Introdução
O aumento das migrações forçadas apresenta desafios significativos para estados e agências supranacionais (Hooghe e Marks, 2019), impondo a necessidade de respostas mais eficientes para as políticas de acolhimento e integração. A chegada de requerentes de asilo na União Europeia (UE) em 2015 trouxe reflexões sobre o modelo de gestão deste fenômeno e alguns autores se debruçaram sobre essa questão a partir da perspectiva da governança multinível (Caponio e Ponzo, 2022).
Portugal se demonstrou disposto a participar dos mecanismos de solidariedade para receber refugiados e requerentes de asilo, o que impactou a estrutura de acolhimento do país (Rodrigues, 2017). Este fenômeno envolveu distintos ministérios, a mobilização da sociedade civil e de organizações locais para elaborar respostas conjuntas para a integração (Sousa et al., 2021). Segundo o mais recente Relatório Estatístico do Asilo 2022 (Oliveira, 2022), em 2022, Portugal alcançou o número recorde de 58.591 pedidos de proteção internacional, dos quais 1992 foram feitos em território nacional e 56.5991 foram pedidos concedidos de proteção temporária.2 Nesse mesmo ano, houve 632 concessões do estatuto de refugiados.
Este artigo examina a rede organizacional de acolhimento para refugiados e requerentes de asilo em Portugal, mapeando atores e laços à luz da teoria da governança multinível. Ao observar as conexões que são estabelecidas, é possível compreender não só relações hierárquicas, mas também ligações de interdependência que são atravessadas por convergências, divergências e sobreposições. A estrutura analítica da governança multinível pode “revelar como as interações em vários níveis de governo e parcerias de governança formulam e implementam políticas”3 (Glorius e Gash, 2022: 123).
Neste sentido, é feita uma breve revisão bibliográfica sobre a governança multinível, apontando como esta teoria tem sido aproximada dos estudos sobre migrações forçadas e de que forma essa reflexão pode recair sobre o panorama português. Em sequência, é observado os deslocamentos forçados em direção à Europa e a adesão de Portugal aos mecanismos de solidariedade. Com base na governança multinível, é discutida a tessitura da rede organizacional e os laços que foram estabelecidos entre atores portugueses posicionados em diferentes níveis territoriais.
Baseado em entrevistas semiestruturadas, revisão bibliográfica e análise documental, o texto conclui que há um esforço em construir uma rede organizacional em Portugal dedicada aos refugiados e requerentes de asilo, que embora ainda seja centralizadora, há grande participação da sociedade civil e das organizações locais. Na perspectiva multinível, ainda que exista uma estrutura colaborativa, há pouco espaço para tomada de decisão fora do estado.
Este artigo compõe um estudo comparativo mais amplo sobre as redes organizacionais de acolhimento para refugiados em Portugal e no Brasil. O esforço investigativo para este texto foi realizado em diálogo com uma pesquisa desenvolvida nos mesmos moldes com atores brasileiros (Muniz, 2022). Ambos os países envolvem organizações governamentais, não governamentais, agências supranacionais e a sociedade civil para acolher e integrar solicitantes de proteção internacional.
Governança multinível: a teoria e sua aproximação com estudos sobre migrações forçadas
A elaboração do conceito “governança multinível”
O conceito de governança é amplo e se refere à necessidade de ações coletivas para questões complexas, como as mudanças climáticas e os deslocamentos forçados (Peters, 2012). Este termo foi utilizado em distintas disciplinas e com variadas conceitualizações, considerando as formas que os autores se debruçaram sobre seus objetos de estudo. O cientista político Gary Marks (1993), trabalhou com este conceito para compreender as dinâmicas de tomada de decisão na UE e deste esforço desenvolveu a teoria da governança multinível (Piattoni, 2009).
Com a formação da UE, foi estabelecido um debate sobre a integração e a autonomia dos estados-membros. Inicialmente, duas vertentes teorizaram sobre essa situação. Na primeira, intitulada como intergovernamental, a UE teria uma autoridade limitada, com o papel de facilitar transações entre os países comunitários, e os governos centrais teriam sua soberania fortalecida para a elaboração de tratados (Hooghe e Marks, 2019). A segunda teoria, nomeada como neofuncionalismo, descrevia que as instituições supranacionais poderiam comprometer a soberania do estado ao moldar as competências institucionais, os recursos e as formas de deliberação (Marks, 1993). As forças econômicas e sociais do mercado influenciariam na configuração do bloco, direcionando interesses gerais para o âmbito nacional (Piattoni, 2009).
