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Sociologia, Problemas e Práticas

versão impressa ISSN 0873-6529

Sociologia, Problemas e Práticas  no.100 Lisboa dez. 2022  Epub 18-Fev-2023

https://doi.org/10.7458/spp202210028003 

Artigo Original

Publicação científica e ciências sociais: 100 números da revista Sociologia, Problemas e Práticas

Scientific publication and social sciences: 100 issues of the journal Sociologia, Problemas e Práticas

Publication scientifique et sciences sociales: 100 numéros de la revue Sociologia, Problemas e Práticas

Publicación científica y ciencias sociales: 100 números de la revista Sociologia, Problemas e Práticas

António Firmino da Costa1  , conceptualização, análise, redação, revisão
http://orcid.org/0000-0002-3413-8919

Susana da Cruz Martins2  , conceptualização, análise, redação, revisão
http://orcid.org/0000-0002-5871-9849

Sónia Cardoso Pintassilgo3  , conceptualização, análise, redação, revisão
http://orcid.org/0000-0002-6159-3255

Nuno Nunes4  , conceptualização, análise, redação, revisão
http://orcid.org/0000-0003-0337-6145

Helena Carvalho5  , conceptualização, análise, redação, revisão
http://orcid.org/0000-0002-5868-1051

1 Iscte - Instituto Universitário de Lisboa, Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES-Iscte), Lisboa, Portugal, E-mail: antonio.costa@iscte-iul.pt

2 Iscte - Instituto Universitário de Lisboa, Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES-Iscte), Lisboa, Portugal, E-mail: susana.martins@iscte-iul.pt

3 Iscte - Instituto Universitário de Lisboa, Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES-Iscte), Lisboa, Portugal, E-mail: sonia.cardoso@iscte-iul.pt

4 Iscte - Instituto Universitário de Lisboa, Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES-Iscte), Lisboa, Portugal, E-mail: nuno.nunes@iscte-iul.pt

5 Iscte - Instituto Universitário de Lisboa, Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES-Iscte), Lisboa, Portugal, E-mail: helena.carvalho@iscte-iul.pt


Resumo

O presente artigo analisa a importância das revistas científicas na constituição e no desenvolvimento dos campos científicos. Analisa também um conjunto de questões de fundo que estas revistas enfrentam atualmente. Toma como caso de estudo a revista Sociologia, Problemas e Práticas . Esta revista surgiu no processo de institucionalização da área da sociologia em Portugal. Está agora a publicar o seu número 100, após 37 anos de publicação continuada. Este artigo analisa o contexto, o perfil e as fases desta revista científica que tem como foco principal a sociologia, mas que está aberta igualmente a contribuições interdisciplinares de outras ciências sociais. Este artigo discute ainda um conjunto de problemas com que estas revistas académicas presentemente se confrontam: a publicação científica em acesso aberto; a avaliação por pares; as novas plataformas de publicação científica; e a tensão entre publicação internacional e impacto social contextual.

Palavras-chave: revistas científicas; acesso aberto; avaliação por pares; internacionalização; impacto social.

Abstract

This article analyses the importance of scientific journals in the constitution and development of scientific fields. It also analyses a set of issues that these journals currently face. It takes as a case study the journal Sociologia, Problemas e Práticas. This journal emerged in the process of institutionalization of the field of sociology in Portugal. It is now publishing its 100th issue, after 37 years of continued publication. This article analyses the context, profile and phases of this scientific journal that has sociology as its main focus, but is also open to interdisciplinary contributions from other social sciences. This article also addresses a number of problems that these academic journals are presently facing: open access scientific publication; peer review; the new scientific publishing platforms; and the tension between international publishing and contextual social impact.

Keywords: scientific journals; open access; peer review; internationalization; social impact.

Résumé

Cet article analyse l’importance des revues scientifiques dans la constitution et le développement des champs scientifiques. Il analyse également une série de questions fondamentales auxquelles ces revues sont actuellement confrontées. Il prend comme étude de cas la revue Sociologia, Problemas e Práticas. Cette revue a émergé dans le processus d’institutionnalisation du domaine de la sociologie au Portugal. Il publie actuellement son 100e numéro, après 37 ans de publication continue. Cet article analyse le contexte, le profil et les phases de cette revue dont le domaine principal est la sociologie, mais qui est également ouverte aux contributions interdisciplinaires d’autres sciences sociales. Cet article aborde également un certain nombre de problèmes auxquels ces revues universitaires sont actuellement confrontées: l’édition scientifique en libre accès; l’évaluation par les pairs; les nouvelles plateformes d’édition scientifique; et la tension entre l’édition internationale et l’impact social contextuel.

Mots-clés: revues scientifiques; libre accès; l’évaluation par les pairs; internationalisation; impact social.

Resumen

El presente artículo analiza la importancia de las revistas científicas en la conformación y en el desarrollo de los campos científicos. También analiza un conjunto de cuestiones de fondo que estas revistas enfrentan actualmente. Toma como caso de estudio la revista Sociologia, Problemas e Práticas. Esta revista surgió en el proceso de institucionalización del área de la sociología en Portugal. En este momento se encuentra publicando el ejemplar 100 después de 37 años de publicación continua. Este artículo analiza el contexto, el perfil y las fases de esta revista científica que tiene como foco principal la sociología, pero que igualmente está abierta a contribuciones interdisciplinares de otras ciencias sociales. Este artículo aún discute un conjunto de problemas con los que estas revistas se confrontan en la actualidad: la publicación científica en acceso abierto; la evaluación de pares; las nuevas plataformas de publicación científica, y la tensión entre publicación internacional e impacto socialcontextual.

Palabras-clave: revistas científicas; acceso abierto; evaluación por pares; internacionalización; impacto social.

Introdução

A revista Sociologia, Problemas e Práticas atinge agora a publicação do seu número 100. Fundada em 1986, no quadro do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES), do Iscte - Instituto Universitário de Lisboa (cuja designação, na altura, era Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa), a revista tem vindo a ser sempre publicada regularmente ao longo destes 37 anos.

É por isso compreensível que se aproveite esta oportunidade para se analisar o contexto, o percurso e o perfil desta revista científica de sociologia - uma revista que tem a sociologia como foco principal (presente, aliás, no próprio título), mas que se abre também, de forma interdisciplinar, ao conjunto mais alargado das ciências sociais.

Procurar-se-á, também, a propósito deste caso concreto, abordar brevemente algumas questões mais gerais sobre a importância das revistas científicas na constituição dos diversos campos científicos e sobre os desafios que as publicações académicas enfrentam na atualidade, num panorama atravessado por dinâmicas múltiplas e ambivalentes.

Revistas científicas e constituição dos campos científicos

Na constituição e desenvolvimento das ciências, as revistas científicas têm sido componente crucial da estruturação dos campos científicos, isto é, de campos sociais especializados na produção e avanço de conhecimento científico.1

Logo no dealbar da ciência moderna, no século XVII, a célebre The Royal Society of London for Improving Natural Knowledge (muitas vezes mencionada apenas como “Royal Society”) - sociedade científica que teve influência decisiva na configuração emergente da ciência moderna (Merton, 1970 [1938]; Tinniswood, 2019) - assumiu como elemento central da sua atividade a publicação do periódico científico Philosophical Transactions (em geral, referido abreviadamente como “Transactions”).

Esta publicação periódica surgia assim, em 1665, como a primeira revista científica (Meadows, 1980; Collins, 2000 [1998]; Fyfe, McDougall-Waters e Moxham, 2015), tendo tido um papel da maior relevância na organização e alargamento das trocas científicas e, nesse sentido, como elemento estruturador de uma comunidade científica em construção. Possuía já alguns dos traços que posteriormente se consagraram como característicos das revistas científicas - como o registo e a difusão pública continuada de novos avanços de conhecimento, como o reconhecimento da autoria científica (Chartier, 2012) e a creditação de prioridade das descobertas (Merton, 1973), ou como a revisão e avaliação dos artigos por pares (peer review), isto é, a apreciação e validação, por parte de outros cientistas conhecedores dos temas em causa, dos artigos submetidos para publicação.2

A primeira institucionalização da ciência moderna desenrolou-se em torno de alguns indivíduos pioneiros e dos seus pequenos grupos de discípulos e colaboradores, mas também através de redes de contactos intelectuais que se iam estabelecendo de forma mais alargada, com frequência de âmbito internacional - nessa época, basicamente a nível europeu. Eram poucas pessoas, mas iam estabelecendo redes de relação intelectual com grande dinamismo (Collins, 2000 [1998]), sendo percursoras do desenvolvimento de métodos matemáticos, instrumentos científicos, explorações geográficas, observações sistemáticas e experimentações laboratoriais.

