996) e os desenvolvidos na sociologia do trabalho (Freire, 2003; Watson, 2012). Encontramos entre os dois polos uma linha impregnada de nuances, de exclusões/inclusões e de situações híbridas. Não cabe aqui elencar as alternativas que foram surgindo ao longo das últimas décadas, sendo que algumas delas se aproximam mais ou menos de um dos polos de determinismo, constituindo, por vezes, versões soft dos mesmos, ou outras que tentam, de uma forma recorrentemente não conseguida, ser uma espécie de pura “terceira via”.

Na análise sociológica sobre o trabalho e o emprego, o tema das relações entre a tecnologia e o trabalho configurou-se, em determinados períodos, como estruturante. Na “escola da sociologia francesa”, num contexto produtivo de expansão das formas de organização taylorista e fordista na indústria do pós-Segunda Guerra Mundial, os trabalhos de Friedmann (Friedmann, 1946, 1950); Friedmann e Naville (1962), e Touraine (1955) , herdeiros da análise de Marx, embora com acentuações disjuntas entre eles, valorizam a importância da técnica, recusando uma postura mais ortodoxa do determinismo tecnológico e do evolucionismo histórico, acionam uma leitura mais socioeconómica e contextualizante sobre o progresso técnico, as qualificações profissionais, as formas de organização do trabalho e de relações interpessoais (Maurice, 1980).

No espaço anglo-saxónico há outros contributos também a destacar. Blauner (1964) analisa a intensidade e formas de alienação, atendendo aos tipos de tecnologia usados em contexto de trabalho. Mais precisamente os instrumentos de trabalho conduzem a formas de organização da atividade laboral e enformam as experiências vivenciadas pelos trabalhadores. Braverman (1974), por sua vez, enfatiza a tendência histórica de degradação e de desqualificação do trabalho, a racionalização e simplificação das tarefas como métodos de alcançar o controlo do trabalho, conduzindo à extinção do trabalho operário qualificado.

Neste processo, a tecnologia tem uma posição central. Woodward (1965) considera a tecnologia condicionadora da organização e administração das empresas. As investigações do Tavistock Institute nos anos 1950 e seguintes (Grint e Woolgar, 1997), em que emerge a concetualização de sistema aberto sociotécnico, refutam as teses do determinismo tecnológico, iniciando uma linha de reflexão que incorporou o programa da democracia industrial, do denominado “volvismo”, das novas formas de organização do trabalho e dos sistemas antropocêntricos de produção (Kovács e Castillo, 1998) com o objetivo central de criação de alternativas, parciais ou totais, ao modelo de organização do trabalho taylorista-fordista.

Na atualidade, as teses “tecnocêntricas” avançam como cenários pessimistas e fortemente alarmistas sobre a expansão da informatização, digitalização e automação. “Fim do trabalho” (Rifkin, 2006), “substituição do trabalho pelos robôs” (Susskind, 2020), desaparecimento maciço de profissões e correlativo aumento do desemprego (Frey e Osborne, 2017) são alguns dos textos que seguem aquela linha de argumentação. Moniz (2018) e Casilli (2019) rebatem estas teses. Igualmente numa posição contrária encontramos as propostas analíticas do “Social Shaping of Technology” (Grint e Woolgar, 1997; Williams, 2019).

Tomando como ponto de partida a recusa da neutralidade da tecnologia e do tecnocentrismo, é reconhecido que o desenvolvimento e a aplicação das tecnologias, especialmente quanto à organização e natureza do trabalho, constituem um processo configurado por dimensões económicas, políticas e culturais com uma pesada importância de diversos agentes institucionais, sem, contudo, excluir, por completo, as especificidades das tecnologias. Não subsiste, portanto, uma única forma de organização do trabalho e do uso das tecnologias. Para aqueles autores as transformações do trabalho não são consequências inevitáveis da tecnologia nem esta constitui, por si só, um processo autónomo, mas resulta de processos sociais complexos, multidimensionais e multicausais, que incorporam opções políticas, institucionais e organizacionais. Assumimos serem estes os princípios gerais sobre as relações entre tecnologia e trabalho e emprego que enformam este artigo.

Transformações do trabalho

Tecnologia e práticas profissionais - relações complexas e multidimensionais

A tecnologia potencia uma das transformações principais observáveis no universo do trabalho, que se consubstancia na substituição de tarefas e competências tradicionais por tarefas e competências tecnológicas e digitais, com recurso ao uso crescente destas ferramentas e ao domínio de conhecimentos nessa área. Ainda que esta seja uma tendência comum à atividade de um conjunto variado e heterogéneo de grupos profissionais, manifesta-se, entre eles, de formas muito distintas. Em alguns casos está na base de transformações profundas da natureza do trabalho e, noutros casos, tem um impacto muito reduzido.

Os grupos profissionais de referência deste artigo constituem-se como um bom exemplo destas diferenças. De facto, a tecnologia não se assume como um fator particularmente importante nas transformações do trabalho dos enfermeiros. Ao invés, na fase atual de amplificação das inovações tecnológicas, estas têm uma dimensão, alcance e influência sobre transformações profundas da prática e da natureza do trabalho jornalístico, em que as tarefas tradicionais (recolha predominantemente pessoal dos depoimentos, interação com os informantes, confirmação rigorosa das fontes de informação, verificação atempada e minuciosa dos factos, contextualização pormenorizada dos factos, elaboração cuidada dos textos - Örnebring, 2009; Schnell, 2018) vão sendo substituídas progressivamente por competências tecnológicas e digitais, expressas em termos informáticos, de produção multimédia, teletrabalho, plataformas digitais, que estão no cerne da emergência de um novo tipo de jornalismo (jornalismo online, ciberjornalismo, jornalismo em rede), adaptado aos princípios da comunicação online.

