Introdução
Neste artigo será feita uma análise exploratória sobre a emergência de valores ligados à orientação da administração cultural, uma das quatro áreas de prática cultural tidas como fundamentais no projeto Uncharted - Understanding, Capturing and Fostering the Societal Value of Culture.1 Para tal, foram examinados os valores das políticas culturais europeias, abordando um conjunto de estudos de caso correspondentes a um total de 12 administrações nacionais, regionais e locais. Tal análise visa identificar a pluralidade normativa, mas também as tensões existentes no seio das administrações culturais da União Europeia (UE). A este respeito, procuramos problematizar a hipótese, amplamente glosada na literatura, segundo a qual, enquanto os modelos europeus centrais e nórdicos de políticas culturais se centram nos valores intrínsecos relacionados com a cultura (em que esta surge como fim em si mesma), os liberais dão prioridade instrumental à excelência artística e aos resultados económicos (Chartrand e McCaughey, 1989; Zimmer e Toepler, 1999; Wesner, 2010). Na verdade, embora muitos autores tenham abordado a forma como os valores específicos da cultura, incluindo os categorizados como intrínsecos e instrumentais, são tipicamente associados a estes modelos, falta-nos a avaliação empírica relativa a tais reivindicações teóricas e a análise de como se relacionam com as configurações da organização do estado.
Os múltiplos valores podem servir de fundamento a orientações estratégicas, alicerçando ou legitimando as políticas culturais, incluindo os valores estéticos, sociais, económicos e institucionais da cultura (Bennett, 1995; Gray, 2007; Hadley e Gray, 2017; O’Brien, 2014; Throsby, 2010). Estes diferentes quadros, que foram concebidos como valores intrínsecos ou instrumentais (Holden, 2004; Liu, 2016), estão incorporados em discursos e processos de valorização, filosofias de ação e objetivos de políticas culturais. Recentemente identificou-se o predomínio de valores instrumentais no âmbito de políticas culturais orientadas para o mercado em todos os estados nacionais da UE, embora em graus variáveis (Alexander e Gilbert, 2020), em particular ligados ao modelo neoliberal, com implicações na valorização primordial dos ganhos económicos. Ao mesmo tempo, foi questionada uma trajetória unidirecional destas políticas no âmbito das administrações culturais (Dedieu et al., 2020), notando-se a existência de modelos híbridos.
Tendo em conta esta complexidade, utilizámos uma diversidade de critérios para selecionar estudos de caso. Em primeiro lugar, os critérios dos diferentes modelos de políticas culturais que refletem uma pluralidade de regimes políticos, desde países social-democratas a experiências iliberais (Vestheim, 2009; Mulcahy e Wyszomirski, 1995; Bonet e Zamorano, 2020). Em segundo lugar, as diversas orientações políticas dentro desses modelos, por exemplo, as abordagens criativas ou empreendedoras, ou as conceções comuns de participação cultural (Bonet e Négrier, 2018). Em terceiro lugar, os níveis de governo. Os nossos 12 estudos incluem ministérios da Cultura, governos regionais e municipalidades.2 Esta seleção configura uma vasta pluralidade de orientações de valor e abordagens às políticas culturais a partir dos pontos de vista dos atores, dinâmica institucional e enquadramento político-ideológico.
Deste modo, exercitamos o olhar comparativo, evitando repetição de visões essencialistas sobre os processos de valoração no domínio da cultura (Lamont e Thévenot, 2000), procurando detetar: (i) similitudes transversais aos casos e mesmo aos contextos nacionais; (ii) singularidades e configurações específicas; (iii) tensões entre casos e dentro de cada um.
Neste artigo focar-nos-emos apenas nos quatro casos ibéricos analisados - a Câmara Municipal de Bragança, a Câmara Municipal de Barcelona,3 a Junta da Galiza4 e o Ministério da Cultura de Portugal. Abordamos as políticas culturais correspondentes aos últimos dez anos (2011-21). Apesar de não ilustrarem diferenças quanto ao nível macro dos modelos de política cultural, configuram orientações político-ideológicas plurais e distintos níveis territoriais (local, regional, nacional), caracterizando-se por diferentes interpretações e trajetórias específicas em relação ao modelo europeu central de políticas culturais, incluindo aspetos como o nível de descentralização e o investimento público (Rubio Arostegui e Rius-Ulldemolins, 2020).