No âmbito dessas redes científicas em constituição embrionária, trocavam-se ideias, resultados, métodos e análises, assim como se travavam debates, disputas e controvérsias (Merton, 1973; Bourdieu, 2001). A circulação dos conteúdos e procedimentos científicos realizava-se já, então, quer por encontros diretos, quer sobretudo de forma escrita, nomeadamente por correspondência pessoal, pela difusão de monografias e, também, por meio das primeiras revistas científicas que iam surgindo nesse contexto.

Ao longo do processo de surgimento e institucionalização da ciência moderna, o conhecimento científico foi-se estabelecendo como conhecimento codificado (Ziman, 2000), usando linguagens escritas, matemáticas e gráficas. Esse conhecimento codificado foi sendo arquivado em registos próprios e disseminado através de modos de comunicação específicos, dirigidos aos círculos de interconhecimento de indivíduos e grupos diretamente empenhados em práticas de investigação e, de forma mais ampla, disponibilizados a outros potenciais interessados nos desenvolvimentos científicos.

Nesse processo, o texto científico ganhou especificidade - estabelecendo uma relação particular entre conteúdo cognitivo e forma textual, assente em três traços principais: “uma intenção de conhecimento explícita por parte do autor, um contributo de conhecimento reconhecido por uma comunidade académica, e a inscrição num espaço de publicação identificável como ‘científico’ ” (Berthelot, 2003: 33).

Deste modo, as revistas científicas constituíram-se como um foco aglutinador específico da institucionalização cognitiva e relacional das comunidades científicas. Elas contribuem, com efeito, com um conjunto de elementos de registo e comunicação do conhecimento científico que são particularmente importantes, quer para a sedimentação, quer para o dinamismo das comunidades científicas: (i) regularidade de publicação; (ii) referência de continuidade (disciplinar ou temática); (iii) multiplicação e diversificação de contribuições (autores e conteúdos).

No desenvolvimento inicial da ciência moderna, uma publicação periódica como a Transactions não só expressava culturalmente o “ideal de universalidade” do conhecimento então emergente na cultura científica, como concretizava materialmente a abrangência e diversidade dos conteúdos abordados (da física e da química à geologia e à biologia, da matemática e da lógica à história e à filologia, etc.).

Esse elemento de universalidade da cultura científica continua presente no ethos científico atual (Merton, 1973; Ziman, 2000). E, na vasta constelação das revistas científicas hoje publicadas, há um pequeno conjunto de referência, como a Nature ou a Science, que apresenta aquela abrangência de conteúdos. Porém, tal como acontece em geral nos padrões ambivalentes das instituições em sociedade (Merton, 1976), esse elemento de universalidade e transversalidade coexiste de forma ambivalente com outro elemento fundamental da institucionalização das ciências: a diversificação das disciplinas.

As disciplinas científicas constituíram-se, pelo menos desde o século XIX, como contextos cognitivos e sociais de carácter decisivo na institucionalização de comunidades científicas relativamente autónomas, orientadas para o aprofundamento, reprodução e avanço do conhecimento científico nos seus respetivos domínios, com as suas teorias próprias e com os seus métodos e técnicas preferenciais (Gingras, 2013). Os quadros institucionais em que as disciplinas científicas se organizaram foram, sobretudo, os departamentos universitários, as sociedades/associações científicas e, justamente, as revistas das diversas áreas disciplinares.

Foi deste modo que muitas revistas científicas se constituíram como pontos nodais de articulação fundamental de redes de investigação focadas numa disciplina científica (como no caso da sociologia) - mas, também, em conjuntos amplos de disciplinas afins (por exemplo, as ciências sociais). Ou, ainda, em variados domínios de investigação e inovação interdisciplinares, mobilizando investigadores provenientes de diversas disciplinas na abordagem de problemas complexos e urgentes - tendência que tem crescido nas últimas décadas, correlativa do que tem sido chamado “modo 2” de produção de conhecimento (Gibbons et al., 1994; Nowotny, Scott, e Gibbons, 2001).

Na sociologia, a primeira revista académica a ser designada de forma disciplinar foi a American Journal of Sociology (Revista Americana de Sociologia), fundada em 1895, na Universidade de Chicago (The University of Chicago), onde tinha surgido também pouco tempo antes o primeiro departamento universitário de sociologia. A revista teve como primeiro diretor Albion W. Small e continua a publicar-se, após todos estes anos, como uma das referências principais da área. Praticamente na mesma altura, em França, surgiu a revista L’Année sociologique (Ano Sociológico), dirigida por Émile Durkheim, cujo primeiro número (1896-1897) abria com um artigo do próprio Durkheim e outro de Georg Simmel. Alguns anos antes (1888), na Alemanha, tinha já sido lançada uma revista multidisciplinar em ciências sociais que, em 1904, foi redenominada Archiv für Sozialwissenschaft und Sozialpolitik (Arquivos de Ciências Sociais e Política Social) e dirigida a partir daí por Max Weber (com Werner Sombart e Edgar Jaffé), em que ele publicou vários dos seus trabalhos mais conhecidos. Estas revistas foram criadas, significativamente, nos três países mais importantes na constituição da sociologia, tendo tido ação pioneira na estruturação da disciplina e, em geral, no desenvolvimento das ciências sociais.

A fundação da revista Sociologia, Problemas e Práticas

Quer no início da ciência moderna no seu conjunto, quer no começo da sociologia, a institucionalização dessas esferas de produção de conhecimento envolveu, como um dos seus polos fundamentais, a criação de revistas científicas. No caso da Sociologia, Problemas e Práticas, a revista surgiu relativamente cedo na institucionalização da sociologia em Portugal.

Anteriormente, desde o final do século XIX, tinha havido alguns afloramentos da sociologia no país, mas esporádicos ou relativamente isolados. Olhando de forma retrospetiva, verifica-se que tiveram poucas implicações na institucionalização da sociologia no país, tal como ela posteriormente veio de facto a realizar-se. Podem mencionar-se, por exemplo, um ou outro livro (designadamente o Systema de Sociologia, da autoria de Teófilo Braga, publicado em 1884, inspirado sobretudo em conceções teóricas de Auguste Comte e Herbert Spencer, e várias monografias sobre a sociedade portuguesa, realizadas nas primeiras décadas do século XX, inspiradas na metodologia dos estudos empíricos desenvolvidos por Frédéric Le Play); algumas “cadeiras” (disciplinas) avulsas, de carácter sociológico, que foram surgindo em alguns cursos universitários, primeiro de direito, no início do século XX, e depois, sobretudo a partir dos anos 1950, em cursos de engenharia, arquitetura, economia e alguns outros, nomeadamente nas áreas dos “estudos militares”, dos “estudos sociais” e dos “estudos ultramarinos”; alguns centros de estudos especializados que integraram algumas valências sociológicas (como o Centro de Estudos de Economia Agrária, da Fundação Calouste Gulbenkian, criado em 1958, ou o Secretariado de Informação Religiosa, criado pela Igreja Católica em 1959); e um curso de sociologia/ciências sociais, de carácter privado, no Instituto Superior Económico e Social de Évora, criado por jesuítas e com apoio mecenático local, em 1964 (Cruz, 1983; Fernandes, 1996; Pinto, 2004; Ferreira, 2006; Ágoas, 2011; Silva e Costa, 2013; Silva, 2016; Freitas, 2018; Machado, 2020; Freire et al., 2021; Silva, 2022).

É interessante conhecer historicamente esses casos, como é evidente. Não obstante, como já se referiu, foram casos relativamente pontuais e circunscritos, não tendo dado origem a dinâmicas importantes de continuidade intelectual e institucionalização alargada da sociologia no país. A hostilidade relativamente à sociologia sempre manifestada pelo regime autoritário que vigorou ao longo dos dois quarteis intermédios do século XX, não será certamente alheia a essa circunstância (Almeida, 1992; Pinto, 2004).

Nesse longo período, até ao derrube da ditadura em 1974, a entidade mais relevante para o futuro desenvolvimento da sociologia no país foi o Gabinete de Investigações Sociais (GIS), criado em 1962, e liderado durante décadas por Adérito Sedas Nunes. Em 1982, foi redenominado como Instituto de Ciências Sociais (ICS) e integrado na Universidade de Lisboa. Porém, logo em 1963, o GIS lançou a revista Análise Social, que ganhou desde início uma posição de destaque em termos científicos e efetivo impacto em alguns debates socialmente mais alargados, apesar das limitações políticas da época (Nunes, 1988). Ao longo do tempo, tornou-se uma referência central e fator importante do desenvolvimento das ciências sociais no país, incluindo especificamente a sociologia.

Apesar da importância dessas iniciativas pioneiras, até 1974 ainda não se verificavam na sociologia do país alguns dos pressupostos fundamentais da institucionalização de uma disciplina científica universitária. Desde logo, ainda não havia cursos de licenciatura em sociologia no sistema universitário público nacional - que é o componente mais importante do sistema de ensino superior do país, em termos de dimensão e reputação. Nele também ainda não tinha havido a possibilidade de atribuir o grau de doutoramento em sociologia. Sem licenciados nem doutorados em sociologia, formados e certificados nas universidades públicas portuguesas, dificilmente se poderia considerar a sociologia até então no país como disciplina científica universitária institucionalizada.