As consequências da substituição progressiva de competências tradicionais por competências tecnológicas e digitais têm sido objeto de ampla discussão. Esta mudança pode relacionar-se com a maior padronização das tarefas que, em algumas atividades profissionais mais especializadas, qualificadas e não rotineiras, esteve na origem de transformações da natureza do trabalho que, ao ser mais automatizado, conduziu a uma redução dos traços característicos das profissões, nomeadamente o seu grau de indeterminação, a aplicação de saberes analíticos que requerem interpretação, perspetiva crítica, complexidade, flexibilidade, criatividade e autonomia, ou seja, controlo sobre as condições e o processo de trabalho que, neste caso, é realizado mais frequentemente sob diretrizes, mecanismos de supervisão e avaliação exteriores ao próprio grupo profissional (Freidson, 1968; Rodrigues, 1997; Dubar e Tripier, 1998; Lopes, 2001; Tavares, 2007; Gonçalves, 2008; Champy, 2009; Witschge e Nygren, 2009).

Por outro lado, o uso de tecnologias e a aplicação de competências digitais e informáticas pode gerar a mobilização de novos conhecimentos que conduzem à valorização de perfis profissionais qualificantes. Assim, o aumento das tarefas com recurso à tecnologia pode não implicar necessariamente uma diminuição dos atributos profissionais, mas sim uma adaptação, reconversão e reconfiguração dos conhecimentos e competências profissionais. Neste quadro ambivalente, ocorrem simultaneamente as tendências, de natureza contraditória, para a desqualificação e para a qualificação e recapacitação, num quadro de aumento da diferenciação, heterogeneidade, fragmentação e hierarquização interna, conducente a acentuar as assimetrias no interior dos grupos profissionais (Örnebring, 2009; Exworthy et al., 2019; Raposo, 2019).

Nos casos que se reportam a uma potencial redução da autonomia profissional, também não é alheia a crescente precarização dos vínculos contratuais, que se consubstancia como uma das principais transformações estruturais do trabalho nas sociedades contemporâneas, relacionada com a desregulação do mercado de trabalho e com práticas e orientações dominantes de gestão, assentes na consagração de formas de organização do trabalho baseadas em projetos ou tarefas específicas, reguladas predominantemente através de contratos de curto prazo, com recurso a trabalhadores temporários, freelancers e outras formas contingentes de emprego (Örnebring, 2009; Rosenblat, Kneese e Boyd, 2014; Exworthy et al., 2019).

Trata-se de uma mudança estrutural que favorece a maior permeabilidade dos profissionais às pressões organizacionais, afetando-os de modo mais expressivo na fase inicial das suas trajetórias no mercado de trabalho e traduzindo-se de forma muito distinta em diferentes contextos organizacionais e profissionais. Os grupos profissionais em que se verifica um peso forte do emprego no setor público, como é o caso dos polícias e dos enfermeiros, estão menos expostos à precarização dos vínculos contratuais, apesar de as orientações políticas managerialistas, que se consubstanciaram como a base ideológica impulsionadora da “nova gestão pública”, assentes na adoção pelos serviços públicos dos princípios presentes na lógica da gestão empresarial privada, terem como consequência a aproximação entre o setor público e o setor privado, no que diz respeito às tendências gerais de mudança no trabalho aos mais diversos níveis, especialmente em relação às formas de organização do trabalho, aos modos de contratualização e às estratégias de gestão, centradas no controlo dos custos e dos recursos (Carvalho, 2009; Evetts, 2010).

A padronização associada às tarefas repetitivas e pouco complexas, cuja execução não envolve a mobilização de saberes analíticos de conceção e simultaneamente são desprovidas de autonomia, pode coexistir com a tendência para a polivalência, traduzida no desempenho simultâneo de múltiplas tarefas e funções (Bernardes e Casaca, 2014) que se tem verificado de modo crescente, ainda que em sentido contrário à tendência dominante da divisão social do trabalho que aponta para a especialização e parcelarização do trabalho, pois, tratando-se de tendências aparentemente contraditórias entre si, ocorrem simultaneamente e ambas se expressam em diferentes contextos organizacionais e profissionais.

De facto, o aumento da polivalência no desempenho das práticas profissionais observa-se em diversos contextos laborais e, em particular, no exercício da atividade dos três grupos profissionais tomados como referência no presente artigo. Assim, a atividade dos jornalistas envolve cada vez mais, em simultâneo, a produção e/ou divulgação de notícias, reportagem, recolha de depoimentos, interpretação e análise, elaboração de texto, fotografia, filmagem, edição de vídeo ou o uso de diversos softwares; a atividade dos polícias também envolve tarefas e funções cada vez mais diversificadas que incluem, entre outras, a vigilância/patrulhamento, roubos, tráfego e acidentes rodoviários, intervenção em conflitos interpessoais, problemas entre vizinhos, violência doméstica, toxicodependência, abandono de idosos; e na atividade dos enfermeiros a tendência para a polivalência expressa-se no desempenho de um espetro diversificado e alargado de tarefas, que inclui os cuidados de enfermagem, o transporte, posicionamento e higiene dos doentes, registo de dados, triagem, informações aos familiares dos doentes.

Controlo e tecnovigilância

O uso crescente da tecnologia nas organizações (em particular, a tecnologia digital e informática) está diretamente relacionado com a estratégia de aumento do controlo sobre os profissionais e o processo de produção, através de dispositivos digitais que permitem, com recurso a sistemas impessoais de autoridade e vigilância baseados na manipulação de informação codificada, monitorizar o trabalho a diversos níveis. Isto é verificável quanto à produtividade, modo de execução das tarefas, grau de atenção, cumprimento dos horários, número de horas de trabalho diário, número, endereço e gravação das chamadas telefónicas e dos sites acedidos, pausas para ir à casa de banho, acesso às redes sociais, relação com os colegas, relações de sociabilidade no trabalho (Yar, 2003; Rosenblat, Kneese e Boyd, 2014; Zuboff, 2015).

