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Sociologia, Problemas e Práticas

versão impressa ISSN 0873-6529

Sociologia, Problemas e Práticas  no.101 Lisboa abr. 2023  Epub 05-Jul-2023

https://doi.org/10.7458/spp202310127092 

Artigo Original

A SOCIOLOGIA SOB OBSERVAÇÃO SÓCIO-HISTÓRICA. ELEMENTOS PARA UMA AGENDA DE PESQUISA

SOCIOLOGY FROM A SOCIOHISTORICAL PERSPECTIVE: ELEMENTS OF A RESEARCH AGENDA

LA SOCIOLOGIE SOUS OBSERVATION SOCIO-HISTORIQUE: ÉLÉMENTS POUR UN AGENDA DE RECHERCHE

LA SOCIOLOGÍA BAJO OBSERVACIÓN SOCIOHISTÓRICA: ELEMENTOS PARA UNA AGENDA DE INVESTIGACIÓN

Fernando Luís Machado1  , concetualização, redação do rascunho original, redação - revisão e edição
http://orcid.org/0000-0002-8711-0338

1 Iscte - Instituto Universitário de Lisboa, Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES-Iscte), Lisboa, Portugal


Resumo

Apresenta-se neste artigo uma proposta de abordagem sócio-histórica da sociologia enquanto realidade institucional inspirada pela sociologia da ciência mertoniana e bourdieusiana. Na primeira parte do artigo, são sistematizados e colocados em comparação e complementaridade os principais contributos de Robert K. Merton e Pierre Bourdieu para essa abordagem institucional da sociologia. Na segunda parte, é formulada uma proposta geral de agenda de pesquisa de sociologia da sociologia e equacionados, em particular, três objetos estratégicos: a especialização subdisciplinar, a interdisciplinaridade e a relação da sociologia com o campo político.

Palavras-chave: sociologia da ciência; sociologia da sociologia; agendas de investigação.

Abstract

This paper presents a proposal for a sociohistorical approach to sociology inspired by the Mertonian and Bourdieusian sociology of science. In the first section, the most important contributions of both authors in this field are systematized and compared and their complementarity is underlined. In the second section, a research agenda for the sociology of sociology is outlined with a special focus on three strategic research topics: specialization, interdisciplinarity and the relations of sociology with the political field.

Keywords: sociology of science; sociology of sociology; research agendas.

Résumé

Cet article présente une proposition d’approche socio-historique de la sociologie en tant que réalité institutionnelle inspirée de la sociologie de la science mertonienne et bourdieusienne. La première partie de l’article systématise et met en comparaison et en complémentarité les principales contributions de Robert K. Merton et de Pierre Bourdieu à cette approche institutionnelle de la sociologie. La deuxième partie formule une proposition générale d’agenda de recherche de sociologie de la sociologie, en visant particulièrement trois objets stratégiques : la spécialisation subdisciplinaire, l’interdisciplinarité et la relation de la sociologie avec le champ politique.

Mots-clés: sociologie de la science; sociologie de la sociologie; agendas de recherche.

Resumen

En este artículo se presenta una propuesta de abordaje socio-histórico de la sociología como realidad institucional inspirada por la sociología de la ciencia mertoniana y bourdieusiana. En la primera parte del artículo son sistematizados y colocados en comparación y complementariedad las principales contribuciones de Robert K. Merton y Pierre Bourdieu para ese abordaje institucional de la sociología. En la segunda parte es formulada una propuesta general de agenda de investigación de sociología de la sociología y planteados particularmente tres objetos estratégicos: la especialización en subdisciplinas, la interdisciplinaridad y la relación de la sociología con el campo político.

Palabras-clave: sociología de la ciencia; sociología de la sociología; agendas de investigación.

Introdução

A sociologia da ciência é uma especialidade sociológica plenamente consolidada, seja a sua corrente institucional, privilegiada neste artigo e na qual sobressaem os trabalhos pioneiros de Robert K. Merton e os contributos decisivos de Pierre Bourdieu, seja por via das chamadas correntes pós-mertonianas, em que se destacam abordagens como a do programa forte em sociologia da ciência e os estudos de laboratório.

Neste contexto, não deixa de surpreender que a própria sociologia seja tão poucas vezes tomada como objeto de investigação empírica pelos sociólogos da ciência, quaisquer que sejam as correntes em que se filiam, a começar pelos próprios Merton e Bourdieu. Quando escolhem disciplinas específicas para objeto dos seus estudos, os sociólogos da ciência elegem muito mais frequentemente as ciências naturais e suas extensões tecnológicas do que as ciências sociais e humanas ou a sociologia em particular. Está, portanto, largamente por desenvolver uma sociologia da sociologia inspirada pela sociologia da ciência. É certo que, desde há muito, os sociólogos escrevem sobre a sua disciplina. Tais escritos abundam em todos os lugares onde a disciplina está institucionalizada. Mas na grande maioria dos casos esses escritos não são estudos de sociologia da sociologia, no sentido de tomarem a disciplina como um objeto sociológico como qualquer outro e fazerem o respetivo enquadramento teórico, equacionamento metodológico e análise empiricamente sustentada.

O objetivo deste artigo é, assim, o de apresentar uma abordagem sócio-histórica da sociologia informada pela sociologia institucional da ciência. Na primeira parte, são colocados em comparação e complementaridade os contributos de Robert K. Merton e Pierre Bourdieu para essa abordagem institucional da ciência, contributos aplicáveis à sociologia como a qualquer outra área científica. Na segunda parte, formulo uma proposta geral de agenda de pesquisa e equaciono, de forma preliminar, três objetos estratégicos de uma tal sociologia da sociologia: a especialização subdisciplinar, a interdisciplinaridade e a relação da sociologia com o campo político.