Marco decisivo na institucionalização da sociologia em Portugal foi a criação da licenciatura em sociologia no ISCTE em 1974. O Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa tinha sido criado em 1972, no âmbito da política de modernização do ensino superior iniciada pelo ministro da educação José Veiga Simão, ainda no final do regime autoritário (a chamada “reforma Veiga Simão”). As duas áreas de formação iniciais do ISCTE eram a gestão de empresas e as ciências do trabalho. Esta última designação era a que tinha sido possível utilizar na época, devido aos constrangimentos políticos de então. Todavia, o seu conteúdo principal era já sociológico; e quando a ditadura foi derrubada, em 1974, o curso foi logo reformulado e redenominado como licenciatura em sociologia.

Os docentes eram maioritariamente jovens e bastante diversificados em termos de formações e origens nacionais. Vários deles eram investigadores do GIS, acumulando com a docência no ISCTE (incluindo o próprio Sedas Nunes, nos anos iniciais). Outros vinham de trajetórias com estudos universitários em diversos países europeus e americanos. Alguns tinham feito estudos em sociologia e muitos tinham formação inicial noutras áreas, como direito, economia, história ou mesmo engenharia, mas em geral também já muito envolvidos no aprofundamento da sociologia.

Os estudantes eram igualmente bastante diversificados, do ponto de vista das suas formações de ensino secundário e do ponto de vista das suas experiências pessoais. Aliás, a licenciatura de sociologia passou rapidamente a funcionar em duas turmas, uma com horário diurno e outra com horário pós-laboral, correspondendo a uma procura alargada, variada e bastante entusiástica, quer pelos estudantes que acabavam de terminar o ensino secundário, quer pelos que já tinham iniciado atividade profissional. Era uma formação nova, aliciante para muitos jovens que tinham vivido a transição da ditadura para a democracia, e que encontravam nessa licenciatura a possibilidade de conhecer problemáticas e referências até então praticamente desconhecidas na universidade portuguesa e investigar sobre uma sociedade em rápida transformação, num contexto universitário caracterizado pela informalidade relacional e por uma grande abertura ao debate.

Durante os primeiros anos, a atividade em sociologia no ISCTE centrava-se basicamente na licenciatura. Contudo, à medida que se iam formando os primeiros licenciados em sociologia no ISCTE, alguns deles contratados a partir do início dos anos 1980 como docentes da área (na altura, com a categoria de “assistentes estagiários”), e à medida que vários docentes iniciais iam preparando os seus futuros doutoramentos, foi-se desenvolvendo uma forte dinâmica levando à criação de outros elementos indispensáveis ao completamento da institucionalização universitária da sociologia.

Um elemento muito importante deste processo de institucionalização da sociologia no país foi a criação, em 1985, de uma associação científico-profissional neste domínio, a Associação Portuguesa de Sociologia (APS), envolvendo participantes de várias universidades portuguesas, e rapidamente alargada a quaisquer sociólogos que atuem nas mais diversas áreas profissionais. Na fundação da APS tiveram protagonismo assinalável vários sociólogos do ISCTE, incluindo o primeiro presidente da associação (João Ferreira de Almeida) e a primeira vice-presidente (Maria Carrilho). Imediatamente antes tinham sido também defendidos no ISCTE os primeiros doutoramentos em sociologia atribuídos na universidade portuguesa, em 1983 (José Madureira Pinto) e 1984 (João Ferreira de Almeida).

Outro componente decisivo desse processo de institucionalização foi a constituição, no ISCTE, igualmente em 1985, de um centro de investigação expressamente dedicado à sociologia (embora com grande abertura interdisciplinar às outras ciências sociais): o Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES). Os jovens docentes da licenciatura em sociologia perceberam cedo que era fundamental dotarem-se de condições científicas e organizacionais indispensáveis ao prosseguimento de investigação sociológica realizada em termos consonantes com a prática científica universitária vigente noutros domínios de conhecimento e noutros países mais avançados: uma investigação sociológica não apenas individual, mas envolvendo equipas, com membros de várias gerações, realizando projetos de investigação formais, concorrendo a apoios institucionais à investigação científica ou estabelecendo contratos com diversas outras entidades para a realização de estudos científicos. Desse modo, podiam também obter reconhecimento institucional por parte de entidades de coordenação do sistema científico.3 Podiam, ainda, com o centro de investigação, dispor de meios organizacionais para a sua atividade científica e desenvolver de forma regular atividades coletivas de debate, comunicação e publicação científica.

Foi nesse contexto, justamente, que foi fundada no CIES, em 1986, a revista Sociologia, Problemas e Práticas. Foi assumida desde início como vertente central do projeto do CIES, entendida na altura como suporte de registo e veículo de disseminação alargada dos resultados de investigação que os investigadores do CIES estavam a desenvolver, mas também com outros contributos externos nacionais e internacionais. A revista tornou-se, assim, vetor importante de dinamização de investigação científica, fator de coesão entre os membros do centro, meio de reconhecimento externo do CIES e dos seus investigadores junto da comunidade científica sociológica nacional em constituição e, de forma mais abrangente, elemento estruturante da institucionalização da sociologia no país.

Entretanto, noutras universidades do país foram surgindo novas licenciaturas em sociologia, no final dos anos 1970 e sobretudo nos anos 1980 e 1990, e a formação de outros centros de investigação em ciências sociais, alguns com forte presença da sociologia (Machado, 2020). Nessas universidades, e no ISCTE, surgiram progressivamente depois os mestrados em sociologia (ou mestrados temáticos organizados em torno da sociologia), a partir dos anos 1980, e os programas doutorais em sociologia, a partir do início dos anos 2000. Entretanto, iam sendo igualmente criadas e consolidadas em cada instituição universitária as unidades orgânicas correspondentes - no ISCTE, além do CIES, o Departamento de Sociologia e, mais tarde, a Escola de Sociologia e Políticas Públicas. E surgiram também, para o que aqui mais diretamente importa, várias revistas científicas.

Como já se referiu, tinha sido criada em 1963 a revista Análise Social, do GIS/ICS da Universidade de Lisboa, mantendo-se até hoje como publicação de referência nas ciências sociais do país. Em 1978, foi lançada a Revista Crítica de Ciências Sociais, do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra (ambos com iniciativa e liderança de Boaventura de Sousa Santos), tornando-se também uma publicação de referência nacional neste domínio. Tinha sido publicada anteriormente a revista Economia e Sociologia (1968), no ISES Évora, se bem que com impacto mais local e menor duração. Mais tarde, surgiu a revista Cadernos de Ciências Sociais (1984), com iniciativa e direção de José Madureira Pinto, com qualidade científica indiscutível, porém com continuidade temporal limitada.

A revista Sociologia, Problemas e Práticas surgiu nesta sequência, em 1986. Foi fundada no CIES como elemento constituinte de uma constelação de contributos gerados no ISCTE nesse período, relevantes para o desenvolvimento científico e a institucionalização do campo da sociologia no país: a licenciatura, os primeiros doutoramentos realizados na área, o centro de investigação, a participação na APS - e a revista. Aliás, do ponto de vista da institucionalização da sociologia no contexto nacional, não será certamente irrelevante assinalar que a revista Sociologia, Problemas e Práticas assumiu no título, de forma explícita, a designação deste campo disciplinar (sociologia), diferentemente do que tinha acontecido nas principais revistas anteriores, designadamente a Análise Social e a Revista Crítica das Ciências Sociais. Ao longo do tempo que decorreu desde então até este número 100, a revista conseguiu manter uma grande continuidade, com publicação sempre ininterrupta, e foi obtendo na comunidade sociológica nacional reconhecimento alargado, como publicação científica de qualidade e uma das revistas de referência no campo sociológico português.

Posteriormente, foram criadas outras revistas, diversificando e consolidando o campo das ciências sociais no país. Uma delas recorreu, como várias revistas anteriores, a um título generalista em “ciências sociais”, embora neste caso em língua inglesa: a Portuguese Journal of Social Science (2002) - uma iniciativa partilhada por vários centros de investigação do ISCTE em colaboração com uma editora do Reino Unido. Várias revistas optaram por títulos relativos a temas de especialidade ou a conceitos especializados. Outras adotaram, tal como Sociologia, Problemas e Práticas, títulos disciplinares reportados à sociologia. É o caso de Sociologia, Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto (1991); da revista Fórum Sociológico (1992), publicada pelo CICS.NOVA, da Universidade Nova de Lisboa; e da revista Sociologia On Line (2010), da Associação Portuguesa de Sociologia.

