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Etnográfica
versão impressa ISSN 0873-6561
Etnográfica v.12 n.2 Lisboa nov. 2008
Frédéric Vidal
Les habitants dAlcântara.
Histoire sociale dun quartier de Lisbonne au début du 20éme siècle
Villeneuve dAscq, Presses Universitaires du Septentrion, 2006, collection
«Histoire et Civilisations», 490 páginas.
Olhar uma cidade através dos seus habitantes, procurar um determinado espaço / tempo para os encontrar, identificar um lugar como forma de chegar a esse nível mais individualizado da experiência urbana, só ela capaz de revelar a riqueza, a variedade e a dinâmica dos universos relacionais citadinos, é o eixo central deste livro. O bairro de Alcântara, na Lisboa da época industrial, é o escolhido, como um lugar integrador de formas de interacção local, de práticas relacionais, de processos de individuação / socialização que ajudam a descobrir as características de um meio social urbano trabalhado pelas tensões desta idade industrial. Através da pesquisa histórica sobre as formas de interacção entre os indivíduos e grupos sociais que o compõem, tanto ao nível do bairro, como entre este e o resto da cidade, o objecto desta investigação constrói-se, assim, em torno do processo de estruturação social de um determinado meio urbano. Como afirma o próprio autor, é menos o bairro em si que interessa e mais a escala de análise que, estrategicamente, permite o acesso ao estudo das proximidades e distâncias entre indivíduos e grupos sociais numa grande cidade na época em análise. Com efeito, mais do que a história social de um bairro, estamos aqui perante um trabalho de história social à escala de um bairro (p. 22). Aquilo que, numa escala mais macro, poderia parecer um projecto duplamente periférico estudar um bairro industrial de uma cidade situada num país dominantemente rural que, por sua vez, se encontra à margem do processo de industrialização e urbanização em grande escala da Europa acaba por se afirmar como um caso exemplar, na especificidade local de um fenómeno espacial e sectorialmente tão polarizado como é o da industrialização.
Versão ligeiramente abreviada da tese de doutoramento em História defendida na Universidade Lumière Lyon 2 em 2003, Les Habitants dAlcântara organiza-se em quatro partes coerentes e bem articuladas que, respeitando o percurso da investigação, permitem ao leitor acompanhar o caminho da necessária inter-relação entre a construção dos dados empíricos e a exposição teórica, nas diferentes escalas de aproximação, do bairro ao indivíduo e das representações às formas de interacção quotidiana. Metodologicamente, a lacuna de fontes sobre sociedade lisboeta nos séculos XIX e XX é colmatada através da combinação entre a exploração de documentação variada e dispersa, incluindo fontes locais e microlocais, e a análise sistemática e intensiva de uma fonte única, os registos paroquiais e civis.
Após uma introdução que situa teoricamente a investigação, Frédéric Vidal começa por apresentar o bairro de Alcântara como espaço social e quadro de vida, contextualizando-o num quadro estrutural amplo o território, a população, as actividades e, também, ao nível da sua identidade colectiva. Alcântara não se define apenas como território delimitado, povoado por múltiplas actividades, ela é também feita de imagens que acompanham a sua evolução de bairro industrial a bairro popular: o subúrbio (faubourg) operário, o bastião republicano e o bairro popular são mais do que três Alcântaras que se sucedem no curso da história, são representações, ambientes, momentos, que ligam este bairro à história de Lisboa, através da sua componente industrial e operária, por um lado, e popular e urbana, por outro.
A exploração minuciosa dos múltiplos níveis de produção de distância e de proximidade social entre indivíduos, devidamente contextualizados em função dos seus lugares de vida social, faz-se a partir da análise de uma fonte priveligiada, os registos de baptismo, nascimento e, até, casamento. Duas ruas são escolhidas como espaço sociológico para o estudo das relações interpessoais. A crítica das fontes utilizadas e uma primeira análise centrada no indivíduo e sua origem, alimenta esta segunda parte. A discussão que o autor faz a propósito das diferentes escalas de análise reveladas por estas fontes o indivíduo, o casal, a linhagem familiar, e a vizinhança mostram diferentes tipos de mobilidade geográfica, ultrapassando nitidamente o nível mais territorializado da rua e evidenciando os elementos de identificação cruciais dos habitantes nas suas relações com o bairro, a cidade, o país.