Ainda que parte desta monitorização seja discutível em termos legais ou em alguns casos seja mesmo ilegal, não deixa de ser uma possibilidade permanente e, frequentemente, constituir uma prática seguida em diversas organizações. O controlo e vigilância sobre o trabalho dos profissionais, por meios digitais, incide mais em tarefas padronizáveis, mais passíveis de controlar por esta via. Tal facto assume uma dimensão acrescida, considerando que este tipo de tarefas é cada vez mais frequente na atividade de diferentes grupos profissionais.

Se a vigilância não constitui um elemento novo na organização do trabalho, o que mudou foi o facto de as formas tradicionais burocráticas de supervisão, assentes na observação direta dos sujeitos “reais”, terem sido alargadas pela vigilância mediada pela tecnologia digital e pelos meios informáticos (“dataveillance”), o que cria as condições para intensificar o controlo, considerando a sua capacidade para recolher e monitorizar um volume de informação substancialmente mais ampla, feita a uma escala muito maior e sem a necessidade de acesso direto aos espaços em que o trabalho ocorre (seja no espaço organizacional, em casa ou no espaço público). Deste modo, trata-se de uma vigilância mais intensiva, poderosa e tendencialmente mais discreta e indireta (Thompson, 2003; Yar, 2003; Zureik, 2003; Lyon, 2007).

O processo de tecnovigilância do trabalho produz uma fixação contínua de regras de desempenho profissional, que são estabelecidas e restabelecidas nas organizações, de modo padronizado e discreto, sendo o seu cumprimento e avaliação supervisionados e monitorizados através da recolha tecnológica de informações, entendida como objetiva e racional, legítima e muitas vezes consensualizada individualmente ou por equipas de trabalho segundo compromissos relativos ao desempenho, impondo aos profissionais a disciplina e autodisciplina sobre a sua atividade profissional, no quadro de um regime disciplinar3 assente em sistemas de vigilância mais eficientes e mais impessoais (do que seriam a “olho nu”, com recurso a supervisores), em que um grau de controlo elevado pode coexistir com um alto grau de autonomia profissional. Deste modo, observa-se a tendência para a maior legitimação do processo de supervisão, fundamentado por uma suposta racionalidade científica e naturalizado pelos diferentes atores sociais (Thompson, 2003).

Um bom exemplo do controlo do trabalho, através da tecnovigilância, reside nas câmaras incorporadas na farda ou no corpo (esterno ou ombro) dos polícias, com vista a registar as atividades profissionais, avaliar a forma como interagem, comunicam e se relacionam com a população em geral, bem como controlar os abusos de autoridade, para garantir maior escrutínio, responsabilidade da conduta policial e transparência da sua ação. Neste sentido, o uso da tecnologia através das câmaras pode ser entendido como meio para avaliar o desempenho profissional dos polícias e, simultaneamente, para proteção dos cidadãos. A incorporação das câmaras no equipamento dos polícias também representa a introdução de um elemento novo que produz transformações nas suas experiências e práticas de trabalho, tendentes a ser menos espontâneas e eventualmente refletidas em função da presença de uma vigilância constante sobre a sua ação. Neste sentido, observa-se uma alteração da natureza do trabalho dos polícias, que passa a incorporar um escrutínio permanente (Goold, 2003).

Esse escrutínio não se reporta apenas ao que é realizado pelas instituições e organizações mas envolve a população em geral, em grupos profissionais cujo trabalho supõe interação com a população. Assim, o trabalho é objeto de um duplo escrutínio, por um lado pelas organizações a que os profissionais estão vinculados e, por outro, pela população. A interação com a população e o aumento do escrutínio público da atividade e desempenho profissional, quer por parte das instituições, organizações ou dos cidadãos em geral, são fortemente mediados por recursos tecnológicos. Neste contexto, assume particular relevância a acessibilidade e disponibilidade generalizada dos cidadãos em relação às tecnologias.

Não obstante constituírem um fator comum a diferentes atividades, que contribui significativamente no sentido de aumentar a pressão para o desempenho, as formas de relacionamento entre os profissionais e a população manifestam-se de modo distinto e com uma intensidade diferente nos diversos contextos e grupos profissionais. Os três grupos profissionais de referência deste artigo constituem, a este nível, um bom exemplo. De facto, em cada um deles, estas relações exprimem-se de forma particularmente intensa mas diferenciada. No caso da polícia, em que o escrutínio público se centra principalmente na forma de exercício da autoridade, na eficácia da ação e no tempo que medeia entre a solicitação e a intervenção, a acessibilidade e disponibilidade generalizada dos cidadãos em relação às tecnologias móveis permitiu o uso dos telemóveis com câmara fotográfica e vídeo incorporados, bem como outros dispositivos de gravação e diversos recursos tecnológicos mobilizados pelos cidadãos, movimentos sociais e organizações não governamentais para documentar, compartilhar e difundir em tempo real o modo de aplicação da lei e a denúncia de eventuais erros e abusos de autoridade policial.

O escrutínio realizado desta forma assume um impacto acrescido quando as imagens divulgadas se tornam “virais” e suscitam um debate aprofundado e alargado ao conjunto da sociedade, acerca da intervenção policial. Trata-se de um regime de visibilidade particular e que, de certa forma, representa um confronto relativamente às câmaras incorporadas na farda ou no corpo dos polícias e aos softwares para análise de reconhecimento facial, estabelecendo formas de vigilância recíproca, em que as tecnologias de vigilância e controlo deixam de ser unilaterais, pois também são utilizadas pelos cidadãos para observar os que exercem a autoridade (Mann, Nolan e Wellman, 2003; Hood, 2020; Newell, 2020).