Perfil e fases da revista Sociologia, Problemas e Práticas

Ao longo destes 37 anos de publicação e de 100 números publicados, a revista Sociologia, Problemas e Práticas foi definindo um perfil editorial próprio, com um núcleo de orientações principais, e foi fazendo evoluir esse perfil à medida que quer o campo sociológico, quer o campo da publicação científica se foram reconfigurando.

Para dar conta desse perfil editorial e das suas fases importa convocar, antes de mais, alguns elementos de carácter organizacional e técnico com impacto subjacente efetivo na atividade editorial da revista. Um dos mais importantes desses elementos é, evidentemente, o enquadramento institucional universitário da revista: o ISCTE e, em particular, o CIES - aspeto que já foi abordado atrás. Outros elementos importantes com intervenção direta na condução e produção da revista foram as suas direções (diretores e conselhos de redação) e as empresas editoriais que colaboraram na sua publicação. Outros desses elementos “infraestruturais” que importa igualmente assinalar, dado o seu impacto real na atividade de Sociologia, Problemas e Práticas, são a periodicidade da revista, as suas línguas de publicação, os serviços técnicos editoriais, as bases bibliométricas internacionais de indexação de publicações científicas, os suportes de publicação (papel e digital) e o regime de acesso aberto.

O quadro 1 apresenta, a par dos anos de publicação da revista e dos números publicados, os correspondentes sucessivos diretores e membros do conselho de redação, assim como as editoras que estiveram associadas à publicação de Sociologia, Problemas e Práticas.

Quadro 1 Cronologia da revista Sociologia, Problemas e Práticas 

Nos anos iniciais, a revista estava ainda a experimentar os modos de funcionamento a adotar. Publicava dois números por ano. No primeiro número obteve a colaboração da Editora Relógio D’Água e, nos números seguintes, a da Publicações Europa-América. Apesar da atitude generosa dessas empresas editoriais, perante uma iniciativa académica com pouco retorno comercial, essas colaborações revelaram-se a certa altura pouco sustentáveis e a revista optou, no número oito e nos números seguintes, pelo regime de autoedição, situação que se prolongou durante alguns anos.

A partir do número 20 (1996), a revista entrou numa nova fase editorial, em termos de regularidade e consistência formal. Desde logo, passou a publicar três números por ano, periodicidade que tem prosseguido ininterruptamente até à atualidade. Além disso, desde o número 26 (1998), iniciou uma nova colaboração editorial, com a Celta Editora, que trouxe à Sociologia, Problemas e Práticas um novo profissionalismo na publicação. Os parâmetros formais e gráficos fundamentais da revista ficaram estabilizados daí para a frente - mesmo quando, num período posterior, com a cessação da atividade da Celta Editora, a revista passou a ser publicada em colaboração com a Editora Mundos Sociais (CIES-Iscte), a partir do número 62 (2010), dando-se continuidade ao processo técnico e ao formato gráfico de qualidade já anteriormente criados.

Com a aproximação do milénio, e nos anos seguintes, a Sociologia, Problemas e Práticas deu progressivamente um conjunto de novos passos editoriais relevantes, todos eles direta ou indiretamente relacionados com a internacionalização da revista. Um marco deste processo foi alcançado com o número 27 (1998). Foi o primeiro número da revista em que a maioria dos/das autores/autoras dos artigos era de outros países (Irlanda, Reino Unido, Noruega e Suécia), sendo que os originais desses artigos foram traduzidos para português. Pouco depois, o número 29 (1999) incluiu o primeiro artigo publicado diretamente em língua inglesa na revista. A partir do número 37 (2001), todos os artigos passaram a incluir resumos em quatro línguas (português, inglês, espanhol e francês). Logo a seguir, a revista começou a informar na sua ficha técnica que passaria a publicar artigos nessas quatro línguas.

Em 2005, a Sociologia, Problemas e Práticas começou a figurar na base de indexação internacional Scielo. E mais tarde, em 2012, na base de indexação internacional Scopus. Desde início a revista figurava já noutras bases de indexação, no entanto a Scielo e a Scopus traziam novas potencialidades bibliométricas, reputação científica e visibilidade internacional. No ano de 2012, a revista deu um outro passo também muito importante, do ponto de vista da sua difusão alargada, nacional e internacional, passando a publicar-se não apenas em versão impressa (papel) mas também em versão eletrónica em linha (online), com acesso aberto (open access). Esta versão digital de acesso aberto, editada pela parceria CIES e Editora Mundos Sociais, tornou-se largamente a versão mais procurada e mais lida. Nessa mesma altura, os artigos começaram a ter identificação DOI (Digital Object Identifier), um sistema internacional de autenticação de documentos digitais, assim como estarem depositados e consultáveis no repositório institucional eletrónico do ISCTE. A revista e os seus artigos passaram ainda a estar disponibilizados na plataforma de periódicos científicos da rede RCAAP (Repositórios Científicos de Acesso Aberto em Portugal) e na plataforma OpenEdition Journals.

No decurso destes 100 números, a revista Sociologia, Problemas e Práticas publicou cerca de um milhar de artigos - tendo dado uma contribuição significativa para a institucionalização da sociologia no país, para o desenvolvimento da investigação sociológica e para a disponibilização e disseminação de um leque variadíssimo de resultados de conhecimento sobre a sociedade e dos seus processos de mudança. Esses resultados provêm principalmente da área disciplinar da sociologia - como se compreende, atendendo às origens, contexto e protagonistas da revista. No entanto, esse núcleo sociológico principal tem sido sempre complementado, e cada vez mais, com uma grande abertura a contributos interdisciplinares e provenientes de outras ciências sociais, como as políticas públicas, a ciência política, a antropologia, a psicologia social, a economia, a geografia, a demografia e a história contemporânea.

Ao longo do seu percurso, a revista Sociologia, Problemas e Práticas tem-se guiado por um perfil editorial que, nas suas linhas principais, vem desde a sua matriz inicial, mas que tem sido também progressivamente atualizado, atendendo às mutações rápidas e às evoluções lentas do campo da sociologia e do campo da publicação científica.

Esse perfil editorial pode ser sintetizado num conjunto de orientações básicas: (a) vocação central na publicação de artigos científicos na área da sociologia, mas também de artigos interdisciplinares provenientes de outras ciências sociais; (b) foco na publicação de artigos de investigação científica - designadamente artigos de investigação empírica teoricamente orientada, artigos de investigação teórica ou metodológica e artigos de balanço inovador sobre um determinado domínio de investigação; (c) atividade editorial pautada por princípios de qualidade científica, de relevância social e de pluralismo teórico, metodológico e temático; (d) publicação de artigos originais, com novos contributos para o conhecimento.

No percurso da revista encontram-se marcos salientes (alguns deles já atrás assinalados) e algumas fases principais. Seria forçado, contudo, traçar cortes nítidos e abruptos entre essas fases. Com efeito, nessas fases sobrepuseram-se várias dimensões, cada uma delas com os seus próprios ritmos e intensidades, e por isso nem sempre exatamente sincronizadas entre si.

Na primeira década de publicação, e mesmo um pouco mais tarde, a revista Sociologia, Problemas e Práticas configurava-se sobretudo como um meio de disseminação dos resultados de investigação dos membros do CIES. A atividade científica do centro estava num processo de grande dinamismo, protagonizado por uma geração de jovens docentes-investigadores empenhados na institucionalização da sociologia no país (ensino universitário, centros de investigação, associação científico-profissional) e empenhados na investigação sobre a sociedade portuguesa, num contexto social em grande transformação e sobre o qual ainda se conhecia muito pouco. Essa atividade de investigação desdobrou-se rapidamente num leque diversificado de pesquisas e estudos sobre múltiplos aspetos sociais.

Uma boa ilustração disso mesmo é o conjunto de artigos publicados logo no número um da revista, em 1986. O primeiro artigo era de Graça Carapinheiro, “A saúde no contexto da sociologia”, seguindo-se os artigos de Vítor Matias Ferreira, “O processo de metropolização de Lisboa”, de Isabel Guerra, “Poder local - reprodução ou inovação?”, de Manuela Reis e Joaquim Gil Nave, “Camponeses imigrados e emigrantes regressados”, de Anália Torres e Luís Capucha, “O fim da arte no trabalho” e de José Manuel Leite Viegas, “Associativismo e dinâmica cultural”. Todos estes autores se tornaram professores universitários e investigadores com relevância no campo da sociologia do país, na maior parte dos casos com longas carreiras universitárias e científicas no ISCTE e no CIES, e alguns também noutras universidades e noutros centros de investigação. Não menos importante é a variedade de domínios de pesquisa abordados logo nesse primeiro número da revista: sociologia da saúde, sociologia urbana, sociologia política, sociologia rural, sociologia das migrações, sociologia das classes sociais, sociologia do trabalho, sociologia do associativismo.