A dimensão socioprofissional ocupa, de forma muito clara, um lugar central nesta investigação densa (terceira e quarta parte) através do exame das práticas relacionais concretas (por exemplo, o apadrinhamento) e os factores de distinção social através de lógicas próprias, de acordo com o ofício exercido, a qualificação, o estatuto. São as formas de estruturação dos meios urbanos, nas diferentes escalas que as produzem, que aqui são analisadas e questionadas. O modo como Frédéric Vidal consegue fazer falar esta fonte pobre revela o seu talento de investigador que, com rigor e intuição, consegue reconstituir as histórias de famílias. É fundamental referir, também, a excelente escolha de fontes complementares que introduzem toda uma discussão sobre as classificações e identidades profissionais. A reflexão que o autor produz sobre este universo concreto, examinando meticulosamente os modos de interacção entre indivíduos e grupos com posições, status e trajectórias diferentes, constitui, sem dúvida, uma valiosa contribuição para a compreensão dos universos relacionais das sociedades urbanas contemporâneas, diversificadas, compósitas, plurais.
O papel importante que as mulheres desempenham a partir das suas práticas quotidianas de controle social do espaço do bairro, as sociabilidades de vizinhança, a circulação da informação, enfim, a produção e reprodução das distâncias e proximidades sociais constitui um dos exemplos mais impressionantes de uma omissão, uma vez que tanto nos arquivos da associação Promotora, como nos registos paroquiais ou na imprensa republicana, as informações são muito masculinizadas. Este silêncio feminino é muito bem problematizado pelo autor, concedendo-lhe toda uma discussão muito aprofundada. Parece claro que as mulheres lisboetas de raiz desempenham um papel fundamental no relacionamento e mistura de populações, mas de que modo? Como incorporar esta metade da sociedade na história social de Lisboa, não apenas na história dos bairros mas, sobretudo, na história do trabalho e das profissões ? Que temas, que metodologias, que tipo de fontes históricas, etnográficas e outras se pode procurar para esta démarche?
A relação entre universos relacionais e mobilidades sociais é, sem dúvida, um dos temas chave no estudo da transformação dos meios urbanos; neste caso, foi possível identificar alguns elementos fundamentais o status socioprofissional, os itinerários individuais e sua combinação na interacção pessoal, a natureza do meio de acolhimento (conclusões). Embora este seja o eixocentral da problematização desta investigação, ela não fica por aqui. Metodologicamente, há que insistir no facto de o plano microlocal das ruas, escolhido com o objectivo de operacionalizar uma delimitação necessária à recolha das fontes, se ajustar a outros níveis mais amplos de estruturação da sociedade. A selecção de uma ampla variedade de fontes permite um excelente jogo de escalas na análise dos processos observados, respeitando sempre a complementaridade entre as práticas e as representações. Por estas razões, o que aqui está em causa não é simplesmente a singularidade de um bairro, ou suas ruas, numa cidade particular, mas sim a exemplaridade de um conjunto de microprocessos sociais e culturais que, historicamente, construíram Lisboa e, por extensão ou similaridade, outras sociedades urbanas particulares.
Com efeito, esta obra impõe-se, desde já, como uma referência no seio dos estudos urbanos portugueses, nomeadamente pela sua original e assumida abertura disciplinar, visível tanto na criteriosa selecção bibliográfica como no percurso de pesquisa, integrando-se em linhas de investigação recentes do campo da sociologia e da antropologia urbanas portuguesas, orientadas por uma mesma preocupação em convocar vários campos disciplinares para o aprofundamento da análise dos microprocessos e dinâmicas fundadoras das sociedades urbanas.
Esta é uma das razões que torna esta investigação pioneira, em vários sentidos. Les Habitants dAlcântara é o bom exemplo de como a confluência de várias tradições disciplinares e nacionais pode enriquecer exponencialmente a construção de um determinado objecto, através da incorporação de diferentes olhares e perspectivas em torno de um problema o que, neste caso, foi levado a cabo de um modo extremamente inteligente, criativo e criterioso. Com uma dupla inserção relativamente a tradições nacionais de estudo de bairros a historiográfica francesa e italiana dos anos 1970 e 1980 e a etnográfica portuguesa, partilhada por várias ciências sociais, que nos anos 90 lançou as bases de uma reflexão e metodologia de investigação centrada no indivíduo (para usar uma expressão de Michel Agier, em Les savoirs urbains de lanthropologie, Enquête, 4, 1996) esta obra revela um modo de fazer história particularmente sedutor e motivador de múltiplos diálogos interdisciplinares, uma vez que consegue conjugar a sua vertente micro-analítica, com uma pluralidade de referências e uma assumida intenção experimental visível no modo interactivo como as fontes são trabalhadas.
Por último, não se pode deixar de referir alguns pormenores de edição que tornam este livro particularmente útil para futuros e actuais investigadores: a organização temática da bibliografia e das fontes; os anexos, com as listagens de declarações profissionais de pais e padrinhos, classificações profissionais de acordo com categorias contemporâneas (1) e historiográficas (2) e, sobretudo, um glossário bilingue (português e francês) de classificações profissionais.
Seria de saudar a publicação de uma versão em língua portuguesa desta excelente obra, que restitua ao público português os conhecimentos alcançados.
Graça Índias Cordeiro
Departamento de Antropologia e CIES-ISCTE