Barcelona é um dos epicentros culturais do Mediterrâneo, contando com um vigoroso setor criativo, estando inscrita numa região de forte movimento nacionalista. Em segundo lugar, a Galiza é uma entidade regional com um património cultural denso, valorizado simbolicamente, mas com menor poder industrial e de serviços. Também compartilha o caráter nacional da cultura e uma língua própria. Em terceiro lugar, o Ministério da Cultura português representa uma organização estatal, que foi concebida à semelhança do modelo francês a partir de uma conceção centralizadora. Bragança, uma cidade com 35 mil habitantes, é um espaço urbano interior com um património cultural pujante, que molda o seu campo cultural dinâmico. Ainda assim, possui políticas culturais menos institucionalizadas quando comparadas com cidades como Lisboa e o Porto.
Metodologia
Os quatro casos ibéricos foram investigados aprofundadamente em dois níveis de análise (análise documental e trabalho de terreno) mobilizando duas estratégias metodológicas para o seu exame. Por um lado, desenvolvemos uma extensa pesquisa documental das administrações culturais a diferentes níveis territoriais dos dois países (Espanha e Portugal). Foram consultados documentos recentes (2011-21) de planeamento cultural, relatórios de atividades, informação cultural, legislação e relatórios orçamentais. Por outro lado, utilizámos a pesquisa de campo para recolher dados adicionais sobre os quatro estudos de caso ibéricos. Realizámos várias entrevistas semiestruturadas e mobilizámos grupos focais com atores relevantes.5 Ambas as estratégias metodológicas se centraram na ação política atual (2020-21) tendo como pano de fundo desenvolvimentos e contextos históricos - particularmente marcados pelos efeitos das crises pós-2008 e da Covid-19.
Procedeu-se, então, a uma análise intensiva, de cariz qualitativo, em cada um destes quatro casos, considerando as dimensões políticas, as responsabilidades de cada instituição, as suas políticas culturais e os instrumentos usados para a aplicação dessas políticas.
Com base na análise de conteúdo, os valores identificados foram resgatados dos eixos estratégicos das políticas culturais de cada um dos casos de estudo. A programação cultural e o acesso à cultura, a participação comunitária e a cidadania, a identidade e o património constituem o núcleo duro observado transversalmente nos casos de estudo.
Assim, na caracterização dos valores observados nas políticas culturais dos quatro casos ibéricos encontramos já algumas pistas para as tensões que, doravante, iremos analisar.
Valores identificados para os quatro casos ibéricos
Esta secção analisa os quatro casos ibéricos de políticas culturais descritos anteriormente. Considerando as perspetivas de diferentes atores que participam do processo político e uma pluralidade de práticas administrativas e políticas, não apenas documentos de políticas ou orçamentos, mas também a produção de programas de políticas ou orientações gerais, aqui identificaremos os valores predominantes e resumiremos as tensões de valores que surgem nesses casos. Na verdade, os quatro contextos ibéricos representam certas singularidades territoriais e de modelo de organização do estado.
No que diz respeito às semelhanças gerais entre Portugal e Espanha, dois fatores devem ser destacados. Por um lado, ambos os países compartilham a institucionalização tardia dos seus sistemas de política cultural em busca de padrões europeus após longas ditaduras encerradas na década de 70. Por outro lado, os dois paísess sofreram reduções no seu ritmo de “convergência europeia” após a crise de 2008 (Rubio Arostegui e Rius-Ulldemolins, 2020). No entanto, os dois casos também apresentam inúmeras diferenças e contribuições diferenciadas para a análise comparativa. Em primeiro lugar, apesar de ambos os países partilharem um investimento nacional limitado em serviços culturais (menos de 1% do total das despesas das administrações públicas para 2020, segundo dados do Eurostat, 2022), ele é mais robusto em Espanha. Em segundo lugar, as nações são muito diferentes em termos de diversidade cultural interna e de nível de descentralização das políticas culturais.
Embora ultimamente ambos os países estudados tenham adotado o modelo de política cultural da Europa Central e demonstrem uma inclinação para a delegação de poderes nas autoridades regionais e locais, o papel e a natureza dessas unidades administrativas diferem significativamente (Garcia et al., 2018; Rius-Ulldemolins e Zamorano, 2015). Em particular, a descentralização começou mais cedo e é maior em Espanha (Rodríguez Morató e Zamorano, 2018). Em terceiro lugar, podemos mencionar variações relevantes em termos de coordenação da política cultural, que é mais fraca em Espanha, dada a dispersão de formas de autogoverno (as autonomias e os municípios). Para compreender este facto, consideraremos a posição central do Ministério da Cultura em Portugal, a orientação das políticas culturais desenvolvidas pelas autonomias espanholas ou a articulação limitada do seu sistema quase federal. Finalmente, o consumo e a participação cultural são mais robustos em Espanha do que em Portugal.