Nos anos seguintes, essa produção científica intensa continuou a ser difundida pelos sucessivos números da revista, com artigos de muitos outros sociólogos do CIES, mas agora também, e progressivamente, de autores de outras disciplinas, de outras universidades e de outros centros de investigação.

Foram-se também alargando e diversificando os domínios especializados e os temas de pesquisa. Para além dos domínios já mencionados a propósito do número um - domínios esses, aliás, nos quais se continuaram a publicar na revista, ao longo das suas várias fases, novos resultados de investigação significativos - foram sendo publicados igualmente artigos em muitos outros domínios, nessa altura já bastante variados.

Com efeito, nos primeiros vinte números da revista foram publicados artigos em domínios tão diversificados como a sociologia da comunicação, a sociologia da cultura, a sociologia da família, a sociologia da educação, a sociologia política, a sociologia do desenvolvimento, a sociologia da ciência, a sociologia das organizações, a sociologia das profissões, a sociologia do corpo, a sociologia da infância, a sociologia do direito, a sociologia da etnicidade ou a sociologia militar - e também naqueles domínios que vinham sendo abordados logo desde o primeiro número da revista, já atrás referidos.

Começaram também a ser publicados, por alguns membros do CIES, vários artigos de teoria sociológica e de metodologia de investigação em ciências sociais. Além disso, a revista iniciou muito cedo a publicação de artigos de sociólogos que, nessa época, tinham surgido como grandes referências na sociologia internacional, como Jürgen Habermas (teoria sociológica; Alemanha), com um artigo publicado no número dois, ou como Anthony Giddens (teoria sociológica; Reino Unido), com um artigo publicado no número quatro. Sucederam-se diversos outros, na altura autores de referência em diversas especialidades da sociologia, como Renaud Sansaulieu (sociologia da empresa; França), Jean Kellerhals (sociologia da família; Suíça), Edgar Morin (sociologia do conhecimento; França), Rosanne Martorella (sociologia da arte; EUA) ou Mike Featherstone (teoria sociológica; Reino Unido), entre outros - procurando a revista difundir na comunidade das ciências sociais do país uma diversidade de autores que iam marcando o campo sociológico internacional.

Nesta sequência, o número 20 foi dedicado a um balanço sobre a sociologia em Portugal. Incluiu um artigo sobre a história da sociologia no país (António Teixeira Fernandes, Instituto de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto), um artigo sobre a profissionalização dos sociólogos em Portugal (Fernando Luís Machado, CIES-ISCTE), um artigo sobre os desafios para a mudança em sociologia no país e na Associação Portuguesa de Sociologia (Ana Nunes de Almeida, Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa), um artigo sobre os três primeiros congressos de sociologia realizados no país (Cristina Lobo, CIES-ISCTE), um inventário bibliográfico de análises publicadas até então sobre a sociologia em Portugal (António Firmino da Costa, CIES-ISCTE) - e, ainda, em particular, uma análise sobre a própria revista Sociologia, Problemas e Práticas, relativa aos seus vinte primeiros números (José Luís Casanova, CIES-ISCTE), inventariando tipos de artigos, conteúdos e autores (Casanova, 1996).

Na fase seguinte, que se pode situar aproximadamente até ao final da primeira década dos anos 2000, prolongaram-se alguns dos traços fortes da primeira fase, nomeadamente: publicação de múltiplos artigos de variados autores do CIES; publicação de resultados de investigação sociológica que procurava alargar, aprofundar e diversificar o conhecimento da sociedade portuguesa e das suas transformações; publicação de alguns contributos centrais e inovadores de sociólogos de referência internacional, partilhando-os com a comunidade portuguesa das ciências sociais. No entanto, esses traços de continuidade apareciam agora, e crescentemente, a par de novas vertentes ou de vertentes que ganhavam agora maior presença na revista.

Nessas novas vertentes ou novas ênfases, importa destacar: maior publicação de autores com outras pertenças institucionais, externas ao CIES; maior presença de artigos provenientes de outras ciências sociais ou interdisciplinares; novos temas, novos objetos de estudo, novas orientações de análise; maior presença e mais diversificada de autores de outros países; artigos com temas ou objetos de estudo não apenas relativos à sociedade portuguesa, mas também sobre outros contextos nacionais ou com abordagens comparativas internacionais ou, ainda, em análises de carácter transnacional.

Alguns exemplos de temas interdisciplinares emergentes nesta segunda fase de Sociologia, Problemas e Práticas, incluem: sociedade de informação, livro e leitura, desigualdades sociais, exclusão social, cidadania, cultura política, participação política, comportamento eleitoral, movimentos sociais, género, juventude, envelhecimento, cuidado (care), conciliação trabalho-vida pessoal, transições geracionais, sindicalismo, globalização, integração europeia, riscos, dependências, desporto, turismo, tecnologia, inovação, racismo, identidades, religiões, música, violência.

É também nesta fase que se diversificaram artigos sobre domínios de política pública e sobre políticas públicas específicas, tais como: políticas sociais, políticas económicas, políticas de saúde, políticas de família, políticas culturais, políticas urbanas, políticas educativas, políticas europeias. Nela surgiram, igualmente, vários artigos com abordagens comparativas internacionais, em geral com enquadramento europeu e/ou sul-americano, sobre temas como jovens, trabalho e família, estado social, classes sociais, educação, cultura, comunicação, entre outros.

Em todo o caso, a revista não deixou de publicar artigos quer sobre temas com forte presença na fase anterior, mas agora com novos resultados e/ou com perspetivas analíticas renovadas (como migrações, etnicidade, cultura, educação, ciência, saúde, família, cidade ou classes sociais), quer de carácter teórico e/ou metodológico, de que é exemplo particularmente significativo um número dedicado especificamente a metodologias de avaliação (número 22, 1996).

Prosseguiu igualmente a publicação de artigos de cientistas sociais de referência em termos internacionais, como Julia Brannen (socialização, métodos mistos [mixed methods]; Reino Unido), Ann Nilsen (transições geracionais, métodos qualitativos; Noruega), Jean-Michel Berthelot (sociologia e epistemologia; França), Alejandro Portes (migrações, capital social; EUA), S. N. Eisenstadt (sociologia histórica; Israel), Thomas Brante (teoria do conhecimento; Suécia), Gilberto Velho (antropologia urbana; Brasil), Rosemary Crompton (classes sociais e género; Reino Unido), Chiara Saraceno (família; Itália), Bernard Lahire (socialização, teoria sociológica, metodologia; França) ou Margaret Archer (teoria sociológica; Reino Unido).

Uma terceira fase da revista Sociologia, Problemas e Práticas desenrola-se, aproximadamente, desde a metade da primeira década dos anos 2000 até à atualidade. Nesta fase conjugam-se as orientações fundamentais do perfil matricial da revista com nova ênfase no alargamento e diversificação internacional.

Do ponto de vista dos leitores, isso concretizou-se fundamentalmente com a adoção pela revista do sistema de publicação de acesso aberto (open access), permitindo a qualquer um, em qualquer parte do mundo, ler os artigos com facilidade imediata e sem qualquer pagamento. Do ponto de vista dos autores, traduziu-se, de forma bastante relevante, na disponibilização de um periódico científico admitido em bases bibliométricas de indexação internacionalizada, designadamente na Scielo e na Scopus, proporcionando-lhes um suporte de publicação científica validada segundo critérios institucionalmente partilhados na comunidade científica internacional. Deste modo, a revista passou a publicar artigos de autores de geografias mais diversificadas: para além de Portugal, autores de vários países europeus e de outros continentes, com destaque para o Brasil, a Espanha e outros países da América Latina.

Este alargamento e diversificação intensificou-se também em termos temáticos e interdisciplinares, com novas abordagens e novos objetos de estudo. Exemplos variados: tecnologias e risco, tecnologia e desenvolvimento, migrações e integração cultural, circulação de emigrantes, migrações e género, trabalho e mudança social, género e política, género e diversidade sexual, género e música, música jovem e subúrbios, jovens e precariedade, arte e crise, cultura nas cidades médias, cultura e globalização, política e exílio, jornalismo e política, media e globalização, gerações e internet, refugiados e comunidade internacional, problemas de mobilidade social, pobreza infantil, classes médias, desigualdades e crise económica, desigualdades e democracia, desigualdades europeias, desigualdades globais, cuidados na saúde, cuidado das crianças, cuidado dos idosos, envelhecimento e políticas, deficiência e inclusão social, voluntariado, sindicatos e internet, negociação coletiva, ação coletiva local, ação coletiva na globalização, ativismo digital, formas de violência, fraude desportiva, culturas terapêuticas, religiões e sexualidade, religião na Europa, estudos militares, organizações do terceiro setor.