Se, no caso dos polícias, esse escrutínio e as denúncias que eventualmente possam daí resultar são feitas frequentemente através do registo de fotografias e imagens produzidas pelos cidadãos, no caso dos jornalistas, o escrutínio decorre sobretudo do uso de tecnologias de informação e comunicação que remetem cada vez mais para o “ciberespaço” e para as “redes sociais digitais”. Neste contexto, a atividade profissional dos jornalistas é objeto de exposição e de escrutínio público constante, em que o contacto com o público é permanente, pois ocorre, a qualquer hora, nas redes sociais e nas diferentes plataformas digitais. Este processo, que se desenvolve num quadro de interação particularmente exigente para os profissionais, causa uma forte pressão sobre o desempenho e um grande desgaste físico e emocional. Este fator, associado à intensificação da carga e dos ritmos de trabalho, contribui fortemente para que o principal risco identificado pelos jornalistas, segundo os resultados preliminares obtidos no âmbito do projeto atrás referido, seja “atingir a exaustão mental” no exercício da sua atividade profissional.

No quadro das novas formas de relacionamento com a população, as “agressões físicas” são percecionadas pelos polícias entre os riscos particularmente elevados que ocorrem no exercício da sua atividade. Os riscos físicos são atribuídos a fatores organizacionais ou político-sociais, como a escassez de recursos humanos para a intervenção policial, a redução da autoridade da polícia e as agressões físicas aos polícias. Ainda que se verifiquem agressões físicas, esta perceção não é independente, na conjuntura atual, da forte mediatização deste tema (agressões a polícias) e do conteúdo ideológico dos próprios discursos profissionais que tendem a enfatizar a perda de autoridade deste grupo profissional, ao longo do tempo.

Ainda que se manifestem de modo distinto em diferentes contextos organizacionais e profissionais, em termos gerais, as novas formas de relacionamento com o público, associadas à necessidade de dar respostas a uma população cada vez mais exigente, acentuam o aumento do escrutínio e da pressão sobre a ação e o desempenho dos profissionais. As alterações verificadas nas formas de relacionamento entre os profissionais e a população são fortemente mediadas pelos recursos tecnológicos, não obstante se enquadrarem num cenário de mudança complexo e multidimensional mais vasto, relacionado com a ação das diferentes organizações do trabalho e dos cidadãos em geral, no contexto das transformações verificadas na relação entre os universos leigos e os universos periciais (Giddens, 1992; Lopes, 2010).

Estas transformações são impulsionadas por um conjunto de fatores e fenómenos sociais, de que se destacam o aumento geral da informação e da escolaridade da população, a pericialização dos saberes leigos, variável em função dos diferentes recursos cognitivos dos diferentes estratos sociais, resultante do crescente acesso leigo a fontes de informação do conhecimento especializado cada vez mais difundido, e as alterações observadas nas relações entre experts e leigos no sentido da maior paridade no quadro “já não definido por um hiato de competências absoluto entre uma autoridade técnica e cognitiva e um leigo recetivo e aquiescente, para um quadro de gestão explicitamente negociada de fluxos informacionais” (Clamote, 2010: 91).

Em sentido inverso, ou seja, não o que se reporta à vigilância do trabalho e do desempenho dos profissionais, mas sim ao trabalho de vigilância (Ball, 2003) geral, o uso de recursos biométricos, como softwares para análise de reconhecimento facial pelas autoridades policiais para o combate à criminalidade ou drones para controlo dos movimentos das populações, em oposição a outras formas de biometria, como a impressão digital clássica, permite obter um vasto leque de dados sobre conjuntos populacionais alargados, captados pelas câmaras, sem autorização explícita, pois, nestes casos, os rostos podem ser obtidos, copiados (por scanner), analisados e categorizados em tempo real sem o consentimento (ou conhecimento) do sujeito vigiado.

O uso dos instrumentos tecnológicos móveis alarga o espetro da vigilância sobre a população, tanto no espaço público como no espaço privado, não apenas devido ao aumento da capacidade técnica de obtenção de uma gama muito diversificada de informação, mas também por gravarem frequentemente ações que decorrem nos espaços residenciais e áreas envolventes por onde circulam os polícias, ao contrário do que sucede com as câmaras fixas, colocando em causa a privacidade dos cidadãos, que são muito frequentemente filmados sem consentimento prévio, problema que é acrescido quando não são definidas e cumpridas as diretrizes legais para o uso das imagens, o seu tempo de armazenamento ou as formas de acesso a essas imagens. De facto, a mobilidade flexível das câmaras usadas nos corpos dos polícias, combinada com a tecnologia biométrica, abre a possibilidade de vigilância dos cidadãos numa dimensão muito superior à que existia antes da introdução destes recursos tecnológicos (Bud, 2016; Lippert e Newell, 2016; Hood, 2020).

Com as tecnologias de controlo digital atrás focadas, relacionadas com a incorporação crescente da tecnologia no trabalho ou de identificação e produção de dados sobre a população em geral, produz-se um processo de vigilância em massa da população ou no interior das organizações do trabalho, designado por Zuboff (2015, 2019) como “capitalismo de vigilância”, com consequências sociais e políticas relativas ao modo como se alteram os pressupostos de cidadania, o que põe em causa as normas e os princípios democráticos, bem como as liberdades civis, o exercício da cidadania e o direito à privacidade em locais públicos (Lyon, 2007; Fróis, 2008; Zuboff, 2015).

