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Sociologia, Problemas e Práticas

versão impressa ISSN 0873-6529

Sociologia, Problemas e Práticas  no.104 Lisboa abr. 2024  Epub 05-Jun-2024

https://doi.org/10.7458/spp202410431717 

ARTIGOS ORIGINAIS

A consolidação do mundo da arte do jazz em Portugal: condições e contextos contemporâneos

Consolidation of the jazz art world in Portugal: contemporary context and conditions

La consolidation du monde de l’art du jazz au Portugal: conditions et contextes contemporains

La consolidación del mundo del arte del jazz en Portugal: condiciones y contextos contemporáneos

Bruno Baptista1  , conceptualização, curadoria dos dados, análise formal, aquisição de financiamento, investigação, metodologia, administração do projeto, recursos, redação do original, revisão e edição
http://orcid.org/0000-0002-4830-7373

1 Iscte - Instituto Universitário de Lisboa, Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES-Iscte), Lisboa, Portugal


Resumo

Analisamos o recente processo de consolidação do mundo da arte do jazz em Portugal. Para ilustrar as suas dinâmicas e fragilidades serão analisadas as principais transformações no mundo da arte e nos contextos dos seus agentes a partir das representações de 45 músicos a quem foram aplicadas entrevistas compreensivas. Mostramos que a consolidação deste mundo é um processo ambivalente e ambíguo, devido a processos de evolução desnivelados entre os seus agentes, o que resulta na necessidade de um desdobramento em multipapéis por parte dos músicos e na prevalência de desigualdades e competição pelos recursos disponíveis.

Palavras-chave: mundos da arte; jazz; Portugal

Abstract

We analyse the recent consolidation of the jazz art world in Portugal. We examine the main changes in the art worlds and its agents on the basis of opinions gathered from comprehensive interviews with 45 musicians, in which they talked about their dynamics and vulnerabilities. We show that the consolidation of this world is an ambiguous, ambivalent process. This is due to uneven progression among the different agents, which results in the need for multitasking on the part of musicians and prevalence of inequality and competition for the available resources.

Keywords: art worlds; jazz; Portugal

Résumé

Nous avons analysé le récent processus de consolidation du monde de l’art du jazz au Portugal. Afin d’illustrer ses dynamiques et ses fragilités, l’article analyse les principales transformations opérées dans le monde de l’art et dans les contextes de ses agents à partir des représentations de 45 musiciens au travers d’entretiens compréhensifs. Nous avons pu montrer que la consolidation de ce monde est un processus ambivalent et ambigu à cause de processus d’évolution décalés entre ses agents, ce qui entraîne la nécessité d’un dédoublement en rôles pluriels de la part des musiciens et la persistance d’inégalités et de compétition pour obtenir les ressources disponibles.

Mots-clés: mondes de l’art; jazz; Portugal

Resumen

Analizamos el reciente proceso de consolidación del mundo del arte del jazz en Portugal. Para ilustrar sus dinámicas y fragilidades serán analizadas las principales transformaciones en el mundo del arte y en los contextos de sus agentes a partir de las representaciones de 45 músicos a quienes fueron aplicadas entrevistas comprensivas. Mostramos que la consolidación de este mundo es un proceso ambivalente y ambiguo, debido a procesos de evolución desnivelados entre sus agentes, lo que resulta en la necesidad de un desdoblamiento en multi-papeles por parte de los músicos y en la prevalencia de desigualdades y competencia por los recursos disponibles.

Palavras-clave: mundos del arte; jazz; Portugal

Introdução

Apesar de a cultura ser um pilar consolidado da sociologia portuguesa (Baptista, Mendes e Machado, 2021), o fenómeno jazzístico continua ainda afastado do interesse sociológico. O presente artigo é parte integrante de um corpo de trabalho em curso que visa contribuir para produção sociológica incidente no jazz e música improvisada enquanto práticas performativas e sociais em Portugal, servindo-lhe de introdução e enquadramento.1

O objetivo deste artigo é o de analisar aquela que é aqui denominada como a fase de consolidação do mundo da arte do jazz em Portugal, proeminente nas duas últimas décadas. Para tal, depois de uma breve análise do percurso sócio-histórico que antecedeu essa fase de consolidação, serão analisadas as representações de 45 músicos e músicas de jazz em Portugal sobre as transformações no reconhecimento e legitimidade do jazz, nos seus principais agentes, nas correntes estéticas e estilísticas e no território.

Após a leitura, espera-se que fique claro para o leitor que o jazz em Portugal é resultado de uma rede de colaboração entre diversos agentes que dispõem de recursos desiguais e desempenham papéis diferenciados. Ainda que todos os agentes tenham impacto na definição e desenvolvimento do mundo da arte, o alcance efetivo dos seus esforços permanece desigual, devido a processos de evolução com diferentes ritmos dentro do mundo da arte. Como resultado, a manutenção do mundo da arte depende largamente dos músicos, que se desdobram numa pluralidade de papéis com vista a garantir as suas carreiras. Este desequilíbrio provoca uma competitividade pelos recursos disponíveis no mundo da arte e a prevalência de desigualdades e vulnerabilidades do mesmo.