Em simultâneo, a revista continuou a dar relevo à publicação de artigos de teoria sociológica e de metodologia de investigação em ciências sociais, assim como de artigos sobre políticas públicas. Este último domínio ganhou uma presença ainda maior nesta terceira fase, com a publicação de diversos artigos sobre políticas de família, políticas de educação, políticas de saúde, políticas de ambiente, políticas de energia, políticas da água, políticas sociais, políticas culturais, políticas e migrações e análise das políticas públicas, incluindo também a publicação, em 2016, de um número especial da revista dedicado exclusivamente a artigos sobre políticas públicas.

A revista prosseguiu igualmente, nesta fase, a publicação de artigos de cientistas sociais de referência internacional, como Tom R. Burns (teoria sociológica; EUA e Suécia), Arlie Hochschild (sociologia das emoções, género e trabalho; EUA), Catherine Wihtol de Wenden (ciência política, migrações; França), Eric Widmer (sociologia da família; Suíça), Margareta Bäck-Wiklund (cuidado [care], políticas de família; Suécia), Dave Elder-Vass (teoria sociológica; Reino Unido), Randall Collins (teoria sociológica; EUA), Danny Dorling (geografia, desigualdades; Reino Unido), Richard Lachmann (sociologia histórica; EUA), John Levi Martin (teoria sociológica; EUA), Magali Sarfatti Larson (sociologia das profissões; EUA), Andrew Abbott (sociologia das profissões, teoria sociológica; EUA), Celso Castro (antropologia e história, estudos militares; Brasil).

Em síntese, ao longo dos anos e nestes 100 números da revista Sociologia, Problemas e Práticas é possível identificar três fases principais. Na primeira fase, em correspondência com o contexto científico e universitário do país nessa altura, a revista colocava-se sobretudo como um meio de publicação de resultados da investigação sobre a sociedade portuguesa realizada pelos membros do CIES. Na segunda fase, já se posicionava claramente como revista científica para a publicação de artigos resultantes da investigação dos membros da comunidade científica nacional, com pertenças institucionais variadas. Não deixava de ter como foco principal a sociologia, mas nela ganharam também maior presença os contributos interdisciplinares e de outras ciências sociais. Na terceira fase, a Sociologia, Problemas e Práticas adquiriu o carácter de revista científica internacionalizada, com acesso aberto, artigos em quatro línguas e indexação internacional, em que se publicam regularmente autores de variados países. A dimensão internacional estava presente na revista desde início, mas tornou-se nesta fase muito mais abrangente e diversificada, e de acordo não só com critérios substantivos de qualidade, relevância e pluralismo já anteriormente estabelecidos na revista, mas agora também de acordo com critérios formais requeridos na publicação científica internacionalizada.

Questões e desafios atuais da publicação científica

A concluir, pode ser interessante assinalar, ainda que de forma muito breve, algumas das questões que se colocam à revista Sociologia, Problemas e Práticas no presente e para o futuro próximo.

Uma dessas questões é particularmente importante para a revista. Manifesta-se concretamente na tensão entre, por um lado, o seu carácter de publicação científica internacionalizada e, por outro lado, o seu carácter de publicação científica com impacto social relevante na sociedade portuguesa. Esta questão cruza-se com uma outra questão, a das línguas de publicação.

Se a revista se concentrasse exclusivamente na publicação de artigos em inglês, com autores de diversos países e com temas transversais, basicamente independentes de um contexto social específico, ou sobre objetos de estudo com localizações mundiais variadas - a sua presença científica internacional ficaria provavelmente acentuada. Em contrapartida, se a revista se concentrasse exclusivamente na publicação de artigos em português e sobre temas e problemas da sociedade portuguesa, o seu impacto social neste contexto nacional seria provavelmente maior.

Contudo, colocada desta maneira, trata-se de uma dicotomia redutora e extremada, formulada aqui apenas como heurística contrafactual. Na verdade, a questão não tem de ser colocada em termos de tudo ou nada. Podem coexistir combinações interessantes dessas duas vertentes, e de outras vertentes complementares, e é justamente o que a revista tem procurado como sua orientação editorial.

Como se viu anteriormente, na sucessão das várias fases da revista, esta tendeu gradualmente para um perfil de maior presença na comunidade científica internacional. No entanto, também manteve sempre como uma das suas prioridades a publicação de artigos relevantes sobre a sociedade portuguesa e as suas transformações. E, ampliando a noção de contexto social pertinente, tem prosseguido a publicação de artigos comparativos a nível europeu ou sobre o espaço social europeu como um todo, nos quais a relevância para a sociedade portuguesa é também manifesta e direta. Além disso, os artigos escritos nos outros dois idiomas de publicação na revista - espanhol e francês - têm proporcionado igualmente um leque alargado de artigos que conjugam alargamento internacional e relevância social contextual, nestes casos para diversas outras geografias.

De qualquer modo, o espaço de publicação disponível na revista não é ilimitado, como é óbvio. Deste modo, a publicação de artigos em Sociologia, Problemas e Práticas passou a ser necessariamente mais exigente. Na respetiva seleção, privilegiam-se três critérios principais: (i) elevada qualidade científica; (ii) grande relevância social; (iii) inovação significativa em termos temáticos, teóricos ou metodológicos - dando a revista prioridade a artigos com coeficiente elevado em pelo menos um destes critérios. A resposta da revista quer à relação internacionalização/impacto social, quer aos critérios referidos, obriga a um equilíbrio delicado e a uma ponderação difícil, que não podem deixar de estar sempre em reavaliação.

Outra questão que se tem colocado à revista, muito importante e de grande atualidade, situa-se no âmbito do que se tem vindo a ser designado por ciência aberta. De um certo ponto de vista, a problemática é tão antiga como a própria ciência moderna. Implica uma dupla noção normativa inscrita no ethos científico, a de que os resultados da atividade científica devem ser entendidos como conhecimento público, disponibilizado como património cognitivo socialmente partilhado, e como conhecimento publicado, isto é, difundido em suportes de publicação especializados, em particular junto da comunidade científica (Merton, 1973; Ziman, 2000; Berthelot, 2003). Neste sentido, a publicação científica permite que novos resultados de investigação sejam conhecidos, discutidos e escrutinados por outros cientistas, podendo ser refutados, corroborados ou reequacionados. Sem isso, dificilmente poderiam ser integrados no processo de avanço do conhecimento científico.

No entanto, esta é apenas uma vertente da questão. Também logo desde início da ciência moderna, outro tipo de considerações - por exemplo, económicas ou militares - têm restringido a difusão pública de conhecimentos produzidos pela ciência. Concretizam-se, por exemplo, em patentes industriais ou em segredos tecnológicos militares. É certo que, sobretudo na investigação científica fundamental, mas também em muitos outros tipos e domínios de investigação, nomeadamente na maioria das publicações das ciências sociais, continua a prevalecer o regime da ciência como conhecimento público e publicado. Nas últimas décadas, porém, têm sido identificadas tendências de sinal contrário acerca do carácter público da ciência, conduzindo a ambivalências nas relações entre ciência e sociedade (Conceição et al., 2020) ou levando mesmo a uma possível transformação no carácter da ciência pública (Nowotny, 2005; Collins e Evans, 2017).

Por um lado, tem sido fortemente criticada a atual perda acentuada do carácter público do conhecimento científico, pelo menos em exemplos como os acima referidos, mas também de forma mais generalizada. Por outro lado, a noção de ciência aberta tem ganho um novo impulso, com bastante intensidade e com formas e expressões diversificadas (UNESCO, 2021; EC, 2021).

Nessas expressões diversificadas da ciência aberta podem incluir-se, entre várias outras, as atividades de promoção de cultura científica, envolvendo investigadores, instituições científicas e políticas públicas (em Portugal, por exemplo, as atividades Ciência Viva) (Costa et al., 2005). É o caso também dos programas de conhecimento público da ciência (public understanding of science) (Costa, Ávila e Mateus, 2002), de envolvimento público com a ciência (public engagement with science) e de ciência cidadã (citizen science). E é o caso igualmente das publicações científicas de acesso aberto (open access) e das políticas públicas a esse respeito que estão a ser objeto de debate e implementação, nomeadamente na União Europeia (incluindo em Portugal).

Concretamente neste último plano, e em particular no que respeita às revistas científicas, tornou-se um objetivo cada vez mais defendido a generalização efetiva do acesso aberto às revistas e aos artigos nelas publicados. Esse objetivo procura ultrapassar uma situação bastante negativa para a disponibilização pública do conhecimento científico, designadamente dos resultados de investigação científica recente. Com efeito, nas últimas décadas, e apesar do surgimento das possibilidades tecnológicas online (ou, paradoxalmente, talvez também potenciada por elas), a publicação de revistas científicas tinha-se tornado uma atividade económica muito concentrada num pequeno número de grandes editoras internacionais especializadas neste tipo de atividade editorial, publicando algumas delas milhares de revistas científicas em variados domínios. Muitas dessas revistas cobram assinaturas ou compras individuais de artigos bastante onerosas, pagas pelos leitores e por bibliotecas universitárias.