As alterações nos tempos de trabalho

Em profissões sujeitas a uma elevada pressão para o desempenho, verifica-se a tendência, variável em função dos contextos organizacionais e profissionais, para a intensificação da carga e dos ritmos de trabalho, associados à crescente subordinação das práticas profissionais à redução dos prazos de cumprimento das tarefas, resultante da exigência de maior produtividade e volume de trabalho realizado no menor tempo disponível, associados a respostas profissionais imediatas, sob a pressão da produção rápida. A intensificação da carga e dos ritmos de trabalho está na origem de alterações significativas relacionadas com diferentes dimensões dos tempos de trabalho que se expressam na extensão, irregularidade e flexibilidade dos horários, com consequências na sobreposição entre tempo de trabalho e tempo livre, que estabelece fronteiras mais diluídas entre a esfera do trabalho e as outras esferas da vida dos indivíduos. As alterações relacionadas com as várias dimensões dos tempos de trabalho constituem uma das principais transformações do trabalho nas sociedades contemporâneas, com um vasto alcance e significado que, no limite, marcaria, segundo Anttila et al. (2015), uma transição entre um regime de tempo de trabalho industrial para um regime de tempo de trabalho pós-industrial.

Uma consequência direta da intensificação da carga e do ritmo de trabalho, refletida na extensão do tempo de trabalho e, em geral, na pressão do tempo a que os profissionais estão sujeitos, começa por residir numa das dimensões do tempo de trabalho que se reporta ao elevado número de horas de trabalho diário. Um dos fatores que, em determinados contextos profissionais, contribui significativamente para o alargamento do tempo de trabalho é a acumulação do exercício profissional (atividade profissional complementar à atividade profissional principal), que em alguns casos atinge uma grande dimensão, como sucede no domínio da saúde em geral (Carapinheiro e Lopes, 1996; Tavares, 2007).

Relativamente aos grupos de referência deste artigo, os resultados preliminares do inquérito indicam que esta situação abrange a maioria dos enfermeiros dos serviços de urgência e quase metade dos polícias (atividade policial contratada por entidades exteriores à instituição policial), mesmo considerando que os valores aí obtidos através da aplicação do inquérito, estejam subestimados, atendendo a que “as situações de acumulação não são, por razões diversas, facilmente admitidas e declaradas” (Carapinheiro e Lopes, 1996: 33).

Em grande parte das profissões com elevada pressão para o desempenho, em que se incluem os grupos profissionais de referência do presente artigo, ao elevado número de horas de trabalho acresce o predomínio dos horários irregulares, flexíveis, por turnos com horário noturno e ao fim de semana. Se este panorama relativo aos horários de trabalho constitui um fator adicional de pressão sobre os profissionais, essa pressão é maior quando os tempos de trabalho não são planificados nem passíveis de prever por resultarem de uma convocatória sem aviso prévio feita com uma antecedência de 24 horas que, por exemplo, no caso dos polícias, inclui períodos longos em “situação de prevenção”, em que podem ser chamados a qualquer momento para desempenhar a sua atividade profissional. A dimensão da pressão para o desempenho ainda é acrescida quando a atividade profissional decorre em situações de urgência. Nestes contextos profissionais e organizacionais (os enfermeiros dos serviços de urgência hospitalares são um bom exemplo), a intensidade e a pressão dos ritmos de trabalho são contínuas ao longo de todo o tempo de trabalho, de modo diferente de outros contextos de trabalho em que aquelas se distribuem de modo mais disperso ao longo do tempo, com períodos de “picos de trabalho”.

Em muitas das atividades laborais de elevada pressão para o desempenho, e em particular nas que têm sido objeto desta reflexão, a imprevisibilidade resultante da irregularidade e flexibilidade dos horários de trabalho cruza-se com a imprevisibilidade das ocorrências e situações de trabalho, bem como com a necessidade de dar respostas profissionais imediatas. No caso dos polícias e dos jornalistas, a imprevisibilidade está presente na própria essência dos acontecimentos de que decorre a sua ação e objeto de trabalho, bem como no espaço e no tempo em que ocorrem. No caso dos enfermeiros, principalmente nos serviços de urgência, o trabalho em contexto hospitalar não permite prever nem antecipar grande parte das situações, em que se incluem um leque alargado de doenças suscetíveis de alterações e agravamentos súbitos ou o número de utentes que ocorrem a estes serviços em determinado dia e que condicionam todo o trabalho a realizar (Gonçalves, 2012).

No trabalho dos jornalistas, à pressão do tempo que é cada vez menor num quadro de exigência permanente de respostas profissionais “imediatas” no sentido de completar as tarefas em prazos reduzidos, acrescenta-se a pressão do espaço (infinito, se for online). Assim, a redução do tempo para a análise da informação coexiste com uma produção que ocorre cada vez mais num espaço ilimitado (ciberespaço) onde cresce exponencialmente a quantidade de informação disponibilizada e diminui o espaço dos textos, limitado pelo número de carateres que é determinado por formatos compatíveis com o uso das tecnologias e também o tempo e o espaço para analisar e aprofundar os temas (Örnebring, 2009; Witschge e Nygren, 2009).

A intensificação da carga e do ritmo de trabalho e, em particular, o aumento do tempo de trabalho, a irregularidade e flexibilidade dos horários laborais colocam cada vez mais os profissionais em contacto permanente com o trabalho, quer em termos temporais quer espaciais, pois, com os recursos tecnológicos disponíveis, este pode ser realizado a qualquer hora e em qualquer local, assumindo um caráter de continuidade permanente. Neste sentido, o trabalho tem uma índole totalizante. O contacto permanente com o trabalho estabelece uma continuidade entre o domínio profissional e a esfera privada, gerando uma sobreposição e uma relativa diluição de fronteiras entre os tempos dedicados ao trabalho e ao lazer, o espaço doméstico e o local onde se exerce a profissão, não se estabelecendo, deste modo, uma separação clara entre os domínios do trabalho e das outras esferas da vida dos indivíduos.

