Introdução
A universidade tem vindo a sofrer profundas alterações nas últimas décadas. Um pouco por todo mundo, as instituições universitárias deixaram de se reger unicamente pela centralidade dada ao conhecimento e à formação de cidadãos ou pela sua autonomia organizacional face a pressões externas, passando a abraçar princípios, práticas e formas de organização importados do campo empresarial e subordinados ao poder do mercado. A massificação da frequência universitária, bem como a crescente expectativa no papel da universidade como via de mobilidade social por parte dos outrora excluídos da educação superior, caminham de mãos dadas com este processo de reestruturação das universidades que, no entanto, tem assumido contornos distintos em função dos contextos nacionais e das conjunturas sociopolíticas. Neste sentido, o Chile pode ser considerado um interessante caso para refletir sobre os processos de transformação na educação superior, essencialmente por três razões. Em primeiro lugar, porque a destruição do modelo de universidade pública e gratuita e a imposição de um modelo de mercado universitário ocorreram no quadro de uma ditadura fascista, sem que existissem espaços de diálogo ou de contestação de tal mudança de paradigma. Em segundo lugar, porque o Chile pós-ditadura é um dos países do mundo onde a privatização da educação atinge níveis mais elevados e onde as famílias mais gastam com a educação dos filhos. Por fim, porque o sistema educativo chileno é um dos mais segregadores do mundo, o que nos permite refletir, por um lado, sobre a hierarquização entre universidades de elite e de massas e, por outro lado, sobre os reais ganhos e vantagens da frequência universitária por parte das classes baixas e médias-baixas. Acresce que o Chile representa um dos casos mais extremos, no mundo, de aplicação dos princípios neoliberais à agenda educativa, tendo a experiência chilena assumido um papel fundamental para o desenvolvimento das políticas neoliberais e para a sua “exportação” pelo mundo.
Tomando como pano de fundo este país latino-americano, propomo-nos refletir sobre os processos de reconfiguração da universidade no sentido da sua mercadorização e da sua massificação.1 Para tal, este artigo organiza-se em quatro partes, além desta introdução. Num primeiro momento, e antes de entrar no caso particular do Chile, refletimos sobre a permeabilização dos modelos de universidade às lógicas neoliberais e analisamos o crescimento exponencial da matrícula universitária no mundo. Seguidamente, incidimos especificamente sobre o Chile, problematizando o seu atual modelo universitário - construído e sedimentado na década de 80, no quadro de uma ditadura enformada pelos valores neoliberais - e analisando ainda os processos de massificação universitária neste país, ancorados na privatização, na segregação social e académica, na desresponsabilização do estado pelo investimento no ensino público e no endividamento de estudantes e famílias. Na quarta parte, refletimos sobre os problemas, desafios e oportunidades dos estudantes de primeira geração universitária, não só em termos sociais e profissionais, mas também em termos de reconfiguração do seu habitus e de novas experiências de vida. Para tal, apoiamo-nos essencialmente nos recentes estudos chilenos que problematizam os desafios da integração académica de estudantes outrora afastados do mundo universitário e os ganhos em termos de mobilidade social. Por fim, analisamos os impactos do modelo de mercado educativo neoliberal no Chile, refletindo sobre os processos de contestação social e política protagonizados pelos estudantes e que tiveram o seu expoente máximo em outubro de 2019, quando o “Chile despertó” para o legado de desigualdade deixado pelo paradigma neoliberal.
Reconfiguração do modelo universitário e processos de massificação da educação superior
O século XX e, sobretudo, os anos posteriores à Segunda Guerra Mundial trouxeram profundas modificações aos sistemas nacionais de educação superior (Ostling, 2018). Uma das alterações com maior impacto resultou do facto de as universidades - um pouco por todo o mundo ainda que com intensidades e configurações distintas - se deixarem permeabilizar pelo neoliberalismo económico, incorporando os seus valores e adotando as suas práticas (Ball, 2016), numa lógica empobrecedora de mimetização de outras instituições do campo económico e social (Nóvoa, 2020).