A nossa análise revela quatro configurações específicas de valores, conforme mostrado no quadro 1. Partindo da análise de conteúdo aplicada tanto a documentos institucionais como a entrevistas com intervenientes relevantes, os valores-chave foram categorizados em primários e secundários, com base na sua frequência. Estes esquemas de priorização de valores permanecem parcialmente explicados pela diferenciação acima descrita entre os enquadramentos de valores sociais e económicos dominantes e as suas formas de associação com modelos históricos de política cultural.
Tensões entre valores nas políticas culturais
Tensões entre valores nas políticas culturais da Câmara Municipal de Bragança
Foram identificadas tensões na relação do executivo da Câmara Municipal (PSD - Partido Social-Democrata)6 com dois tipos de atores. Em primeiro lugar, os dois vereadores eleitos pela oposição (PS - Partido Socialista)7 afirmaram que a sua participação nas políticas culturais é muito restrita e limitada:
Os vereadores do PS não têm qualquer atribuição municipal específica, nomeadamente na área cultural. A sua participação, em regra, restringe-se à presença nos eventos realizados e na formação de decisão colegiada final nas sessões municipais; não existe participação no processo decisório. A posição e o funcionamento político-partidário do PS, por uma ordem específica de razões, e da maioria do executivo municipal do PSD (de caráter centralizador e excludente), não nos permite ter uma apreensão, compreensão e participação na definição, planeamento e implementação de políticas culturais municipais.
No entanto, o último processo eleitoral, de 2017, foi referido como não relevante em questões de debate de política cultural, segundo um agente cultural local:
Não estou ciente de que, na última campanha eleitoral, existissem linhas significativamente opostas de política cultural que provocassem discussão/debate relevante. [Associação A - grupo focal, 24/05/2021].
A segunda fonte de tensões diz respeito às associações. Existe, é certo, um consenso entre as três associações entrevistadas sobre a disponibilidade do município para apoiar as suas atividades (a associação B diz que “há um interesse e um esforço [sobre a cultura], e há respostas às nossas propostas”, e a associação C afirma: “Nunca recebi um não do município” [grupo focal, 24/05/2021]). Contudo, sobre o valor da programação cultural e a crescente participação cultural, é referida a falta de um canal de comunicação: “Porque não abrir editais de projetos, com dotação financeira adequada, como forma de responsabilizar e valorizar o movimento associativo? As políticas de apoio ao movimento associativo devem valorizar e exigir responsabilização em partes iguais.” [Associação A - grupo focal, 24/05/2021]). Outra opinião consensual, já em contraponto com a política autárquica, defende a valorização das associações locais: “Os artistas de fora do município são pagos, os locais são sempre tratados como voluntários.” [Associações B e C; grupo focal, 24/05/2021]. “O voluntariado tem os seus contornos definidos, mas não pode ser sinónimo de exploração.” [Associação C - grupo focal, 24/05/2021].
Ao abordar o papel das empresas culturais na organização de eventos municipais é comum a opinião de que os grandes montantes de fundos pagos às empresas não significam um verdadeiro investimento na cultura: a organização desses eventos poderia ser participada por associações, que trabalham sempre pro bono. Por último, relativamente à situação da Covid-19, os participantes (profissionais de nível superior) destacaram a necessidade de apoiar a recuperação dos setores mais afetados, nomeadamente as artes do espetáculo e a necessidade de voltar a mobilizar os públicos.
Tensões entre valores nas políticas culturais da Câmara Municipal de Barcelona
Durante 2016, o novo governo da cidade apresentou uma clara valorização social das políticas culturais, o que permitiu diferenciar os seus postulados em relação aos da “cidade criativa” (Ajuntament de Barcelona, 2016), voltada para a competição global e mercantilizada da cultura. Embora a dialética entre valores sociais e económicos tenha sido vista como uma “falsa dicotomia” [conselheiro 2, 12/03/2021], essa oposição de valores tem desempenhado um papel crítico discursivo e estratégico dentro das estratégias políticas municipais, servindo como base de intensas disputas políticas entre a Câmara Municipal e outros atores políticos. Tal pode ser encarado como parte da dinâmica do equilíbrio de poder [político 2, 13/04/2021; político 4, 15/04/2021]. Assim, essa disputa de valores gerou um modelo de governança específico, através de uma coligação entre Barcelona em Comum (BeC)8 e Partido dos Socialistas da Catalunha (PSC),9 aproximando a área cultural da área educacional e do turismo.10
As seguintes posições do BeC e do PSC sobre a dimensão territorial das políticas culturais ilustram essa nova orientação contrária aos ditames da economia criativa: “o problema que eu mais vejo é que se levanta um discurso muito hegemónico de ‘Barcelona ainda tem de ser como a vitrina da capital mediterrânica, da grande cidade com base na sua criatividade…’ Nesse discurso, a proximidade é sempre entendida enquanto motor de novos públicos. O ator que está no território nunca entra como sujeito com capacidade de agência. Ele sempre entra como um espectador que tem de ter acesso à cultura.” [Profissional de nível superior, BeC 2, 22/03/2021] “O papel de uma biblioteca, o papel de um centro cívico, não é de uma organização baseada em propósitos e isolada. Essencialmente, trata-se de gestão do conhecimento; significa que o conhecimento, que é criado ou desenvolvido, acaba por ser a base que alimenta a biblioteca de novos conteúdos. É justamente uma poderosa política cultural e editorial que alimenta uma biblioteca de conteúdo ou um centro cívico de imaginários. Porque eles devem absorver o que acontece na realidade.” [Político 4, PSC, 15/04/2021].