A sobreposição entre as esferas profissional e pessoal/familiar está na origem da dificuldade crescente de conciliação, equilíbrio e separação destes domínios. O facto de os profissionais estarem cada vez mais “ligados” ao trabalho por via de um contacto permanente, seja devido, em primeira instância, ao pouco tempo disponível para a vida pessoal ou familiar, seja porque os horários são irregulares, flexíveis ou as situações e ocorrências de trabalho são sujeitas a uma grande imprevisibilidade, e a dificuldade ou impossibilidade de planear os tempos em que decorre a atividade profissional e, em consequência disso, os tempos extraprofissionais, geram acentuados desequilíbrios entre o trabalho e a esfera privada (Casaca, 2013; Anttila et al., 2015). O prolongamento da atividade profissional e a flexibilização dos tempos de trabalho têm impacto na descontextualização da vida pessoal, na quebra das relações de sociabilidade e na dificuldade de gerir e compatibilizar os contextos profissional e familiar, os horários, e fazer uma separação entre os dois universos. Por sua vez, a intensidade e a permanência do trabalho prolongam as preocupações do âmbito profissional para além do tempo de trabalho, reforçando a sobreposição entre a dimensão profissional e pessoal/familiar.

As novas tecnologias, nomeadamente as tecnologias de informação e comunicação, potencializam as condições para a flexibilização dos locais de trabalho e as oportunidades de mobilidade no desempenho da profissão, ao aumentar as possibilidades de esta ser exercida à distância, em particular com o recurso ao teletrabalho, smartphones, acesso geral à internet, redes e diversas plataformas digitais. Estes meios permitem a portabilidade do trabalho, que é transportado para outros espaços distintos dos organizacionais e, em particular, para o espaço doméstico, prolongando o tempo de trabalho e colocando os indivíduos em acessibilidade e disponibilidade permanente para o exercício da atividade profissional (Örnebring, 2009; Castillo e Agulló, 2012).

De facto, o desenvolvimento tecnológico cria as condições para a flexibilidade do local de trabalho, com a possibilidade de o trabalho ser feito à distância, pois os profissionais podem realizar mais tarefas fora do local de trabalho e, deste modo, geram maior possibilidade de mobilidade no trabalho. Contudo, as inovações tecnológicas também podem reforçar a tendência oposta (Witschge e Nygren, 2009; Schnell, 2018). Por exemplo, ao contrário do que sucede com os polícias, a atividade dos jornalistas de imprensa escrita tende a ser mais concentrada nas redações dos jornais e menos no exterior, à medida que aumentam as possibilidades tecnológicas para desenvolver as ações profissionais sem necessidade de deslocação aos locais onde decorrem as ações que constituem o objeto do seu trabalho.

Nota conclusiva

Nas profissões e nos contextos de trabalho onde se constata uma elevada pressão para o desempenho profissional, verificam-se transformações profundas na natureza do trabalho e nos tempos de trabalho. Estas transformações decorrem num contexto de amplificação das inovações tecnológicas e são fortemente mediadas pelos recursos tecnológicos que influenciam significativamente o processo de mudança no seu conjunto.

Entre as transformações na natureza do trabalho, salientam-se: (i) a substituição de tarefas e competências tradicionais por tarefas e competências tecnológicas e digitais, com consequências na reconfiguração dos grupos profissionais, expressa em termos ambivalentes na desqualificação e/ou qualificação e recapacitação, bem como no aumento da heterogeneidade, fragmentação, hierarquização e assimetrias internas desses grupos; (ii) o alargamento e a intensificação do controlo sobre o trabalho, sob a forma de tecnovigilância, através da introdução de novos procedimentos centrados em dispositivos digitais e informáticos e, concomitantemente, em sistemas impessoais de autoridade que produzem um aumento de informação substancialmente maior, alargando o espetro e a dimensão da supervisão; (iii) o aumento do escrutínio por parte dos cidadãos sobre a atividade e o desempenho dos profissionais que lidam diretamente com a população.

As mudanças relativas aos tempos e espaços de trabalho refletem-se na forma de realizar as atividades profissionais e repercutem-se nas outras dimensões da vida dos indivíduos, estabelecendo-se fronteiras mais diluídas e, como tal, menos claras e delimitadas, entre a esfera do trabalho e a esfera privada. Neste contexto, a relação com o trabalho tende a assumir um caráter permanente e contínuo, um caráter totalizante em termos temporais e espaciais, que gera uma sobreposição entre os domínios profissional e pessoal/familiar, com consequências no desequilíbrio entre estas esferas.

O conjunto destas transformações, quer na natureza do trabalho, quer nos tempos de trabalho, gera um aumento muito significativo da pressão para o desempenho profissional e um grande desgaste físico e emocional, patente particularmente nas exigências subjacentes à multiplicação e realização simultânea de múltiplas tarefas e funções, à necessidade de lidar simultaneamente com situações muito distintas, à necessidade de lidar com a imprevisibilidade das ocorrências de trabalho, à necessidade de lidar com a necessidade de dar respostas imediatas, à intensificação da carga e dos ritmos de trabalho, à intensificação e alargamento do espetro do controlo, vigilância e escrutínio permanentes sobre o trabalho dos profissionais em diferentes vertentes, à pressão psicológica e ao escrutínio permanente da ação e do desempenho dos profissionais por parte da população e ao modo como as exigências profissionais e o tempo dedicado ao trabalho interferem na vida pessoal e familiar.