Em contraponto a estes argumentos, Marks (1993: 392) avaliou que
o debate entre as concepções supranacionais e nacionais de formação institucional na Comunidade Europeia perde um elemento crítico de todo o quadro, a saber, a crescente importância dos níveis subnacionais de tomada de decisão e as suas inúmeras ligações com outros níveis.
Através deste esforço, Marks (1993) reconheceu uma estrutura de negociação contínua entre governos de diferentes níveis territoriais - supranacional, nacional, regional e local. Os governos nacionais ainda são os principais tomadores de decisão, mas não monopolizam as ligações entre atores supranacionais e subnacionais, resultando em um processo de descentralização de poder e na elaboração de conexões verticais, horizontais e diagonais que extrapolam uma rigidez hierárquica (Hooghe e Marks, 2001).
Essa teoria aponta para a relevante participação de organizações não governamentais, atores públicos e privados, nos processos de decisão e nas resoluções de desafios coletivos (Hooghe e Marks, 2003). Diante disso, esse modelo além de observar conexões multiníveis, também analisa as ligações multiatores, no qual “diferentes tipos de atores se vincularam a diferentes níveis governamentais e povoaram as redes de políticas assim formadas” (Piattoni, 2009: 167).
A fim de definir um espaço teórico dentro da governança multinível que capture os diversos arranjos jurisdicionais, Hooghe e Marks (2003) elaboraram duas tipologias. Nomeadas como tipo I e tipo II; estas concepções são tipos ideais que ajudam a compreender as configurações de governança que se tecem na prática, envolvendo diferentes níveis de governo e atores, desafiando modelos hierarquicamente ordenados (Piattoni, 2009).
O tipo I descreve uma divisão do trabalho estável entre um número limitado de níveis de governo, com jurisdição geral sobre o território ou conjunto de questões (Piattoni, 2009). Com base intelectual no federalismo, engloba a tríade de poderes executivo, legislativo e judiciário. O poder está disperso em um pequeno número de jurisdições, associadas ao território, com o compromisso de ser durável e no qual suas funções não são interceptadas e nem mesmo se cruzam (Hooghe e Marks, 2003).
O segundo tipo, por sua vez, surge quando há a necessidade de gestão de um problema específico, que não está circunscrito à ação de uma organização do tipo I. Ou seja, quando “as principais organizações governamentais são incapazes de responder com flexibilidade às questões políticas que cruzam suas jurisdições” (Piattoni, 2009). O tipo II possui atribuições múltiplas e independentes, operando em todos os níveis territoriais e com tarefas específicas (Hooghe e Marks, 2003). Sua estrutura envolve múltiplos atores, o que pode levar à uma sobreposição de funções, onde organizações diferentes podem ter os mesmos objetivos. O design dessa estrutura é flexível, se moldando conforme o problema e contexto que se destina (ibidem).
Na governança multinível as duas tipologias coexistem, pois são complementares. O resultado é uma estrutura estável de jurisdições com propósito geral, referenciada pelo tipo I, juntamente com uma quantidade oscilante de organizações independentes, porém interdependentes, descritas pelo segundo tipo (Hooghe e Marks, 2001). Esses modelos são formados por redes organizacionais conectadas por um desafio em comum e na busca por resoluções coletivas.
A governança multinível como estrutura de análise para a questão de refugiados e requerentes de asilo
Segundo Caponio e Jones-Correa (2018), os estados têm buscado transferir suas responsabilidades em relação à migração - e nisso inclui refugiados e requerentes de asilo - para agências supranacionais, organizações não governamentais e autarquias locais. Ao mesmo tempo, estes atores têm se mobilizado para participar das ações e políticas voltadas para esta questão. A governança multinível é útil para observar justamente a interseção desse movimento, onde uma rede organizacional é formada por atores de distintos perfis em torno de um objetivo comum, neste caso a questão dos refugiados e requerentes de asilo (Glorius e Gash, 2022).
De acordo com Scholten e Penninx (2016: 93), “estudos e literatura tendem a se concentrar em apenas um nível de governo, em vez de buscar compreender as interações entre eles”. Os autores justificam que a governança multinível é uma estrutura analítica que permite observar a tessitura de laços dentro da rede organizacional de acolhimento e suas consequências. A gestão do refúgio se beneficia dessa estrutura, na qual coexistem relações verticais e horizontais (Caponio e Ponzo, 2022) e onde o nível local é um espaço político reconhecido por sua capilaridade e mobilização para facultar mecanismos de integração (Zapata-Barrero, Caponio e Scholten, 2017; Auslender, 2021).
O acolhimento de requerentes de asilo e refugiados questiona os processos hierárquicos baseados no estado, pois aciona uma rede de atores interdependentes (Caponio e Ponzo, 2022). Este fenômeno é um desafio para a governança multinível que compreende um modo específico de formulação de políticas, envolvendo autoridades governamentais, atores públicos e privados (ibidem). O acolhimento e integração de refugiados dependem de muitos componentes, que vão além de moradia, alimentação, educação e saúde. É preciso que a comunidade esteja informada e aberta para a recepção deste grupo, que sua cultura possa ser aceite sem receios, que hábitos e manifestações religiosas sejam respeitados (Strang e Ager, 2010).
A questão dos refugiados e requerentes de asilo em Portugal a partir de uma perspetiva da governança multinível
Os estudos sobre migrações forçadas em Portugal ainda são desafiados pela “falta de dados, a dispersão de informação por múltiplas instituições com critérios distintos de recolha, e ainda pelo número relativamente contido de estudos científicos disponíveis sobre esta nova realidade das migrações vividas no país (Sousa et al., 2021: 13). Este fator fica ainda mais latente quando recai sobre a perspetiva das redes organizacionais de acolhimento para refugiados e requerentes de asilo. Mesmo a nível internacional, a questão das organizações tem sido pouco aprofundada, com pouca análise sobre como são efetivados os mecanismos de acolhimento e quais atores são acionados para facultar a integração (Gatrell, 2013; Caponio e Ponzo, 2022).
O estudo “Integração de Refugiados em Portugal. O Papel e Práticas das Instituições de Acolhimento”, desenvolvido por Sousa et al. (2021), é bastante singular. A pesquisa apresenta um mapeamento sobre as organizações dedicadas ao acolhimento, especialmente em contexto de recolocação, e tem a preocupação de observar as ações de terreno, considerando os desafios das organizações locais. Em diálogo com este estudo, o presente artigo procura abranger as relações de interdependência que resultam da interação entre as organizações e a formação de uma rede dedicada aos refugiados e requerentes de asilo no país através das lentes da governança multinível.
Ainda que a UE tenha influência sobre os países comunitários a respeito da questão das migrações forçadas, cada país elabora sua estrutura de acolhimento (Caponio e Ponzo, 2022). Portugal possui duas características estruturais significativas neste setor que versam com a análise da governança multinível: a distribuição geográfica e a diversidade institucional (Sousa et al., 2021). Para Oliveira (2022: 146), a distribuição geográfica é um ponto relevante da política de asilo portuguesa, no qual é valorizado “o potencial do acolhimento também em territórios de média e baixa densidade”. Esta prática é observada em outros países europeus, a fim de limitar a concentração de refugiados em grandes cidades, partilhar custos e reduzir tensões socioculturais (Sousa et al., 2021). Para isso, é preciso assegurar a participação das autarquias locais e da sociedade civil, de forma que a distribuição possa ocorrer de forma adequada (Costa e Teles, 2017).
O acolhimento carece de uma estrutura complexa que conecte organizações de diferentes níveis territoriais e com diferentes perfis em torno de um objetivo comum (Sousa et al., 2021). A diversidade de atores requer interdependência organizacional e partilha de responsabilidades, algo característico da estrutura da governança multinível. No contexto português, como em outros países europeus (Caponio e Ponzo, 2022), há uma prevalência nas relações hierárquicas para tomada de decisão, com centralidade no governo nacional. No entanto, isso se complexifica com a importância das organizações locais nas respostas ao asilo (Rodrigues, 2017).
Metodologia
Esta investigação utilizou métodos qualitativos, acrescidos de análise documental e revisão bibliográfica para construir uma base teórica sobre o tema. A partir da aproximação de estudos sobre a governança multinível e de pesquisas voltadas para as questões das migrações forçadas em diferentes países (Auslender, 2021; Caponio e Ponzo, 2022; Glorius e Gash, 2022), foi possível analisar relatórios, documentos e dados sobre rede organizacional de acolhimento para refugiados em Portugal, o que resultou no mapeamento de atores e a observação de laços no país. Em paralelo, foram acompanhadas as redes sociais das organizações e realizadas pesquisas frequentes em jornais e revistas sobre este universo.
No primeiro semestre de 2022, foram feitas entrevistas semiestruturadas com colaboradores das organizações voltadas para o acolhimento de refugiados e requerentes de asilo. Mesmo com a maior parte das entrevistas sendo realizadas de forma online, alguns encontros precisaram ser adiados e algumas organizações importantes não puderam atender ao pedido de colaboração para este artigo, neste caso o Instituto de Segurança Social (ISS) e a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML).
Ao todo, foram feitas dez entrevistas para cobrir organizações localizadas em diferentes escalas territoriais e com trabalho relevante no âmbito das migrações forçadas. Estas foram: ACNUR,4 OIM,5 ACM,6 SEF,7 PACNUR,8 Cáritas Portuguesa, CPR,9 JRS,10 Fundação O Século e Cáritas Guarda. O conteúdo das entrevistas tinha como propósito mapear as ligações supranacionais, nacionais e locais de cada organização, compreender quais as razões dessas conexões, os benefícios e os desafios da rede organizacional de acolhimento em Portugal. É importante frisar que os entrevistados não são os principais responsáveis das organizações, porém relatam suas experiências e perspectivas enquanto colaboradores - o que não corresponde a um pronunciamento oficial da organização.
As entrevistas foram realizadas pela autora, com média de uma hora de duração, onde todos foram informados sobre o objetivo das entrevistas para a produção de um artigo científico, o caráter desta pesquisa e autorizaram a sua gravação, salvaguardados pelo anonimato. Desta forma, a partir do consentimento informado e de considerações éticas, esta investigação aplica o princípio da confidencialidade, salvaguardando as informações de caráter pessoal, não identificando pessoas, organizações e nem mesmo realizando transcrições diretas no texto, porém interpretando-as.
Diante da coleção de organizações que participaram desta pesquisa, foi realizada uma análise de rede de acordo com a perspectiva de Wasserman e Faust (1994), em que cada ator tem vínculos com outros, cada um deles ligados a mais alguns e assim por diante. Nesta perspectiva, a atenção está voltada para a estrutura, seu impacto e sua evolução perante o contexto que se insere, no qual “a análise de redes sociais permite um conjunto flexível de conceitos e métodos com amplo apelo interdisciplinar” (1994: 11).
Deslocamentos forçados em direção à União Europeia e os mecanismos de proteção
O aumento de pedidos de proteção aos países comunitários resultou em debates na UE sobre como poderia ser feita a gestão de refugiados e requerentes de asilo (Triandafyllidou, 2018). Com repercussão nos meios de comunicação, esta questão se tornou cada vez mais latente, o que colocou o Sistema Europeu Comum de Asilo (SECA) sob pressão, ao impor desafios às suas fronteiras e dúvidas sobre a estrutura existente para a recepção de migrantes forçados (Costa et al., 2019).
Os pedidos de asilo são feitos nos países de entrada, principalmente Grécia e Itália. Em 2015 foi apresentada a Agenda Europeia para a Migração, sinalizando a necessidade de “novas instituições, financiamentos, princípios reinterpretados de não repulsão, cooperação sincera e políticas concretas” (Panizzon e Riemsdijk, 2019: 1229). Assim, se tornou imprescindível a partilha de responsabilidade com outros estados-membros e a elaboração conjunta de soluções para refugiados e requerentes de asilo (Costa et al., 2019). A UE desenvolveu mecanismos de proteção para estabelecer acordos entre os países comunitários e garantir direitos para pessoas que foram forçadas a migrar (Oliveira, Peixoto e Góis, 2017). Para além da figura legal do refúgio, estes mecanismos são:
proteção subsidiária: concedida às pessoas que não são reconhecidas como refugiadas, mas que se sintam impossibilitadas de regressar ao país de residência habitual devido ao risco de ofensa grave (Sousa e Costa, 2016);
proteção temporária: elaborada para um grande fluxo de pessoas deslocadas de um mesmo país, que não podem retornar e onde a concessão de proteção não pode ser tratada de forma individualizada (Oliveira, Peixoto e Góis, 2017);
reinstalação: transferência de refugiados a pedido do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), de um primeiro país de asilo, onde se encontravam em situação vulnerável, para um estado-membro (Oliveira, Peixoto e Góis, 2017);
recolocação: transferência de refugiados entre dois países comunitários, onde lhes será garantida proteção similar (Oliveira, Peixoto e Góis, 2017).
Face aos acontecimentos recentes, foram elaborados programas europeus de admissão relacionados a contextos específicos (Oliveira, 2022). Dentre eles, o programa de recolocação voluntária e de menores não acompanhados, desenvolvidos para dar respostas à pressão sentida pela Grécia. Há também o programa de admissão humanitária de cidadãos provenientes do Afeganistão, onde o Parlamento Europeu incitou os “estados-membros a trabalharem conjuntamente para a evacuação dos afegãos em risco” (ibidem, 2022: 76).
O panorama legislativo português
Com a entrada de Portugal na Comissão Econômica Europeia, foi aprovada a Lei n.º 70/93, que integrava os princípios da Convenção de Dublin e do Acordo de Schengen (Sousa, 1999). Já em 1998, foi elaborada a Lei n.º 15/98, para regulamentar o “procedimento de admissibilidade do pedido de asilo”, com foco na dignidade social por meio da atribuição de tarefas para as organizações não governamentais, descentralizando ações do ACNUR e do estado (Sousa e Costa, 2016: 114).
Nos anos seguintes, foi instaurada a proteção temporária (Oliveira, Peixoto e Góis, 2017) e o debate sobre processos de reinstalação foi retomado (Sousa e Costa, 2016: 110). Uma nova lei sobre o asilo é formulada em 2008, a Lei n.º 27/2008, seguindo as diretivas da UE. Das alterações mais relevantes, destaca-se o conceito de “proteção internacional”, de forma que todos os pedidos de asilo podem ser enquadrados nesta categoria.
Mesmo com instrumentos supranacionais, cada país possui autonomia para compor o seu enquadramento legal sobre a questão dos refugiados e requerentes de asilo, o que torna difícil assegurar uma política de proteção uniforme (Oliveira, 2022). Como estado-membro, Portugal segue o conjunto de Diretivas de Acolhimento definido pela UE, a fim de garantir um padrão de vida digno para os solicitantes de asilo e comparável com os países comunitários (Caponio e Ponzo, 2022).
Estrutura da rede organizacional dedicada aos refugiados e requerentes de asilo em Portugal a partir de uma lógica territorial
O cenário português para acolhimento de refugiados e requerentes de asilo envolve organizações múltiplas e distribuídas em diferentes níveis territoriais. Com base nas entrevistas realizadas, na análise documental e na pesquisa bibliográfica, foi realizado um mapeamento para posicionar os atores, observar seu papel, a influência na rede, os laços firmados e a estrutura hierárquica composta (Wasserman e Faust, 1994; Burt, 2000).
Em âmbito supranacional, três atores foram referenciados ao longo das entrevistas: UE, ACNUR e OIM. Mesmo com configurações distintas, essas organizações participam da rede de acolhimento português, estimulando boas práticas, sensibilizando a sociedade civil e monitorando processos (Oliveira, 2022). Porém, não possuem o poder de decisão sobre o cenário doméstico (Caponio e Ponzo, 2022; Oliveira, 2022).
Em território nacional, foi criado o Grupo Operativo Único por meio da Resolução do Conselho de Ministros n.º 103/2020, de 23 de novembro 2020,
que funciona numa formação restrita com funções de coordenação (ACM, Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) e Instituto de Segurança Social) e numa formação técnico-operativa, prevendo a possibilidade de criação de subgrupos de trabalho para acompanhamento de matérias específicas. (Oliveira, 2022: 24)
Com funções técnico-operativas dentro do Grupo Operativo Único estão: Direção-Geral do Ensino Superior (DGES), Direção-Geral do Estabelecimento Escolar (DGEstE), Instituto Português do Desporto e Juventude (IPDJ), Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP), Agência Nacional para a Qualificação e o Ensino Profissional (ANQEP), Santa Casa de Misericórdia de Lisboa (SCML), Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), a Direção-Geral da Saúde (DGS), Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU).11 Há ainda a formação alargada, onde são integradas outras entidades que, em função do território e do objetivo, tenham qualificação para promover o acolhimento dos requerentes de asilo.
As organizações técnico-administrativas acrescentam uma característica multidisciplinar ao Grupo Operativo Único, interligando diferentes áreas. O propósito é lidar com as questões operacionais de acolhimento, suas especificidades e realizar acompanhamentos (Oliveira, 2022). Ao conectar diferentes organizações por meio do grupo e dos subgrupos, o intuito é dar respostas mais ágeis e eficientes aos desafios complexos impostos por esse fenômeno.
O ACM, o SEF e o ISS possuem papéis importantes na rede organizacional de acolhimento para refugiados, que serão melhor apresentados posteriormente. No entanto, o compromisso português com a questão dos requerentes de asilo levou o ACM a tomar duas medidas de organização interna. Como exposto por Sousa et al. (2021: 43):
a medida adaptativa, definida na Portaria n.º 203/2016, de 25 de julho, passou pela reconfiguração dos serviços existentes do ACM, nomeadamente, os Centros Nacionais e Locais de Apoio à Integração de Migrantes (CNAIM e CLAIM). A medida cumulativa foi a criação de um Núcleo de Apoio à Integração de Refugiados (NAIR).
O recorte nacional supracitado refere-se às organizações governamentais. No entanto, é possível visualizar organizações não governamentais nesta mesma escala. A governança multinível explica essa configuração, na qual diante de um fenômeno complexo é preciso que organizações não governamentais realizem funções que o estado não consegue realizar (Hooghe e Marks, 2003). Esses atores atuam em parceria com o governo, buscando soluções mais amplas.
A figura 1 foi elaborada para sistematizar o mapeamento da rede organizacional de acolhimento em Portugal, localizando seus atores e sua abrangência territorial. Essa estrutura comporta organizações públicas e privadas, com distintas escalas governamentais e com grande amplitude local, onde as conexões se tornam mais variadas, em alguns casos espontâneas e personalizadas. Devido a pluralidade das conexões locais, não foi possível detalhar as organizações participantes.
Algumas organizações realizam funções tanto em nível nacional, participando dos processos de decisão e da distribuição territorial dos refugiados e requerentes de asilo, quanto em nível local, acolhendo e participando dos processos de integração. Como é possível observar na figura 1, a SCML, o CPR e o JRS, possuem essa característica pendular, algo que é reconhecido pelo segundo tipo da governança multinível, devido a capacidade de atores não governamentais acumularem funções e efetivarem conexões múltiplas (Hooghe e Marks, 2003; Piattoni, 2009).
O mesmo fluxo migratório que provocou mudanças no ACM, reverberou em alterações internas no perfil das organizações locais (Goldberg, 2021). Segundo Costa e Teles (2017), desde o momento em que Portugal se prontificou a receber solicitantes de proteção em 2015, mais de 100 organizações não governamentais e de 140 autarquias se prontificaram para o acolhimento. Entretanto, poucas tinham experiência prévia com migrantes forçados, mas identificavam como seu propósito “a resolução de problemas sociais e humanitários, com atuação quotidiana junto de grupos vulneráveis” (Sousa et al., 2021: 53). Esta disponibilidade contava com as conexões que seriam estabelecidas com organizações mais experientes, localizadas em outros níveis territoriais.
A tessitura da rede e os laços estabelecidos entre organizações
Articulação entre as organizações: uma estrutura hierárquica para o acolhimento de refugiados e requerentes de asilo
De acordo com Caponio e Ponzo (2022), ainda que o acolhimento de refugiados amplie a composição da rede através da mobilização de atores não governamentais e da sociedade civil, os principais tomadores de decisão ainda estão em escala nacional. O estudo realizado pelas autoras contempla diferentes países da UE, como Alemanha, Itália, Espanha, Finlândia e Grécia. Porém, esta configuração também pode ser observada no território português.
Em Portugal, a proteção internacional pode ser feita via mecanismos de solidariedade (como recolocação e reinstalação) e através de pedidos espontâneos. As diferentes formas de solicitar asilo vão resultar em distintos caminhos operacionais a serem percorridos pelos refugiados e requerentes de asilo (Oliveira, 2022). O governo português possui uma rede organizacional articulada para dar respostas adequadas à comunidade, ao indivíduo e à família e define os principais atores responsáveis pela gestão deste fenômeno (ibidem).
Partindo de uma lógica hierárquica, as três principais organizações com poder de decisão se situam em nível nacional e coordenam o Grupo Operativo Único, ou seja, são o SEF, o ACM e o ISS. Como previsto na primeira tipologia da governança multinível, elas possuem jurisdições específicas, não se sobrepõem e são perenes (Hooghe e Marks, 2003). Os laços efetivados entre estes atores têm como propósito administrar os mecanismos de acolhimento, envolvendo os processos burocráticos, a articulação com as organizações de terreno e as múltiplas esferas de integração (Strang e Ager, 2010).
O SEF é responsável pelo controle de fronteiras e cumprimento da lei de asilo, incluindo a apreciação e decisão sobre os pedidos de proteção12 (Goldberg, 2021). Ao mesmo tempo, participa de grupos de trabalho da UE, na revisão dos instrumentos legislativos do Sistema Europeu Comum de Asilo (SECA) e se envolve nos acordos de recolocação e reinstalação. Possuía a competência de gerir os recursos advindos da UE, como o Fundo para o Asilo, a Migração e a Integração (FAMI), e repassar recursos para as organizações com quem tem protocolos de cooperação, em especial o ACM e o CPR (Sousa et al., 2021; entrevista 02, organização local).
Fica a cargo do ACM elaborar um modelo único de acolhimento e integração nacional e mapear as organizações de terreno disponíveis para a recepção de refugiados e requerentes de asilo13 Após receber recursos do SEF, o ACM pode prestar apoio financeiro às organizações de acolhimento e a operacionalização da rede organizacional (Goldberg, 2021; entrevista 01, organização nacional). Estas duas organizações também trabalham conjuntamente no processo de admissibilidade do requerente de asilo e nas transferências realizadas a partir dos mecanismos de solidariedade (entrevista 01, organização nacional).