Importa, no entanto, ter em conta que o modelo neoliberal de educação superior não configura uma realidade homogénea nem linear. Ele assume matizes variados não só entre países com distintas especificidades sociais, políticas e económicas, mas também dentro de cada contexto nacional (Teodoro, 2015), inscrevendo-se no quadro de uma variegada neoliberalização da educação superior (Kavka, 2017). Por outro lado, o modelo neoliberal de educação coexiste, em determinados contextos nacionais, com modelos de universidade alternativos à lógica mercantil da educação, de que são exemplo, entre outros casos, as universidades populares (Teodoro, 2015).
Apesar de não configurar uma experiência unívoca e ortodoxamente replicável nas diferentes latitudes do globo, o modelo educativo neoliberal caracteriza-se por uma perspetiva instrumental da educação (Lauder e Mayhew, 2020) alimentada pelas teorias do capital humano, que deixou de privilegiar a formação do pensamento crítico e do compromisso cívico (Giroux, 2016) para estar ao serviço da economia e da prosperidade das nações, orientando-se para a produção dos trabalhadores requeridos pelo mercado de trabalho. Assim, com a adesão dos sistemas universitários ao modelo neoliberal assistiu-se à subordinação dos principais valores académicos a um novo ideário de matriz económica (Budd, 2018) que está subjacente, nomeadamente, ao Processo de Bolonha (Teodoro, 2015). A ênfase da universidade na questão da empregabilidade e a marginalização de cursos das áreas humanísticas em benefício de cursos científicos e de natureza tecnológica (Mintz, 2021; Costa, 2019) são expressão dessa tentação pelo “utilitarismo” (Nóvoa, 2020) que atinge a educação superior. Sob o impacto das “novas correntes de gestão do capital, genericamente designadas por nova governação pública (NGP)” (Cerdeira, Mucharreira e Cabrito, 2021: 199), a universidade deixou de ser vista como um serviço, para ser encarada como um bem de consumo (Ball, 2016) e o aluno passou a ser um mero consumidor a quem cabe a responsabilidade e a liberdade individuais de fazer a “boa escolha” do curso e da instituição no mercado educacional que lhe é posto à disposição. A perspetiva da educação como investimento individual e rentável ajuda a legitimar não apenas o desinvestimento do estado na universidade pública (Santos, 2008), mas também o financiamento pelos próprios alunos da sua formação (Mintz 2021; Cerdeira, Mucharreira e Cabrito, 2021), nomeadamente através de empréstimos bancários que os deixam presos a dívidas responsáveis pela degradação do seu bem-estar económico (Nissen, Hayward e McManus, 2019).
Os mecanismos de accountability, ainda que sob diferentes tipologias (Maroy e Pons, 2018), visam, alegadamente, assegurar ao consumidor de educação a necessária transparência sobre a qualidade, a eficiência, a eficácia e a excelência dos provedores de educação presentes no mercado. A implementação de medidas como os rankings - nacionais e internacionais - ou o financiamento com base no desempenho (Dougherty e Natow, 2020; Cruz, 2017) inscrevem-se nessa linha de responsabilização e transparência.
Este processo de mercadorização do ensino superior desenvolve-se num quadro marcado por uma procura crescente de acesso à universidade (Cerdeira, Mucharreira e Cabrito, 2021; Martins e Vieira, 2018) que, juntamente com a emergência da economia global do conhecimento e com a crescente competição nacional e internacional, vão criar o contexto perfeito para uma “revolução” sem precedentes no mundo da educação superior (Altbach Reisberg e Hit, 2017). A massificação do ensino superior constitui, de facto, um dos fenómenos do campo educativo mais marcantes das últimas décadas (Bathmaker et al., 2016; Marginson, 2016) e uma das mais impactantes dinâmicas de transformação a nível mundial (Altbach, 2017). Segundo dados da UNESCO, entre 1970 e o ano 2000, o número de estudantes universitários passou de 32,6 milhões para 99,9 milhões, prevendo-se que atinja os 377,4 milhões em 2030 e os 594,1 milhões em 2040 (Calderón, 2018). É assim que o sistema universitário de massas se torna a norma à escala mundial (Marginson, 2016), com 34% dos 176 países analisados pela UNESCO a alcançar a etapa da universalização e 27% - maioritariamente da África Subsariana - a continuar a ter um sistema de elites (Calderón, 2018). A resposta ao crescimento exponencial da procura de universidade nos países desenvolvidos levou ao crescimento do setor privado, que registou um significativo aumento em 30 dos países analisados por Altbach Reisberg e Hit (2017), ainda que com expressão diferente de país para país. O Chile, como veremos seguidamente, é um exemplo paradigmático de expansão universitária fortemente ancorada no setor privado.