Sociologia do conhecimento, sociologia da ciência, sociologia da sociologia

Um primeiro conjunto de importantes contributos para uma sociologia da sociologia pode ser encontrado na sociologia do conhecimento, que teve entre os seus principais cultores dois nomes de referência mundial, Karl Mannheim e Robert K. Merton. A ideia essencial da sociologia do conhecimento é a de que todas as formas de pensamento humano, no sentido amplo de apreensão cognitiva do mundo - ciência, arte, filosofia, religião, ideologias, crenças, etc. -, estão necessariamente relacionadas com a sociedade envolvente, não no sentido reducionista de que essas formas de pensamento se limitam a refletir as relações sociais, a distribuição do poder, e a posição que os grupos ou os indivíduos que as elaboram ocupam na sociedade, mas no sentido em que, constituindo “produtos mentais” criados em sociedade, tais formas de conhecimento são necessariamente influenciadas pelo tempo e pelo espaço que definem a circunstância da sua elaboração. Se Mannheim elaborou longamente esta ideia no plano teórico (Mannheim, 1974 [1925]), Merton, sem ter deixado de dar contributos importantes para a sociologia do conhecimento (1970 [1945], 1972), desde cedo se interessou pela investigação empírica do ramo particular do conhecimento humano que é a ciência, tarefa em que foi reconhecidamente pioneiro.

Os seus primeiros trabalhos neste domínio datam do final dos anos 30 e início dos anos 40 do século XX. Além da tese de doutoramento, defendida em 1936 em Harvard, em que apresenta os resultados de uma investigação sobre a emergência da ciência na Inglaterra do século XVII, tomando como objeto empírico a atividade desenvolvida pelos membros da Royal Society em Londres (Merton, 1938), publicou dois artigos nos anos imediatos. No primeiro, Merton analisa a relação entre a atividade científica e os contextos sociais, culturais e políticos em que ela se desenrola e dá especial atenção ao tema das pressões sobre a autonomia da ciência, tomando como exemplo o caso extremo da Alemanha nazi (Merton, 1970 [1938]). O segundo artigo aborda a relação da ciência com a “estrutura social democrática”, e é nele que Merton estabelece os quatro famosos princípios da estrutura normativa da ciência, isto é, os valores que a comunidade científica constrange os seus membros a seguir no exercício autónomo da respetiva atividade: universalismo, comunalismo, desinteresse e ceticismo organizado (Merton, 1970 [1942]).

Os primeiros trabalhos de Merton abriram caminho para o desenvolvimento internacional da sociologia da ciência e foi sob a sua influência que esta veio a constituir-se como uma especialidade reconhecida. Além de Merton e de um conjunto de outros sociólogos norte-americanos que, ao longo de anos, trabalharam diretamente com ele ou se inspiraram na sua perspetiva teórica, e produziram, por essa via, um vasto corpo de estudos empíricos, a sociologia da ciência teve no pensamento de Pierre Bourdieu outro impulso determinante para a sua afirmação. Se, de início, Bourdieu se colocou em oposição veemente a Merton (Bourdieu, 1975, 1976), no seu último trabalho sobre o tema o sociólogo francês acabou por reconhecer que há convergências importantes entre a sua perspetiva e a do norte-americano. O próprio Pierre Bourdieu exemplifica, neste caso, o padrão sociológico observado na investigação científica, que consiste na posição de desafio dos mais jovens relativamente aos investigadores mais antigos e consagrados no meio. É ele mesmo que diz, com desportivismo, que nos seus primeiros escritos de sociologia da ciência foi injusto com Merton, e que tal se deveu à posição que ocupava de “recém-chegado a um campo internacional dominado por Merton e pelo estruturo-funcionalismo” (Bourdieu, 2001: 31).

As conceções de Merton e de Bourdieu são diferentes em alguns aspetos importantes, mas convergem em pontos fundamentais. Desde logo, ambos partilham uma perspetiva da ciência como instituição social, cuja atividade decorre em contextos específicos, com valores e regras próprios, instituição dotada de autonomia relativa em face da sociedade como um todo e de outras instituições sociais. Merton considera a ciência um subsistema social e utiliza o conceito de comunidade científica para designar o conjunto dos cientistas, enquanto Bourdieu transpõe para este domínio a sua teoria geral dos campos e usa o conceito de campo científico (Merton 1970 [1942]; Bourdieu, 1975, 1976). Tanto um como outro o fazem no singular e no plural, falando de comunidade científica ou campo científico para designar a ciência como um todo, mas aplicando também esses conceitos a cada uma das disciplinas científicas individualmente considerada, por exemplo, a comunidade sociológica ou o campo da sociologia.

A apreensão da instituição científica como um todo, ou desdobrada em cada uma das suas disciplinas, permite manter sobre ela um olhar sociológico amplo, compreender a sua estrutura, evolução histórica e funcionamento interno e analisar a sua relação com a sociedade envolvente e com outros subsistemas ou campos, seja o estado, a economia, os média ou o mundo cultural e intelectual. E permite observar um aspeto fundamental, sublinhado enfaticamente por ambos, que é a questão da autonomia relativa da ciência em face da sociedade, as condições em que essa autonomia se constrói e mantém, mas também as condições em que é posta em causa. Trata-se daquilo que Merton, no estudo já citado sobre a situação da instituição científica na Alemanha nazi, chamou “pressões sociais sobre a ciência”, acrescentando, nesse mesmo texto, que “a estabilidade social da ciência somente pode ser conseguida se se levantarem barreiras adequadas contra as mudanças impostas de fora, por elementos estranhos à própria comunidade científica” (Merton, 1970 [1942]: 642). Na mesma linha, Bourdieu relaciona o grau de autonomia dos campos científicos com a sua capacidade de filtrar as pressões externas e chama a essa capacidade de filtragem “poder de refração”: “quanto mais autónomo um campo é, maior será o seu poder de refração e mais os constrangimentos externos são transfigurados, ao ponto de se tornarem irreconhecíveis”. Esse poder de refração, acrescenta Bourdieu, é diferente de disciplina para disciplina, sendo mais reduzido nas ciências sociais, e por isso estas têm mais dificuldade em serem autónomas, o que significa que estão mais expostas a intromissões exteriores, especialmente do campo político (Bourdieu, 1997: 15-16).

Outro importante ponto de convergência dos dois autores é o que respeita à estratificação social e às desigualdades internas à comunidade ou campo científico, que têm a ver com a distribuição do que Merton chama reconhecimento ou prestígio científico e Bourdieu define como capital científico. A fonte do prestígio ou capital científico é interna e a sua atribuição é feita pelos pares em função dos contributos de cada cientista para o avanço do conhecimento no domínio em que trabalha. Ao mesmo tempo que, no curso da sua atividade corrente, visam contribuir para o avanço do conhecimento, obrigados e orientados pela estrutura normativa da ciência identificada por Merton, os cientistas individualmente considerados, as equipas de investigação e as instituições científicas competem pela acumulação de prestígio ou capital científico. Dado que essa competição leva a desempenhos diferentes, devidos em parte ao facto de as condições de partida dos competidores não serem as mesmas, a ciência torna-se internamente estratificada, com uma distribuição desigual de capital científico entre cientistas, equipas de investigação e instituições, e mesmo entre disciplinas, elas próprias com níveis desiguais de reconhecimento. O modo de produção e distribuição do capital científico, na conceção de Bourdieu, ou o funcionamento do sistema de recompensas da ciência, nos termos de Merton, constituem um dos principais temas de pesquisa da sociologia da ciência.

Bourdieu ilustra com vários exemplos a distribuição desigual de capital científico e as lutas pela sua acumulação no interior do campo científico. Por sua vez, Merton e os que com ele trabalharam diretamente pesquisaram o funcionamento do sistema de recompensas da ciência tomando como objetos empíricos os prémios Nobel e outros prémios científicos; as práticas de referenciação e citação entre cientistas; o prestígio comparativo dos departamentos universitários; a estratificação etária dos cientistas; ou a ordem das assinaturas nos artigos científicos. O mais célebre estudo deste género é aquele em que Merton identifica o “efeito de Mateus”, segundo o qual a comunidade científica tende a atribuir mais reconhecimento aos que já têm reconhecimento elevado, por exemplo os premiados com o Nobel, em desfavor dos que, com talento e contributos equivalentes para a ciência, são menos reconhecidos pelos seus pares (Merton, 1968, 1988; Zuckerman, 1968, 1977; Zuckerman e Merton, 1972; Cole e Cole, 1973).

Quanto às divergências entre os dois autores, a mais importante é que Bourdieu não subscreve a ideia mertoniana de uma estrutura normativa da ciência, um conjunto de valores partilhados pela comunidade científica, que, embora submetido a tensões, ambivalências e desvios - que Merton não ignorou -, serve de referencial comum para a conduta dos cientistas e respetiva avaliação pelos pares, seja para os recompensar, seja para os sancionar. Por isso, afirmando que é necessário romper “com a ideia de que os cientistas formam um grupo unificado, leia-se homogéneo”, unido por um objetivo e cultura comuns (Bourdieu, 2001: 91), Bourdieu contrapõe ao conceito de comunidade científica o conceito de campo científico e dá mais atenção ao conflito entre “dominantes” e “dominados”, ou seja, os que ocupam posições centrais e os que ocupam posições periféricas nesse campo, bem como às estratégias que uns e outros desenvolvem no sentido de conservar ou subverter a distribuição desigual de capital científico existente em cada momento. São divergências que remetem, afinal, para modelos teóricos gerais que enfatizam aspetos diferentes da vida social: enquanto Merton enfatiza os processos de integração por via de uma estrutura cultural de valores comuns, ainda que sujeita a ocorrências disfuncionais, Bourdieu dá mais importância às relações de poder e conflito que considera inevitáveis numa estrutura social em que se confrontam interesses antagónicos. Tal não impede, no entanto, que dos dois modelos teóricos se retirem elementos adequados e compatíveis entre si para estudar sociologicamente o mundo científico.

No que se refere especificamente à sociologia da sociologia, Merton e Bourdieu, especialmente o último, deixaram indicações preciosas sobre como pô-la em prática e também sobre as dificuldades envolvidas em tal exercício. Num trabalho apresentado em 1961, numa reunião da Associação Internacional de Sociologia, em Lovaina, Merton defende que se deve privilegiar a análise dos “processos sociais internos à sociologia” em complemento à abordagem da sociologia do conhecimento que se “centra nas relações entre estruturas sociais, externas à vida intelectual, e o curso tomado por este ou aquele ramo do conhecimento” (Merton, 1973 [1961]: 54). Um exemplo de tais processos internos é o dos “conflitos entre sociólogos relativamente a estilos de sociologia”. A lógica subjacente a esses conflitos é uma espiral de estereótipos e exclusão recíproca entre grupos de sociólogos relativamente ao estilo de trabalho de cada um, com cada grupo cada vez menos interessado em estudar o trabalho dos outros, passando apenas os olhos sobre as respetivas publicações para “encontrar munições para novos tiroteios”. Como os investigadores já não conseguem manter-se a par de tudo o que é publicado no seu campo e têm de ser cada vez mais seletivos nas leituras, aqueles que são hostis a uma linha específica de trabalho acabam por desistir de acompanhar as respetivas publicações, “que poderiam justamente levá-los a abandonar o seu estereótipo”.

Merton analisa, então, vários tipos de conflitos, como a definição divergente do que é importante ou trivial na investigação sociológica; a oposição entre os sociólogos que se dedicam a temas substantivos e os que se dedicam a problemas metodológicos; a oposição entre uma sociologia mais abstrata e formal, alegadamente mais conservadora, e uma sociologia concreta, alegadamente mais crítica; ou ainda a oposição entre o trabalho macrossociológico e o trabalho microssociológico, o primeiro criticado por definir leis tão gerais que nenhuma observação empírica pode contrariar e o segundo por fazer uma espécie de “sociologia sem sociedade” (Merton, 1973 [1961]).

As indicações de Bourdieu para a prática de uma sociologia da sociologia, por seu lado, situam-se em dois planos principais, o da autonomia do campo sociológico e o das dificuldades enfrentadas pelo sociólogo que pretende estudar o próprio campo a que pertence e como ultrapassar essas dificuldades. Em diferentes textos, o autor francês insiste que a sociologia, e as ciências sociais em geral, não têm o grau elevado de autonomia que se encontra nas ciências naturais ou exatas (Bourdieu, 1997, 2001). A dificuldade de a sociologia impor a sua autonomia decorre do facto de ter um objeto “demasiado importante e demasiado escaldante do ponto de vista da vida social, da ordem social e da ordem simbólica, para que lhe seja atribuído o mesmo grau de autonomia que às outras ciências e lhe seja entregue o monopólio de produção de verdade. Toda a gente se sente no direito de se meter na sociologia” (Bourdieu, 2001: 170). Diferentemente do que acontece nas disciplinas com autonomia elevada, na sociologia pessoas pouco competentes do ponto de vista das normas específicas da disciplina podem sempre intervir em nome de princípios heteronómicos sem serem imediatamente desqualificadas. Aumentar a autonomia da sociologia, condição de aumento da sua cientificidade, implica, portanto, elevar barreiras à entrada no campo, estabelecer um direito de entrada, favorecer as formas reguladas de competição, sujeitas unicamente aos constrangimentos da coerência lógica e da verificação experimental, e excluir a introdução e utilização de armas não específicas (Bourdieu, 1997: 16, 35-36). Quanto às dificuldades do sociólogo em constituir-se como observador da própria sociologia, elas residem na necessidade de “objetivar o sujeito da objetivação e historicizar o sujeito da historicização”. Para que tal aconteça, é preciso um trabalho de reflexividade permanente, que consiste em a sociologia se servir dos seus próprios instrumentos para se compreender e autocontrolar e assim aumentar as suas possibilidades de aceder à verdade. Os sociólogos, remata Bourdieu, devem converter a reflexividade numa disposição constitutiva do seu habitus científico, ou seja, devem ter uma reflexividade reflexa (Bourdieu, 2004: 168, 174).

Chegados aqui, e vistos os contributos fundamentais de Merton e Bourdieu para a sociologia da ciência e as indicações valiosas que deixaram para o exercício de uma sociologia da sociologia, há uma constatação que se faz, não sem surpresa. Apesar dessas indicações, nenhum deles chegou a fazer da sociologia um objeto de investigação empírica. E falamos de dois sociólogos que, além de terem sido pioneiros na sociologia da ciência, se destacaram por terem conduzido pesquisas empíricas de referência em vários outros domínios de investigação sociológica. A constatação da não eleição da sociologia como objeto empírico não se aplica somente aos dois autores a que tenho vindo a dar atenção. Se olharmos de modo mais geral para a sociologia da ciência, tanto para as correntes inspiradas por estes autores como para as correntes pós-mertonianas, chegamos à mesma conclusão. Os sociólogos da ciência raramente tomam como objeto a sociologia ou outras ciências sociais e viram-se quase sempre para as ciências naturais e exatas e suas extensões tecnológicas. Uma exceção notável é o artigo que Jonathan Cole e Harriet Zuckerman, dois dos mais próximos colaboradores de Merton, escreveram sobre a emergência da própria sociologia da ciência enquanto especialidade científica (Cole e Zuckerman, 1975).

Se tivermos presente a natureza hierarquizada do campo científico, hierarquia que é dos cientistas, das instituições, das disciplinas, mas também dos objetos de investigação (Bourdieu, 1976, 1984; Merton, 1968, 1988), e se tivermos também em conta a afirmação de Bourdieu de que a sociologia se encontra na zona baixa dessa hierarquia, o que, de resto, segundo ele, a deixa em dificuldades para pensar cientificamente a ciência (Bourdieu, 1976: 102), não será abusivo concluir que a falta de interesse dos sociólogos da ciência pela sociologia enquanto ciência é a confirmação, onde menos se esperaria encontrá-la, dessa posição hierarquicamente inferior. Em contrapartida, a física, com uma posição elevada na hierarquia de prestígio das disciplinas, foi objeto de investigação de Merton e colegas (Zuckerman e Merton, 1971; Cole e Cole, 1973) e é amiúde tomada como exemplo empírico por Bourdieu.

É preciso acrescentar que, fora do âmbito da sociologia da ciência, não faltam textos de sociólogos sobre a sociologia. De facto, os sociólogos têm sido prolíficos a escrever sobre diversos aspetos da sua disciplina. Em todos os países onde ela está consolidada, e mais ainda naqueles onde a sociologia nasceu, tal literatura é abundante. Há balanços genéricos sobre a situação institucional da sociologia no plano nacional e internacional; análises aprofundadas sobre as tendências epistemológicas observáveis na disciplina; apreciações críticas dos paradigmas dominantes em determinada época; ensaios propositivos sobre a função social da sociologia e os compromissos que deve assumir com a sociedade e a política; denúncias desencantadas sobre lacunas na abordagem dos grandes temas internacionais; ou ainda previsões otimistas sobre o futuro da disciplina ou, pelo contrário, diagnósticos de crises inevitáveis. Se nos cingirmos à pequena parte dessa literatura que é da autoria de sociólogos de renome internacional, a lista de referências, não exaustiva, é longa (Mills, 1959; Gouldner, 1970; Aron, 1971; Boudon, 1971; Ferrarotti, 1976; Fernandes, 1977; Giddens, 1987; Turner e Turner, 1990; Berger, 1992; Lipset, 1994; Burawoy, 2005; Bauman, 2013; Turner, 2014).

Todos estes trabalhos podem ser considerados exercícios da tal reflexividade recomendada por Bourdieu e, por terem sido escritos por sociólogos talentosos, serão certamente úteis para os praticantes da disciplina em geral. Mas o ponto que quero sublinhar não é esse. O que me interessa destacar é o paradoxo de haver uma produção escrita tão volumosa de sociólogos sobre a sua disciplina e muito pouca dessa produção poder ser verdadeiramente considerada sociologia da sociologia, no sentido de a disciplina ser tomada como um objeto de estudo teoricamente equacionado e empiricamente investigado, como se faz com outro objeto qualquer. Por outras palavras, os sociólogos escrevem muito sobre a sociologia, mas raramente o fazem em modo sociológico.

Os escritos de sociólogos sobre a sociologia que têm uma base empírica mais sistemática e uma maior intenção analítica acabam por ser os que se debruçam sobre a sua história (Cuin e Gresle, 1995; Halsey, 2004; Liedke Filho, 2005; Calhoun, 2007; Machado, 2020). Fora isso, apenas se encontram artigos ocasionais com resultados de investigação sociológica sobre a disciplina, artigos que, de resto, quase nunca usam a aparelhagem teórica da sociologia da ciência. Recorrendo ao célebre artigo que Merton publicou sobre os olhares insiders e outsiders na sociologia do conhecimento (Merton, 1972), dir-se-ia que os sociólogos se sentem suficientemente por dentro para escreverem sobre a sociologia com facilidade, mas não são capazes de se pôr suficientemente de fora para estudarem a sociologia como estudariam qualquer outro objeto sociológico.

Sociologia da sociologia: uma agenda de pesquisa

Que linhas gerais devem então orientar uma sociologia da sociologia teoricamente sustentada e empiricamente investigada, e qual é, digamos, o seu caderno de encargos? Começaria por dizer que as contribuições de Merton, Bourdieu e de vários outros sociólogos que têm estudado a ciência enquanto instituição social são, obviamente, aplicáveis à sociologia enquanto parte integrante do campo científico. Sendo a sociologia uma disciplina científica plenamente consolidada, um campo científico completo, fazer a sociologia da sociologia passa, necessariamente, por fazer a sociologia da ciência desta disciplina científica particular, nos mesmos termos em que se pode fazer a de outra disciplina científica qualquer. Será uma sociologia da ciência que não ignora, antes incorpora, os contributos pioneiros da sociologia do conhecimento a que me referi de início, nomeadamente a atenção que dá à relação das formas de conhecimento, neste caso a sociologia, com os contextos económicos, sociais, culturais e políticos que a rodeiam.

Concretizando um pouco mais, a sociologia da sociologia dará atenção quer à relação da disciplina com esses contextos externos, que a influenciam, constrangem ou, pelo contrário, a possibilitam, quer aos contextos internos ao campo sociológico, os processos, as instituições e as redes de relações que constituem esse campo, quer ainda aos contextos “intermédios”, aqueles que são externos à sociologia, mas internos ao campo científico global de que ela faz parte. Nessa abordagem, importará ter presentes as articulações complexas e mutáveis entre esses diferentes contextos, sendo que, do ponto de vista teórico, a relação da sociologia com os seus contextos, externos e internos, é balizada, como toda a atividade científica o é, por dois casos-limite de ocorrência empírica improvável: o de essa atividade ter lugar numa bolha isolada do mundo e, no outro extremo, o de ela ser totalmente determinada por fatores sociais, de forma mecânica e sem mediações. Alguns temas principais de uma agenda de investigação serão, sem pretensão de exaustividade, a autonomia do campo sociológico e as condições em que ela é mantida ou ameaçada; a relação da sociologia com o campo político; os modos de composição e organização do campo sociológico; a relação com outras disciplinas das ciências sociais e humanidades e das ciências naturais e exatas; os contextos de definição das agendas de investigação e de seleção de objetos de estudo; os modos de obtenção de reconhecimento ou capital científico; a estratificação e as hierarquias internas do campo, sua génese e efeitos; os processos de conflito, competição e cooperação; os valores e os habitus científicos dos sociólogos; a internacionalização da sociologia; ou a influência social do conhecimento sociológico. O estudo destes e de outros objetos possíveis conduzirá a ganhos de conhecimento adicionais se for feito em termos comparativos, confrontando as experiências da sociologia em diferentes contextos nacionais.

A esta proposta genérica de uma sociologia da sociologia acrescento que ela deve ter uma componente histórica, deve ser também uma sociologia histórica da sociologia. De modo intuitivo, mesmo sem qualquer racionalização sociológica, é fácil antever os ganhos de conhecimento que se podem obter se cada um dos objetos que acabei de enumerar for colocado “no eixo do tempo” (Silva, 2013). A colocação dos objetos de investigação no eixo do tempo ou a “historicização da sociologia”, que Silva propõe, é um modo de romper com as evidências primeiras, de evitar a naturalização desses objetos, de perceber a sua origem e desenvolvimento e, em particular, de combater o que Bourdieu chama “amnésia da génese” (Bourdieu, 1998: 161-162). A favor dessa perspetiva histórica sobre a sociologia tomada como objeto de investigação, Bourdieu acrescenta mais um argumento. Se, diz o nosso autor, “o inconsciente de uma disciplina é a sua história”, então fazer ciência supõe que se saiba como foram historicamente feitos os problemas, as ferramentas, os métodos, os conceitos que se utilizam (Bourdieu, 2003 [1984]: 85).

A benefício de quem possa ter interesse em prosseguir esta linha de pesquisa, deixo algumas notas para o equacionamento de três objetos de investigação específicos. O primeiro, que remete para dinâmicas internas do campo sociológico, tem a ver com a especialização crescente da sociologia em subdomínios e os fatores e efeitos associados a esse processo. O segundo objeto, terreno por excelência de observação das relações institucionais e científicas entre as diferentes disciplinas, é o da interdisciplinaridade, suas condições de exercício, formas de concretização e discursos a ela associados. O terceiro, que se situa na interface externa do campo sociológico (e do campo científico globalmente considerado), é o das relações da investigação sociológica com o campo político, tanto no que se refere às políticas públicas como aos movimentos sociais e formas de protesto em geral.

A subespecialização das disciplinas é um padrão geral do campo científico - que a sociologia acompanha - e tem sido objeto de estudo da sociologia da ciência. São de referir, a este respeito, os trabalhos de Hagstrom (1965), Stehr e Larson (1972), Cappell e Guterbock (1992) e, de forma especial, o estudo emblemático, já citado, que Cole e Zuckerman (1975) dedicaram à emergência e consolidação da própria sociologia da ciência enquanto especialidade. Numa formulação sintética, baseada nesta literatura, podem identificar-se três tipos de fatores associados à génese e desenvolvimento de especialidades, sejam elas disciplinas ou subdisciplinas. Há fatores de natureza intrinsecamente cognitiva relacionados com o trabalho corrente dos cientistas, como o confronto com novos problemas ou enigmas, a adoção de novas técnicas ou dispositivos de pesquisa ou a emergência de interpretações alternativas de determinados fenómenos. Há fatores sociais internos ao campo científico, como a busca de reconhecimento por via da inovação na escolha dos temas de pesquisa num contexto de forte competição entre investigadores ou a capacidade de os investigadores seniores atraírem estudantes, recursos e suporte institucional para a consolidação de novas frentes de pesquisa. E há, finalmente, fatores sociais externos, entre os quais estão as novas questões que as sociedades colocam a si mesmas e que as levam a interpelar a ciência, as procuras do lado das políticas públicas ou ainda os modos de financiamento da investigação, que podem favorecer a exploração de novas zonas especializadas na fronteira do conhecimento disponível.

O processo de subespecialização da sociologia, aparentemente imparável, tem levado autores contemporâneos a alertarem-nos para os riscos que lhe estão associados, como a fragmentação disciplinar, o isolamento das especialidades, que tendem a comunicar sobretudo consigo próprias e a ignorar o que acontece nas outras, ou a incapacidade de os sociólogos formularem e pesquisarem questões de alcance mais geral. É a esses riscos que Pierre Bourdieu se refere quando diz que “as divisões artificiais do objeto, as mais das vezes segundo contornos realistas, impostos por fronteiras administrativas ou políticas, são o obstáculo maior à compreensão científica” (Bourdieu, 2003 [1984]: 39); ou Peter Berger, quando afirma que os sociólogos evitam abordar “as grandes questões” da sociedade, ao contrário do que se fazia no período clássico da disciplina (Berger, 1992: 12); ou ainda Bernard Lahire, quando defende que os recortes em especialidades são “particularmente fatais para a compreensão sociológica” (Lahire, 2012: ponto 25). Antes destes, outros sociólogos já tinham feito advertências do mesmo tipo. Norbert Elias, por exemplo, em face dessa multiplicação de especialidades sociológicas, dizia que “em breve, haverá especialistas em todos estes campos, elaborando os seus próprios termos técnicos, as suas teorias e métodos, que se tornarão inacessíveis aos não especialistas. Terão então realizado o ideal básico do profissionalismo - a autonomia absoluta das novas especializações. A fortaleza estará completa, as pontes levadiças erguidas” (Elias, 1980 [1970]: 53).

Se estas críticas fazem sentido e apontam possíveis efeitos perversos do modo de organização subdisciplinar, instando os sociólogos ao exercício da reflexividade sobre a sua própria prática, por outro lado, parecem ignorar a dura factualidade institucional da especialização, a sua inércia estrutural, o facto de essa especialização ser uma consequência do próprio nível de desenvolvimento atingido pela sociologia e, mais ainda, a aceitação pelas próprias comunidades sociológicas em todo o mundo desse modo de organização e funcionamento. A especialização subdisciplinar está nos cursos lecionados nas universidades, em especial os cursos de segundo ciclo; nas unidades de investigação organizadas em grupos, linhas ou núcleos especializados; nos canais de publicação, muito especialmente nas revistas; nas estruturas associativas, que se especializam também ou que, sendo generalistas, como é o caso das associações nacionais e internacionais de sociologia, se estruturam em secções temáticas; está nas atividades de debate científico; e está, ao mesmo tempo, e por todas estas razões, nos habitus científicos dos próprios sociólogos, que, quando se iniciam no ofício, logo adotam ou são levados a adotar - por exemplo, os estudantes de doutoramento - esse regime especializado de trabalho. Dito isto, o tipo de relações que, nesse quadro de diferenciação subdisciplinar, se estabelecem entre especialidades é uma questão que pode e deve ser transformada em objeto de pesquisa. Se é verdade que o modo especializado de trabalhar propicia a fragmentação da sociologia e a formação de fronteiras internas prejudiciais ao avanço do conhecimento, não quer dizer que no trabalho sociológico concreto não existam também práticas profícuas de aproximação e articulação entre especialidades diferentes.

Um segundo objeto estratégico na agenda de uma sociologia da sociologia é o da interdisciplinaridade. As proclamações sobre a bondade da interdisciplinaridade na sociologia parecem ser muito mais frequentes do que a sua prática efetiva e também mais frequentes do que a reflexão e a análise do que está concretamente implicado em tal prática. Refiro-me aqui à interdisciplinaridade na investigação - porque a questão também se coloca no plano do ensino - e defino-a como trabalho de pesquisa conjunto de investigadores de disciplinas diferentes e respetivos resultados. Numa aceção mais lata, também será interdisciplinaridade aquela que é autoadministrada, por exemplo, o sociólogo que recorre a teorias ou métodos de outras disciplinas e os integra na sua prática de investigação, mas esta é uma aceção, digamos, de segunda linha, porque não implica efetiva troca e construção conjunta entre partes diferentes.

Sobre o exercício de interdisciplinaridade, visto do lado da sociologia ou de qualquer outra disciplina, há, com efeito, muitas perguntas que se podem fazer e respostas para encontrar. Podemos perguntar que condições institucionais propiciam ou, pelo contrário, dificultam o trabalho interdisciplinar e com que frequência este acontece; como é que a prática da interdisciplinaridade se relaciona com a estratificação do campo científico, seja a estratificação das próprias disciplinas (em termos de capital científico acumulado), seja a das instituições de pesquisa ou mesmo a dos países, num contexto de crescente internacionalização da investigação sociológica em que os países têm poderes desiguais; quem comanda a interdisciplinaridade quando esta é praticada (que disciplinas, que instituições a comandam) e esta pergunta é um corolário da anterior, porque a interdisciplinaridade não acontece fora de um quadro de relações de poder científico; se as possibilidades e práticas de interdisciplinaridade se distribuem de maneira uniforme no campo científico ou variam conforme as disciplinas em questão, sendo, por exemplo, mais prováveis em zonas vizinhas da sociologia do que em zonas distantes; se o desejo de interdisciplinaridade manifestado por tantos sociólogos encontra correspondência nas disciplinas por eles desejadas; e, por fim, mas não esgotando as perguntas fazíveis, como é que a interdisciplinaridade se relaciona com a existência de disciplinas, ou seja, se a sua prática deve conduzir, como alguns defendem, à virtual superação daquelas ou se a persistência de disciplinas bem definidas continua a ser condição indispensável para uma interdisciplinaridade fecunda. Se quisermos transformar estas e outras perguntas em questões de pesquisa em sede de sociologia da ciência e de sociologia da sociologia, teremos também de saber que indicadores de interdisciplinaridade construir. A publicação científica conjunta de investigadores de disciplinas diferentes, pressupondo investigação interdisciplinar prévia, não sendo o único possível, é um indicador privilegiado.

Estas e outras perguntas a propósito de um tema tão presente nos discursos de tantos sociólogos, mas, ao mesmo tempo, aparentemente tão ausente das suas práticas reais, só encontrarão respostas através de mais elaboração e especificação teórica do conceito de interdisciplinaridade e subsequente pesquisa empírica.

O primeiro aspeto a ter em conta para equacionar a possibilidade de ocorrerem práticas de investigação interdisciplinares é, julgo, a já mencionada materialidade institucional da organização do campo científico em disciplinas autónomas e diferenciadas, muitas vezes ciosas das suas fronteiras, e a inércia dessa forma de organização. A força das disciplinas e a sua inércia medem-se por coisas tão estruturantes como os graus académicos atribuídos pelas universidades, em particular os graus de doutor, que são, na grande maioria dos casos, graus disciplinares; a organização disciplinar de muitos departamentos universitários; o facto de em departamentos em que coexistem várias disciplinas eles concordarem, não sem tensões, em dividir por essas disciplinas os lugares e as possibilidades de carreira; a afetação do financiamento público da ciência, que em muitos lugares é feita por disciplinas e é essa a expetativa dos investigadores que competem por esse financiamento; ou ainda as associações científico-profissionais, que são, na maioria das vezes, disciplinares. Se as regras do jogo são disciplinares, e se é nesse quadro de regras que docentes e investigadores trabalham correntemente e fazem as suas carreiras, que espaço fica para jogos de regras alternativas?

Mas não se trata apenas de o campo científico estar organizado em disciplinas. Trata-se também de essas disciplinas se organizarem em especialidades, o que reforça a sua própria materialidade e tenderá a deixar mais longe a possibilidade de diálogo interdisciplinar. Como referi, a especialização subdisciplinar é uma tendência generalizada no campo científico, que a sociologia também tem seguido. Se em certas especialidades particularmente desenvolvidas, e de grande volume de produção científica, a prática dos investigadores pode encaminhar-se no sentido do fechamento perante o seu próprio campo disciplinar, o fechamento será ainda maior relativamente a outras áreas científicas. A institucionalização das especialidades reflete-se, de resto, em alguns dos aspetos que referi acima, por exemplo, nos graus de doutor, em que há menção formal à especialidade particular de uma disciplina em que esse grau é atribuído, ou na existência de linhas, grupos ou núcleos dedicados a domínios específicos da sociologia dentro dos centros de investigação onde ela é praticada. Se é verdade que as práticas interdisciplinares podem ocorrer a partir de certas especialidades, o efeito principal da diferenciação subdisciplinar parece ser o fortalecimento das disciplinas.

O terceiro tema sobre o qual quero deixar algumas notas transformáveis em questões de pesquisa, tema particularmente importante porque remete para a própria natureza da atividade científica, é o da relação da sociologia com o campo político. Essa relação desdobra-se em duas modalidades essenciais. Uma é a ligação às políticas públicas, em que a sociologia é solicitada e se dispõe a contribuir para a fundamentação, monitorização e avaliação dessas políticas e seus efeitos. Outra modalidade é a sociologia militante, empenhada em causas, e ligada a movimentos sociais, movimentos que também solicitam a sociologia ou acolhem os sociólogos, que, por iniciativa própria, se inclinam para essa forma de intervenção. O grau em que os sociólogos, no exercício da sua atividade de investigação, se envolvem no campo político por estas duas vias é matéria de determinação empírica. Consoante os países e as circunstâncias por estes vividas, eles estarão mais envolvidos com as políticas públicas ou com os movimentos sociais, embora possam atuar simultaneamente nos dois tabuleiros, particularmente quando, nos regimes democráticos, as orientações político-ideológicas dos governos são propícias à aproximação entre políticas públicas e movimentos sociais.

Neste contexto, a questão mais importante que se coloca à sociologia e aos sociólogos é a da autonomia do campo sociológico e das condições de exercício dessa autonomia. Os modelos públicos de financiamento da ciência que valorizam a qualidade dos projetos e das equipas, em vez de estabelecerem a priori uma agenda fechada de disciplinas e temas financiáveis, dão à sociologia e às restantes ciências sociais, e também às outras áreas científicas, garantias especiais de exercício da sua autonomia. Num quadro deste tipo, os investigadores têm de desenvolver projetos e apresentar os respetivos resultados, justificando o financiamento atribuído, mas fazem-no com autonomia institucional e mental e é o estado, através de financiamento público, que garante que assim é. Ou, para usar palavras de Pierre Bourdieu, é num quadro desses que a sociologia “pode encontrar num bom uso da autonomia institucional, garantida pelo seu estatuto de disciplina universitária, as condições de uma autonomia epistemológica e tentar oferecer o que ninguém na verdade lhe pede” (Bourdieu, 2003 [1984]: 53).

Porém, e seguindo ainda com o apoio de Pierre Bourdieu, a relação do campo científico com o estado é paradoxal. Se o financiamento público torna “possível uma produção que não seja submetida à sanção imediata do mercado” e o estado assegura “as condições mínimas de autonomia”, esse mesmo estado “tem também a capacidade de impor constrangimentos geradores de heteronomia” (Bourdieu, 1997: 48). Ora, é precisamente esta capacidade de o estado limitar a autonomia que ele mesmo, por outro lado, tende a conferir, que deve ser tida em conta, para efeitos de reflexão e análise, quando se pensa na relação da investigação sociológica com a área das políticas públicas.

A questão da heteronomia no campo sociológico não se coloca apenas pelo lado da sua relação com as políticas públicas, mas também a propósito da relação com os movimentos sociais e outros ativismos da sociedade civil. Recorrendo ainda uma vez às valiosas reflexões que Pierre Bourdieu dedicou a este assunto, é oportuno convocar o conceito de “poder de refração” do campo científico, já mencionado. O poder de refração, recorde-se, é a capacidade de o campo científico filtrar as pressões externas a que está sujeito, acrescentando Bourdieu que “quanto mais autónomo um campo é, maior será o seu poder de refração e mais os constrangimentos externos são transfigurados, ao ponto de se tornarem irreconhecíveis”. Contudo, diz ainda o sociólogo francês, as ciências sociais têm mais dificuldades em serem autónomas, o que significa que estão mais expostas a intromissões exteriores, especialmente do campo político (Bourdieu, 1997: 15-16). Na mesma linha, mas com mais crueza, nota também que os cientificamente dominados (ou seja, as ciências sociais em face de outras áreas científicas) “estão mais inclinados a submeterem-se aos pedidos externos, de direita e de esquerda, e mais preparados, frequentemente por defeito, para os satisfazer, e têm portanto mais possibilidade de o conseguir na lógica do plebiscito, do aplausómetro”, até porque há menos sanção interna pelos pares do que noutros campos científicos (Bourdieu, 2001: 171).

Talvez estas advertências sejam exageradas e subestimem a capacidade da sociologia de defender o seu espaço de autonomia e utilizar o seu ethos científico e os seus recursos cognitivos para navegar com independência num mundo complexo de solicitações, sem ter de procurar retirar-se para uma ilusória torre de marfim. Mas essas advertências não são de desconsiderar, até porque a pressão sobre a autonomia do campo sociológico não se coloca apenas de fora para dentro, mas far-se-á sentir também no interior desse mesmo campo, na medida em que sejam os próprios sociólogos a preconizar e praticar uma ligação ativa ao campo político, quer pelo lado da conceção e aplicação de políticas públicas, quer pelo lado da militância partidária e da ocupação de cargos governativos, quer ainda pelo lado da participação em movimentos sociais. Pode dizer-se que, em todos os lugares onde a sociologia atingiu um patamar de institucionalização avançada, ela dispõe de recursos institucionais, cognitivos, deontológicos e éticos que permitem esperar que seja capaz de se relacionar com o campo político, aos vários níveis referidos, sem se desfigurar como disciplina científica. Também é preciso dizer que a procura que é dirigida à sociologia a partir do campo político é um sinal de reconhecimento de estatuto adquirido e não representa, por definição, um fator de ameaça à independência científica, tal como o envolvimento dos próprios sociólogos na ação política também não o é necessariamente. Mas, dito isto, parece-me necessária mais reflexão, e também pesquisa empírica, sobre essa experiência de relação da sociologia com o campo político. É um bom tema para a sociologia se submeter à autoanálise sócio-histórica.

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Recebido: 30 de Abril de 2022; Aceito: 07 de Setembro de 2022

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