Revisão da literatura

A globalização e os desenvolvimentos tecnológicos, científicos, políticos e culturais vieram reconfigurar a vida social a nível global e individual nas últimas décadas. As vidas quotidianas são confrontadas com formas de viver e ideias anteriormente inacessíveis e desconhecidas. Diz-nos Melo (2002) que o novo milénio correspondeu a uma época em que “a esmagadora maioria das referências culturais e alimentos do imaginário relevam de dinâmicas globais que geram comunidades e cumplicidades de gostos e de sentidos em que as circunstâncias da vizinhança ou coincidência geográfica têm cada vez menos importância” (p. 151). Bennett (2005) defende que a noção de global deixou de estar reduzida a um significado que descreve um espaço limitado fisicamente, definindo também um espaço metafórico composto por espaços físicos plurais, culturalmente maleáveis e repletos de múltiplas narrativas locais. Estas narrativas, por sua vez, são conquistadas através de uma apropriação eletiva, negociação e gestão de recursos disponibilizados pelo conjunto de agentes que compõem o que Becker (2010) intitula um mundo da arte, recursos que passam a estar inscritos nos significados e códigos locais. Cada mundo da arte é constituído por uma esfera de cooperação entre todos os agentes necessários para a produção da obra, desde os responsáveis pelas atividades vulgarmente intituladas como artísticas àquelas relacionadas com a produção, negócio, distribuição, avaliação. Este leque de agentes partilha recursos, conhecimento, tarefas e modos de fazer as coisas - convenções - cujo resultado é a produção de obras pelas quais o mundo da arte é conhecido. Esta triangulação de recursos e redes de interação é responsável pelas mutações e desenvolvimentos dentro do mundo da arte. Mundo da arte será o conceito empregue para designar o espaço social ocupado pelo jazz em Portugal, permitindo focar-nos neste enquanto obra e convenção (ou linguagem, como nos dizem os músicos), compreender as redes de colaboração e explicar as interações sinérgicas ou divergentes entre o conjunto de agentes nele envolvidos.

Metodologia

Os dados apresentados resultam da aplicação de entrevistas compreensivas (Ferreira, 2014) a 45 músicos de jazz de ambos os sexos em Portugal, selecionados através do método “bola-de-neve” aplicado nas redes de contactos dos próprios músicos e de informantes privilegiados com os quais foram feitas entrevistas exploratórias informais.2

As questões foram colocadas com o objetivo de recolher dados que permitiriam traçar uma caraterização sociodemográfica dos músicos e as suas representações sobre a presença da música durante a infância, apoio familiar e das redes próximas, relações com a música, trajetórias de vida, formação, profissão, os diversos agentes do mundo da arte do jazz, a dispersão territorial do jazz, o reconhecimento do jazz em Portugal, os possíveis impactos sociais e as desigualdades.

De forma a abarcar de maneira mais inclusiva músicos com realidades e perspetivas diferenciadas, decidiu-se filtrar a amostra segundo a formação - formal, informal e autodidata. A formação demonstra, em primeiro lugar, uma vontade, um investimento, e assume o jazz enquanto ferramenta e capital cultural passível de ser interiorizado, exteriorizado, discutido e trocado entre agentes (Bourdieu, 1989).

De forma a apresentar dados de todo o território nacional, a distribuição dos entrevistados foi desenhada consoante as percentagens de população residente em cada NUT3 e ficou refletida nos seguintes números de entrevistados: A.M. Lisboa (14), A.M. Porto (8), Algarve (2), Ave (2), Cávado (2), Oeste (2), R. Aveiro (2), R. Coimbra (2), Alentejo Central (1), Alentejo Litoral (1), Alto Minho (1), Douro (1), Lezíria do Tejo (1), Médio Tejo (1), R.A. Madeira (1), R.A. Açores (1), R. Leiria (1), R. Viseu (1), Tâmega e Sousa (1). Estavam previstas 50 entrevistas, mas, apesar de todos os esforços, não foi possível identificar entrevistados nas regiões de Terras de Trás-os-Montes, Beiras de Serra da Estrela, Alto Alentejo e Baixo Alentejo. Na NUT Tâmega e Sousa estavam previstas duas entrevistas, mas apenas foi possível realizar uma, novamente devido à escassez de músicos ou indisponibilidade dos mesmos.

As entrevistas decorreram entre outubro de 2021 e julho de 2022, tendo sido a maioria aplicada em formato online, através da plataforma Zoom, com recurso à gravação de áudio e posterior transcrição e análise de dados. Procedeu-se à categorização das informações recolhidas, dividindo os segmentos referentes às informações sociodemográficas dos músicos, backgrounds, representações familiares sobre as carreiras musicais, relações com a música, trajetórias de vida, formação, profissão, representações sobre os restantes agentes do mundo da arte, territórios, reconhecimento e consagração do músico, impactos sociais do jazz e desigualdades sociais. Cruzando e traçando paralelismos entre estas categorias, procurámos tendências e divergências nas representações dos entrevistados. Esta análise categorial dos dados foi realizada com auxílio do software MaxQDA.

A opção de realizar as entrevistas à distância é justificada pela necessidade de compreender músicos residentes ao longo de todo o território nacional e acabou por ser também imposta como forma de contornar as limitações impostas pela pandemia de covid-19. Este formato permitiu acelerar o processo de recolha de dados e facilitou a captação e arquivamento das entrevistas, embora tenha apresentado constrangimentos na aproximação entre investigador e entrevistados e não tenha permitido uma recolha de dados etnográfica dos espaços onde acontece o jazz.

Preâmbulos do mundo da arte do jazz em Portugal

Não partindo da pretensão de realizar um retrato sócio-histórico do percurso diacrónico do jazz em Portugal - tarefa já realizada de forma fragmentada noutras instâncias, quer dentro do contexto académico (Martins, 2006; Veloso, Mendes e Curvelo, 2010; Cravinho 2011, 2017 e 2022a, 2022b), quer fora (Duarte, 1981; Santos 2007, 2009, 2012) - interessa-nos, como forma de introdução, decifrar as condições e os processos que permitiram que o jazz se fixasse e desenvolvesse em Portugal. Inicialmente assumida como uma expressão musical norte-americana descendente da miscelânea entre os folclores rurais e citadinos afro-americanos (Hobsbawn, 1989), a génese do jazz tem vindo a ser contestada. Segundo Johnson (2003) a “invenção” do jazz é indissociável da sua disseminação, não constituindo um marco discriminável, mas um processo intricado na sua própria diáspora. Atravessando diferentes fases de desenvolvimento caraterizadas por diferenças estéticas e meios socioculturais neste processo global, em diversos momentos o jazz foi sendo conotado com uma multiplicidade de representações, muitas vezes antagónicas.