Muitos outros valores e tensões entre políticas e valores enquadram-se na dinâmica antagónica acima referida, opondo entendimentos políticos de cima para baixo (democratização cultural) a outros, de baixo para cima (democracia cultural), estes últimos enfatizando a participação cidadã na política cultural (Lopes, 2007). Além disso, foram destacadas tensões entre exigências setoriais/artísticas versus exigências sociais ou ainda exigências setoriais versus novos projetos governamentais para a Educação e Cultura (ou seja, rejeição de novos programas artísticos nacionais por conservatórios de música da cidade). Mudanças na concessão de apoios, ainda mais alinhados com valores de igualdade de oportunidades, transparência e justiça social, estão a aumentar as tensões com alguns setores da cultura, relacionados tanto com dinâmicas anteriores de clientelismo, quanto com entendimentos opostos dos critérios básicos da sua atribuição [grupo focal, 04/06/2021].
Certas tensões, ainda, dizem respeito, principalmente, a embates sobre a filosofia dos quadros de avaliação, entre uma perspetiva que exalta os indicadores quantitativos de desempenho (muitas vezes relacionados com a produtividade económica ou o nível de audiências), contra outra que enaltece os valores focados na qualidade estética ou inovação. Nessa linha, é essencial destacar que as macrotensões acima mencionadas entre os enquadramentos de valor também foram identificadas dentro dos processos de microvalorização patentes na gestão quotidiana. Os exemplos incluem tensões manifestadas entre elitismo estético ou qualidade, por um lado, e exigência pública de indicadores de desempenho social nos equipamentos culturais, processos de concessão de apoios ou seleção de candidaturas, por outro [especialista em grant making 1, especialistas 1 e 2, grupo focal, 04/06/2021]. Além disso, as tensões e as associações entre valores têm sido associadas a tentativas de abandono da instrumentalização da excelência artística ou do “hype” como recurso de branding [profissional de nível superior 2, 22/03/2021].
Tensões entre valores nas políticas culturais da Junta da Galiza
Duas tensões centrais de valores foram identificadas nas políticas culturais galegas. Por um lado, observa-se um confronto entre um núcleo de valores disseminados nas práticas economicistas (a cultura é encarada como um meio para alcançar valor económico, imagem turística, etc.) e nos discursos dos órgãos de poder (a cultura é fonte de identidade e inclusão) face a outros, mais sociais e participativos (foco no desenvolvimento local, participação na sustentabilidade cultural, diversidade e igualdade). Por outro lado, identifica-se uma segunda tensão relativa aos valores e processos de valoração em torno da língua galega, fator chave de enquadramento da identidade nacional e do autogoverno (Villares, 2022).
Em relação à primeira tensão atores políticos das forças de oposição11 ao atual governo (2022) do Partido Popular de Galiza12 (PP de G) realçam alguns défices específicos. Por exemplo, sugere-se:
A necessidade de uma melhor articulação entre as políticas culturais e educacionais … além de considerar a participação cultural dos cidadãos, indo além da abordagem do público para integrar várias formas de intervenção, como práticas comunitárias ou a promoção da participação na conceção e elaboração de políticas. [Político 6, abril de 2021]
Considera-se também uma prioridade, “numa sociedade eminentemente rural, que sejam implementadas políticas culturais desenhadas para o rural” [político 6, abril de 2021].
Outro elemento crucial que impulsiona as tensões de valor nas políticas culturais galegas diz respeito ao seu papel constitutivo na promoção da língua galega. Constatou-se, segundo alguns atores, que a cultura autonómica e, sobretudo, a língua galega, vive uma situação de dominação, substituição e retrocesso (Xunta de Galicia, 2015) [político 7, maio de 2021].