Em contrapartida, surgiram iniciativas variadas na comunidade científica internacional defendendo o acesso aberto. Desde logo, por parte de associações científicas de diversas áreas e de agências científicas nacionais, e de organizações internacionais como a Science Europe (associação de agências científicas de vários países europeus), a Comissão Europeia ou a UNESCO (EC, 2021; UNESCO, 2021; DFG, 2022; Smits e Pells, 2022).

Perante esta dinâmica de promoção do acesso aberto (ou livre) das publicações científicas, as grandes editoras internacionais reagiram de início com um processo que pode ser caracterizado como uma instância do célebre “efeito de Mateus” na ciência (Merton, 1973). Como possuíam nos seus portfólios editoriais as revistas mais bem posicionadas nas principais hierarquias bibliométricas, continuaram a rejeitar o regime de acesso aberto, antes mantendo fundamentalmente o acesso em regime fechado, em geral bastante oneroso, justificando-o com o status elevado dessas revistas no campo científico. Com os recursos obtidos nesse regime, reforçaram por sua vez as suas condições editoriais favoráveis à manutenção desse status elevado. Nesse processo, apostaram num destaque cada vez maior às métricas hierarquizantes (fatores de impacto ou equivalentes) (Brembs, Button e Munafò, 2013; Gingras, 2014; Busch, 2017 [2014]; Mau, 2019 [2017]), usando essas métricas como estratégia de marketing científico e comercial. No conjunto, o processo de concentração foi sendo auto-realimentado.

No entanto, em contraposição, reforçaram-se também na comunidade científica internacional dinâmicas orientadas não só para retomar a concepção de ciência como conhecimento público, mas também para dar novos avanços em defesa da noção de ciência aberta, agora em novas circunstâncias, designadamente no novo contexto digital.

Dando-se conta destas novas dinâmicas de abertura, as grandes editoras científicas estrearam um novo modelo de negócio. Algumas revistas passaram a dar acesso aberto aos leitores, mas em contrapartida passaram a requerer um pagamento aos autores dos artigos. A consequência foi de que os projetos de investigação tiveram que passar a retirar, para esse efeito, uma fração dos seus financiamentos - ou seja, já não para a realização da investigação, mas agora para pagar a publicação dos artigos. Como é evidente, esta solução não agradou aos investigadores, e também não agradou às entidades financiadoras, ou pelo menos a uma parte delas.

Os debates, confrontações e negociações a este respeito conduziram também a uma outra modalidade de revistas, as chamadas revistas híbridas, adotada por algumas das revistas integradas nessas grandes editoras. Neste caso, as revistas publicam artigos em acesso fechado clássico, no entanto propõem aos autores (os que quiserem aderir) a possibilidade de colocarem os seus artigos em acesso aberto, pagando um determinado montante (em geral, alguns milhares de euros). No entanto, nesses casos, mantém-se o mesmo desvio de parte dos financiamentos dos projetos.

Deste modo, no universo atual da publicação científica, encontram-se revistas de acesso fechado, revistas de acesso aberto e revistas híbridas (Fonseca, 2017). É necessário, porém, distinguir dois tipos de revistas de acesso aberto. Por um lado, as revistas que dão acesso aberto aos leitores, mas que cobram aos autores um determinado pagamento (article processing charge) para que os seus artigos possam ser publicados. Por outro lado, as revistas de acesso aberto pleno, que não cobram pagamentos aos leitores nem aos autores, designadas por revistas diamante.

Com o desenvolvimento dos repositórios institucionais de acesso aberto online, como os da rede RCAAP, as políticas de acesso aberto têm vindo a consagrar cada vez mais a chamada “via verde” de acesso aberto aos artigos, por meio da sua deposição e disponibilização (com condições e em versões especificadas) em repositórios institucionais, mesmo que tenham sido publicados em revistas de acesso fechado ou publicados de forma fechada em revistas híbridas. Em paralelo, tem vindo a ser implementada a chamada “via dourada” de acesso aberto aos artigos, concretizada pela sua publicação em revistas de acesso aberto ou pela sua publicação de forma aberta em revistas híbridas.

Com o chamado “Plano S” (e outras iniciativas convergentes), promovido a nível europeu e em alastramento noutros continentes, os investigadores que recebem fundos públicos (nacionais ou europeus) para bolsas e projetos de investigação científica, assumem o compromisso de publicar os resultados em revistas científicas de acesso aberto e em outros suportes de acesso aberto (Smits e Pells, 2022). Fica ainda por esclarecer melhor se sim ou não, ou de que modos e em que prazos, haverá a possibilidade de os investigadores pagarem com fundos públicos a publicação de artigos em revistas híbridas. Em Portugal, a FCT já tinha adotado anos atrás uma política de acesso aberto e anunciou em 2021 que iria implementar o Plano S.

No chamado “modelo diamante de acesso aberto” (diamond open access), promovido atualmente por diversas organizações internacionais relevantes no universo da ciência, a natureza do acesso aberto torna-se ainda mais nítida e completa. Nesse modelo, incluem-se as revistas científicas (e outras plataformas de publicação) que dão acesso aberto aos leitores e não cobram pagamentos aos autores (Bosman et al., 2021). É interessante registar o modo como um documento recente de apresentação do Action Plan for Diamond Open Access caracteriza a constelação atual das revistas cuja prática editorial se compagina com o modelo diamante de acesso aberto:

Diamond Open Access journals represent community-driven, academic-led and -owned publishing initiatives. Serving a fine-grained variety of generally small-scale, multilingual, and multicultural scholarly communities, these journals and platforms embody the concept of bibliodiversity [Zoé et al., 2022: 3]

A revista Sociologia, Problemas e Práticas corresponde muito bem a esta caracterização, e, efetivamente, como se relatou ao longo deste texto, aderiu muito cedo a esta modalidade integral de acesso duplamente aberto - primeiro com os artigos disponibilizados livremente no repositório digital do ISCTE e na plataforma Scielo, depois com a edição direta online pelo CIES-ISCTE em parceria com a Editora Mundos Sociais, em plataforma digital própria de acesso aberto, e, ainda, com a participação da revista na rede RCAAP (Repositórios Científicos de Acesso Aberto de Portugal) e na plataforma OpenEdition Journals. A cobrança aos autores de pagamentos dos artigos esteve sempre fora de causa.

Finalmente, outro conjunto de questões relevantes para a publicação científica atual, perante as quais a revista Sociologia, Problemas e Práticas se tem vindo a posicionar, reporta-se à avaliação dos artigos por pares (peer review) e ao movimento em curso de diversificação das plataformas de publicação científica - questões, aliás, que têm conexões entre si.

Em certo sentido, a avaliação por pares tornou-se um elemento decisivo de credibilização científica dos artigos publicados pelas revistas científicas. A avaliação por pares consiste, no essencial, na apreciação e comentário dos artigos por outros investigadores, conhecedores dos domínios, temas e abordagens em causa. Atualmente as revistas científicas, na sua prática editorial habitual, pedem pareceres prévios deste tipo sobre artigos propostos para publicação. Os pareceres permitem dar conta da maior ou menor qualidade científica dos artigos, estabelecem debate científico fundamentado e muitas vezes dão sugestões para o aperfeiçoamento dos artigos. Fazem parte de um dispositivo fundamental da dinâmica científica: o debate crítico e o escrutínio cruzado entre investigadores, sobre os processos de investigação e sobre os resultados de conhecimento obtidos.

No entanto, a avaliação por pares tem sido também objeto de controvérsia (Horbach e Halffman, 2018; Thomas, 2018). Com efeito, têm sido identificados problemas de falta de isenção ou preconceito em determinados casos. Nos casos mais graves (e, em geral, raros), pode haver tentativas, por parte de algum avaliador, de aproveitamento ilegítimo em benefício próprio de resultados apresentados por um artigo por ele não aprovado ou ainda não publicado. Noutros casos, mais comuns, alguns avaliadores podem assumir, de forma explícita ou implícita, atitudes avaliativas de carácter unilateral, ou enviesado, confundindo preferências próprias teóricas e/ou metodológicas com qualidade científica dos artigos - qualidade essa que é suscetível de ser alcançada recorrendo a uma pluralidade de perspetivas, teorias e métodos disponíveis e aceites no campo científico.

Outros problemas da avaliação por pares colocam-se num plano mais processual. A maior dificuldade consiste na disponibilidade de avaliadores. A expansão crescente da investigação e a intensificação da publicação científica, em particular de artigos em revistas científicas, têm conduzido à multiplicação das propostas de artigos que chegam às revistas, aumentando também por isso a solicitação de pareceres a avaliadores. Neste contexto, alguns investigadores, mantendo a sua disponibilidade para a avaliação de artigos, restringem compreensivelmente o número de pareceres que se dispõem a elaborar. Alguns outros, de forma menos aceitável, rejeitam pura e simplesmente elaborar pareceres de avaliação de artigos, o que prejudica o processo científico e não corresponde à reciprocidade alargada inerente à dinâmica da comunidade científica (na verdade, eles beneficiam dos pareceres de outros colegas sobre as suas próprias publicações). Acresce, ainda, um problema conexo, a habitual lentidão do processo. A avaliação por pares envolve várias etapas: localização de avaliadores para cada artigo; convite à avaliação; possível escolha de outros avaliadores, quando alguns dos inicialmente convidados não aceitam; tempo de resposta dos avaliadores; possíveis várias rondas de avaliação e reelaboração dos artigos, quando são sugeridas alterações ao manuscrito. Tudo isto conduz a um processo longo.

Estes e outros problemas têm levado à experimentação de novas modalidades de avaliação por pares e de novas modalidades de publicação científica. Nos primeiros tempos de publicação de revistas científicas, a avaliação por pares era conduzida basicamente por um pequeno grupo de cientistas responsáveis diretos por cada periódico, alargando-se gradualmente a outros membros de sociedades científicas promotoras de revistas científicas (Fyfe, McDougall-Waters e Moxham, 2015). Só no século XIX algumas revistas começaram a solicitar pareceres a cientistas externos de determinadas áreas e especialidades. As modalidades atualmente mais usadas só surgiram, e foram sendo progressivamente disseminadas, na segunda metade do século XX, e com as terminologias com que agora são conhecidas: avaliação por pares (peer review), avaliação de anonimato simples (single-blind) (em que os autores não ficam a saber quem foram os avaliadores) e a avaliação de duplo anonimato (double-blind) (em que os avaliadores não sabem quem são os autores dos artigos em avaliação e estes não sabem quem são os avaliadores).

Perante alguns problemas como os atrás referidos, têm sido experimentadas recentemente novas modalidades de publicação científica e avaliação por pares (Hunter, 2015; Horbach e Halffman, 2018). Uma dessas modalidades são as plataformas científicas de arquivo online de artigos pré-publicados (preprint archives) e em que os artigos são avaliados por pares após a publicação (post-publication peer review). Consegue-se assim disponibilizar publicamente de maneira rápida alguns resultados de investigação, embora preliminares. Os artigos são depois avaliados por membros da comunidade científica, nomeadamente nessas mesmas plataformas, e os autores vão aperfeiçoando os conteúdos em diálogo com esses interlocutores, podendo vir a publicar mais tarde versões definitivas, validadas e consolidadas.

Outras modalidades de publicação científica têm algumas características semelhantes à anterior, por exemplo as séries de working papers de acesso aberto online, sem avaliação por pares ou com processos de avaliação menos pesados, particularmente apropriados à difusão rápida de resultados preliminares de projetos de investigação em progresso. Uma outra modalidade é a das novas publicações científicas (revistas ou arquivos) que recorrem a pareceres focados exclusivamente em questões de rigor científico, deixando de lado outras questões, como as de relevância ou de originalidade. Há ainda, na vertente mais negativa e antiética, as chamadas “revistas predatórias” que, de maneira mais ou menos dissimulada, se dedicam à angariação de artigos garantindo à partida a sua publicação em troca de determinados pagamentos.

As novas modalidades de publicação científica têm vindo a recorrer às potencialidades das tecnologias digitais e procuram dar contributos inovadores em resposta a um conjunto de problemas e controvérsias, nomeadamente quanto à crescente produção científica, quanto à necessidade de disponibilização rápida de resultados de investigação, quanto à concentração da publicação científica em revistas de grandes editoras comerciais, quanto a dúvidas e dificuldades da avaliação por pares e, ainda, quanto à generalização do acesso aberto na publicação científica.

Essas novas modalidades de publicação científica têm também as suas próprias fragilidades e limitações (Horbach e Halffman, 2018). Em todo o caso, passaram a fazer parte de uma constelação alargada de meios de publicação científica, constelação essa em que se incluem também os livros científicos (com particular importância nas ciências sociais e humanas) e no centro da qual continuam a figurar as revistas científicas - sendo que elas estão também a atravessar processos específicos de reconfiguração e reposicionamento.

Neste panorama movente, quais são as perspetivas da revista Sociologia, Problemas e Práticas? Um dado relevante a considerar é, sem dúvida, a própria continuidade e experiência acumulada que estes 100 números ilustram. Outro dado importante consiste na dinâmica atual, presente na comunidade científica internacional, de reforço do acesso aberto na publicação científica - ao qual esta revista aderiu muito cedo. Em particular, é promissor que o modelo de acesso aberto das agora designadas revistas diamante (diamond open access journals), modelo que corresponde plenamente ao perfil e à prática da revista, pareça ser cada vez mais valorizado.

Dois dados de situação tão importantes como estes não poderão deixar de ser tidos em conta pela revista Sociologia, Problemas e Práticas no equacionamento dos seus futuros contributos para a publicação científica no campo da sociologia e, de forma mais geral, no campo das ciências sociais. Esses contributos próprios da Sociologia, Problemas e Práticas assentam, desde logo, na conjugação equilibrada de dois objetivos: por um lado, o de ampliar a internacionalização da revista, em especial com grande abertura à publicação de artigos de autores de várias partes do mundo; e, por outro lado, o de garantir a publicação de artigos que vão alargando o conhecimento de múltiplos aspetos da sociedade portuguesa e suas transformações.

Nessas duas vertentes, e no conjunto da sua atividade editorial, a revista Sociologia, Problemas e Práticas pode certamente apoiar-se na sua matriz editorial, procurando sempre atualização e aperfeiçoamento. No essencial, uma matriz editorial vocacionada para a publicação científica na área da sociologia e de outras ciências sociais, com grande abertura a perspetivas interdisciplinares, adotando sempre como princípio-base o pluralismo teórico, metodológico e temático, e tendo como critérios fundamentais na seleção dos artigos a qualidade científica, a relevância social e o avanço do conhecimento.

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1 Nas análises sociológicas sobre a ciência em geral (e sobre as várias ciências em particular), o conceito de “campo científico” tem sido utilizado em sentidos parcialmente diversos, embora com bastantes sobreposições entre si. Ao mesmo tempo, várias análises sociológicas sobre o tema recorrem a terminologias diferentes desta para dar conta de conteúdos semelhantes ou aproximados. Nesta situação, corre-se o risco de o discurso se tornar obscuro e de a argumentação se tornar mais terminologicamente emblemática do que analiticamente substantiva e produtivamente cognitiva. Para evitar esse risco, utiliza-se aqui o conceito de campo científico numa aceção ampla, e não apenas em sentido restrito ou emblemático, e recorre-se também a uma constelação semântica de outros conceitos confluentes e complementares. Esta abordagem permite tomar em consideração um conjunto articulado de dimensões integrantes da constituição social da ciência: como uma instituição distinta cujo objetivo, e produto principal, é a obtenção de “conhecimento” validado (Ziman, 2000); como “esfera social” ou “instituição” diferenciada visando a produção e avanço de conhecimento científico, com estrutura normativa peculiar e padrões institucionalizados de avaliação e reconhecimento próprios (Merton, 1973); como “comunidade científica”, cujos membros estabelecem entre si colaboração cognitiva, reciprocidade alargada e pertença partilhada (Hagstrom, 1965); como “campo científico”, entendido em sentido restrito como campo social especializado relativamente autónomo, estruturado por relações assimétricas de poder e competição na disputa de “capital científico”, um tipo específico de capital simbólico (Bourdieu, 2001); como “campos científicos” diversificados em termos intelectuais e organizacionais, variáveis quanto ao grau de dependência mútua entre cientistas e quanto ao grau de incerteza das suas atividades de investigação (Whitley, 2000); como “práticas sociais específicas”, concretizadas no “trabalho das ciências” (Pinto, 2007). Estas dimensões sociais são transponíveis, de maneira direta ou indireta, para a análise das revistas científicas, dos seus contextos e dos seus desenvolvimentos.

2No mesmo ano, 1665, tinha sido lançada também a publicação Le Journal des sçavans (depois Journal des savants), em França, comumperfil menos nítido,ummisto de gazeta literária, boletim científico e notícias de/sobre personalidades, tendo sido interrompida e retomada por diversas vezes (Vittu, 2019).

3Na altura, a entidade principal com esta função era a Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica (JNICT), a que se sucedeu,em1997, a Fundação para a CiênciaeaTecnologia (FCT), agregando não apenas o apoio financeiro público à ciência, mas também funções de avaliação e certificação da qualidade científica.

Recebido: 28 de Março de 2022; Aceito: 28 de Junho de 2022

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