A análise acerca das transformações do trabalho que ocorrem nas sociedades contemporâneas em contextos de elevada pressão para o desempenho profissional, elaborada em termos generalizados e globais, permite sistematizar os principais eixos de mudança mas tende a ocultar a variabilidade da sua incidência nos diversos contextos organizacionais e profissionais. De facto, a reflexão elaborada em torno destes três grupos profissionais permite reforçar a ideia de que estão a ocorrer transformações na natureza do trabalho, geradoras de novas formas de pressão para o desempenho, ainda que em diferentes contextos se traduzam em graus distintos. Trata-se de um campo de análise que requer ser aprofundado, em benefício de um melhor conhecimento das distintas tendências totalizantes do trabalho na atual modernidade, bem como dos seus efeitos na gestão individual e coletiva do quotidiano.

Referências bibliográficas

Anttila, Timo, et al. (2015), “Working-times regimes and work-life balance in Europe”, European Sociological Review, 31 (6), pp. 713-734. [ Links ]

Ball, Kirstie (2003), “Editorial: the labours of surveillance”, Surveillance & Society, 1 (2), pp. 125-137. [ Links ]

Bernardes, Sónia, e Sara Casaca (2014), “Novas formas de organização do trabalho, qualidade de vida e articulação trabalho-família: Portugal no quadro da União Europeia, Organizações e Trabalho, 39-40, pp. 27-40. [ Links ]

Blauner, Robert (1964), Alienation and Freedom. The Factory Worker and His Industry, Chicago, The University of Chicago Press. [ Links ]

Braverman, Harry (1974), Labor and Monopoly Capital. The Degradation of Work in the Twentieth Century, Nova Iorque, Monthly Review Press. [ Links ]

Bud, Thomas (2016), “The rise and risks of police body: worn cameras in Canada”, Surveillance & Society, 14 (1), pp. 117-121. [ Links ]

Carapinheiro, Graça, e Noémia Lopes (1996), Recursos e Condições de Trabalho dos Enfermeiros Portugueses, Lisboa, Sindicato dos Enfermeiros Portugueses. [ Links ]

Carvalho, Teresa (2009), Nova Gestão Pública e Reformas da Saúde. O Profissionalismo Numa Encruzilhada, Lisboa, Edições Sílabo. [ Links ]

Casaca, Sara (2013), “As novas dinâmicas laborais e os desafios da articulação com a vida familiar”, Sociologia, Problemas e Práticas, 73, pp. 31-52. [ Links ]

Casilli, António A. (2019), En Attendant les Robots. Enquête sur le Travail du Clic, Paris, Seuil. [ Links ]

Castillo, Juan José, e Itziar Agulló (2012), “La invasión del trabajo en la vida en la sociedad de información”, Trabajo y Sociedad, 19, pp. 7-30. [ Links ]

Champy, Florent (2009), Sociologie des Professions, Paris, Presses Universitaires de France (PUF). [ Links ]

Clamote, Telmo (2010), “Consumos terapêuticos e fontes de informação”, em Noémia Lopes (org.), Medicamentos e Pluralismo Terapêutico. Práticas e Lógicas Sociais em Mudança, Porto, Afrontamento, pp. 87-157. [ Links ]

Dubar, Claude, e Pierre Tripier (1998), Sociologie des Professions, Paris, Armand Colin. [ Links ]

Evetts, Julia (2010), “Reconnecting professional occupations with professional organizations: risks and opportunities”, em Lennart Svensson, e Julia Evetts (orgs.), Sociology of Professions. Continental and Anglo-Saxon Traditions, Gotemburgo, Diadalos. [ Links ]

Exworthy, Mark, et al. (2019), “Professional autonomy and surveillance: the case of public reporting in cardiac surgery”, Sociology of Health and Illness, 41 (6), pp. 1040-1055. [ Links ]

Foucault, Michel (1975), Surveiller et Punir. Naissance de la Prison, Paris, Gallimard. [ Links ]

Freidson, Eliot (1968), Professional Powers, Chicago, The University of Chicago Press. [ Links ]

Freire, João (2003), Sociologia do Trabalho. Uma Introdução, Porto, Afrontamento. [ Links ]

Frey, Carl Benedikt, e Michael Osborne (2017), “The future of employment: how susceptible are jobs to computerisation?”,Technological Forecasting and Social Change, 114, pp. 254-280. [ Links ]

Friedmann, Georges (1946), Problèmes Humains du Machinisme Industriel, Paris, Gallimard. [ Links ]

Friedmann, Georges (1950), Où Va le Travail Humain?, Paris, Gallimard. [ Links ]

Friedmann, Georges, e Pierre Naville (coords.) (1962), Traité de Sociologie du Travail, Paris, Armand Colin. [ Links ]

Fróis, Catarina (2008), “Bases de dados pessoais e vigilância em Portugal: análise de um processo em transição”, em Catarina Fróis (org.), A Sociedade Vigilante. Ensaios sobre Identificação, Vigilância e Privacidade, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, pp. 111-133. [ Links ]

Giddens, Anthony (1992), As Consequências da Modernidade, Oeiras, Celta. [ Links ]

Gonçalves, Carlos (2008), “Análise sociológica das profissões: principais eixos de desenvolvimento”, Sociologia: Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 17-18, pp. 177-223. [ Links ]

Gonçalves, Valter (2012), Conciliação da Vida Privada com a Vida Profissional dos Enfermeiros Portugueses, Coimbra, Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, dissertação de mestrado. [ Links ]

Goold, Benjamin (2003), “Public area surveillance and police work: the impact of CCTV on police behaviour and autonomy”, Surveillance & Society, 1 (2), pp. 191-203. [ Links ]

Grint, Keith, e Steve Woolgar (1997), The Machine at Work. Technology, Work and Organization, Londres, Wiley. [ Links ]

Hood, Jacob (2020), “Making the body electric: the politics of body - worn cameras and facial recognition in the United States”, Surveillance & Society, 18 (2), pp. 157-169. [ Links ]