Em Portugal, existem provas da existência de bandas e concertos de jazz e música influenciada pelo jazz desde a década de 1920 (Martins, 2006; Cravinho 2022a). Em 1945 dá-se aquela que é considerada a primeira jam session “oficial” em Portugal, no Instituto Superior Técnico (Cravinho, 2019). Na década de 1950 abre o Hot Clube de Portugal, aumentam as referências ao jazz na imprensa e rádio e aumenta a atividade jazzística no Porto (Cravinho, 2022b). No final da década é fundado o Clube Universitário de Jazz (CUJ), com sede em Lisboa e responsável pela divulgação do jazz, através de boletins periódicos, discos, conferências, exposições, debates e concertos (Cravinho, 2011). O país foi particularmente impactado por esta música em 1971, ano do primeiro festival Cascais Jazz (Lourenço e Gomes, 2005).

A institucionalização do jazz em Portugal percorreu um caminho ímpar de dificuldades. Embrenhada numa política fascista acanhada e virada para dentro, a globalização cultural (Warnier, 2000) havia produzido um impacto limitado na esfera cultural portuguesa até à Revolução de Abril. Também a falta de músicos com conhecimentos jazzísticos atrasou a consolidação do jazz em Portugal, processo que começou a ganhar forma enquanto diversos países europeus já contribuíam de forma sistemática para a música jazz. Outra dificuldade prendia-se com o acesso à música, quer em formato físico quer às performances ao vivo, fator que teve um impacto negativo tão grande quanto tinha a propaganda política que instigava visões colonialistas e paternalistas relativamente a qualquer expressão cultural com raízes africanas (Cravinho, 2019) e ocultava o caráter iminentemente social e político do jazz.

Não é possível afirmar que os problemas associados à democratização cultural em Portugal tenham cessado após a instauração da democracia, no entanto, o país foi atravessado por profundas mudanças socioculturais que resultaram da democratização do acesso à cultura, aumento da difusão e participação cultural, descentralização da cultura, formação de novos públicos e promoção da indústria criativa e artística. Após uma primeira iniciativa de ensino informal que teve lugar em Coimbra em 1966, no âmbito do Clube de Jazz do Orfeon (Cravinho 2016), em 1977 surge a primeira escola de jazz no país, a Escola de Jazz do Hot Clube de Portugal, seguida pela Escola de Jazz do Porto em 1985. Regressam a difusão livre através da rádio e publicações, concertos e festivais, surgem as primeiras ofertas formativas e criam-se as bases da fase de consolidação do mundo da arte do jazz em Portugal.

Consolidação do mundo da arte do jazz em Portugal

De acordo com as representações dos músicos, é sobretudo a partir da viragem do milénio que começam a dar-se alterações estruturais na legitimidade, reconhecimento e significados de profissional do jazz, na disseminação do jazz em território nacional e nos papéis dos diversos agentes do mundo da arte. Comprovam-se ao analisar a expansão das infraestruturas do jazz em Portugal que tiveram início no início do milénio (Dias e Nunes, 2021): surgem as associações Jazz ao Centro (2003) e Porta-Jazz (2010), cruciais na dinamização do jazz em Coimbra e no Porto, respetivamente, as editoras Clean Feed (2001), JACC Records (2010), Carimbo Porta-Jazz (2012) e Sintoma (2013-2018). Em 2005 nasce a revista Jazz.pt única revista portuguesa especializada ainda em circulação. Por outro lado, as escolas de jazz, a globalização e as transformações nas tecnologias de informação e comunicação (TIC), permitiram uma comunicação instantânea, alterando profundamente os canais de difusão e fruição do jazz, tornando-o acessível a um maior número de pessoas. O entrecruzamento global entre pessoas, experiências, conhecimento e informação fez com que o início do século XXI viesse a representar um importante marco no desenvolvimento do jazz em Portugal. De acordo os músicos, a década de 2000 significou um aumento exponencial do número de músicos e consequente consolidação das redes sociais dos mesmos e aumento das trocas de informação, fenómenos que constituíram o pilar da consolidação do mundo da arte do jazz em Portugal.

Não obstante, a noção de consolidação, aqui apresentada, remete-nos para um work in progress, uma evolução sem pretensões exageradas. O desenvolvimento do mundo da arte do jazz em Portugal continua caraterizado por diversas sinergias e obstáculos, problemas e soluções, crescimentos e declínios. Para entendermos a realidade contemporânea do mundo da arte do jazz português, será apresentada uma análise segmentada por tópicos focados na legitimidade e reconhecimento dos músicos, nas alterações que marcaram os seus principais agentes, nas correntes estéticas e estilísticas e na disseminação territorial do jazz.

O reconhecimento do jazz e a legitimação dos músicos

É representação comum entre os entrevistados que nas últimas décadas o jazz se tornou cada vez mais reconhecido no panorama cultural português. Para defender esta ideia foram dadas duas ordens de motivos: aqueles relacionados com a imagem do jazz e os relacionados com os recursos necessários para o desenvolvimento do mundo da arte. Em relação aos primeiros, os entrevistados referem que cada vez mais está associado ao músico de jazz um estatuto que lhe confere seriedade e profissionalismo nas relações com outros agentes do meio cultural, enquanto ao mesmo tempo foram esbatidos alguns estigmas que identificavam o jazz como uma música boémia e promíscua e aumentaram as colaborações musicais entre o meio jazzístico e outros meios. Particularmente, foi referido que os artistas de música popular recorrem cada vez mais aos músicos de jazz pela confiança nas suas aptidões e controlo exímio dos instrumentos musicais. No que aos recursos diz respeito, o aumento dos cursos secundários e universitários especializados, a presença, ainda que reduzida, nos canais de difusão públicos de televisão e rádio, os recentes prémios atribuídos por instituições públicas e a disponibilização de palcos em teatros, anfiteatros e auditórios municipais são ilustrativos do progressivo reconhecimento que envolve a música jazz em Portugal.