Neste cenário, identificam-se duas visões principais sobre a cultura autonómica e a língua galega: uma que privilegia o valor em si mesmo da promoção linguística e outra que lhe confere um caráter instrumental (Volkova, 2019). Os atores realçam este fator como um “campo de batalha” onde é necessário operar, uma vez que constitui um dos objetivos matriciais da política cultural. Da sua resolução em termos de relação de forças resultará (ou não) uma orientação ativa de ação afirmativa ou de apoio específico à produção cultural e ao desenvolvimento cultural galego. Para alguns, esse processo envolve mesmo uma tentativa estratégica do governo para reduzir a presença galega na esfera pública:
As atuais políticas culturais da Junta, a partir de 2009, visam reduzir o número de falantes de galego, ou seja, absolutamente o contrário do que deveria ser… o uso do galego não é promovido, e isso é algo totalmente planeado e estratégico. [Político 3, abril de 2021].
Outras tensões de valor dizem respeito à ausência de uma política cultural ativa e estratégica. Assim, diferentes atores sublinham a necessidade de desenhar uma ação de longo prazo baseada num bom diagnóstico, planeamento, monitorização e avaliação e, por sua vez, maior cooperação interinstitucional.
Na única coisa que pode haver algum planeamento, e acho que esse é um dos grandes problemas da cultura galega, é em torno do Caminho de Santiago e do Xacobeo…13 um paradigma ou uma metáfora do que é a política cultural para o governo: autopromoção, propaganda institucional, espetacularização, grandes eventos, etc. [Político 3, abril de 2021]
No entendimento dos atores artísticos, a falta de planeamento e de esforços colaborativos na governança da política cultural faz parte do modelo de política autonómica [grupo focal, maio de 2021]. Essa conceção combina a intervenção direta, visando a instrumentalização política e clientelista, com serviços públicos fracos, voltados para a mera democratização da criação e do consumo. Sugerem que os vários défices de coordenação, cooperação e consenso aliados à competição política entre os diferentes partidos políticos galegos podem ter como resultado um considerável desperdício de esforços, recursos económicos e humanos, algo que tem desgastado o sistema de política cultural (Lage, Losada e Gómez, 2012). Tal diagnóstico de políticas culturais fragmentárias do PP e da prevalência de discursos com valores contraditórios pode opor-se ao programa recentemente articulado pelo Conselho da Cultura Galega (Consello da Cultura Galega, 2021)14 e pela oposição de esquerda, através da memória da experiência do governo de coligação entre Partido Socialista da Galiza (PS de G) e o Bloco Nacionalista Galego, BNG (2005-2009).15
Tensões e associações entre valores nas políticas do Ministério da Cultura português
Nas estruturas do ministério verifica-se uma grande coincidência entre a escassez de recursos humanos e a falta de capacidade ou autonomia para o recrutamento [profissionais de nível superior 1, 2 e 3, 01/06/2021; profissionais de nível superior 4 e 5; grupo focal, 19/05/2021]. Assim, as organizações da administração pública têm dificuldades em renovar o pessoal e faltam técnicos em algumas áreas específicas. Os Planos Nacionais das Artes e da Leitura sofrem com a falta de artistas profissionais como mediadores da leitura e das atividades artísticas. Um dos motivos apontados é a inexistência de “uma secretária-geral do Ministério da Cultura, então todas as ações são mais demoradas para execução em termos de tramitação” [profissional de nível superior 3, 01/06/2021]. Em relação aos recursos, “a fragilidade do conceito de literacia” manifesta-se de várias maneiras, nomeadamente através da “cultura predominante do entretenimento” [grupo focal, 19/05/2021].
Quanto à literacia cinematográfica, o entrave é a disponibilização legal de mais filmes às escolas, o que dificulta a resposta a projetos específicos nessas organizações [profissional de nível superior 6, grupo focal, 19/05/2021]. Sobre a articulação do ministério e seus atores no campo associativo, ambas as associações entrevistadas têm experiências frutíferas. A associação A, em colaboração com a Direção-Geral das Artes (DGArtes), poderá vir a estabelecer duas linhas de financiamento para apoiar os artistas com deficiência e serviços de acessibilidade (língua gestual e audiodescrição) em eventos culturais; participou também na discussão do estatuto dos profissionais da cultura (no entanto, a relação com a Direção-Geral do Património Cultural (DGPC) não é tão fácil) [associação A, grupo focal, 26/05/2021]. Para a associação B, pelo contrário, “o problema inicial foi que o ministério não nos reconheceu como parceiros […] e agora há uma abertura para nos conhecer. Somos agentes culturais, como qualquer diretor de teatro ou museu, a diferença é que temos bar e catering como atividades relacionadas.” [Associação B, grupo focal, 26/05/2021). Outras dificuldades residem em divergências de perspetivas sobre a própria noção de cultura. A associação A pensa que a visão da cultura nas políticas públicas não ultrapassa a ideia de lazer, sendo entendida da mesma forma em outras áreas (nomeadamente, no grupo de trabalho sobre a integração de migrantes e refugiados, e no Plano de Integração de Pessoas com Deficiência). A associação B fala da necessidade de redefinir o valor da cultura para além de museus, patrimónios ou grandes edifícios, valorizando também talentos locais, artistas de rua e artesanato: “Nós [programadores de música ao vivo] somos conhecidos como ‘espaços alternativos’ mesmo depois de 20 anos de trabalho! Somos espaços intermédios […] Entre o preto e o branco existem nove tons de cinzento. Entre essas tonalidades está o grande valor da cultura.” Para esta associação, o que falta é a consolidação de verbas para programação cultural no setor de espetáculo ao vivo [associação B, grupo focal, 26/05/2021]. A associação A também aponta para a necessidade de ampliar o conceito de acesso, o que nem sempre passa pelo investimento, antes por uma mudança de representações, gerando inclusão. Refere, ainda, que “não se cumpre a lei da acessibilidade, nem em novos espaços cujos projetos avancem sem que este requisito seja cumprido” [associação A, grupo focal, 26/05/2021].
Um grande desafio tem sido a pandemia de Covid-19. O Plano Nacional de Leitura sofreu com a escassez de recursos digitais nas escolas o que, juntamente com a reconhecida insuficiência dos níveis de escolaridade das famílias, levou a uma diminuição dos níveis de literacia dos alunos [profissional de nível superior 5, grupo focal, 19/05/2021]. No entanto, para os três planos em curso (Plano Nacional da Leitura; Plano Nacional das Artes e Plano Nacional de Cinema), constatou-se uma afirmação consensual sobre a oportunidade de desenvolver recursos digitais (e, no Plano das Artes, também a formação online para professores) [profissionais de nível superior 4, 5 e 6, grupo focal, 19/05/2021; profissionais de nível superior 1 e 2, 01/06/2021]. A perspetiva das associações aponta algumas lacunas estruturais nas políticas culturais, não surpreendentemente relacionadas com o estatuto laboral dos artistas (a associação A diz: “Nos espaços culturais, as pessoas foram descartadas.” No entanto, a associação B acrescenta: “Do lado dos artistas há também trabalho a fazer, na relação com os serviços nacionais de Segurança Social e Finanças.”). A associação A aponta ainda algumas fragilidades no cumprimento da missão das instituições, nomeadamente os museus: “Com a pandemia muitos museus sentiram-se muito à vontade com o turismo, mas esqueceram a comunidade local” [associações A e B, grupo focal, 26/05/2021]. (quadro 2)
Interpretação dos valores predominantes
A forma como os valores sociais e económicos da cultura são interpretados, internamente equilibrados com outros valores culturais, mais de cariz intrínseco, e operacionalizados em cada caso, difere significativamente. Os casos das Câmaras Municipais de Barcelona e Bragança nos anos estudados (2011-21), apesar das suas orientações políticas contrastantes (esquerda e centro-direita), compartilham o desenvolvimento de sistemas de política cultural robustos com intervenção dinâmica. Como parte das suas políticas, supõe-se que os objetivos da democracia cultural e da democratização cultural sejam alcançados por meio da educação artística e cultural e da participação social, sem se focarem nos mecanismos de marketing da cidade criativa. Tais valores concretizam-se através da ênfase na transversalidade da cultura no seio de outras políticas e domínios sociais, como a ciência, a educação ou o turismo, como se nota muito enfaticamente no caso de Barcelona.
As diferenças na compreensão da participação social e setorial são ilustradas em formas manifestas de participação de baixo para cima, que podem ser definidas como mais tradicionais no caso de Bragança (Santos e Baltazar, 2016), procurando ser mais autogestionárias e centradas em Barcelona. Na cidade portuguesa, a governação horizontal é maioritariamente canalizada através de redes associativas setoriais. A proximidade com os atores, necessidades e problemas locais é observada na urbe, onde os valores do património ou das redes locais e internacionais e da economia cultural são particularmente explicados pela sua capacidade de apoiar o desenvolvimento local. Em vez disso, na capital catalã, os grupos-alvo são cada vez mais diversificados, paritários (com forte representação de mulheres no Conselho Local), procurando envolver-se na conceção e implementação de políticas descentralizadas.
Analisar as necessidades e opiniões dos atores permitiu-nos compreender melhor as relações entre valor e operação de valor dentro dessas dinâmicas de governança. Em Barcelona, os valores dos direitos culturais, da educação e da participação são operacionalizados por meio de projetos locais que procuram “integrar-se” em equipamentos tradicionais de alta cultura, levando as suas atividades para a periferia da cidade. Essa estratégia redistributiva convive com políticas e valores mais orientados para o mercado (encabeçados pela área do PSC), enquadrando setores produtivos fortes e internacionalizados como um dos pré-requisitos para o desenvolvimento social. Em vez disso, o foco das políticas culturais de Bragança na expansão da procura agregada no setor cultural expressa valores relativos ao desenvolvimento socioeconómico, bem como diferentes necessidades e agendas políticas. Esses distintos enquadramentos marcam as relações de governança. As necessidades setoriais identificadas em Bragança tendem a destacar o menor nível de apoio que recebem em comparação com outros setores ou territórios.
Alternativamente, em Barcelona, os atores do terceiro setor cultural concentram-se nas mudanças alcançadas ou exigidas nos critérios de avaliação de subsídios e apoio direto. Nessa linha, os fundamentos dos apoios parecem estar mais ligados ao desempenho quantitativo dos projetos culturais. Nesta cidade, os discursos e os processos de valorização revelam uma certa “transição” para uma abordagem mais qualitativa, em que o valor da igualdade de acesso “concorre” com outros, como a excelência artística.
O turismo também tem um papel significativo em ambas as políticas. Enquanto em Bragança o turismo de base cultural é legitimado como fonte de desenvolvimento local, em Barcelona foi deslocado para uma posição lateral dentro dos sistemas e programas de política cultural. Ainda assim, existem duas linhas de ação na cidade: a alta cultura é disseminada na periferia pelo projeto BeC e o PSC também promove um turismo de base cultural mais descentralizado (ambos partilham o governo da cidade).
Além do mais, existem consideráveis desigualdades entre essas cidades em termos de orçamento disponível, infraestruturas e necessidades no campo cultural, bem como na trajetória histórica de cada configuração política.
A distribuição das competências molda parcialmente as diferenças entre as políticas locais e regionais e nacionais. Enquanto nas cidades os valores e a normatividade operam em relações mais diretas e de proximidade entre a administração e os atores culturais, uma abordagem diferente é observada no caso da Junta da Galiza e do Ministério da Cultura português, administrações regionais e nacionais que colocam valores estratégicos e constitutivos na vanguarda. O Ministério da Cultura português, liderado pelo Partido Socialista, integra valores associados a uma compreensão contemporânea e empreendedora do paradigma da democratização cultural, onde o lazer e o espetáculo são altamente valorizados, confirmando a discussão da literatura sobre este modelo (Santos, 1998; Garcia et al., 2018). Por um lado, foca-se no acesso à cultura, na manutenção do património e na promoção da língua. Por outro lado, aborda a digitalização, as indústrias criativas e a internacionalização como instrumentos intrínsecos ao desenvolvimento nacional. Nesse segundo registo, a cultura é enquadrada como instrumento legítimo de marca nacional, levando ao aumento da competitividade e ao desenvolvimento social do país. Além disso, em consonância com uma compreensão instrumental da diplomacia cultural, o património é entendido como um mecanismo estratégico de atração turística e de investimentos económicos. Por seu lado, a Galiza representa um exemplo de modelo misto de políticas culturais onde se fomentam políticas liberais, apostando nos instrumentos de grandes eventos e de branding territorial. Os programas desenvolvidos desde os anos 80 pelo Partido Popular - hegemónico na região - inscreveram-se num sistema descentralizado espanhol que fornece competências culturais abrangentes às Comunidades Autónomas (Rius-Ulldemolins e Zamorano, 2015). No entanto, esta situação não tem fomentado um modelo coerente de ação na esfera cultural. As políticas culturais da região revelam uma trajetória específica de intervenção direta, pobre e assistemática. Esta situação levou a uma ação pública liberal caracterizada por baixa intensidade e por uma ação direta muitas vezes marcada por dinâmicas clientelistas. Neste contexto, os valores económicos priorizados estão associados à instrumentalização do património e das tradições galegas.