O caso chileno: neoliberalismo e privatização
O sistema universitário chileno como laboratório do neoliberalismo
O Chile constitui um interessante caso de permeabilização do sistema educativo ao modelo neoliberal. Com efeito, este país da América Latina serviu como primeiro laboratório para a implementação das políticas neoliberais (Inzunza et al., 2019) e como uma “experiência única de mercado, concorrência e privatização” (OPECH, 2019: 1) na educação. O Chile é mesmo considerado o caso da “expressão mais pura do modelo educativo neoliberal” (Aguilera, 2015: 1475).
Segundo Espinoza (2017), nos finais da década de 60, um conjunto de jovens economistas chilenos foram fazer estudos de pós-graduação na Escola de Chicago, no quadro de um convénio com a Universidade Católica do Chile e, no seu regresso ao país, assumiram “uma missão clara: difundir a ideologia da liberdade do mercado” (Valdés, 2020: s.p.) inspirada nas teorias do principal pensador dessa escola americana, Milton Friedman. Chamados a ocupar os mais altos cargos durante a ditadura de Pinochet, os “Chicago Boys” receberam carta branca do ditador para implementar a sua ideologia (Valdés, 2020), que contará também com o apoio de organismos internacionais como o Fundo Monetário Internacional (Espinoza, 2017). Dá-se então uma mudança de orientação do sistema de ensino superior chileno, que passa a estar enformado pelos valores da economia de mercado. Espinoza (2017) fala de um sistema de ensino superior que deixa de estar orientado para o bem-estar de toda a sociedade e para o benefício de todos os grupos sociais, como acontecia desde a fundação da primeira universidade chilena, e passa a ter como prioridade a satisfação das necessidades do setor produtivo do país. A reforma de 1981 traz, além da diversificação vertical da educação superior - através da criação de Institutos Profesionales e de Centros de Formación Técnica - a total liberdade para a criação de universidades privadas em nome do “direito soberano do consumidor de escolher o fornecedor educativo por um lado, assim como a liberdade de empreender projetos educativos por outro, e de aumentar a oferta educativa, adaptando-a da melhor maneira aos desejos das famílias” (Aguilera, 2015: 1478).
Em plena ditadura, durante a década de 80, o ensino superior privado cresce exponencialmente e acumula enormes lucros, nomeadamente através das propinas cobradas aos alunos - cujos custos excedem em muito o real valor dos cursos (Espinoza, González e McGinn, 2016) - sendo aqueles chamados a assumir os custos do seu investimento em educação. As propinas tornam-se também norma na universidade estatal com a abolição do princípio da incondicionalidade do seu financiamento público, substituído pelo princípio do autofinanciamento das instituições universitárias (Guzmán-Concha, 2017). O seu elevado valor é documentado no relatório Education at a Glance 2020 (Leihy e Salazar, 2021) que, tendo em conta a paridade do poder de compra de 28 países da OCDE, conclui que só os EUA e o Reino Unido cobram propinas superiores às das universidades chilenas. Para minimizar as dificuldades financeiras dos alunos, são implementadas políticas de empréstimos através do crédito bancário, que, ao ser suportado pelo aval do estado, leva ao aumento significativo de transferências de recursos estatais para a banca e para as universidades privadas, que aumentam o número de alunos (Guzmán-Concha, 2017). Os níveis de endividamento tornam-se também insuportáveis para as famílias da classe média. Por outro lado, assiste-se ao desinvestimento do estado nas universidades públicas, cujo financiamento atingia em 2013 o valor mais baixo de todos os países da OCDE: 14% do produto interno bruto face a perto de 70% da média da OCDE (Espinoza, González e McGinn, 2016).
Massificação e segmentação do sistema universitário chileno
O Chile constitui também um caso paradigmático da massificação explosiva do ensino superior, possível graças ao crescimento exponencial de universidades privadas. Em pouco mais de três décadas, a taxa bruta de escolaridade deste nível de ensino registou um aumento de 612% (Salazar e Leihy, 2017).
A expansão da procura de universidades é acompanhada pelo crescimento explosivo e desregulado de estabelecimentos de ensino superior que ocorre a partir dos anos 80. Até 1980, o Chile contava apenas com oito estabelecimentos de ensino superior, todos gratuitos, onde se formavam as elites do país (Bernasconi e Sevilla, 2017), e que hoje são conhecidos como “universidades tradicionais”: duas públicas, três privadas não católicas e três privadas católicas. Em 2017, o país contava já com 152 instituições, 61 das quais eram universidades (Santelices, Catalán e Horn, 2019), 43 institutos profissionais e 47 centros de formação técnica (Brunner e Del Canto, 2018). A divisão do sistema universitário nestes três tipos de instituição ocorrera no âmbito da drástica reforma do ensino universitário levada a cabo durante a ditadura de Pinochet (1973-1989), responsável também pela incorporação no sistema de novas instituições privadas. O elevado grau de privatização é, justamente, uma das particularidades do sistema universitário chileno (Brunner e Ganga, 2016; Salazar e Leihy, 2017). Mais de 60% das universidades do Chile são de propriedade privada, acolhendo 85% dos universitários chilenos (Bernasconi, Fernández e Follegati, 2018). Os baixos critérios de seletividade académica destas universidades ajudam a explicar a presença maioritária de alunos oriundos dos grupos sociais e culturais mais vulneráveis, muitos deles representando a primeira geração de universitários na família (Espinoza, 2017). Foram, aliás, os jovens das famílias pertencentes aos escalões de rendimento mais baixo que mais beneficiaram com a expansão do setor privado (Bernasconi e Sevilla, 2017). Mas, ao mesmo tempo que o crescimento da oferta privada permitia expandir as oportunidades educativas da juventude chilena e reduzir as brechas socioeconómicas de acesso à universidade (Villalobos, Quaresma e Franetovic, 2020), ele potenciava um processo de “democratização segregativa” (Merle, 2002) assente numa lógica de hierarquização das universidades.
Estas passaram a estar subdivididas em dois grupos social e academicamente distintos: as universidades de massas e as universidades de elite. As primeiras, não sendo embora um grupo homogéneo (Quaresma, Villalobos e Torres, 2022), têm em comum o facto de terem surgido como resposta à procura explosiva de educação superior, partilhando também características como a propriedade não estatal, a ausência ou debilidade de processos de seleção académica, o perfil socioeconómico e cultural do seu público escolar, maioritariamente proveniente das classes baixa e média-baixa, e a oferta maioritária de cursos rentáveis no mercado laboral, essencialmente na área da saúde. A disponibilização de cursos neste segmento universitário insere-se na “ética competitiva” destas universidades massivas pela captação de estudantes (Brunner e Uribe, 2007), mas também de recursos e de prestígio (Araya-Castillo e Pedreros-Gajardo, 2014), procurando ir ao encontro dos interesses dos seus “clientes” (Brunner e Uribe, 2007) e assim maximizar os seus lucros. As universidades de elite, por sua vez, englobam um pequeno número de instituições tradicionais com alto prestígio e elevado grau de seletividade académica, como é o caso da Universidade do Chile e da Universidade Católica e também de alguns estabelecimentos recentes, de natureza privada e direcionados para franjas especificas da elite do país, normalmente mais dotadas de capital económico do que cultural (Villalobos, Quaresma, e Franetovic, 2020; Quaresma e Villalobos, 2022).
Primeiras gerações de universitários: dificuldades, desafios e oportunidades
Como vimos anteriormente, uma das principais transformações no ensino superior, foi o seu processo de massificação e a sua abertura a novos públicos escolares. Neste grupo de “recém-chegados”, onde se encontram muitos jovens da primeira geração de universitários na família, a integração na universidade não está isenta de contratempos e desafios, como a literatura documenta. Reay, Crozier e Clayton (2009) usam a analogia do “peixe fora de água” para descrever essa inadaptação - que se intensifica nas universidades onde eles são presença minoritária (Bathmaker et al., 2016) -, falando da mudança e transformação do habitus de classe, que implica a sua integração num campo dominado pelas regras da classe média e que lhes é pouco familiar (Reay, Crozier e Clayton, 2009). A ausência ou a debilidade de capitais culturais, económicos e sociais agrava a sensação de risco, de medo e até de vergonha (Reay, 2018) e de inferioridade face ao desconhecimento e desvalorização sistemática do seu habitus de classe por parte de colegas (Bathmaker et al., 2016). Ao contrário das classes médias, para quem o percurso universitário é algo natural e naturalmente de sucesso (Bathmaker et al., 2016), estes novos públicos escolares já partem para a universidade com a perceção de estar perante uma trajetória difícil e com fortes hipóteses de insucesso (Lehmann, 2016), mesmo quando fazem parte da elite académica. No entanto, de acordo com Lehmann (2016), o balanço global da experiência universitária destes jovens é largamente positivo. Os estudantes falam da aquisição de novos conhecimentos, mas também de um crescimento pessoal e de um alargamento das redes de relações sociais e do capital cultural, possibilitado pelo contacto com colegas de outros universos sociais e com a diversidade de experiências culturais proporcionadas pela universidade. Destacam ainda o desenvolvimento de novas disposições e novas preferências sobre temas que vão da gastronomia à política e a maior abertura a diferentes culturas e perspetivas, nomeadamente no campo da sexualidade.
Também no Chile, as investigações destacam as vantagens da frequência universitária para as classes populares em termos de crescimento pessoal, de descoberta de si mesmos, mas também de descoberta de um outro Chile e de possibilidade de “viajar entre as classes sociais” (Araujo e Martuccelli, 2015: 1509). Soto (2016) conclui que os universitários chilenos de primeira geração não manifestam maiores dificuldades de integração, reconhecendo que é uma oportunidade de desenvolver-se como pessoas, tornando-se mais responsáveis, maduros, autónomos e independentes, inclusivamente da família. No entanto, esses benefícios da experiência universitária - também identificados por Canales e De Los Ríos (2009) - não anulam as dificuldades de integração académica dos alunos vulneráveis que chegam à universidade com uma preparação académica deficiente e com falta de métodos e hábitos de estudo. O contacto com novos códigos culturais e simbólicos, a perda de grupos de referência, a necessidade de estabelecer novas redes de sociabilidades e a deslocalização da sua área de residência contribuem ainda mais para que a adaptação à universidade seja um processo stressante, angustiante e solitário.
No entanto, estas dimensões da experiência universitária não podem fazer esquecer a dimensão “propriamente estratégica” - e preponderante entre as classes populares - da procura de um diploma universitário (Araujo e Martuccelli, 2015), como via de acesso a melhores salários, a maior proteção contra o desemprego (HESA, 2015) e sobretudo como perspetiva de mobilidade social. O diploma universitário, que durante muito tempo esteve apenas ao alcance das elites, permanecendo fora dos horizontes possíveis da maioria dos jovens, começou a ser visto pela generalidade das famílias como uma necessidade para triunfar na vida (Bathmaker et al., 2016). Apesar de alguns estudos darem conta dos limites da educação superior como ascensor social (Duru-Bellat, 2008; Major e Machin, 2018), a maior parte dos pais continua a ver a universidade como uma mais-valia para o futuro dos filhos, acreditando que o diploma universitário lhes permitirá aceder a uma carreira profissional, a um trabalho seguro e, na maioria dos casos, a um elevado salário (Carnevale, Garcia e Gulish, 2017). Para uma parte importante das classes populares - cada vez mais presentes na universidade (Stich e Freie, 2016) - o diploma universitário representa a esperança de um antídoto contra a pobreza intergeracional (Urzúa, 2012) e de uma via para a mobilidade social (Reay, 2018; Altbach, 2017). Estudos recentes como o da OCDE (2020) contribuem para alimentar esta expectativa, ao assinalar que a empregabilidade dos licenciados chega, em média, aos 86% - atingindo os 88% e os 93% nos casos, respetivamente de jovens com mestrado e com doutoramento - e que os seus salários são 54% superiores aos de quem completou apenas o ensino secundário.
Assim, e tal como no resto do mundo, no Chile este fenómeno de massificação não é indissociável da expectativa de que a universidade abra melhores oportunidades de vida, nomeadamente em termos de vantagens salariais face aos não licenciados. Estas são, aliás, particularmente expressivas no Chile: se na OCDE uma licenciatura assegura, em média, um salário 1,5 vezes superior ao de um trabalhador com ensino secundário, no Chile essa diferença é, pelo menos, cinco vezes superior (OCDE, 2020). E, embora se verifique uma tendência para a diminuição desta diferença e para uma quebra da média das remunerações dos licenciados, também por efeito da inflação de diplomas (Sapelli, 2009), os retornos de um curso superior ainda continuam positivos, como documenta a literatura chilena (Klapp e Candia, 2016; Gálvez e Valdés, 2019).
Quanto às perspetivas de acesso às profissões e salários de topo dos alunos das universidades de massas e de elites chilenas, elas são muito distintas. Um estudo recente de Quaresma, Villalobos e Torres (2022) sobre universidades de massas conclui que quase nenhuma delas e quase nenhum curso por elas lecionado consegue assegurar aos seus alunos posições de topo, com salários elevados, ainda que lhes permita uma inserção rápida no mercado de trabalho. Os profissionais mais bem pagos, com cargos de liderança nas grandes empresas chilenas (Zimmerman, 2019) ou com funções de relevo na vida política (Joignant, 2011) saíram de universidades de elite, como a Universidade do Chile ou a Universidade Católica, ambas posicionadas nos melhores lugares dos rankings da América Latina e com os cursos mais prestigiados e seletivos do país em áreas como engenharia, direito ou economia. As vantagens da formação superior em termos de oportunidades salariais, de desenvolvimento de carreira profissional e de empregabilidade caracterizam-se, assim, por uma grande heterogeneidade no Chile, dependendo da universidade frequentada e do curso escolhido (Villalobos, Quaresma e Franetovic, 2020).
Procuradas pelo seu público como via de acesso a uma das maiores promessas da educação superior - a mobilidade social - as universidades de massa chilenas suscitam hoje um dilema: estar ao serviço da emancipação dos grupos tradicionalmente excluídos do ensino superior ou, pelo contrário, estar ao serviço da sua exclusão das instituições de elite (Carpentier, 2018).
Do neoliberalismo ao “despertar” do Chile: contestação e luta social
Com o século XXI assiste-se um pouco por todo o mundo ao aparecimento de movimentos sociais de contestação das políticas neoliberais (Schiller-Merkens, 2020), nomeadamente no campo educativo. Os estudantes universitários assumem um papel de protagonismo em alguns destes movimentos de contestação, como é o caso das lutas estudantis em Inglaterra, Itália, Quebeque ou Chile (Della Porta, Cini e Guzmán-Concha, 2020). Ainda que estes protestos incluam lutas específicas de cada contexto nacional (Rios-Jara, 2021) e tenham como pano de fundo modelos de educação superior distintos, eles têm em comum a sua expressiva magnitude, somente comparável à dos movimentos estudantis da década de 1960 (Rios-Jara, 2021), e ser expressão de um descontentamento com as consequências negativas das reformas neoliberais na educação superior, de acordo com Della Porta, Cini e Guzmán-Concha (2020).
É no Chile, aliás, que se encontram os contradiscursos mais veementes sobre o neoliberalismo por parte dos decisores políticos, dos académicos e dos líderes das universidades, como observam Mendoza e Dorner (2020) num estudo em que incluem também o México, o Peru e a Argentina. Em 2011, e pela primeira vez ao fim de 30 anos (Espinoza, 2017), as políticas neoliberais do ensino superior chileno são fortemente contestadas à luz do dia através de um movimento estudantil liderado pela Confederación de Estudiantes de Chile (Confech). Com expressão não só nas universidades tradicionais, mas também nas novas universidades (Pavlic, 2018), este movimento estudantil conseguiu agregar à sua luta o Sindicato dos Professores e os estudantes do ensino secundário, contando com um amplo apoio popular, que chegou a cerca de 90% da população (Simonsen, 2012). Ao apelar ao valor da justiça numa sociedade tão profundamente desigual como é o Chile, os estudantes terão conseguido atrair a população para a sua causa, segundo Cummings (2015). Cinco anos antes, também os estudantes do ensino secundário tinham protagonizado a maior onda de protestos verificados no Chile desde o seu regresso à democracia em 1990 (Cummings, 2015), indo para a rua contestar a falta de qualidade do ensino público, organizados na chamada Marcha dos Pinguins, que concentrou mais de um milhão de estudantes e envolveu mais de 950 escolas secundárias do país (Ruiz, 2007).
A ocupação das universidades em 2011, que no caso da prestigiada Universidade do Chile chegou a durar sete meses (Cummings, 2015), as greves nacionais que também se prolongaram por meses e as marchas maciças que se realizaram semanalmente ao longo de 36 semanas (Bellei e Cabalin, 2013) com níveis de participação nacional rondando os 500.000 estudantes (Espinoza, González e McGinn, 2016), confrontaram os chilenos e os seus responsáveis políticos com a dimensão do descontentamento dos principais agentes educativos com um modelo educativo assente no laissez faire do estado e na subordinação às regras do mercado ( Espinoza, González e McGinn, 2016). Para Pavlic (2018), foi a liberalização do ensino superior que criou as condições para este descontentamento e para estas mobilizações estudantis, ao promover o acesso à universidade através de empréstimos incomportáveis para as famílias e ao alargar, através da massificação, o número de estudantes e famílias insatisfeitas com as dificuldades económicas. Por outro lado, segundo o mesmo autor, foi a débil ligação dos estudantes a estruturas partidárias que facilitou a mobilização estudantil, uma vez que esta não encontrava grande apoio junto dos partidos.
Um dos focos da contestação estudantil de 2011 prende-se, justamente, com uma das linhas de força do modelo neoliberal implementado com Pinochet e ainda em vigor: o desinvestimento do estado na educação superior pública (Espinoza, González e McGinn, 2016), para a qual estes estudantes reivindicavam mais apoio económico. Entre as reivindicações estudantis estava também o fim da política de créditos bancários lançada em 1981 e responsável pelo endividamento de estudantes e famílias, que os manifestantes queriam ver substituída pela educação gratuita para todos (Espinoza, González e McGinn, 2016). Ao mesmo tempo, o movimento exigia o controlo e a regulação do lucro obtido pelas universidades privadas que, contrariamente ao determinado por lei, registavam lucros significativos à custa das elevadas propinas cobradas aos alunos, mas também dos apoios concedidos pelo estado (Espinoza, González e McGinn, 2016).
O controlo da qualidade do ensino universitário fazia também parte das prioridades destes estudantes, para quem a acreditação de todas as universidades devia depender de um controlo de qualidade supervisionado por uma agência estatal e não por agências privadas, como a legislação viera a permitir, abrindo a porta a promiscuidades de interesses entre estas últimas e os estabelecimentos particulares sujeitos à sua avaliação (Espinoza, González e McGinn, 2016). Perante a heterogeneidade e a estratificação dos estabelecimentos de ensino superior, em termos de qualidade de ensino, de perfil sociocultural e académico do público escolar e de perspetivas de destino profissional (Meller, 2010) pediam ainda acesso universal ao ensino superior e garantia de qualidade de ensino para todos os grupos socioeconómicos.
Numa tentativa de abrandar a contestação, o governo de Piñera criou novas bolsas de estudo para os mais desfavorecidos e diminuiu as taxas de juros dos empréstimos (Donoso e Somma, 2019). A reforma estrutural do sistema permaneceu, no entanto, por fazer. Como o movimento estudantil de 2011 já tinha compreendido (Donoso e Von Bülow, 2017), essa reforma estrutural exigia, desde logo, a mudança da Constituição herdada do regime de Pinochet (De Guio e Peregalli, 2020). O Estallido Social que abalou o Chile em outubro de 2019 sob o lema “Chile despertó” abriu o debate sobre uma possível revisão ou mudança constitucional (Mojica, 2020). E, mais uma vez, foram os estudantes - agora do secundário - que desencadearam a revolta de outubro, iniciada com o seu protesto contra o aumento das tarifas do metro (Donoso e Von Bülow, 2017), mas que rapidamente abraçou novas bandeiras, como a defesa de uma sociedade - e de uma educação - mais justa e igualitária e o combate à omnipresença do neoliberalismo nos diferentes domínios da vida social e económica.
Conclusão
O mercado e a sua “mão invisível” continuam a ser vistos como um potencial regulador das diversas áreas sociais, nomeadamente no setor da economia, da saúde e da educação. Neste contexto, quisemos trazer à discussão a permeabilização da educação superior às lógicas de mercado, problematizando também o processo de massificação da universidade e os seus potenciais efeitos em termos de (re)organização institucional, mas também de mobilidade social para os seus novos públicos. Como pano de fundo da nossa análise, escolhemos o Chile, um dos países mais “neoliberalizados” do mundo e do qual Portugal pode ter algumas lições a tirar. Em primeiro lugar, a literatura e os dados estatísticos internacionais comprovam que o modelo educativo de matriz neoliberal, em que o ideal de “liberdade educativa” se converte num mantra, não democratiza as oportunidades de todos. Pelo contrário, agudiza a hierarquização entre universidades: por um lado, as das elites, preparadas para formar as classes dominantes, e, por outro lado, as universidades de massas, com fracos níveis de qualidade académica, sem investimento na investigação e destinadas a formar as classes baixas ou médias-baixas. Em segundo lugar, e em consequência desta segregação universitária, o “mercado” não trouxe igualdade de oportunidades no acesso às posições socioprofissionais de todos os estudantes, independentemente da sua classe social de origem. No Chile, continuam a ser as universidades tradicionais as que asseguram posições de topo na escala social, tal como acontece na generalidade dos países. Não é, pois, o mercado que traz mais oportunidades aos jovens; é, sim, a democratização do acesso à universidade que dá aos estudantes mais vulneráveis possibilidades únicas de contactar com o mundo do saber, de abrir horizontes culturais, de alargar redes de contactos, de crescer pessoal e academicamente e de subir na escala social. Em terceiro lugar, o ideal de “mercado” escolar não traz mais heterogeneidade à oferta educativa universitária. Assim, como se depreende da experiência chilena, a criação de cursos universitários não responde a uma preocupação com a diversidade, mas apenas às lógicas da oferta e da procura ditadas pelo mercado. Em quarto lugar, o financiamento familiar da educação superior, essencialmente privada, acarreta enormes custos e pressões para os estudantes, que ficam reféns de prestações de créditos universitários por décadas e muitas vezes sem oportunidades laborais na sua área de estudos que lhes permitam saldar rapidamente as dívidas contraídas. Por fim, os protestos de 2019 em que “Chile despertó” comprovam que o ideal neoliberal não é percebido por um grande número de chilenos como a única solução para o crescimento económico e desenvolvimento social e que este modelo merece discussão, nomeadamente no campo educativo, no sentido de um maior reconhecimento de direitos sociais e de um estado social capaz de os assegurar (Martuccelli, 2021). Este descontentamento - não circunscrito à esfera educativa, mas abarcando também temas tão diversos como o sistema de reformas e de saúde - poderá explicar os resultados das eleições presidenciais de 2021 em que uma coligação de partidos da “nova esquerda” chega ao poder, o que constitui, na aceção de Alfredo Joignant,2 uma verdadeira “experiência a nível mundial”, num cenário internacional de fracasso das novas esquerdas e de triunfo da extrema-direita. No entanto, como conclui o mesmo sociólogo e cientista político, se é inegável que a generalidade da sociedade chilena se tem mobilizado pela defesa daqueles direitos sociais “universalistas”, tal posicionamento não entra em contradição com a rejeição massiva da nova Constituição, referendada em setembro de 2022 e que poria fim ao documento herdado da ditadura de Pinochet. Isto porque, para Alfredo Joignant, este novo documento - em consonância com as linhas programáticas dos partidos da apelidada “nova esquerda” -, se terá focalizado excessivamente em temáticas de “identidades” e “particularismos” carentes de sentido para uma grande maioria de chilenos. A defesa na Constituição de bandeiras particularistas, como os direitos reprodutivos, os direitos LGBTQ ou a criação de um estado plurinacional e intercultural,3 aliada a uma campanha de desinformação sobre a ameaça da nova Constituição aos ideais de liberdade de escolha e de iniciativa e propriedade privadas, ajudam a explicar a massiva rejeição de uma nova Constituição. Uma rejeição que, no entanto, não compromete a pertinência da atual discussão sobre temáticas “universalistas” na sociedade chilena, como é o caso da educação, nem a urgência de pensar em soluções para a construção de um sistema educativo mais justo.