A legitimidade dos músicos é resultado de um esforço sinérgico entre os diferentes agentes do mundo da arte. 28 entrevistados referiram como principais dinamizadores do processo de legitimação dos músicos e do aumento do reconhecimento os seus pares. Em menor escala, foram referidos os públicos (12), os programadores de concertos e festivais (9) e a imprensa e crítica (8). Entrar nas redes de sociabilidade dos músicos, colaborar em projetos e participar em jam sessions são meios efetivos de alcançar reconhecimento no meio. Tal como o grupo de músicos estudados por Becker (1997 [1963]), verificou-se que é através das redes informais dos músicos que são divididos os trabalhos, através da procura ativa ou das sugestões dos pares. Desta forma, as oportunidades de trabalho são dependentes da dimensão e do capital social presente nas redes de cada músico. Os músicos entendem o sucesso como um movimento ascendente numa hierarquia de trabalhos disponíveis, dos quais resultam a exclusividade da performance musical enquanto atividade profissional, a existência de uma plataforma de exteriorização da criatividade artística, melhor remuneração, horas de trabalho e reconhecimento da comunidade. A posição ocupada nesta hierarquia define quem são os músicos emergentes e os músicos consagrados. No mundo do jazz português os músicos tornam-se especialmente relevantes devido à multiplicidade de papéis que tomam na manutenção do meio jazzístico, ao desdobrarem-se em professores, compositores, representantes de associações, programadores, editores, divulgadores, o que aproxima o mundo do jazz de outros mundos musicais portugueses já estudados na última década (Guerra, 2016; Bennett e Guerra, 2019). A necessidade de assumir papéis diversificados e a supremacia dos pares no reconhecimento dentro do meio ficam claras nas seguintes citações:

[Um músico de jazz em Portugal] é um tipo que tem que trabalhar bastante, tem que estar apto numa quantidade de áreas gigantesca, nos dias que correm infelizmente é assim. Não podes ser só um gajo que se dedica à sua música, tens de ter uma presença ativa nas redes sociais, tens que fazer uma série de merdas que não deveriam interessar para nada. Tens de ser o teu próprio editor a maior parte das vezes. [Q.N., sexo masculino, 41 anos, Cávado]

Aquele tipo que se mexe muito bem e que tem uns connects muito bons e que vai a reuniões com não sei quem, que vai almoçar com os programadores, isso é exceção. Não é por essa pessoa ter concertos de maior visibilidade ou encomendas melhores que tem mais crédito dentro do meio, de todo. Pelo contrário, até acho que pode jogar contra ele. Essa legitimidade, essa credibilidade vem de dentro do meio, vem das pessoas que tocam contigo. [M.G., sexo masculino, 42 anos, região de Coimbra]

O desfasamento presente nas representações sobre que agentes legitimam os músicos de jazz é resultado dos processos de evolução desiguais entre os diferentes agentes. Apesar de as representações de uma pujante legitimidade do jazz no panorama artístico português serem transversais à maioria dos entrevistados, houve quem ressalvasse que subsiste um desconhecimento generalizado entre os públicos portugueses em relação ao jazz, falta de financiamento público e privado, interesse insuficiente por parte da imprensa e dos programadores de eventos não especializados na área, o que tem repercussões nos impactos possíveis no mercado e no meio cultural português e internacional.

Profissionalização e os (pluri)papéis dos músicos

A fase de consolidação do mundo da arte do jazz português é também resultado de uma evolução notória na profissionalização dos músicos, fenómeno que, segundo os entrevistados, é relativamente recente e provém do surgimento de mais oportunidades de trabalho, melhores condições laborais e do esbatimento da chamada “realidade de sobrevivência”:

Eu acho que cada vez mais se está a profissionalizar no bom sentido. Ainda é um caminho que tem muito para ser construído, porque, como te disse, acho que a realidade ainda é de sobrevivência. Mas cada vez mais há mais, há instituições, mais dinheiro também europeu, claro. E mais respeito e credibilidade que se dá à profissão de músico de jazz. [Q.B., sexo masculino, 30 anos, A.M. Lisboa]

Os depoimentos revelam que a melhoria das condições e o aumento da credibilidade e legitimidade do jazz permitiram a vários músicos circunscreverem-se aos eventos que oferecem maior “dignidade”, ou seja, eventos especializados que garantem um maior interesse e atenção por parte dos públicos - mesmo que este seja por vezes mais reduzido - e melhor remuneração. Em oposição, os trabalhos tidos como “menos dignos” surgem em contextos como casamentos ou em bares não especializados, onde a música é acessória e é necessário garantir a familiaridade dos públicos com a música tocada, limitando as possibilidades criativas dos músicos. Estão sobretudo vulneráveis aos trabalhos menos dignos os músicos emergentes, em início de carreira, os músicos mais novos e os ativos em zonas afastadas das áreas metropolitanas, onde escasseiam palcos especializados.

Outro fenómeno a ter em conta é o já referido desdobramento dos significados de “músico de jazz”. Se até à década de 1990 o conceito estava linearmente associado à performance musical em contextos ao vivo, no panorama contemporâneo o “músico de jazz” passa a comportar novos significados:

[…] Há duas, três décadas muito pouca gente considerava-se um músico de jazz profissional, porque não havia sequer concertos que justificassem isso. Se não houvesse concertos, o que é que tu ias fazer? Não havia escolas onde ensinar jazz, só no Porto e em Lisboa. […] As oportunidades para seres um profissional de jazz eram mais restritas. Hoje, com tanta escola particular, universidades, cursos profissionais de jazz, sempre tens mais oportunidades para trabalhar na área do jazz, seja como intérprete, professor ou compositor. [G.T., sexo feminino, 55 anos, A.M. Porto]

O crescimento do número de músicos especializados no jazz é visto através de uma dupla perceção de que, por um lado, novos músicos significam mais música e diversidade estética, novas possibilidades, mais redes de cooperação, e, por outro lado, uma competição pelas parcas oportunidades de trabalho e financiamento, uma vez que o aumento do número de músicos não foi acompanhado por um igual desenvolvimento dos restantes pilares que suportam o mundo da arte: falamos dos agentes, editoras, programadores, clubes, salas de concertos, anfiteatros e auditórios especializados e, sobretudo, dos públicos:

[…] Como havia poucos bateristas, os bateristas que havia estavam sempre a tocar. Hoje em dia há muito mais músicos, o número de concertos é quase a mesma coisa, os cachês começaram a baixar com a crise e nunca mais se levantaram. [L.T., sexo masculino, 39 anos, A.M. Lisboa]

Em relação a todas essas questões, crítica, labels, managers ou agentes de booking, eu acho que o problema é sempre o mesmo, em termos de músicos, de quantidade e qualidade e diversidade dos últimos 20 anos, explodiu. Em relação a todas essas outras facetas da indústria, não. Portanto, há um desequilíbrio muito grande entre a quantidade e diversidade de pessoas e a qualidade com que fazem coisas e depois as soluções para editar, promover, fazer booking. [M.G., sexo masculino, 42 anos, região de Coimbra]

Um dos entrevistados caraterizou o meio com o termo “denso”. Esta densidade da teia complexa de interações e de gestão de recursos (Becker, 2010) constitui a base das relações desiguais presentes no mundo da arte. Conseguimos detetar a existência de fortes desigualdades étnico-raciais e de género, mas também perceber que os músicos mais novos e/ou emergentes e os músicos não ativos nas áreas metropolitanas estão também particularmente vulneráveis ao afastamento dos recursos do mundo da arte. A insuficiência ou a incapacidade de alcançar estes recursos, sejam estes espaços para tocar, dignidade no trabalho ou compensação monetária, são justificados por uma exaustão do mundo da arte:

Ainda está muito longe de ser um panorama estável e seguro para quem decide hoje em dia ser um músico de jazz. Muitos já vivem da música […], mas muitos não conseguem. [Q.B., sexo masculino, 30 anos, A.M. Lisboa]

Coloca-se então a questão: serão complementares ou díspares as perceções de aumento de infraestruturas e recursos e, por outro lado, de uma representação de quebra de recursos e estratégias de sobrevivência? Esta questão pode ser parcialmente respondida por uma notória estruturação de um modelo de autopreservação do meio por parte dos músicos. Pais (2022), ao analisar os dados recolhidos pelo Inquérito às Práticas Culturais dos Portugueses, fala-nos de um modelo de ecologia cultural ditado pelo facto de que os inquiridos mais engajados com as diferentes práticas culturais em Portugal são os que mais usufruíram de formação artística, desenvolveram práticas artísticas amadoras durante a infância e adolescência e tiveram socializações de âmbito cultural na escola, no seio familiar, entre amigos ou através de coletividades. No caso do jazz, esta ecologia cultural é ainda mais acentuada e fica clara através da forte presença frequente de músicos nos públicos, da prevalência de editoras geridas por músicos e das edições de autor, da autogestão das carreiras por parte dos próprios músicos, da ambivalência dos músicos entre a performance, o ensino, a programação e, novamente, da legitimação dos músicos pelos pares.

Papéis dos restantes agentes do mundo da arte

Por ser desigual, o processo de consolidação do mundo da arte criou oscilações na intensidade e desenvolvimento das situações dos diferentes agentes do mundo da arte, bem como nas perceções sobre as mesmas. Apesar do impacto limitado que continuam a ter, os esforços dos restantes agentes do mundo da arte continuam a ser imprescindíveis para a manutenção e desenvolvimento dos mundos da arte (Becker, 2010). Os entrevistados colocaram em destaque o papel dos cursos secundários profissionais e dos cursos superiores especializados no jazz que, ao aumentar em número e qualidade, tornaram-se um dos principais fatores por detrás do aumento exponencial do número de músicos, da criação de circuitos, redes de músicos, cenas locais, e de públicos. Entre os entrevistados, 26 frequentaram ou frequentam atualmente cursos relacionados com a performance ou ensino de jazz, e três frequentaram ou frequentam cursos relacionados com a música num sentido mais lato. A formalização e sistematização do conhecimento não só aumentou o nível técnico dos músicos, como sobretudo democratizou o acesso ao jazz, sobretudo entre os mais jovens, que chegam cada vez mais preparados para uma integração bem-sucedida no mundo da arte:

[…] Antigamente eram os meninos de bem, da burguesia, os meninos queques de Lisboa, os papás podiam dar-se ao luxo de ter o filho que não fazia nada, dizia que era músico. […] Agora não. A abertura dos cursos médios e universitários mudou isto tudo, o gajo que vem da banda de uma terriola qualquer lá na Beira pode chegar à ESML ou à ESMAE. [A.F., sexo masculino, 69 anos, Algarve]

Felizmente há ofertas em Portugal desde os últimos 15 anos. Abriram imensas escolas direcionadas e com cursos específicos na área do jazz. […] Há logo uma evolução muito grande, já vêm com a linguagem, já vêm com aulas de combo, já sabem tocar em conjunto. Acho que em Portugal agora houve assim um boom e surgiram montes de músicos jovens, que já está a fazer o jazz em Portugal crescer. [T. S., sexo feminino, 35 anos, Alentejo Litoral]

Os modos de aquisição da formação profissional são determinantes, não só para uma hierarquia das artes, mas também para as hierarquias internas de cada arte (Santos, 2002) e, assim, as escolas passaram a desempenhar um duplo papel de gatekeeper das vias profissionais, aumentando a competitividade pelos recursos disponíveis e, ao mesmo tempo, de “salva-vidas”, na medida em que têm capacidade de amparar parte dos músicos que não conseguem subsistir exclusivamente da performance musical, escoando parte dos profissionais. Esta dualidade fica patente nas seguintes citações:

Ou eu consigo passar esta barreira, fazer o [curso] superior, ou dentro de algum tempo não tenho espaço para dar aulas. Porque não tenho formação e hoje em dia tens muita gente formada a tocar muito bem. [L.D., sexo masculino, 39 anos, Ave]

Vai haver sempre gente que olha para o ensino como plano B, só de salvação económica, o que reflete um bocadinho a precariedade do nosso setor cultural. [Q.B., sexo masculino, 30 anos, A.M. Lisboa]

No que aos públicos do jazz diz respeito, afirmam os músicos que as últimas décadas trouxeram uma ramificação e fidelização dos públicos em subgéneros dentro do jazz e nos espaços culturais. Ainda assim, subsiste a representação de públicos formados por pequenos nichos de pessoas com capital cultural elevado, informadas, com acesso à cultura - que “sabem para o que vão” - e numa situação financeira estável. Efetivamente, quando comparados aos públicos da cultura, os públicos do jazz em Portugal continuam a ser uma minoria, tal como o é o da música clássica e ópera (Borges, 2022). Segundo os entrevistados, os músicos, de jazz e não só, e os aficionados constituem uma grande parcela dos públicos, fenómeno que os músicos justificam pela necessidade de “educar o ouvido” para criar uma ligação afetiva, ou seja, de entender as convenções musicais partilhadas pelos músicos, utilizando o léxico de Becker. Os entrevistados afirmam que ainda existem graves lacunas na educação musical e cultural e falta de familiaridade com a linguagem jazzística e tolerância para com correntes mais experimentais entre os públicos portugueses.

Os dados recolhidos revelam que os públicos estão centrados nas áreas metropolitanas e são compostos sobretudo por pessoas com mais de 30 anos, apesar de ser cada vez mais comum ver jovens nos públicos, atraídos pelas escolas, influências familiares, pelas redes sociais dos músicos e pelas fusões do jazz com outros estilos musicais.

As editoras sofreram transformações importantes nas últimas décadas. Continua a ser desafiante manter uma editora especializada em jazz em Portugal, mas estas têm cada vez mais identidades estéticas próprias e configuram-se como estandartes de movimentos culturais que abarcam cidades inteiras, como o caso da editora Porta-Jazz, no Porto, ou redes de colaboração mais íntimas, como são exemplo editoras como a Robalo ou a Phonogram Unit, que servem de pilar à criação de grupos seletos de músicos que colaboram frequentemente. Apesar de haver uma volatilidade muito grande no número de editoras ativas, a criação de “microeditoras” surge como alternativa à também popular edição de autor, e como forma de colocar a música sob tutela de um carimbo. A Clean Feed, conseguiu nas últimas duas décadas uma projeção internacional considerável e um volume de produção ímpar em Portugal e figura-se como a editora mais reconhecida entre os músicos.

Os programadores, tal como as associações, através do seu papel de gatekeepers, tiveram um papel importante na divulgação do jazz em novos territórios e no suporte das comunidades jazzísticas locais. Porto, Coimbra, a Região Autónoma da Madeira, Viseu e Caldas da Rainha são alguns dos exemplos dados pelos músicos de territórios cujas dinâmicas foram completamente transformadas pela mão de associações de músicos ou programadores. Os concertos e festivais organizados atraíram novos públicos, expandiram o jazz no território nacional, criaram redes entre músicos e os restantes agentes do mundo da arte, serviram de mostras de talentos locais e nacionais. Os palcos mais generalistas, que recebem eventos de maior escala, passaram a disponibilizar a música jazz a públicos leigos, aumentando a sua heterogeneidade. Por outro lado, os espaços mais especializados consolidaram circuitos cada vez mais estabelecidos e tornaram-se consagrados para os seus habitués.

Os canais de televisão, jornais, blogs têm atualmente um impacto bastante limitado no mundo da arte, sobretudo por demonstrarem ainda pouco interesse na divulgação da música jazz e pela escassez de meios de comunicação especializados. Neste quesito, a internet ganhou preponderância, sendo cada vez mais crucial na autopromoção dos músicos, divulgação de informação e construção de redes. Esta tendência pode ser parcialmente esclarecida através do papel da internet na democratização da descoberta de nova música por parte dos consumidores (Moschetta e Vieira, 2018), o que exige uma adaptação por parte dos músicos dos métodos de divulgação da sua música, reforçando a necessidade de assumirem pluripapéis.

Já os agentes e managers especializados no jazz continuam a ser extremamente raros, apesar da alta procura. Também aos críticos foi pouco creditada quer uma evolução nos últimos anos, quer um impacto notório na consolidação do mundo da arte, pela escassez em números e pela falta de critérios na escrita. Trata-se de agentes cujas esferas de atuação permanecem limitadas e, consequentemente, continuam incapazes de produzir alterações significativas.

Heterogeneidade estética e estilística do jazz em Portugal

Segundo os artistas entrevistados, o mundo da arte português tem “espaço para tudo” no que diz respeito às correntes estilísticas. Essa heterogeneidade tornou desafiador traçar uma definição de jazz. Desde a fase de consolidação do mundo da arte notou-se uma aproximação entre estilos e músicos, que começaram a realizar experiências criativas e a cruzar várias estéticas, sendo comum que músicos tenham vários projetos absolutamente diferentes entre si:

Houve uma altura em Portugal em que as pessoas do jazz não se davam com os da música improvisada, e o contrário. Era uma coisa estúpida, não percebo porquê, nos anos 80 e 90 era assim. Felizmente passou, com estas novas gerações houve uma aproximação. [I.G., sexo masculino, 57 anos, A.M. Lisboa]

As correntes mais exploratórias e de improvisação livre são cada vez mais relevantes no panorama nacional, sendo as mais referidas pelos entrevistados quando questionados sobre os estilos preponderantes em Portugal. Em segundo lugar surge o jazz autoral, seguido pelo jazz mainstream, influenciado pelo cancioneiro norte-americano - os chamados standards. Esta última corrente viu a relevância em contexto de performance musical estagnar, sendo atualmente associada sobretudo aos contextos académicos e de jam session e dependente de públicos já cristalizados e envelhecidos e dos alunos dos cursos secundários e superiores. As fusões com outros géneros musicais passaram também a assumir uma maior importância, sobretudo com a música contemporânea, pop, rock e música eletrónica. Também existentes, mas apenas referidas residualmente são as correntes de jazz orquestral e dixieland. A ramificação das estéticas do jazz permitiu uma maior especialização das editoras, salas de concertos e festivais, e permitiu que cada músico desenvolvesse uma sonoridade própria nos seus projetos com mais facilidade:

Eu chamei três bateristas para um disco, por exemplo, porque tinham caraterísticas diferentes. E eram facetas diferentes da mesma coisa. Isso era impensável há uns tempos. [M.G., sexo masculino, 42 anos, região de Coimbra]

Quando questionados sobre a existência de um “jazz português”, as opiniões dividiram-se, deixando transparecer ambiguidades e incertezas, até ao nível do discurso individual. Por um lado, a multiplicação das opções estéticas torna difícil a identificação de uma estética nacional, levando alguns músicos a afirmar que não se pode falar de um jazz português. Para este núcleo de músicos, o jazz é definido pelo indivíduo, existe enquanto linguagem musical que permite a comunicação entre agentes singulares, quaisquer que sejam os seus backgrounds, pelo que não pode ser reduzido a uma nacionalidade, tratando-se de um mundo da arte global com traduções locais. Em oposição, outro grupo de entrevistados consegue traçar algumas linhas definidoras. Músicos como António Pinho Vargas, João Paulo Esteves da Silva, Bernardo Sassetti, Mário Laginha, Carlos Bica e Carlos Azevedo são identificados como pioneiros do “jazz português”, pelas opções harmónicas e modais influenciadas pela música tradicional portuguesa e pelos contributos para a criação de um cancioneiro português estudado em contexto académico e tocado nas sessões privadas dos músicos. Para outros músicos, o uso de instrumentos como a guitarra portuguesa, o cordofone, a guitarra amarantina, a utilização da língua portuguesa nas letras do jazz vocal ou as homenagens feitas a músicos da música popular portuguesa são o mais próximo que se chega de uma identidade portuguesa no jazz.

Ficou também clara uma linha discursiva que defende que uma possível identidade do jazz português se deteriorou nas últimas três décadas, uma vez que as caraterísticas que a definiriam seriam as suas limitações e não qualidades, tratando-se de um jazz pouco polido, fruto da pequena dimensão do mundo da arte e identificável pela falta de qualidade e limites criativos definidos por uma estética que entendem como portuguesa:

Há 20 anos, notavas a diferença entre o bom jazz europeu e o jazz português. Quando metias um disco, dizias “isto é português” […]. As influências eram as mesmas para todos a nível de aprendizagem. Por isso os discos eram parecidos. Depois a malta começou a ir estudar lá para fora cada vez mais, trazer outras influências, agora está muito mais universal, já não é tão fácil dizer o que é português, há discos que enganam bem. [L.D., sexo masculino, 39 anos, Ave]

Eu chamava jazz triste, era o jazz de Lisboa, muitas gaivotas, cacilheiros, a ponte sobre o Tejo, o filme preto e branco com muito grão, depois o jazz triste por trás. Era o império das even eights, a recusa absoluta de tocar swing. [A.F., sexo masculino, 69 anos, Algarve]

Podemos afirmar que a consolidação do mundo da arte português teve as suas bases na tradução aprimorada de mundos da arte globalizados, o que revela uma ambiguidade interessante: o movimento de aproximação do meio local com o meio global, ao invés de homogeneizar o mundo da arte português, permitiu a expansão a nível individual e de grupos através do desenvolvimento musical que instrumentaliza a linguagem jazzística mas permite a incorporação de pormenores incentivados pelo indivíduo ou por caraterísticas nacionais. Desta forma, não devemos falar de um mundo do jazz português, mas de uma multitude de mundos do jazz em Portugal.

Disseminação do jazz no território português

As últimas duas décadas representaram uma maior dispersão e alcance efetivo da música jazz no território nacional, conseguida sobretudo através do surgimento de músicos oriundos de diversos pontos do país, da maior comunicação, colaboração e criação de redes entre músicos de diferentes regiões nacionais, do aumento e da ampliação e dispersão dos cursos e dos festivais especializados:

Nos últimos cinco, dez anos os festivais de jazz têm crescido como cogumelos. Vais a uma aldeola ali nos arredores de não-sei-o-quê, há lá um festival de jazz. Há 20 anos não era assim, […] festivais tinhas muito poucos. [E.C., sexo masculino, 35 anos, Oeste]

Ainda assim, os músicos afirmam que as áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto continuam a centralizar os principais agentes do mundo da arte e a ser os únicos territórios a oferecer uma programação regular, o que faz com que os músicos gravitem inevitavelmente para estes centros em algum momento durante as suas carreiras. Dos 45 entrevistados, 39 residiram numa das duas áreas metropolitanas em algum momento da sua vida, por motivos profissionais ou de formação.

Coimbra é descrita como a cidade onde a expansão do jazz tomou uma amplitude maior, através dos esforços da associação Jazz Ao Centro Clube e da criação do Curso Profissional de Instrumentistas de Jazz no Conservatório de Música de Coimbra. Outras regiões referidas, em que pontualmente acontecem eventos ligados ao jazz foram Viseu, Aveiro, Castelo Branco, Guimarães, a zona Oeste (Leiria, Caldas da Rainha, Alcobaça, Marinha Grande), Algarve, e as regiões autónomas da Madeira e dos Açores. Nestes territórios o jazz existe devido essencialmente a esforços individuais ou coletivos de aficionados, músicos e associações. A fragilidade destas iniciativas, bem como a falta de uma periodicidade estável dos eventos e a falta/fragilidade de infraestruturas de suporte aos eventos resultam numa falsa sensação de desenvolvimento geográfico do jazz:

No Algarve não tens perspetiva de carreira, vais ficando aqui. Não há grandes oportunidades, as que há tens de ser tu a fazer. Em Lisboa, tens muito mais músicos, tens concorrência, a luta é maior, mas também tens mais oportunidades. É diferente. [T.D., sexo feminino, 43 anos, Algarve]

Nos casos mais extremos, é o modelo de autopreservação do mundo da arte sustentado pelos músicos que garante a ténue existência de eventos no território:

Aqui eu acho que nós fazemos música sobretudo para nós. Isto acaba por ser uma coisa fechada e elitista. Em Valença e no Alto Minho conheço pouquíssimas pessoas que realmente ouvem jazz. Não existe tanta procura quanto a oferta que nós temos. […] Todo o jazz à volta da quinta existe por carolice minha, porque eu gosto, é uma identidade, uma filosofia de vida. [E.E., sexo masculino, 37 anos, Alto Minho]

Discussão

Propusemo-nos procurar entender o mundo da arte do jazz em Portugal, ao analisar a sua evolução, os principais agentes e as relações que mantêm entre si, através da análise das representações dos músicos entrevistados. Porque comporta significados que convergem e divergem dos mundos da arte globais ao mesmo tempo, o mundo português torna-se distinguível do panorama global onde se insere. Não obstante, a fragilidade organizativa do jazz em Portugal continua inegável, ainda que em processo de mudança. Becker (2010) afasta-se do funcionalismo por não acreditar que a atividade artística só sobrevive se se reger por uma ordem específica de atividades. O mundo analisado neste estudo é certamente prova disso, devido ao seu percurso invulgar e único. As representações dos músicos permitiram-nos localizar na linha cronológica do processo de desenvolvimento do mundo da arte, o que entendemos como a sua fase de consolidação, situada na transição do milénio. A ideia de consolidação remete para um processo em aberto, que mantém fragilidades estruturais.

Vimos que o jazz ganhou reconhecimento no panorama cultural português devido ao esforço conjunto dos agentes do mundo da arte. Porém, a adesão dos públicos da cultura em Portugal aos eventos ligados ao jazz continua modesta e a falta de financiamento e interesse por parte dos agentes culturais não especializados e o fraco impacto internacional continuam a ser obstáculos ao seu desenvolvimento.

A legitimação dos músicos continua a depender largamente dos próprios. Estes assistiram ao aumento de oportunidades de “trabalho digno” e a um aumento exponencial no seu número, que abriu portas para uma maior liberdade criativa e novas de redes de colaboração mas, por outro lado, evidenciou lutas pelos limitados recursos, prevalência de desigualdades de género, étnico-raciais, territoriais, geracionais e entre músicos emergentes e instituídos e a necessidade de um desdobramento dos significados de músico de jazz com vista à autopreservação do mundo da arte e das suas carreiras. Becker (2010) afirma que cabe a cada artista a decisão de fazer as coisas com um grupo estabelecido de pessoas preparadas para o fazer ou tentar fazer as coisas por si. No mundo português a definição de pluripapéis dos músicos surge não exclusivamente por opção, mas por necessidade de adaptação e zelo pela manutenção do mundo.

Os cursos secundários e superiores ajudaram na democratização do acesso ao jazz, criação de circuitos, desenvolvimentos locais, e potenciaram o referido modelo de autopreservação, através da estabilização das profissões de músico e professor. Os públicos do jazz ramificaram-se em subgéneros e espaços culturais, mas subsiste a representação de que são um nicho de pessoas com capital cultural elevado, estabilidade financeira, centrados nas áreas metropolitanas e com mais de 30 anos, apesar de serem frequentes cada vez mais jovens. As editoras continuam numa posição fragilizada, mas desenvolveram identidades próprias e afirmaram-se como bandeiras de movimentos culturais. A criação de “microeditoras” por parte de músicos é cada vez mais frequente. Já os programadores e as associações têm atualmente um papel fulcral na divulgação do jazz pelo território nacional e no suporte a comunidades localizadas. Os meios de comunicação continuam com um impacto limitado, devido ao pouco interesse que demonstram na divulgação do jazz e pela falta de especialidade do género musical. As redes sociais digitais vieram suprimir esta carência, reforçando o papel dos músicos na divulgação da música e construção de redes. Aos agentes, managers e críticos é atualmente creditado pouco impacto no mundo da arte. Se a sobrecarga dos músicos é uma face da moeda, a vulnerabilidade dos agentes referidos é a outra. A última justifica parcialmente outros problemas mais estruturais do mundo da arte, como o desconhecimento e desinteresse por parte dos públicos da cultura generalizados, a falta de financiamento e interesse dos agentes culturais não especializados e o impacto limitado na esfera cultural nacional e pouca representatividade internacional.

As correntes estéticas e estilísticas diversificaram-se, tornando difícil a definição de jazz. As correntes exploratórias e de improvisação livre ocupam uma posição de destaque no panorama português contemporâneo, seguidas pelo jazz autoral e jazz mainstream. Esta heterogeneidade abriu as portas para uma maior especialização dos agentes do mundo da arte ao desenvolvimento criativo dos músicos. As opiniões dividem-se em relação à existência de um “jazz português”: as opções harmónicas e modais influenciadas pela música tradicional portuguesa, o desenvolvimento de um cancioneiro português estudado em contexto académico e tocado em jam sessions, a utilização de instrumentos portugueses ou a utilização da língua portuguesa são as caraterísticas apontadas pelos defensores da existência de um jazz português. Ainda assim, surgiu uma linha discursiva que afirma que o “jazz português” está em declínio, uma vez que as suas caraterísticas definidoras são a falta de qualidade e limites criativos, cada vez menos presentes.

Ainda que tenhamos assistido a uma maior dispersão do jazz pelo território nacional, as áreas metropolitanas de Lisboa e Porto continuam a ser os grandes centros de atividade, monopolizando quer os músicos, quer os restantes agentes e os recursos do mundo da arte. Existem regiões em desenvolvimento suportadas exclusivamente pelos esforços fragilizados de aficionados, músicos e associações.

Optou-se por um foco exclusivo nas representações dos músicos com intuito de limitar o escopo do projeto, devido aos limites de tempo e de recursos disponíveis. Seria pertinente dar continuidade ao projeto aqui apresentado, colocando o foco nas representações dos restantes agentes, de forma a comparar os dados e melhor entender as caraterísticas definidoras do mundo da arte do jazz em Portugal. Espera-se que este contributo tenha avançado no sentido de providenciar uma base para o estudo sociológico deste fenómeno.

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1 O projeto é apoiado pela bolsa de doutoramento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (referência 2020.06738.BD).

2Neste quesito torna-se necessário agradecer ao professor Pedro Cravinho pela orientação ao longo do estudo e apoio na triangulação com os músicos por todo o território nacional.

Recebido: 29 de Junho de 2023; Aceito: 27 de Novembro de 2023

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