Kovács, Ilona, e Juan José Castillo (1998), Novos Modelos de Produção. Trabalho e Pessoas, Oeiras, Celta. [ Links ]

Lippert, Randy, e Bryce Newell (2016), “Debate introduction: the privacy and surveillance implications of police body cameras”, Surveillance & Society, 14 (1), pp. 113-116. [ Links ]

Lopes, Noémia (2001), Recomposição Profissional da Enfermagem. Estudo Sociológico em Contexto Hospitalar, Coimbra, Quarteto. [ Links ]

Lopes, Noémia (2010), “Consumos terapêuticos e pluralismo terapêutico”, em Noémia Lopes (org.), Medicamentos e Pluralismo Terapêutico. Práticas e Lógicas Sociais em Mudança, Porto, Afrontamento. [ Links ]

Lyon, David (2007), Surveillance Studies. An Overwiew, Cambridge, Polity Press. [ Links ]

Mann, Steve, Jason Nolan, e Barry Wellman (2003), “Sousveillance: inventing and using wearable computing devices for data collection in surveillance environments”, Surveillance & Society, 1 (3), pp. 331-355. [ Links ]

Maurice, Marc (1980), “Le déterminisme technologique dans la sociologie du travail (1955-1980): un changement de paradigme?”, Sociologie du Travail, 22 (1), pp. 22-37. [ Links ]

Moniz, António Brandão (2018), Robótica e Trabalho, Lisboa, Glaciar. [ Links ]

Newell, Bryce (2020), “Introduction: the state of sousveillance”, Surveillance & Society, 18 (2), pp. 257-261. [ Links ]

Örnebring, Henrik (2009), “The two professionalisms of journalism: journalism and the changing context of work”, Oxford, University of Oxford (working paper). [ Links ]

Raposo, Hélder (2019), “Reconfigurações profissionais em contextos de mudança: o papel da medicina geral e familiar”, Sociologia, Problemas e Práticas, 91, pp. 77-96. [ Links ]

Rifkin, Jeremy (2006), La Fin du Travail, Paris, La Découverte. [ Links ]

Rodrigues, Maria de Lurdes (1997), Sociologia das Profissões, Oeiras, Celta. [ Links ]

Rosenblat, Alex, Tamara Kneese, e Danah Boyd (2014), “Workplace surveillance”, Nova Iorque, Data & Society Research Institute (working paper). [ Links ]

Sauvy, Alfred (1980), La Machine et le Chômage. Les Progrès Techniques et l’Emploi, Paris, Dunod/Bordas. [ Links ]

Schnell, Christiane (2018), “Starving at the laid table? Journalism, digitalization and corporate capitalism”, Professions & Professionalism, 8 (3), p. 2609. [ Links ]

Susskind, Daniel (2020), Um Mundo sem Trabalho. Como Responder ao Avanço da Tecnologia, Lisboa, Ideias de Ler. [ Links ]

Sztompka, Piotr (1996), Sociologia del Cambio Social, Madrid, Alianza. [ Links ]

Tavares, David (2007), Escola e Identidade Profissional. O Caso dos Técnicos de Cardiopneumologia, Lisboa, Colibri / Instituto Politécnico de Lisboa. [ Links ]

Thompson, Paul (2003), “Fantasy Island: a labour process critique of the ‘age of surveillance’ ”, Surveillance & Society, 1 (2), pp. 138-151. [ Links ]

Touraine, Alain (1955), L’Evolution du Travail Ouvrier aux Usines Renault, Paris, Centre National de la Recherche Scientifique. [ Links ]

Watson, Tony (2012), Sociology, Work and Organisation, Londres, Routledge. [ Links ]

Williams, Robin (2019), “The social shaping of technology (SST)”, em Todd L. Pittinsky, Science, Technology, and Society. New Perspectives and Directions, Cambridge, Cambridge University Press, pp. 234-265. [ Links ]

Witschge, Tamara, e Gunnar Nygren (2009), “Journalistic work: a profession under pressure?”, Journal of Media Business Studies, 6 (1), pp. 37-59. [ Links ]

Woodward, Joan (1965), Industrial Organization. Theory and Practice, Oxford, Oxford University Press. [ Links ]

Yar, Majid (2003), “Panoptic power and the pathologisation of vision: critical reflections on the Foucauldian thesis”, Surveillance & Society, 1 (3), pp. 254-271. [ Links ]

Zuboff, Shoshana (2015), “Big other: surveillance capitalism and the prospects of an information civilization”, Journal of Information Technology, 30, pp. 75-89. [ Links ]

Zuboff, Shoshana (2019), The Age of Surveillance Capitalism. The Fight for a Human Future at the New Frontier of Power, Nova Iorque, Profile Books. [ Links ]

Zureik, Elia (2003), “Theorizing surveillance: the case of workplace”, em David Lyon, Surveillance and Social Sorting. Privacy, Risk, and Digital Discrimination, Nova Iorque e Londres, Routledge, pp. 31-55. [ Links ]

1Medicamentos e suplementos alimentares em consumos de performance: práticas sociais, contextos e literacia” (PTDC/SOC/30734/2017) — ConPerLit, a decorrer pelo CIES-Iscte, em parceria com o Instituto Universitário Egas Moniz e o Instituto de Sociologia da Universidade do Porto.

2O conceito “grupos profissionais” regista um significado mais abrangente, superando as limitações teóricas e metodológicas que o conceito de profissão apresenta. Veja-se Dubar e Tripier (1998) e Champy (2009).

3No sentido atribuído por Foucault (1975), embora as preocupações do autor tenham um alcance social mais vasto.

Recebido: 23 de Novembro de 2020; Aceito: 03 de Setembro de 2021

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons