Introdução
A história com mais de um século do sistema de proteção de crianças (SPC) português, pode ser dividida em três grandes períodos, marcados pelos principais documentos legais que balizam a sua evolução:
a Lei de Proteção da Infância (LPI), de maio de 1911, uma das primeiras leis aprovadas pelo regime republicano, instaurado em 1910;
a Organização Tutelar de Menores (OTM), publicada em 1962, pelo regime ditatorial conhecido como Estado Novo (Decreto-Lei n.º 44.288 de 20 de abril);
a Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo (Lei n.º 147/99, de 1 de setembro) e a Lei Tutelar Educativa (Lei n.º 166/99, de 14 de setembro), publicadas em 1999, em simultâneo com a revogação da OTM, 25 anos depois da instauração da democracia em Portugal, em 1974.
A legislação define a orientação filosófica, a organização e o funcionamento do sistema de proteção estatutário, e é influenciada pelos contextos sociais, culturais, políticos e económicos em que se insere. As grandes alterações no sistema de proteção de crianças, plasmadas nas leis referidas, foram marcadas por mudanças profundas de regimes políticos, desde a instauração da 1ª República, em 1910, passando pela ditadura do Estado Novo, iniciada em 1926, até à emergência do regime democrático, após o 25 de Abril de 1974.
Mas não foram só as mudanças de regime que influenciaram as alterações mais significativas no SPC português. As alterações nas políticas públicas e, designadamente, nas políticas de proteção social, onde a proteção de crianças está inserida, também deixaram a sua marca no percurso do sistema, como veremos na análise do período de 1995-2001.
De forma menos visível, as mudanças culturais e sociais cada vez mais aceleradas, corporizadas em transformações de mentalidades, também marcaram a evolução do sistema, quer na perspetiva da sua evolução, quer na ótica da resistência à mesma.
Rui Epifânio, um dos principais teóricos do atual sistema de proteção, compreendeu muito bem a relação entre a evolução do sistema de proteção e os contextos globais em que ela ocorreu, quando analisou o enquadramento histórico-jurídico das Comissões de Proteção de Crianças e Jovens (Epifânio, 2001) e salientou a influência da emergência do regime democrático, da afirmação do poder local e do desenvolvimento do estado-providência na evolução do sistema de proteção de crianças português.
Os sistemas de proteção de crianças estão em permanente evolução, procurando adaptar-se às mudanças nos contextos em que atuam e, por isso, têm uma história que é importante conhecer.1
A proteção de crianças antes de 1974
Contexto global: a emergência do estado-providência
A história da proteção de crianças está ligada ao desenvolvimento dos estados-providência, que surgem e se desenvolvem na Europa, nas duas últimas décadas do século XIX, associados à emergência e crescimento de políticas de seguros sociais que visam proteger as populações em situações de acidentes de trabalho, velhice, doença ou invalidez, e, mais tarde, de desemprego e para proteger as famílias mais desfavorecidas através de vários tipos de subsídios (Castles et al., 2012).
A ideia de criar seguros sociais surge e é implementada primeiro pelo império prussiano. Num curto espaço de seis anos, Bismark cria uma legislação para proteção contra a doença (1883), acidentes de trabalho (1884) e seguro de velhice e invalidez (1889). As motivações de Bismark não se prendem tanto com a resolução da “questão social” como com a vontade de manter o poderio militar do império prussiano, apaziguando potenciais revoltas internas, nomeadamente resultantes dos problemas sociais existentes (Castles et al., 2012).
Com o desenvolvimento do capitalismo e da industrialização e, simultaneamente, com uma urbanização desorganizada e o crescimento da população, os problemas sociais cresceram e tornaram-se mais visíveis, ao longo do século XIX. À medida que as nações modernas emergem, a questão da pobreza e da ausência de proteção face a situações de envelhecimento e doença ganham um significado nacional (Kuhnle e Sander, 2012). Como resposta à chamada “questão social”, muitos países europeus começam a adotar medidas de política para mitigar as situações de miséria e desvalimento de largos setores da população.
No quadro da institucionalização dos estados modernos, com a separação entre o estado, a sociedade e a economia, depois de se afirmarem os direitos cívicos que estimulam o investimento económico dos cidadãos e o empreendedorismo, e os direitos políticos, associados à liberdade de expressão e de imprensa e ao direito ao voto, surge uma terceira geração de direitos, os direitos sociais e humanos, que visam melhorar as condições materiais de vida dos cidadãos e são a trave mestra dos estados-providência (Marshall, 1963).
Os estados, cujas funções estavam centradas no monopólio da violência legítima para manter a ordem, na defesa contra invasões externas, na produção da lei e na promoção do progresso económico, passam a assumir também novas responsabilidades de proteção e garantia do bem-estar dos cidadãos (Kuhnle e Sander, 2012). A possibilidade de os estados modernos assumirem estas novas funções deve-se, por um lado, a alterações nas tradicionais formas de provisão de bem-estar pelas redes familiares e, também, aos ganhos em produtividade resultantes da industrialização, os quais providenciaram os recursos necessários para enfrentar os problemas sociais emergentes (Kuhlne e Sander, 2012).
No último quarto do século XIX, muitos países europeus, como os países nórdicos, a Áustria, a Suíça e a Bélgica, a França e a Itália, seguem o exemplo pioneiro da Alemanha e iniciam a construção dos seus modelos de segurança social, porém, com uma grande variedade de formas e com trajetórias de desenvolvimento diferenciadas (Castle et al., 2012). No que concerne aos países da Europa do Sul, como Portugal, Espanha e Grécia, constata-se um atraso no desenvolvimento dos respetivos estados-providência, marcado pela vigência de regimes ditatoriais até aos anos 70 do século XX. Nestes países, o desenvolvimento de estados-providência enfrenta sérios desafios, como atrasos nos níveis educacionais e acentuadas assimetrias territoriais, que retardam o desenvolvimento dos sistemas de proteção social e fazem com que a sociedade civil continue a desempenhar um importante papel na proteção social (Ferrera, 1996; Calado, Capucha e Estêvão, 2019).
A “questão social” também abrangia numerosas crianças, designadamente órfãs e abandonadas. Os esforços iniciais da proteção de crianças centraram-se naquelas que viviam na rua e cujas necessidades básicas não tinham resposta, com a preocupação de que muitas iriam tornar-se delinquentes, visto que para sobreviverem se dedicavam à mendicidade, à prostituição ou ao roubo (Spratt et al., 2015: 1516). Com os estados-providência procurou estabelecer-se um sistema de ajuda às crianças e famílias em dificuldades, situação com pouca expressão em Portugal, até aos anos 70 (Ferreira, 2011), apesar de a preocupação com os direitos das crianças ter vindo a ser afirmada no direito internacional, com a criação pela Sociedade das Nações do Comité de Proteção da Infância, em 1919, e com a adoção da Declaração de Genebra sobre os direitos da criança, em 1924, revista e aprovada por unanimidade como Declaração Universal dos Direitos das Crianças, em 1959, documentos que antecedem e abrem caminho à Convenção sobre os Direitos da Criança, aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1989.
A Lei de Proteção da Infância de 1911
A evolução do sistema de proteção de crianças foi influenciada pela incipiente implementação de políticas de proteção social em Portugal, após a implantação da República, em 1910. Em maio de 1911, o Ministério da Justiça do governo de Afonso Costa publica a Lei de Proteção da Infância (LPI).
Esta Lei, segundo a Nota Introdutória da Edição Comemorativa da Lei (ISS, 2010), é um testemunho das preocupações do novo regime republicano com a proteção da infância, sendo criada ainda antes de surgirem as leis de proteção contra os acidentes de trabalho, em 1913, e esquemas de seguros sociais cobrindo a velhice, a doença e a deficiência, em 1919, esforços legislativos que, na prática, nunca foram verdadeiramente implementados (Maia, 1984).
A LPI é, sem dúvida, um marco na afirmação da importância da proteção das crianças, numa época em que vários países europeus publicam leis de proteção de crianças similares, como a Noruega, em 1896, a primeira lei visando o bem-estar e a proteção de crianças, a Alemanha (1900), a Dinamarca (1905), a Holanda (1905), cuja lei de proteção aos menores é referida no preâmbulo da LPI, ou a Inglaterra (1908).
A LPI visava “a educação, a purificação e o aproveitamento da criança para furtar a criança desprovida aos ambientes viciados” (ISS, 2010). As crianças desprovidas agrupam-se em três grupos distintos: os menores em perigo moral, que incluem os abandonados, os pobres e os maltratados; os menores desamparados, que incluem os ociosos, vadios, mendigos ou libertinos; e os menores delinquentes, existindo ainda as categorias dos indisciplinados, ou incorrigíveis, e dos anormais patológicos (Martins, 2006).
As considerações de que a LPI coloca Portugal na vanguarda da proteção de crianças são exageradas, visto que a lei está imbuída da visão dominante neste período histórico que, apesar de reconhecer a existência de crianças vítimas de maus-tratos e negligência, coloca o enfâse na criança perpetradora, e não na criança vítima, e está mais preocupada com a proteção da sociedade face à delinquência juvenil do que com a proteção das crianças.
Segundo Martins,
quase todos os países reafirmavam que as escolas e as instituições para a infância existiam para impedir que a violência se esparramasse pelas ruas da sociedade […] e ainda para que se evitasse o analfabetismo e a exploração do trabalho infantil precário e a vagabundagem e a mendicidade (2006: 120).
Contudo, é justo reconhecer que a LPI também está imbuída de uma crença na educação e na disciplina como fatores de ressocialização dos jovens, que reflete as ideias do padre António Oliveira, autor material do normativo (Martins, 2006). Por outro lado, ao instituir a primeira Tutoria da Infância, como um tribunal coletivo especial para proteger as crianças e diferenciar os delinquentes menores de 16 anos dos adultos criminosos, acaba com a aplicação direta dos Códigos Penal e do Processo Penal aos menores (Abreu, Carvalho e Ramos, 2010) e, nesse sentido, representa um importante passo na afirmação dos direitos da criança.
A tutoria da infância consistia num tribunal coletivo especial, que se destinava a guardar, defender e proteger os menores em perigo moral, desamparados ou delinquentes, sob a divisa - educação e trabalho. (Ferreira, 2011: 169)
A aplicação prática da LPI não foi muito eficaz, visto que após a implantação das Tutorias do Porto e de Lisboa, em 1911 e 1912, respetivamente, só foi alargada ao resto do país com a Lei de 1925 (Candeias e Henriques, 2018). A LPI permaneceu em vigor meio século e só veio a ser reformada pela Organização Tutelar de Menores (OTM) em 1962.
A Organização Tutelar de Menores de 1962
A partir de 1926, o Estado Novo tentou criar uma política de segurança social baseada no modelo corporativista de relações entre os patrões e os trabalhadores, tutelado pelo estado, inspirado no fascismo italiano. Os sistemas de proteção construídos nesta lógica têm uma matriz vincadamente assistencialista e apenas abarcam alguns setores, designadamente trabalhadores do comércio, banca, seguros e da administração pública (Calado, Capucha e Estêvão, 2019), apesar das importantes alterações introduzidas pela Lei nº 2115, de 18 de julho de 1962, nomeadamente ao nível da organização da Previdência e seus serviços de saúde e de um Regime Geral de Segurança Social (Maia, 1984).
A OTM de 1962 reflete a natureza ditatorial e repressiva do Estado Novo. Em comparação com a LPI, acentuam-se as preocupações com o perigo que os menores delinquentes, bem como com os que se dedicam à mendicidade, vadiagem, prostituição ou libertinagem, e ainda os indisciplinados (menores maltratados ou abandonados que não se adaptam às medidas ou instituições onde são acolhidos) representam para a sociedade.
A OTM trata da mesma forma as crianças vítimas de maus-tratos ou abandonadas, vistas como pré-delinquentes, e as crianças e jovens delinquentes ou com modos de vida considerados imorais. Na perspetiva da OTM, ambas as categorias necessitavam de ser reeducadas socialmente e isso passava pela aplicação de medidas punitivas e disciplinadoras, previstas nos artigos 21.º e 24.º, que vão da entrega aos pais ao internamento (Candeias e Henriques, 2018).
Quanto aos menores com deficiência mental e, por vezes, física, eram internados em instituições para os “anormais”, os Institutos Médico Psicológicos, como o Instituto Navarro Paiva e o da Condessa de Rilvas, que começam a surgir na década de 30 (Martins, 2006), onde estas crianças permaneciam escondidas da sociedade.
Apesar de algumas alterações após o 25 de Abril, nomeadamente, uma primeira revisão em 1978 (D-L n.º 314/78, de 27 outubro), e a criação das Comissões de Proteção de Menores (CPM), em 1991 (D-L n.º 189/91, de 17 maio), a OTM permaneceu em vigor durante 37 anos, até 1999, quando finalmente é aprovada a LPCJP.
A proteção de crianças entre 1974 e a publicação da LPCJP em 1999
Após a implantação da democracia em 1974, no contexto da emergência de governos sujeitos ao escrutínio popular e que são responsáveis pela melhoria das condições de vida dos estratos populacionais mais desfavorecidos, inicia-se a construção efetiva do estado-providência, em Portugal. No período entre este ano e o final do século, existem alguns momentos marcantes na edificação de um estado social.
Entre 1974 e novembro de 1975, são adotadas algumas medidas de política que são marcos fundacionais do estado-providência português: a criação da pensão social, a primeira medida não contributiva e universal, a criação do salário mínimo nacional e do subsídio de desemprego e a institucionalização de relações entre as organizações patronais e as confederações sindicais (Capucha, 2005).
O governo socialista eleito nas eleições de 1976, pediu a adesão do país à CEE, o que possibilitou a chegada dos primeiros fundos europeus, antes de a adesão se concretizar, os quais ajudaram a criar os alicerces de um estado-providência moderno, com a criação do sistema de saúde nacional (1979), do sistema de segurança social (1984) e do sistema de educação (1986). Neste período, o sistema democrático de governos locais consolidou-se e as autarquias criaram as principais infraestruturas sanitárias e de distribuição de água e alargaram as redes de distribuição de energia elétrica (Calado, Capucha e Estêvão, 2019).
O terceiro momento importante, ocorre entre 1995 e 2001, quando são implementadas as chamadas políticas sociais ativas. Neste período, o governo define como grande prioridade a educação, onde se verifica uma forte aposta no ensino pré-escolar e no ensino superior. São criados os Territórios Educativos de Intervenção Prioritária (TEIP), o Programa contra a Exploração do Trabalho Infantil (PETI) e o projeto Escolhas. As outras duas prioridades são a luta contra a pobreza, onde surgem medidas como o rendimento mínimo garantido e a criação de novos escalões no abono de família, e o combate ao desemprego, com o lançamento do Plano Nacional de Emprego (Calado, Capucha e Estêvão, 2019).
Este período de reforma e grande desenvolvimento das políticas sociais públicas vai influenciar a mudança que se vai operar no SPC português, em 1999.
A convivência da democracia com a OTM
Na “Apresentação” do livro A Reforma do Direito de Menores, de 1999, editado pelos Ministérios da Justiça e do Trabalho e da Solidariedade, e assinada pelos ministros Vera Jardim e Ferro Rodrigues, afirma-se que:
inexplicavelmente a reforma do Direito de Menores passou à margem das reformas levadas a efeito no nosso país após o 25 de Abril”, e conclui-se que “o atual sistema de menores … por não assentar em fundamentos com clara conformidade institucional (visto ignorar direitos fundamentais do menor) não tem um desempenho eficaz (MJ e MTS, 1999: 4)
Porque é que a OTM só é revogada 25 anos depois da instauração do regime democrático?
Na nossa perspetiva, a OTM sobreviveu 25 anos porque as crianças não eram uma prioridade do governo, por alguma inércia e conservadorismo de quem aplicava a lei, mas também porque não havia uma perspetiva de mudança concreta, a qual só começa a emergir com a criação do Grupo Permanente de Análise da Problemática de Menores, criado no Centro de Estudos Judiciários, em 1983, que inicia o debate sobre o superior interesse da criança, bem como a formação de juízes e procuradores, no sentido de aplicarem a OTM, nos termos da Convenção dos Direitos da Criança (CDC), após a ratificação por Portugal da CDC, em 1990, bem como com a ação do Instituto de Apoio à Criança no domínio dos maus-tratos infantis, a partir de 1984 (Ferreira, 2011), e com o surgimento de uma primeira tentativa séria de mudança, impulsionada pelo grupo do CEJ, que surge com a nova revisão da OTM de 1991.2
A proteção de crianças não estava entre as prioridades do regime democrático, o que não significa que não tenham sido tomadas medidas, designadamente, as revisões da OTM de 1978 e de 1991, que anunciam a grande reforma do SPC de 1999.
A revisão da OTM de 1978 (D-L n.º 314/78, de 27 de outubro), cria os Centros de Observação e Ação Social (COAS), estabelecimentos tutelares dependentes do Ministério da Justiça, constituídos pelo diretor e o psicólogo do centro, o curador de menores do Tribunal de Menores e, ainda, por um representante do Ministério dos Assuntos Sociais e um do Ministério da Educação e da Cultura.
Competia-lhes a aplicação e execução de medidas de proteção, idênticas às medidas tutelares aplicadas por tribunais, a menores de idade inferior a 12 anos com dificuldades de adaptação a uma vida social normal e a agentes de facto qualificado pela lei penal como crime. Estas comissões limitaram a sua ação à área de jurisdição dos tribunais de menores existentes, em Lisboa, Porto e Coimbra (Epifânio, 2001).
O preâmbulo do Decreto-Lei n.º 314/78, refere que a importância destas comissões reside no facto de serem “o primeiro ensaio, entre nós, de proteção de menores por via administrativa, evitando em certos casos, o recurso aos tribunais”, a qual é aplicada por uma estrutura pública interministerial, dependente organicamente do Ministério da Justiça, e o pressuposto da necessidade do consentimento dos pais. Esta reforma da OTM configura uma primeira tentativa de “desjudicialização”, criando a figura dos juízes sociais e das comissões de proteção. De resto, esta tentativa teve impactos no modelo das Comissões de Proteção de Menores (Decreto-Lei nº 189/91, de 17 de maio), incluindo as suas competências e modos de funcionamento, o qual, por sua vez, ensaiou o modelo das atuais CPCJ.
Estas comissões, porém, segundo Rui Epifânio (2001), não refletiam ainda a “intervenção da comunidade” na proteção de menores, introduzindo um conceito das comissões como mediadoras da intervenção da comunidade que vai assumir um importante papel na criação das CPM e na orientação global das CPCJ. Apela-se ainda à participação da comunidade na proteção dos direitos das crianças, consagra-se o princípio da desjudicialização e opera-se a reformulação das funções do Ministério Público (MP) no sistema.
As Comissões de Proteção de Menores
Em 1991, ocorre uma segunda revisão da OTM, que cria as Comissões de Proteção de Menores (D-L n.º 189/91, de 17 maio). As CPM “eram instituições oficiais não judiciárias que se integravam apenas no Ministério da Justiça através do organismo que detivesse a competência sobre os serviços tutelares de menores” (Epifânio, 2001: 4.5).
As CPM tinham autonomia funcional, visto que não estavam subordinadas nas suas decisões às ordens de qualquer autoridade, mas aos ditames da lei. Para além das suas competências em matéria de marginalidade de menores até aos 12 anos, passaram a abranger as crianças menores vítimas de situações de perigo de qualquer idade, e podiam integrar serviços e instituições locais que trabalhavam com crianças (Epifânio, 2001).
Estas comissões, de acordo com Rui Epifânio, são as primeiras instituições de proteção “modernas”, dada a sua autonomia funcional e porque clarificam os espaços de intervenção e competências dos pais ou representantes legais, da comunidade, através das instituições e serviços que localmente interagem, e do espaço da intervenção judiciária (2001).
Para além da ideia de conjugar intervenções judiciais e não judiciais na proteção de crianças e da autonomia funcional das comissões, outras duas ideias chave estão presentes e irão influenciar a orientação das futuras CPCJ.
A primeira é o conceito de “localismo”. Rui Epifânio sublinha a importância das autarquias locais enquanto polos de acolhimento ideal das CPCJ, porque são estruturas dirigidas no sentido da vontade popular, periodicamente expressa em eleições. O localismo, que o autor considera “o ponto de chegada e de partida das atuais CPCJ” (2001: 3.9), reflete-se na necessidade de as forças locais estarem presentes nas CPM, através da sua composição interinstitucional e interdisciplinar.
O outro conceito chave, presente no D-L n.º 314/78, é o de que a intervenção administrativa das instituições oficiais não judiciárias só pode ocorrer com o consentimento expresso dos pais ou representantes legais do menor. Nesta questão controversa (Torres et al., 2008) Portugal segue o que foi legitimado pela Lei na Bélgica e no Canadá, enquanto que outros países (Inglaterra, Alemanha, Itália, Suécia, EUA) não fazem depender a intervenção protetiva do consentimento (Ferreira, 2011). Assim, a arquitetura concetual das CPCJ já está presente quando são criadas as CPM.
A grande reforma do sistema de proteção de crianças no final do século XX
O processo de profunda reforma do SPC português, que marca o divórcio definitivo com a OTM, desenvolve-se entre 1995 e 2001, num contexto de grandes mudanças no sistema de proteção social, que visam superar intervenções sociais de cariz maioritariamente assistencialista e estribar as políticas de proteção e de ação social no terreno dos direitos humanos e de cidadania.
Em 1996, o Despacho n.º 20/M/96 do Ministério da Justiça (Diário da República, 35, de 10 de fevereiro), nomeia uma Comissão para a Reforma do Sistema de Execução de Penas e Medidas, tendo como objetivos analisar o sistema, estudar a experiência de outros países e apresentar propostas de natureza legislativa e institucional, dando início a um processo de profunda mudança nos sistemas tutelar e de proteção de menores.
Aquele despacho fundamenta a decisão de criar esta comissão da seguinte forma:
a ação política tem vindo a ter como principal alvo o direito constituído ou a constituir, curando-se pouco quanto à forma como ele se traduz em realidade social autêntica e à interação existente entre estes dois planos.
Esta situação verifica-se porque
a reflexão e a investigação não têm sido desenvolvidas em Portugal de forma sistemática, abrangendo todos os subsistemas normativos e institucionais envolvidos no sistema de execução de penas e medidas.
Na sequência da publicação do Despacho n.º 20/M/96, são publicados vários despachos conjuntos interministeriais e duas resoluções do Conselho de Ministros, que têm como objeto as políticas dirigidas à criança e à família e dão corpo ao espírito reformador predominante na conjuntura política deste período.
Destacamos o Despacho Conjunto do Ministério da Justiça e do Ministério da Solidariedade e Segurança Social (Diário da República, 262, de 11/12/1996), que cria uma comissão interministerial para fazer um relatório sobre as áreas de atuação conjunta de ambos os ministérios, e o Despacho Conjunto da Presidência do Conselho de Ministros e dos Ministérios da Justiça, Educação, Saúde, Qualificação e do Emprego e da Solidariedade e Segurança Social (Diário da República, 2, de 03/01/1997), que constitui um grupo de trabalho para propor medidas integradas que respondam às necessidades da criança e da família.
Ainda em 1997, um Despacho Conjunto do MJ e do MSSS (Diário da República, 92, de 19/04/1997) cria o programa “Adoção 2000”, para reformar a legislação e restruturar os serviços de adoção, e com o objetivo de estabelecer ”normas e práticas” para melhorar a articulação dos serviços de segurança social com os serviços de saúde, os tribunais, as comissões de proteção de menores e as instituições de acolhimento de menores.
A Resolução do Conselho de Ministros n.º 193/97 (Diário da República, 254, de 03/11/1997), apoiada nos relatórios dos grupos de trabalho interministeriais, cria a Comissão Nacional de Proteção de Crianças e Jovens em Risco (CNPCJR), na dependência dos Ministérios da Justiça e da Solidariedade e Segurança Social, e decide levar a cabo a reforma legislativa da proteção e da tutela de menores e sobre o regime jurídico das CPM.
No quadro deste processo que conduziu à reforma da justiça de menores, dois factos merecem destaque. Em primeiro lugar, a preocupação em estudar a experiência de outros países. A reforma inspira-se no modelo das Commissions de Protection de la Jeunesse, existentes na Bélgica e, como afirma o secretário de estado da Justiça Lopes da Mota:
a reforma leva em conta a Convenção sobre os Direitos da Criança das Nações Unidas … bem como as experiências de direito comparado, nomeadamente as mais recentes leis aprovadas em países como a Bélgica, Espanha, Canadá e Brasil. (MJ e MTS, 1999: 10).
Em segundo lugar, constata-se a preocupação de articular a atuação de vários ministérios e entidades com responsabilidades no desenvolvimento de políticas dirigidas às crianças e jovens, como a Segurança Social, a Educação, a Saúde e a Justiça e uma óbvia intenção de desenvolver uma política integrada de apoio à criança e à família.
Em 1997, o Relatório do Grupo de Trabalho para o Estudo das Questões Relativas à Criança em Risco propõe:
a criação de uma estrutura técnica governamental, de natureza transversal, na dependência do 1º Ministro, que defina, oriente e avalie a política específica face à criança. Propõe-se que seja constituída por técnicos ligados à criança e ao jovem nas áreas da Saúde, Educação, Solidariedade e Segurança Social, Jurídica e Emprego e Formação Profissional que, trabalhando de forma interdisciplinar, definam uma abordagem global dos problemas da criança. (MJ e MSSS, 1999: 248).
A adoção pelo governo vigente de medidas como a criação dos TEIP e o lançamento dos programas PETI e “Escolhas”, mostram como problemas como o abandono escolar, o trabalho infantil e a pobreza infantil ganharam grande visibilidade e obrigaram a rever a representação sobre o risco e sobre os direitos da criança, justificando uma reorientação, nunca verificada, da tutela da área da justiça para as áreas da educação e da proteção social.
A evolução do sistema de proteção de crianças após 2001
Nos últimos 20 anos a evolução das políticas de proteção em Portugal foi marcada por uma condicionante determinante: a adesão ao euro e a adoção das consequentes regras orçamentais, que impuseram restrições à expansão e desenvolvimento das políticas sociais em geral, e das políticas de proteção da criança em particular. O quadro de restrições introduzido foi reforçado com a profunda crise financeira mundial de 2007/2008 e a chegada da pandemia de Covid-19, com consequências sociais e políticas ainda indeterminadas.
Na perspetiva da consolidação do estado-providência, merecem referência algumas das medidas implementadas antes da concretização das políticas de austeridade, a partir de 2011, como o complemento solidário para idosos, medida que entre 2006 e o final de 2008 reduziu o risco de pobreza dos idosos (maiores de 65 anos) que era de 28,9% (após transferências sociais) em 2003, para 20,1% em 2008 (INE, 2010), a reforma do sistema de pensões, indexando o sistema à esperança média de vida, e o programa “Novas Oportunidades”, que promoveu o regresso à escola de 1,5 milhões de portugueses, entre 2007 e 2011 e implementou o ensino profissional no nível secundário (Capucha, 2013), contribuindo para a descida das taxas de abandono prematuro, de 38,3% em 2005 para 13,7% em 2015, e para valores inferiores a 6% nos nossos dias.
Após a assinatura do Memorando de Entendimento com a Troika, em 2011, o governo de Passos Coelho implementou políticas de austeridade, entre 2011 e 2015, com uma lógica neoliberal, procurando reduzir a dívida pública à custa da redução das despesas públicas, dos salários e direitos laborais, das pensões e benefícios sociais, e promovendo um regresso ao assistencialismo nas políticas sociais (Calado, Capucha e Estêvão, 2019; Haro, 2017).
A seguir a 2015, assiste-se à designação inédita de um governo socialista com base em acordos negociados com partidos à sua esquerda, o qual adota uma política diferente que, mantendo os compromissos internacionais relativos à baixa da dívida pública, começa a reverter as políticas de austeridade e a repor os direitos sociais e procura estimular o crescimento da economia (Calado, Capucha e Estêvão, 2019).
O SPC português permaneceu focado na dimensão jurídica da proteção, em todo este período, ao contrário de outros países europeus onde foram promovidas novas leis e alterações significativas nos sistemas de proteção, de que são exemplo a criação da Agência Nacional para a Criança e a Família (TUSLA) na Irlanda, em 2014, a adoção de uma nova lei de proteção na Holanda, em 2015, transferindo a responsabilidade da proteção para os municípios, e a aprovação de novas leis em França, em 2016, e em Inglaterra, em 2017, promovendo mudanças substanciais nos respetivos sistemas.
A implementação e expansão das Comissões de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ)
Em 1999 é publicada a LPCJP que, de forma inequívoca e inspirando-se na Convenção sobre os Direitos da Criança da ONU, define a criança como um ser autónomo e um sujeito de direitos, separando, finalmente, a legislação sobre menores em perigo da legislação tutelar educativa.
A LPCJP cria as CPCJ como instituições oficiais não judiciárias, com autonomia funcional, e com a responsabilidade de promover os direitos da criança e proteger as crianças e jovens (artigo 12.º da LPCJP). As CPCJ adotam um modelo de organização dual, funcionando em modalidade alargada ou restrita (art.º 16.º), competindo à comissão alargada desenvolver ações de promoção dos direitos e de prevenção das situações de perigo para a criança e jovem (art.º 18.º), enquanto à comissão restrita compete intervir nas situações em que uma criança ou jovem está em perigo. Decide da abertura e instrução de um processo de promoção e proteção e decide a aplicação e acompanhar e rever as medidas de promoção e proteção (art.º 21.º).
Com a implementação da lei, a partir de 2001, o novo sistema de proteção de crianças desenvolve-se, com a transformação das CPM em CPCJ, e o início de um período de consolidação e de rápida expansão das comissões em todo o país (Epifânio, 2001).
O esforço de reflexão e estudo, associado à atividade política e legislativa que antecede a publicação da LPCJP, demonstra que as medidas para garantir o bem-estar e o desenvolvimento integral das crianças eram uma prioridade governamental e, simultaneamente, que estava a ser considerado o desenvolvimento de uma política integrada de apoio à criança e à família.
Contudo, enquanto a reforma legislativa avança, a ideia de uma política integrada para a criança e a família, como instrumento de promoção do bem-estar e dos direitos das crianças, apoiada em articulações interministeriais e com as instituições privadas de solidariedade social que trabalham com crianças não vingou, com implicações no atual modelo de proteção. O facto de a reforma legislativa do sistema não ter sido acompanhada pelo desenvolvimento de uma política integrada de bem-estar das crianças contribuiu para um processo de fechamento e ausência de debate sobre o SPC português.
Por outro lado, o conceito chave de “localismo” (Epifânio, 2001), desapareceu dos textos oficiais e artigos sobre o sistema de proteção, apesar de o poder local continuar a reforçar-se e a abarcar novas responsabilidades. Um texto que discute a relação entre social policies e social welfare (Ferreira e Rocha, 2016: 356), chama a atenção para a importância do modelo de desenvolvimento local no contexto dos países da União Europeia, a importância das autoridades locais na concertação da relação entre problemas sociais e políticas sociais e a forma como estas devem realçar uma sociedade civil ativa e participante. Do ponto de vista do sistema de proteção, parece indispensável definir com clareza o papel do estado central, das autarquias locais, das ONG/IPSS com experiência efetiva de prevenção e proteção e das próprias comunidades locais.
Na perspetiva da definição de uma política nacional dirigida à infância e juventude, apenas surgiu uma tímida tentativa, em 2007, com o lançamento da Iniciativa Nacional para a Infância e Adolescência (INIA), que tinha como objetivos a definição de um plano de ação para a defesa da universalidade dos direitos da criança, sem resultados práticos visíveis.
Foram precisos 20 anos para relançar a ideia de uma política integrada dirigida a todas as crianças. A Estratégia Nacional para os Direitos da Criança 2021-2024 foi aprovada em Conselho de Ministros (Diário da República n.º 245/2020, de 18 de dezembro). Mas a morosidade na tomada desta decisão, considerando que foram feitas duas recomendações a Portugal pelo Comité dos Direitos da Criança das Nações Unidas, em 2011 e 2014, para elaborar uma estratégia para os direitos da criança, só pode ser explicada pela persistência de uma visão estreita que minimizava a importância da articulação das políticas dirigidas às crianças.
Nos 20 anos que se seguem à implementação das CPCJ, em 2001, a LPCJP teve duas alterações legislativas. A primeira feita pela Lei n.º 31/2003, que incide no processo judicial de adoção, e a segunda pela Lei n.º 142/2015. Apesar de algumas alterações pontuais introduzidas pela Lei n.º 142/2015, designadamente sobre os princípios orientadores da intervenção (artigo 4.º), e da criação das Equipas Técnicas Regionais (Decreto-Lei nº 139/2017), medida já considerada indispensável na avaliação de 2008 (Torres et al., 2008), o sistema de proteção permaneceu inalterado na sua orientação global e no modelo organizativo e de operacionalização da proteção. As CPCJ, na sua modalidade alargada, foram, supostamente, chamadas a desempenhar funções subsidiárias de mobilização das comunidades no quadro de uma intervenção mista de ação judiciária e ação formal não judiciária.
Novas e velhas questões em aberto
No período em análise, realizaram-se duas avaliações externas sobre o SPC e as CPCJ, uma de âmbito nacional (Torres et al., 2008), feita para a CNPCJP e outra de âmbito concelhio (Pedroso et al., 2017), incidindo nas quatro CPCJ do concelho de Lisboa e encomendada pela Câmara Municipal de Lisboa.
No caso português, na ausência de debate, dentro e fora do sistema, sobre a eficácia e eficiência do mesmo, bem como de estudos académicos sobre a violência contra as crianças, não conhecemos o impacto da intervenção do sistema. Contudo, não podemos ignorar o facto de o estudo de 2017 referir que:
as principais dificuldades das CPCJ de Lisboa ao nível dos recursos humanos são consistentes com as identificadas no Estudo de Diagnóstico e Avaliação das Comissões de Proteção de Crianças e Jovens de 2008 (Pedroso et al., 2017: 72).
Os problemas identificados são a escassez de recursos humanos, porque há poucos membros das CPCJ a tempo inteiro e são insuficientes os que estão a meio tempo, a falta de formação específica para o trabalho desempenhado e o facto de as entidades de origem dos técnicos não valorizarem suficientemente o seu trabalho nas comissões (Torres et al., 2008; Pedroso et al., 2017). Mas há outras “dificuldades” identificadas em que os dois estudos coincidem, designadamente, a instabilidade gerada pela rotatividade dos membros das CPCJ e o acompanhamento deficiente ou nulo das medidas implementadas.
Se o novo desenho do sistema não se revelou capaz de resolver os problemas identificados, isso significa que é urgente fazer uma reflexão sobre o SPC português e sobre as medidas necessárias para melhorar a sua capacidade protetiva. Acresce que as “dificuldades” que persistem, remetem para questões de fundo, designadamente para o modelo de organização do SPC português.
A questão principal que urge debater é se o atual modelo de organização - como uma parceria, com um processo de constituição das comissões baseado na afetação dos seus membros pelas entidades públicas e privadas representadas nas CPCJ, sem um critério controlável, e em que uma larga maioria acumula as funções nas CPCJ com as desempenhadas nas entidades de origem - é o que melhor garante os objetivos de prevenção do perigo e proteção das crianças portuguesas.
Este modelo de organização repercute-se, inevitavelmente, na composição da força de trabalho das CPCJ. Segundo o Relatório de Avaliação da Atividade das CPCJ de 2019 (CNPDPCJ, 2020), dos 5030 membros das CPCJ, considerando as valências técnicas representadas nestas: 1087 são da área da Educação; 849 do Serviço Social; 554 da Psicologia; 388 da Saúde. Mas 1664 membros responderam “outra”, ou seja, cerca de um terço dos membros das CPCJ, não têm uma especialização específica relacionada com a proteção de crianças. Uma segunda questão que deve ser discutida é a da necessidade da especialização, formação adequada e estabilidade da força de trabalho das CPCJ.
Outra questão em aberto, referida em ambas as avaliações e em relatórios anuais de avaliação das CPCJ (CNPDPCJ, 2020), é a da necessidade de melhorar o trabalho de promoção dos direitos e de prevenção que compete à Comissão Alargada. O problema é saber como é que esse objetivo pode ser alcançado mantendo o atual modelo dual de organização, em que a prevenção permanece subsidiária e subordinada ao trabalho específico de proteção e, de acordo com o artigo 19.º da LPCJP, o plenário da Comissão Alargada funciona “no mínimo mensalmente” e a afetação dos comissários “é feita por tempo não inferior a oito horas mensais”.
O Relatório de Avaliação da Atividade das CPCJ de 2019 reconhece que as CPCJ têm feito uma evolução positiva em matéria de prevenção das situações de perigo, consolidada em 2019 com o lançamento dos projetos “Adélia”, de apoio à parentalidade positiva, e “Selo Protetor”, que dinamiza a prevenção nas escolas, mas reafirma a necessidade de “desenvolver uma prevenção sistémica apoiada nas comunidades locais”(CNPDPCJ, 2020: 98), o que está longe de acontecer.
É inegável que o sistema de proteção que emergiu da reforma de 1999 teve uma grande importância e um forte impacto na consolidação do processo de desjudicialização do sistema, iniciado em 1991 com a criação das CPM, consubstanciado na adoção do novo modelo organizativo das CPCJ, na implantação destas estruturas em todo o país e no desenvolvimento de ações de prevenção do perigo, a partir de 2008/2010, até então praticamente inexistentes.
Mas também é óbvio que, nos últimos anos, a ausência de debate, dentro e fora do sistema, sobre a eficácia do modelo atual e os possíveis caminhos para melhorar a sua capacidade protetiva, bem como a ausência de relações sólidas com outros sistemas institucionais são evidentes.
Conclusão: que futuro para o SPC português
A LPI e a LPCJP foram os dois momentos chave na evolução do SPC português, e há algumas importantes lições que podemos retirar da sua história. Quer no início do século XX, quer no período que antecede a reforma de 1999, constatámos que houve a preocupação de aprender com o que faziam outros países. A lição a retirar é que as aprendizagens mútuas entre países, no contexto de uma sociedade globalizada, são úteis e devem ser valorizadas (Spratt et al., 2015). Uma outra lição, que se aplica sobretudo nos últimos 20 anos, é que os sistemas de proteção necessitam de ser repensados de forma sistemática e submeterem-se ao escrutínio do debate académico e do conjunto da sociedade.
Considerando os problemas que o sistema enfrenta, anteriormente referidos, há três questões que necessitam de ser debatidas e a partir das quais poderemos repensar o SPC português e traçar linhas de evolução futuras para implementar a sua capacidade preventiva e protetiva.
A primeira questão é que a proteção deve ser perspetivada no quadro das políticas públicas que visam o bem-estar e o desenvolvimento integral das crianças. Há muito tempo que a UNICEF considera a proteção de crianças um dos cinco pilares do seu bem-estar, sendo os outros a alimentação, saúde, educação e a proteção social (UNICEF, 2007), o que significa que os sistemas de proteção social, saúde e educação dão um importante contributo para a proteção das crianças (Connolly et al., 2014).
No período de vigência da LPI, e também da OTM, o problema em torno do qual o sistema de proteção se construiu incidiu no risco para a sociedade da existência de problemas morais, do crime e de comportamento desviante de grupos de jovens. Daí o assunto ser em primeira instância da esfera da Justiça. A partir do momento em que as questões da proteção de crianças se separaram dos problemas de delinquência, na legislação, justificava-se uma reorientação da tutela da proteção para as áreas da proteção social, da educação e da saúde, sem prejuízo de o sistema judicial continuar a cumprir o seu papel, quando necessário.
O relatório final da Conferência de Nova Deli, que fez um balanço mundial da teoria e prática dos SPC, defende que uma abordagem sistémica da proteção de crianças se dirige a todas as crianças, procurando criar condições para o seu bem-estar e desenvolvimento global e foca-se, especialmente, nas que necessitam de proteção (UNICEF, UNHCR, Save the Children e World Vision, 2013). Daí a necessidade de os países manterem sistemas formais estatutários, altamente especializados, dedicados à prevenção e à proteção.
Esta é a orientação do modelo nórdico (child focus orientation), que vê a criança como um indivíduo autónomo com uma relação direta com o estado e adota medidas preventivas de prestação de serviços e apoios necessários às famílias para garantir o bem-estar de cada criança/jovem (Gilbert, Parton e Skivenes, 2011). A França adotou a mesma orientação, com a nova lei de proteção, de 2016. A alteração da lei representou uma mudança de paradigma nas práticas até então dominadas pela reparação das falhas parentais, para a substituir por uma abordagem centrada na avaliação pluridisciplinar das necessidades da criança, para apoiar o seu desenvolvimento (Devresse, 2017).
A segunda questão diz respeito à necessidade de “priorizar a prevenção”, uma das áreas de consenso assumida na Conferência de Nova Deli, cujo relatório final, salienta que:
Recent years have seen renewed thinking about how to address Child protection risks globally. In the ‘global North’ many existing statutory CP systems have been in need of reform, and there has been a move from a narrowly defined forensic understanding of CP towards a greater emphasis on early intervention, prevention, and family support. (UNICEF, UNHCR, Save the Children e World Vision, 2013: 3).
O sistema português permaneceu à margem desta evolução de muitos países, continuando a predominar uma visão judicializada da proteção de crianças como uma política isolada, centrada no diagnóstico e aplicação de medidas, sendo que o acompanhamento das medidas aplicadas depende, em grande medida, de instituições e das IPSS com mais recursos e capacidade técnica (Pedroso, et al., 2017).
O que nos conduz à terceira e decisiva questão, que se refere à singularidade do atual modelo organizativo dual do SPC, constituído por estruturas semiprofissionais, visto que muitos dos seus membros não são especializados e funcionam na sua maioria em regime de part-time.
Não parece viável implementar uma política de bem-estar e promoção dos direitos das crianças, qualificar o trabalho específico de proteção e, sobretudo, priorizar a prevenção, mantendo este modelo de organização. Precisamos de avançar para um novo modelo dotado de estruturas profissionalizadas, cuja força de trabalho seja constituída por técnicos a tempo inteiro, especializados e com estabilidade profissional.
A profissionalização das CPCJ não visa substituir a participação das organizações comunitárias que, atualmente, é incipiente. Pelo contrário, é uma condição necessária para cultivar sistematicamente a cooperação entre as entidades do sistema estatutário e as redes locais, e para que os membros das CPCJ tenham disponibilidade e capacidade para dinamizarem as redes informais constituídas pelas organizações das comunidades (culturais, desportivas, religiosas…), as redes familiares e de vizinhança, para que sejam, efetivamente, ativas na prevenção do perigo e proteção das suas crianças e jovens (CNPDPCJ, 2020).
Nos últimos anos, surgiram alguns sinais positivos de vontade de mudança por parte da CNPDPCJ, como o desenvolvimento do programa Adélia, a criação do Conselho Nacional de Crianças e Jovens e, principalmente, com a aprovação da Estratégia Nacional para os Direitos da Criança 2021-2024, que constitui uma oportunidade para o desenvolvimento de uma política integrada para o bem-estar e os direitos das crianças.
O debate construtivo sobre o futuro do SPC, centrado nas questões enunciadas é urgente. Passados 25 anos, as preocupações manifestadas no Despacho n.º 20/M/96 sobre a ausência de reflexão e de investigação e quanto à necessidade de estudar a experiência de outros países e avaliar o impacto das leis e das políticas na “realidade autêntica”, voltam a estar na ordem do dia e são indispensáveis para perspetivarmos o futuro do SPC português.
Legislação
Lei de Proteção da Infância, de 27 de maio de 1911.
Organização Tutelar de Menores, Decreto-Lei n.º 44.288, de 20 de abril de 1962.
Decreto-Lei n.º 314/78, de 27 de outubro.
Decreto-Lei n.º 189/91, de 17 de maio.
Despacho 20/M/96, de 30/01/96 (Diário da República, 35, de 10/02/1996).
Despacho Conjunto do Ministério da Justiça e do Ministério da Solidariedade e Segurança Social, de 02/10/1996 (Diário da República, 262, de 12/11/1996).
Despacho Conjunto da Presidência do Conselho de Ministros e Ministérios da Justiça, da Educação, da Saúde, para a Qualificação e o Emprego e da Solidariedade e Segurança Social (Diário da República, 2, de 03/1/1997).
Despacho Conjunto do Ministério da Justiça e do Ministério da Solidariedade e Segurança Social, de 18/03/97 (Diário da República, 92, de 19/04/1997).
Resolução do Conselho de Ministros n.º 193/97 (Diário da República, 254, de 03/11/1997).
Decreto-Lei n.º 98/98, de 18 de abril.
Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo (Lei n.º 147/99, de 1 de setembro).
Lei Tutelar Educativa (Lei n.º 166/99, de 14 de setembro).
Resolução do Conselho de Ministros n.º 37/2013 (Diário da República, 111, de 11/06/2013).
Decreto-Lei n.º 142/2015 (Diário da República, 175, de 08/09/2015).
Decreto-Lei n.º 139/2017 (Diário da República, 217, de 10/11/2017).