As funções claramente definidas são um ponto importante para a primeira tipologia da governança multinível (Hooghe e Marks, 2003). O ACM e o SEF possuem uma relação de cooperação que têm seus papéis reconhecidos por todos os atores da rede e pela sociedade civil. Nessa tríade nacional/governamental, o ISS desempenha uma função específica que consiste em dar respostas aos requerentes de asilo que tiveram o pedido negado e apoiar aqueles que, após a fase inicial de admissibilidade, se encontram em situação de vulnerabilidade social.14
Há organizações não governamentais situadas em nível nacional que estão conectadas aos atores supracitados. A semelhança entre estas organizações é a identificação de respostas nacionais para a questão do refúgio e a sensibilização da sociedade civil para o tema (Sousa et al., 2021). Além dessas funções, o CPR e a Plataforma de Apoio para Refugiados (PAR) também somam a responsabilidade de encontrar entidades locais dispostas a acolher requerentes de asilo e refugiados e auxiliar na gestão e transferência de recursos. Sendo assim, realizam um trabalho articulado com o ACM, principal organização nacional responsável pela integração, encaminhando refugiados e requerentes de asilo por meio de acordos de colaboração para organizações locais menores (Goldberg, 2021).
O aumento do fluxo migratório em 2015 precisou de respostas ágeis e de uma estrutura flexível para coordenar a rede organizacional de acolhimento em Portugal. Como é apontado por Caponio e Ponzo (2022: 222),
no que diz respeito à tomada de decisões sobre reformas políticas, as relações hierárquicas têm prevalecido, com os governos nacionais centralizando poderes e responsabilidades sobre a questão, especialmente após a crise. Por outro lado, no que diz respeito à implementação, a governação da rede tornou-se proeminente a nível local, com as autoridades locais e as ONG muitas vezes empenhadas em coordenar as respostas aos desafios de acolhimento.
As organizações supranacionais são parte da rede organizacional do refúgio em Portugal. Além de operacionalizar o deslocamento de refugiados via mecanismos de solidariedade (ACNUR e OIM) e transferir apoio financeiro (UE) (Oliveira, 2022), têm como característica influenciar a política de acolhimento do país (Gatrell, 2013), por meio de advocacy e technical advice (entrevista 02, organização supranacional). Além disso, procuram incidir sobre o contexto local em paralelo as ações do estado, se conectando as organizações de terreno através de formações, capacitações e estímulo a parcerias (entrevista 01, organização supranacional).
A ampliação da rede dedicada aos refugiados e requerentes de asilo em Portugal: os desafios locais para a implementação de políticas de acolhimento
No âmbito das migrações forçadas, além da estrutura hierárquica caracterizada por conexões verticais, a rede organizacional portuguesa também se conecta horizontalmente e, por vezes, ultrapassa as escalas pré-definidas com laços formados entre agências supranacionais e organizações locais (Sousa et al., 2021). Com a complexidade do acolhimento e da integração de requerentes de asilo e refugiados o nível local se destaca devido à ampliação de conexões (Zapata-Barrero, Caponio e Scholten, 2017). Na perspectiva da governança multinível, cabe observar como a sociedade e a comunidade local se posicionam em relação aos refugiados e requerentes de asilo e quais os principais equipamentos mobilizados para o acolhimento (Auslender, 2021).
Em Portugal, muitas das organizações de terreno que se disponibilizaram para o acolhimento não possuíam experiência com esse grupo (Goldberg, 2021; Sousa et al., 2021). Como o estado estava preocupado em reforçar sua estrutura para a recepção de migrantes forçados, as agências supranacionais se dedicaram a capacitar os atores locais e sensibilizar as autarquias e a sociedade civil (entrevista 01, organização local). Segundo Scholten e Penninx (2016), esse modelo de atuação permite uma prática comum na forma de acolhimento entre as organizações locais e estimula a criação de uma rede entre cidades europeias, no qual estas formam parcerias horizontais para partilha de conhecimento e experiências (entrevista 02, organização supranacional).
Existem atores não governamentais que se destacam por possuir maior capilaridade, influência e capital social (Burt 2000; Portes, 2000). Eles conquistaram maior legitimidade em Portugal pelo seu histórico, com laços que lhe conferiram um espaço de centralidade na rede. Não por coincidência, se localizam tanto em nível nacional quanto local, participando da formulação e implementação de políticas (Piattoni, 2009). O CPR, a JRS e a SCML ocupam esse duplo espaço, permanecendo ao lado de organizações governamentais em escala nacional, mas realizando ações de acolhimento em esfera local (entrevista 02, organização local; entrevista 03, organização local).
Há um descompasso entre a formulação de políticas elaboradas pelos níveis supranacional e nacional e a sua implementação em nível local. As organizações de terreno portuguesas afirmam que mesmo se esforçando encontram dificuldades para cumprir o que está previsto (entrevista 01, organização nacional; entrevista 03, organização local). Essa observação foi feita por Zapata-Barrero, Caponio e Scholten (2017), no qual os autores detectam uma dissociação entre políticas nacionais, que partem de um princípio generalista, e locais, que possuem especificidades e desafios singulares. Em Portugal, os desafios relatados foram muitos, alegando desde o acesso à recursos financeiros até a relação de interdependência entre os atores locais (entrevista 02, organização local).
Embora exista o reconhecimento de atores nacionais que se esforçam em coordenar as ações de acolhimento no país por meio de diretrizes e normas, para as organizações locais é difícil identificar uma rede de apoio aos refugiados (entrevista 02, organização local). Por um lado, isso resulta em certa autonomia, onde os atores locais podem traduzir as orientações nacionais de acordo com seus contextos e ampliar suas conexões a partir de parcerias com organizações de terreno (Hooghe e Marks, 2003). Por outro lado, pode resultar em uma sensação de desamparo na busca por soluções cotidianas. (Sousa et al., 2021). Como o acolhimento é algo novo para algumas organizações, muitas delas contam com o suporte de outras organizações, especialmente as nacionais e os serviços públicos, para dar respostas aos refugiados e requerentes de asilo (entrevista 03, organização local).
A constelação de atores pode revelar tensões de poder, questões políticas e padrões discursivos que se refletem nos laços firmados (Glorius e Gash, 2022). Os meios que efetivam os laços entre organizações podem expor fatores de maior dependência de uma das partes, marcado não apenas por questões financeiras, mas também por legitimidade e confiabilidade (Portes, 2000). Para organizações locais portuguesas, estabelecer laços com organizações reconhecidas em outras escalas aumenta a credibilidade em suas ações e aumenta a segurança para realizar outras parcerias (Burt, 2000).
Conclusão
Este artigo procurou investigar a rede organizacional de acolhimento de refugiados e requerentes de asilo em Portugal a partir da perspectiva da governança multinível. A partir desta teoria, o que se observa é uma estrutura hierárquica no país com funções estabelecidas entre os diferentes níveis organizacionais. Isto vai de acordo com a primeira tipologia estabelecida por Hooghe e Marks (2003), em que um número enxuto de organizações são responsáveis por jurisdições específicas. No entanto, em âmbito local, há ramificações significativas, onde organizações de diferentes tipos se mobilizam para promover o acolhimento. Na perspectiva dos autores (2003), o tipo II desta configuração teria o caráter temporário e maior mobilidade entre as organizações. De fato, é possível observar isso em Portugal, onde organizações locais ora se envolvem, ora se retiram e outras começam a fazer parte.
Ao analisar a rede organizacional portuguesa, é possível perceber que há uma estrutura bem elaborada, com papéis bem definidos, mas pouca penetração das organizações locais nos espaços de formulação de política. Este é um preceito importante para a governança multinível, que tem na sua essência a valorização e reconhecimento das práticas de terreno (Zapata-Barrero, Caponio e Scholten, 2017), no qual estas possuem conhecimentos que podem passar despercebidos pelos tomadores de decisão. Garantir voz aos atores que lidam diretamente com refugiados e requerentes de asilo pode tornar os mecanismos de acolhimento portugueses mais eficientes, com laços de interdependência entre os atores mais estreitos e menos burocráticos.
O eco que fica entre as organizações dedicadas ao refúgio afeta de diferentes formas o processo de acolhimento e integração. A sensibilização da sociedade para o acolhimento, mencionada principalmente por organizações supranacionais e nacionais, não parece alcançar agentes dos serviços públicos, fato enunciado como um dos principais desafios localmente. O envolvimento das organizações locais nos processos de decisão pode trazer inovações no acolhimento, apresentando soluções para os desafios cotidianos.
Embora a governança multinível ajude a analisar a estrutura da rede organizacional voltada para acolher refugiados e requerentes de asilo em Portugal, ainda há debates que precisam avançar, principalmente sobre os processos de descentralização do poder e tomada de decisão. Esta teoria tem um olhar atencioso para as organizações subnacionais, com atores que participam ativamente da rede e realizam conexões além de suas esferas territoriais. Este contexto ainda é sensível no cenário português, que pressupõe uma hierarquia e dependência organizacional.