Notas introdutórias
O combate à primeira crise económica e financeira do século XXI (Ross, 2016) levou à austeridade, não só em Portugal, como em vários países da União Europeia (UE). A austeridade, através do Memorando de Entendimento (MdE) celebrado em maio de 2011 entre o então governo de José Sócrates e a Troika, composta pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Central Europeu (BCE) e a Comissão Europeia (CE), implicou a redução da despesa pública e o aumento da carga fiscal por parte do estado português.
Portugal foi dos países da UE mais severamente atingidos pela crise de 2008 (OECD, 2014; Eurofound, 2015) e que, associada à crise da dívida pública nacional, em 2010, arrastou o país para uma situação financeira bastante grave, que piorou no primeiro trimestre de 2011 (Mota, 2017). A crise destacou-se pelo aumento do desemprego e da emigração, da pobreza e da desigualdade social, e pela diminuição do poder de compra das famílias (Pedroso, 2014). A população idosa também se viu confrontada com a dureza dos sacrifícios da austeridade. Os seus rendimentos foram lesados pelo congelamento das pensões/reformas, pela redução dos benefícios sociais e pelo corte nos subsídios, pelo aumento das taxas moderadoras na saúde, das tarifas do gás, da eletricidade e dos impostos na sua generalidade.
Os anos de 2011 a 2013 foram de forte contestação social, tendo-se assistido à mobilização de vários setores da sociedade portuguesa em protesto contra a austeridade (Fonseca, 2016). Em setembro de 2013, milhares de reformados e pensionistas manifestaram-se proferindo palavras de ordem como “Roubo na pensão não é solução”. Em Portugal, ao invés de Espanha, algumas medidas emblemáticas foram abandonadas perante manifestações públicas ou chumbadas pelo Tribunal Constitucional (Pérez e Matsaganis, 2017). Foi o caso da suspensão dos subsídios de férias e de Natal aos pensionistas do estado, medida declarada inconstitucional através do Acórdão n.º 353/12.
As medidas de austeridade foram quase sempre anunciadas à opinião pública como se fossem inevitáveis e, na maior parte dos casos, prometidas como se fossem as últimas. Uma consequência inevitável pelo facto de os portugueses terem “vivido acima das suas possibilidades”. A austeridade, marcadamente neoliberal (Reis, 2013), foi levada ainda mais longe do que o programa negociado com a Troika. A reboque do “ajustamento” deu-se a aplicação de um outro programa, este de caráter mais ideológico e com particular interesse na retração do estado social e na desregulação dos mercados de trabalho (Capucha, 2014). As famílias tiveram de usar uma grande fatia do rendimento para pagar a enorme dívida, o que levou à queda do consumo privado, ao corte da despesa pública e ao aumento de impostos, o que amplificou os efeitos recessivos sobre a economia portuguesa (Engler e Klein, 2017). Entre 2009 e 2014, os rendimentos dos portugueses registaram uma quebra de 12%, isto é, menos 116 euros por mês. Contudo, entre os 10% mais pobres, houve uma perda de 25% do rendimento, enquanto entre os 10% mais ricos essa perda foi de 13% (Farinha Rodrigues, Figueiras e Junqueira, 2016).
Contudo, esta austeridade não resolveu o problema das dívidas soberanas, antes pelo contrário. Os custos sociais foram elevados e, nos países do Sul da Europa, pode vir a ter consequências negativas a longo prazo, ainda não totalmente visíveis, na proteção social e no crescimento económico (Pérez e Matsaganis, 2017) e dificilmente reversíveis tanto no mundo do trabalho como nas estruturas sociais (Carmo e Barata, 2017).
O Global AgeWatch da HelpAge International (2015)destaca pela negativa os impactos da austeridade na população idosa portuguesa. Isto é tão mais significativo se considerarmos que Portugal é dos países mais envelhecidos do espaço europeu, e que nesse mesmo relatório é avaliado como o terceiro pior país da Europa Ocidental, entre 19 países avaliados, em termos de bem-estar social e económico das pessoas idosas. Importa enfatizar que a população idosa portuguesa é um grupo vulnerável a situações de pobreza e de exclusão social (Lopes, 2006, 2010; Alves, 2015; Bruto da Costa, 2015), necessitando “de atenção social específica” (Farinha Rodrigues e Andrade, 2016: 228). É também dos grupos mais desfavorecidos em termos económicos, pois, apesar da cobertura universal das pensões, cerca de um milhão e meio de idosos têm pensões abaixo dos 500 euros (CES, 2012).
Os cortes na despesa pública, num país com baixos níveis de proteção social (Ferrera, 1996) e sem medidas de mitigação, têm repercussão nas categorias mais dependentes do estado, entre as quais a população idosa (Walker, 2015). Isto verificou-se de uma forma clara em Portugal, em que a austeridade veio agravar as fragilidades das políticas sociais, em especial daquelas direcionadas para os mais velhos (Capucha, 2014).
Sabe-se pouco sobre os impactos da crise e da austeridade na população mais velha, tanto em Portugal como nos outros países europeus. Walsh e colaboradores (2015) observaram que este fenómeno não estaria a merecer atenção das ciências sociais e das políticas públicas, e que a austeridade poderia afetar negativamente a inclusão social das pessoas mais velhas. Os estudos até agora realizados têm-se debruçado sobre os impactos da austeridade nos cuidados sociais e de saúde prestados aos mais velhos. Por exemplo, em Inglaterra, os cortes da despesa pública levaram a dificuldades no reconhecimento das necessidades dos mais velhos e na capacidade dos serviços sociais em satisfazê-las (Locke e West, 2018). Também se identificou um aumento da taxa de mortalidade nos pensionistas mais velhos e pobres como resultado dos cortes nos apoios aos grupos vulneráveis (Loopstra et al., 2016). Em países como a Bélgica e a Holanda, os cortes governamentais nos cuidados de longa duração colocaram os mais velhos em risco de não receberem estes cuidados (Janssen, Jongen e Schröder-Bäck, 2016). Já em Portugal, a investigação sobre as consequências da crise e da austeridade focou-se noutros grupos vulneráveis, tais como crianças e pessoas com deficiência e, no caso em que dirigiu a atenção para as pessoas mais velhas, também se limitou à área da saúde. Destaca-se o estudo de Cardoso e colaboradores (2015) onde é concluído que os idosos foram mais vulneráveis aos efeitos da crise na saúde mental, por comparação com os mais jovens.
Existe, assim, um reconhecimento alargado de que a população idosa terá sido afetada pela crise e pelas medidas de austeridade, pese embora a investigação científica ser escassa. O conhecimento sobre o modo como as pessoas mais velhas experienciaram este contexto sócio-histórico é de facto quase inexistente, considerando-se que as experiências, contadas por quem as viveu, constituem uma peça chave para uma compreensão mais aprofundada deste fenómeno. Nesta ordem de ideias, este artigo reporta os resultados de uma investigação científica (realizada no âmbito da tese de doutoramento da primeira autora) que privilegiou uma perspetiva “émica” sobre os desafios e as dificuldades colocadas pela crise e a austeridade às pessoas mais velhas. A crise e a austeridade podem ser conceptualizadas como um desafio sócio-histórico, uma “épreuve” (prova) (Martuccelli, 2006), que se colocou a todos os cidadãos, com especial relevância junto dos mais vulneráveis, entre os quais se incluem os mais velhos. Neste artigo exploram-se, então, os contornos deste desafio, os quais revelam uma contradição entre as velhices realmente vividas e as velhices esperadas/idealizadas.
O artigo está estruturado da seguinte forma: no segundo ponto, é dada particular atenção aos conceitos e às dimensões de análise; no terceiro ponto, dá-se a conhecer a estratégia metodológica e as técnicas de recolha e de análise dos dados; no quarto e quinto pontos, são apresentados e discutidos os principais resultados; e no último ponto, tecidas as principais conclusões e apresentadas as limitações, bem como algumas pistas para investigação futura.
Conceitos e dimensões de análise
Uma vez que a austeridade tem uma natureza económica, resgatou-se o conceito de “sociedade de austeridade” (Ferreira, 2011, 2012a, 2012b), entendido como o elo de ligação dos problemas sistémicos aos problemas dos indivíduos e famílias. Apesar de se centrar sobretudo nos temas laborais, este conceito capta a perturbação das dinâmicas institucionais e individuais que se verificaram na sociedade portuguesa com a execução do MdE.
Outro conceito central é o de “épreuve” (prova) (Martuccelli, 2006, 2009a, 2009b, 2010, 2015), operador analítico que permite fazer a ponte entre a grande história coletiva e as experiências individuais. Numa tradução da obra original, “épreuve” significa prova ou desafio, historicamente criado e desigualmente distribuído pela população. É através das respostas às “provas”, que variam em função das sociedades e dos respetivos períodos históricos, que os indivíduos se singularizam. Neste sentido, este conceito leva à compreensão dos modos como as pessoas idosas responderam às provações coletivas que lhes foram colocadas pela crise e a austeridade.
O modelo de análise intersecta três dimensões que problematizam a relação dinâmica entre os níveis macro/micro e diacronia/sincronia. A primeira dimensão recai sobre as “práticas familiares” (Morgan, 1996, 2011a, 2011b), que são a “porta de entrada” nas vidas das pessoas idosas. Olha-se para as famílias não por aquilo “que são” ou “para que servem”, mas “pelo que fazem” no seu quotidiano, debruçando-se, assim, mais nos aspetos da interação, do que nos da estrutura. As “práticas familiares” são reveladoras de como a história e as biografias individuais se entrecruzam e como tendem a modelar as relações intergeracionais (Morgan, 2011b). Isto é relevante para se analisar, num contexto recessivo, a dialética entre estabilidade e mudança nas práticas das pessoas idosas e respetivos familiares.
A segunda dimensão de análise é operacionalizada através da “perspetiva do curso de vida” iniciada por Glen Elder (1985, 1994, 1997) e desenvolvida, entre outros, por Richard Settersten Jr. (2003). Uma das potencialidades é a sua capacidade de “bridge and link” (Marshall, 1996) de várias correntes teóricas e de chamar a atenção para a diacronia e a sincronia, ou seja, como as vidas e as práticas familiares se desenrolam ao longo do tempo, e como uma fase específica do percurso de vida é singular, do ponto de vista biográfico e histórico. Esta perspetiva permite, também, uma visão holística do percurso de vida, ao interligar as fases avançadas das vidas com as suas fases mais iniciais, oferecendo um entendimento mais profundo de como o passado se revela no presente e como pode influenciar o futuro. É retirado igual partido do constructo de “vidas interligadas” (Bengtson, Elder Jr. e Putney, 2005), que remete para a ideia de que aquilo que sucede a um indivíduo acaba por atingir quem lhe está mais próximo. Esta interdependência significa que um evento crítico na vida de um indivíduo pode levar a ajustamentos nas vidas daqueles que lhe estão vinculados (Gouveia, 2014).
A mobilização da “perspetiva do curso de vida” e do conceito de “práticas familiares” procura contribuir para o amadurecimento da relação entre dois domínios importantes da Sociologia: a Sociologia da Família com uma produção científica de referência e interdisciplinar nas ciências sociais e a “perspetiva do curso de vida”, cuja operacionalização metodológica, em Portugal, ainda se mostra, no entanto, incipiente (Nico, Cunha e Casimiro, 2016).
A última dimensão de análise emergiu no decorrer da análise dos dados e fez-nos olhar para a velhice enquanto uma construção social. Esta lente construtivista (Berger e Luckmann, 2010) permitiu analisar como a velhice realizada ia ou não ao encontro da construção social dominante da velhice, objetivada em valores como a autonomia e a livre escolha e suportada em atividades de valorização pessoal, muito veiculada pelos discursos contemporâneos do “envelhecimento ativo”.
Estratégia metodológica
Para sabermos em que consiste a “prova” da crise e da austeridade junto dos mais velhos, optou-se por uma estratégia de investigação qualitativa, com ênfase na abordagem biográfica/narrativa (Bertaux, 1976, 2020; Gubrium e Holstein, 2008; Riessman, 2008). A utilização desta abordagem contribuiu para revelar as experiências das pessoas mais velhas (65 e mais anos de idade) que ainda se encontram ocultadas e que, como tal, não têm sido devidamente retratadas (Hughes, 2014). Por outro lado, permitiu tirar um bom partido daquela que é, por excelência, a fase narrativa da vida (Freeman, 1997). Através das narrativas de vida procurou-se ter acesso não só às subjetividades e aos significados, mas também às estruturas e aos processos sociais mais amplos que moldam as vidas humanas. A abordagem narrativa assenta na entrevista narrativa como técnica privilegiada de recolha de dados, a qual consiste numa “entrevista durante a qual um/a ”investigador/a" […] pergunta a uma pessoa […] que lhe conte toda ou somente parte da sua experiência vivida, colocando a tónica […] sobre o aspeto “vida social” (Bertaux, 2020: 1).
A pesquisa empírica foi realizada em Faro, concelho que concentra a maior percentagem de residentes da região do Algarve. É um território onde se verifica uma tendência de envelhecimento demográfico, pois a população idosa (65+) foi o grupo etário que, segundo os dados do INE, mais cresceu entre 2001 e 2011 (+26,2 p.p.). Importa referir que, além dos critérios de ordem prática (justificados também pela conveniência de acesso ao território), esta escolha descentraliza a investigação sociológica em torno da família, para outros terrenos geográficos que ainda se encontram pouco explorados (Costa, 2014).
A amostra tem representatividade simbólica e é composta por 28 pessoas idosas, com idades entre os 69 e os 92 anos de idade, de ambos os sexos, de nacionalidade portuguesa e residentes no concelho de Faro. Foram entrevistadas 19 mulheres e 9 homens, cuja média de idades se situava nos 77 anos. O esforço efetuado para integrar um maior número de homens idosos na amostra viu-se, porém, nitidamente dificultado pela feminização destas faixas etárias, dada a esperança de vida das mulheres ser superior à dos homens.
Através da combinação de várias estratégias de amostragem (intencional, conveniência e bola de neve) foram selecionadas pessoas mais velhas, institucionalizadas ou não, de diferentes sexos, idades, posições sociais e situações conjugais. No entanto, este artigo dá conta apenas dos resultados relativos àquelas não institucionalizadas em lares de idosos. Isto prende-se com o facto de o número na amostra de pessoas institucionalizadas ser reduzido (cinco) e, como tal, limitar uma análise comparativa entre institucionalizados e não institucionalizados.
O trabalho de campo, realizado entre outubro de 2016 e março de 2017, salvaguardou o direito à informação e à autonomia, à participação voluntária, à garantia da confidencialidade dos dados, da privacidade e do anonimato dos participantes. A recolha dos dados terminou logo que foi atingida a saturação empírica.
A transcrição das entrevistas foi realizada pela primeira autora e permitiu uma maior familiarização com os dados recolhidos, o que seria mais difícil de obter pela leitura de material transcrito por terceiros (Gilham, 2000). As entrevistas foram analisadas através da framework analysis (Ritchie et al., 2014; Spencer et al., 2014), uma técnica de análise temática de conteúdo que, além de garantir uma elevada transparência analítica, fixa o processo de categorização nos dados. Mais detalhes sobre a estratégia metodológica são fornecidos em Coelho (2019: 103-123).
A “prova” da crise e da austeridade
Os resultados mostram que a “prova” da crise e da austeridade se manifesta através da contradição entre a velhice efetivamente vivida e a velhice esperada/idealizada. Esta contradição apresenta duas propriedades essenciais. A primeira propriedade traduz-se num desfasamento entre uma velhice real, marcada por sacrifícios e dificuldades não esperadas, trazidas pela crise e pela “sociedade de austeridade”, e uma velhice esperada, muito idealizada em torno do lazer e livre de preocupações. Esta velhice esperada é reflexo de uma construção social da velhice, dominante nas sociedades contemporâneas, cujos traços mais relevantes são a autonomia, a escolha e o lazer (Higgs e Gilleard, 2015). Esta construção social corresponde a uma “nova” terceira idade e revela uma agenda cultural e social muito mais inclusiva (Higgs e Gilleard, 2021). As “novas culturas da terceira idade”, muito dadas ao consumo, ao engajamento social e à autorrealização (Gilleard e Higgs, 2000), distinguem-se da “antiga terceira idade”, predominante até meados do século XX, muito associada aos estereótipos de pobreza, de dependência e de isolamento social (Higgs e Gilleard, 2015, 2021). À “nova” terceira idade está subjacente o discurso do “envelhecimento ativo” e do “envelhecimento bem-sucedido”, ambos positivos, apelativos e supostamente inspiradores para os indivíduos (Rudman, 2015; Lamb, Robbins-Ruszkowski e Corwin, 2017). A terceira idade distingue-se da quarta idade, pois, enquanto a primeira é um “campo cultural” muito associado ao discurso do “envelhecimento ativo”, a quarta idade é um “imaginário social”, o lado mais sombrio da velhice, “um buraco negro”, uma representação coletiva daquilo que é mais temido e mais desagradável nesta fase mais adiantada da vida (Gilleard e Higgs, 2010; Higgs e Gilleard, 2015, 2016).
A segunda propriedade da contradição entre a velhice vivida e a velhice esperada/idealizada remete para as vidas dos familiares mais próximos das pessoas mais velhas, e consiste num desfasamento entre a vida real destes familiares (principalmente dos filhos adultos), muito marcada pela incerteza, e a vida idealizada pelos pais (participantes neste estudo) marcada por expetativas de estabilidade e sem dificuldades de maior. Só que a instabilidade laboral vivida pelos filhos, e intensificada pela crise e a austeridade, acabou por se interligar com as vidas dos pais idosos, na medida que estes se viram obrigados a prestar-lhes vários tipos de apoio. Este chamar a si de responsabilidades familiares fora do “relógio social”, isto é, por se dar em fases tardias do percurso de vida, acabou por contribuir para o desfasamento entre a velhice vivida e a velhice idealizada. Uma vez chegadas às fases mais avançadas da vida, as pessoas mais velhas esperam não ter entre mãos responsabilidades familiares, tais como voltar a apoiar financeiramente os filhos (Lasslet, 1991, como citado em Rubinstein, 2002: 31; Settersten Jr., 2017), ao mesmo tempo que esperam ter mais tempo para atividades de gratificação pessoal e de lazer (Laslett, 1989, como citado em Gilleard e Higgs, 2002: 370).
Os resultados revelam, ainda, que a “prova” da crise e da austeridade tem as suas especificidades em função dos perfis sociológicos das pessoas mais velhas. Com efeito, encontrámos três perfis sociológicos distintos: “socialmente vantajoso”; “misto/intermédio”; e “socialmente desvantajoso”. É nos perfis mais antagónicos, ou seja, no “socialmente vantajoso” e no “socialmente desvantajoso”, que os contornos da “prova” da crise e da austeridade surgem mais notórios e são justamente estes que vamos em seguida dar a conhecer.
Façamos, então, uma breve descrição do primeiro perfil, o qual corresponde, em termos gerais, aos padrões de vida de “velhice autónoma” e “velhice distintiva” identificados por Mauritti (2004). O perfil “socialmente vantajoso” tem dez participantes e é maioritariamente composto por mulheres (integra apenas quatro homens). A maior parte tem idades compreendidas entre os 69 e os 83 anos, sendo maioritariamente casados (sete participantes). Todos os participantes têm formação superior e ocupavam posições sociais mais favorecidas na estrutura de classes (eram no ativo, profissionais técnicos e de enquadramento). Todos os participantes têm filhos.
Quanto ao perfil “socialmente desvantajoso”, o qual pode ser associado aos padrões de vida de “velhice precária” também identificada por Mauritti (2004), tem oito participantes e é igualmente composto sobretudo por mulheres (integra dois homens). Têm idades entre os 70 e os 82 anos e predominam os viúvos. Cerca de metade destes participantes vive só e a outra metade vive acompanhada. A maioria tem dois filhos. Mais de metade tem um nível de escolaridade equivalente ou inferior à antiga 4.ª classe. Em relação aos lugares de classe, eram na sua maioria empregados executantes (apenas dois participantes do operariado e uma doméstica).
É neste último perfil que encontramos as mudanças mais severas nas práticas familiares, especialmente na dimensão do consumo de bens e lazer. Os participantes que se inserem neste perfil viram-se “forçados” a enveredar pela cessação completa do consumo de alguns bens alimentares e de compra de vestuário ou pelo corte radical das atividades de restauração, férias e viagens, relegando-os, ainda mais, para as margens apertadas da sociedade e, nalguns casos, para situações de pobreza e de exclusão social. Estes resultados vão ao encontro de alguma literatura produzida neste âmbito (Farinha Rodrigues, Figueiras e Junqueira, 2016), que contrariam a ideia de que, em Portugal, os mais pobres e vulneráveis teriam sido dos mais protegidos face à crise e à austeridade.
Uma velhice diferente da idealizada/esperada
A contradição entre a velhice vivida e a velhice idealizada/esperada desencadeada pela crise e a austeridade encontra-se de uma forma muito clara em vários dos casos analisados que pertencem ao perfil “socialmente desvantajoso”. Começamos pelo Gil, que vivia sozinho, sem filhos e que, apesar de ter dois irmãos, era como se não os tivesse. Era apoiado por uma Instituição Particular de Solidariedade Social (IPSS). Vivia numa casa alugada, cuja renda consumia quase toda a sua reforma, após ter dedicado uma vida inteira de trabalho à cozinha. Dois meses após completar os 65 anos de idade e já com o pedido de reforma formalizado, é confrontado com uma perda de visão quase total e irreversível. Gil revelou-nos que a incapacidade, a reforma e a entrada da Troika no país formaram uma “tempestade perfeita” na sua vida, o que levou a uma diminuição muito significativa dos seus rendimentos e a um conjunto de privações severas:
Isto tudo coincidiu com a Troika. Deixei de fazer tudo. Uma parte foi pelos baixos rendimentos, porque não tenho como fazer. A outra parte veio com a incapacidade. Há coisas que não posso mesmo fazer. […] Este mês tenho estado a leite e pão […]. Tive de comprar a garrafa de gás e fiquei sem o dinheiro. […] Esperava chegar até aqui melhor, com uma vida mais confortável. Tive de pedir ajuda aqui à XXX [refere-se a uma IPSS]. Foi logo no início [da crise]. Ajudam-me com a alimentação. [Gil, 71 anos, solteiro, cozinheiro reformado]
Também Eva, à semelhança de Gil, teve que pedir ajuda alimentar a uma IPSS. O aumento generalizado do custo dos bens e serviços básicos fez com que ambos tivessem de recorrer a esta resposta social. Eva ainda tentou obter o complemento solidário para idosos (CSI), mas viu este apoio ser-lhe negado pela Segurança Social. Esta participante lamenta o facto de uma vida mais desafogada e despreocupada ter dado lugar a uma velhice de privações, que não esperava vir a encontrar nesta fase da vida. O poder de compra reduziu-se significativamente e Eva teve de fazer cortes radicais no consumo:
Deixei de comprar, deixei de sair, deixei de ir às excursões do Inatel, aumentaram tanto o preço. […] Sinto-me mal, tenho passado mal. […] trabalhei uma vida inteira, trabalhámos tanto os dois. Tinha uma vidinha boa e agora não poder comprar aquilo que nos apetece… é duro! Imaginava chegar aos 79 anos de outra maneira. Podia ter sido diferente. [Eva, 79 anos, casada, operária fabril reformada]
Por último, o contraste entre a velhice vivida e a velhice idealizada que emergiu por força da crise e da austeridade, também se encontra no perfil “socialmente vantajoso”, embora com contornos menos gravosos. Temos o caso de Duarte, casado, pai de cinco filhos (o mais novo com sete anos), estando os adultos com situações estáveis. O médico reformado, apesar de ter uma reforma acima da média e que considerava “intocável”, deixou de ter capacidade financeira para fazer muitas coisas. A reforma (a única fonte de rendimentos de uma família de quatro elementos) foi cortada e, como tal, Duarte teve de abdicar de fazer as viagens de que tanto gostava.
Eu pude ir duas vezes ao Brasil em estadias prolongadas, a Goa (que era um antigo sonho meu), ao Egipto, a Zanzibar e deixei de poder de fazer estas viagens […]. Foi uma desilusão. [Duarte, 76 anos, casado, médico reformado]
Uma vida dos familiares diferente da esperada
A contradição entre uma velhice vivida, com preocupações e responsabilidades familiares, e uma velhice esperada, despreocupada e sem responsabilidades familiares de maior, é uma tendência transversal aos dois perfis sociológicos. No que se refere ao perfil “socialmente desvantajoso”, damos a conhecer os casos de Joana e de Ema e daqueles que lhes são mais próximos.
Por força de estar só e desempregado, e de várias experiências de emigração que não foram bem-sucedidas, Artur viu-se obrigado a regressar para a casa da mãe. Joana teve de prestar algum apoio para que a vida do filho voltasse a entrar nos eixos, uma vez que este “foi muito afetado porque não conseguia arranjar emprego”.
Eu é que estou a ajudar, comecei a trabalhar aos 12 anos e agora sustento um filho de 50 anos… Agora são os pais que têm que ajudar os filhos e os filhos já não vão para novos. […] Eu pago as despesas todas cá da casa, só para ele ter um rumo na vida, sorte e ter a independência dele aos 50 anos. [Joana, 77 anos, viúva, auxiliar de serviços domésticos, reformada]
Já Ema, que até se considerava uma pessoa dinâmica, deixa escapar o desabafo que “havia coisas que fazia e deixei de fazer”, como por exemplo, passar a passagem do ano em Espanha com a neta. Deixou de haver dinheiro para estas viagens. A filha Gabriela viu-se desempregada em 2011, na sequência da extinção do posto de trabalho, causado pelas dificuldades financeiras da farmácia onde trabalhava. A neta Leonor, para ajudar a mãe “teve que deixar de estudar de dia para trabalhar”.
A vida deu uma volta de 360 graus! Eu tinha a pensão cortada e tive que ajudá-las. Eu era uma pessoa dinâmica e agora já não consigo. Faço o trivial. As preocupações destes últimos anos tiraram-me anos de vida […] comigo foi viver sempre em função da minha filha. O que lhe afeta a ela acaba por me afetar também. [Ema, 73 anos, solteira, operadora de telecomunicações, reformada]
Por sua vez, no perfil “socialmente vantajoso”, destacamos os casos de José e de Dina. O professor reformado esperava vir a concretizar certas viagens que não teve a oportunidade de realizar e que esperava gozar nesta fase da sua vida. Porém, estes planos foram “postos de lado”. Os três filhos, profissionais qualificados, entraram em trajetórias de empregos precários e mal pagos e de desemprego, que se intensificaram nos anos da Troika. Esta situação não tem permitido a José e à sua mulher Rosa concretizarem os seus sonhos:
A minha pensão dava perfeitamente para fazer uns bons passeios durante o ano, se não fossem os filhos. Eu deixei de fazer coisas que pensei vir poder a fazer um dia. Nunca fiz um cruzeiro. Gostava de fazer um cruzeiro. […] Os sonhos acabaram! [José, 75 anos, casado, professor reformado do ensino secundário]
Com a crise e as medidas de austeridade, Dina e o marido Romeu não tiveram outra hipótese senão socorrer-se das suas reformas e do património imobiliário para apoiar os três filhos, em particular Jorge, agora desempregado por força da reestruturação do banco onde era gerente. A mãe mostra-se bastante apreensiva com o futuro do filho mais velho, que é de longe aquele que concentra as suas maiores preocupações:
O meu filho tinha posição, casa própria, carro. Uma vida estabilizada. Agora aos 49 anos, é tudo uma incógnita. Um ponto de interrogação. […] está desempregado, era bancário no XXXX. […] Não é que eu com a reforma do meu marido não possamos ajudar. Mas não estamos cá sempre e é preciso preparar as coisas. Agora decidimos arranjar as casas para as pôr a render, porque têm estado fechadas. Antes, não valia a pena. [Dina, 75 anos, casada, professora reformada do antigo ensino primário]
Discussão dos resultados
Através do olhar biográfico/narrativo, procurou-se realizar uma “curta-metragem” dos desafios colocados pela “sociedade de austeridade” às pessoas mais velhas.
A crise e a austeridade, enquanto desafio socialmente produzido e desigualmente distribuído, levaram a uma contradição entre a velhice vivida e a velhice esperada/idealizada. Este desfasamento entre o vivido e o esperado que se gerou, independentemente da vontade dos mais velhos, é flagrante tanto no perfil sociológico mais desvantajoso como no perfil sociológico mais vantajoso. Contudo, dá-se de uma forma mais gravosa junto do perfil “socialmente desvantajoso”.
Esta contradição fez com que, em muitos casos, a velhice esperada não passasse mesmo só disso. Uma fase da vida imaginada, mas que fica adiada sine die, de forma dolorosa. Por outro lado, esta contradição também fez com que as pessoas mais velhas se vissem frente a frente com responsabilidades familiares e com sacrifícios fora do “calendário social”. É um reencontro inesperado dos pais idosos com a dependência dos filhos que tende a caracterizar a fase da infância e da adolescência, só que, desta feita, os filhos já são adultos. Estas mudanças nas relações intergeracionais geram desilusão, preocupação e frustração. Importa sublinhar que, na área das ciências sociais, existe um volume considerável de literatura sobre os impactos negativos dos eventos e transições não normativas (Neugarten, 1970; Elder e Rockwell, 1976; São José, 2012). Isto mostra a importância da interligação das trajetórias das pessoas mais velhas com as trajetórias de vida dos familiares, e que provam ter impactos decisivos nas vidas de ambos, dando corpo ao constructo de “vidas interligadas” (Settersten Jr., 2015). Por seu turno, através do “olhar interseccional”, conseguimos identificar que, apesar da “prova” da crise e da austeridade ter sido um desafio coletivo, os participantes não “estavam todos no mesmo barco”. É sobretudo junto das mulheres com idades mais avançadas e não casadas, que predominam no perfil “socialmente desvantajoso”, onde se encontram os contornos mais penosos da contradição entre a velhice vivida e a velhice esperada/idealizada.
Considera-se, assim, que este artigo contribui para a compreensão sociológica das crises e das forças de transformação por elas geradas, uma vez que a sociologia tem enfrentado uma certa dificuldade na compreensão deste tipo de fenómenos de rutura (Wieviorka, 2009). Complementa os estudos quantitativos, oferecendo um olhar mais próximo das vidas das pessoas mais velhas, captando a forma como a crise e a austeridade se manifestaram nas suas vidas. Chama a atenção, em particular, para o poder disruptivo das crises ao nível das biografias, aspirações e expetativas individuais. Martuccelli (2006) refere que os desafios/provas podem ser geradores de crises biográficas, com implicações nas experiências e trajetórias de vida individuais. Este artigo revela também que as consequências das crises se podem fazer sentir por via indireta, ou seja, através das dificuldades que afetam familiares e/ou de outros significativos.
Para além disto, este artigo contribui para trazer ao conhecimento sociológico as experiências vividas por um conjunto de indivíduos que pertencem às categorias sociais mais desfavorecidas e desvalorizadas das sociedades contemporâneas, algo que nem sempre tem acontecido em estudos anteriores sobre a população mais velha (Edmonson, 2009). Rompe com discursos algo idadistas que passam a mensagem que, por comparação com os mais jovens, os mais velhos têm sido dos mais protegidos face à crise e à austeridade. Como refere Walker (2012), isto pode ser atribuído ao desconhecimento da realidade social, uma vez que a informação sobre as consequências da crise e da austeridade nas vidas destas pessoas são manifestamente insuficientes (Walsh et al., 2012) e Portugal não foge a este padrão.
Por último, este artigo fornece algumas pistas para se equacionarem políticas públicas para minimizar os custos individuais e sociais deste tipo de crises. Em futuras crises e cenários de austeridade, os decisores políticos devem prestar uma atenção especial aos mais vulneráveis e desfavorecidos, mesmo que isto implique rever ou adaptar as medidas de apoio social, de acordo com o desenrolar das condições económicas e sociais. Idealmente, estas medidas deveriam traduzir-se em respostas prontas direcionadas também para a saúde, física e mental, dos cidadãos, dado que este é outro aspeto central para manter a dignidade da vida humana.
Considerações finais
Esta investigação qualitativa contém algumas limitações que, para finalizar, importa reconhecer. A principal limitação tem a ver com a composição da amostra, que conta com uma fraca participação de homens, impossibilitando a realização de uma análise comparativa rigorosa entre homens e mulheres. Para além disto, a amostra é constituída exclusivamente por pessoas mais velhas, excluindo outros protagonistas desta grande “história coletiva”. Teria sido interessante, do ponto de vista sociológico, obter também as narrativas, por exemplo, dos filhos adultos. Apesar destas limitações, julgamos que esta investigação traz um contributo efetivo para a compreensão deste momento histórico particularmente difícil para a vida dos portugueses, especialmente dos mais velhos.