Conclusões
As tensões internas de valor são em larga medida explicadas por dinâmicas contextuais, como necessidades setoriais específicas manifestadas por atores públicos e do terceiro setor (por exemplo, apoio local às artes em Bragança ou maior atenção à língua e identidade galega na Galiza). Tais conflitos podem ser classificados em duas dimensões principais. De um lado, o questionamento dos recursos materiais reduzidos para as políticas culturais e a sua lógica de distribuição. Por outro lado, as características administrativas dos sistemas de política cultural e a sua capacidade de adaptação às exigências de mudança internas ou externas (i.e., descentralização limitada em Portugal, falta de integração da filosofia BeC na estrutura do Instituto de Cultura de Barcelona (Icub, 2019),16 má planificação e ação descentralizada na Galiza ou escassos mecanismos de participação a nível institucional em Bragança).
Além disso, as tensões também se manifestam no equilíbrio entre os resultados económicos e sociais das políticas culturais. Neste sentido, as políticas orientadas para o mercado levaram à consolidação de uma ação cultural instrumental na Galiza, que é ativamente contestada por atores que expressam valores antagónicos como a excelência, a identidade rural ou as condições de trabalho dos artistas. Em Barcelona, essa tensão expressa-se no atual governo em relação às duas filosofias que se equilibram no atual sistema de política cultural, liderado pelo PSC e pelo BeC. O binómio cultura-educação e cultura-turismo / setor criativo liderado por cada um desses partidos expressa essa política mista.17 Por último, as políticas culturais de Bragança e do Ministério da Cultura, lideradas por governos de centro-direita e centro-esquerda, integram ainda mais o setor criativo e o enquadramento de valor empresarial nas suas políticas culturais. Tais orientações valorizam o turismo, a digitalização, os mercados criativos específicos e a internacionalização do campo cultural. Paralelamente, é dada atenção aos valores tradicionais democratizantes, como a participação cultural, a educação artística e a formação de públicos enquanto instrumentos de inclusão social.
Os atores sociais disputam, pois, prioridades de valor, ao oporem-se, nomeadamente, a visões exclusivamente intrínsecas e autorreferenciais da cultura, defendendo aspetos como a identidade local ou as condições de trabalho dos artistas ou, ainda, ao apresentarem exigências ao poder público para avançar nos propósitos de maior descentralização e participação, contra as orientações predominantemente liberais.
Em geral, observam-se dimensões várias de políticas culturais híbridas, que articulam o macro (configuração hegemónica dos discursos e ideologias dominantes) e o micro (concretização das orientações e discursos; práticas concretas) e que revelam, pela sua composição complexa, a relação de forças inscrita em tais disputas. Na Galiza, o menor investimento na promoção da língua própria pode ser mais bem compreendido pelo projeto político do PP de G, pela sua perspetiva de autogoverno e orientação liberal, em contrapeso a um certo tecido cultural local mais nacionalista. Em Bragança, expressa-se a periferização da cultura na política local e o peso das associações locais, que ora cooperam, ora conflituam com um poder autárquico próximo e concentrado; em Barcelona, entende-se a distância face ao modelo do marketing de cidade, com ênfase nos valores participativos (que emanam da plataforma BeC), mas também as contradições do próprio executivo (partilhado entre BeC e PS de C). No Ministério da Cultura português, observa-se uma constelação híbrida de valores, querendo tudo abarcar (uns mais extrínsecos, outros mais autocentrados do ponto de vista da cultura; uns mais económicos, outros mais sociais), mas sobretudo um condicionamento pela exiguidade de recursos.
Contudo, as tensões axiais em cada caso revelam ainda um novo fator, ao serem impulsionadas pelas recentes mudanças políticas que ocorreram em muitas destas administrações, centrando-se na dimensão social das políticas culturais. É certo que as perspetivas dos atores e a lógica subjacente às exigências identificadas podem ser inscritas no modelo central europeu de políticas culturais, mesmo no âmbito de dois sistemas de políticas culturais muito diferentes (com a importância das autonomias em Espanha e do poder municipal em Portugal, sem nível intermédio; com fraca capacidade de ação em Portugal, dado o menor investimento cultural público). Porém, em ambos os países, os atores pressionam para o reposicionamento público de valores que historicamente fizeram parte deste modelo, desde o direito à cultura ou à participação cultural até aos recursos públicos adicionais, o que conflitua ora com orientações mais conservadoras e liberais (Galiza, Bragança), ora com a míngua de instrumentos (Portugal). De certa forma, embora sem sair do seu marco, há uma tentativa de radicalizar os pressupostos da democratização cultural, no seu afã de redistribuição dos bens culturais.
Terminada esta análise exploratória, será feita, noutra ocasião, uma comparação entre os valores e as tensões aqui encontradas com um conjunto de estudos mais amplo que remete para a construção de um quadro contextual europeu.
Assim se avança, prudentemente, para um exercício que honra a vocação comparativa da sociologia.