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Etnográfica
versão impressa ISSN 0873-6561
Etnográfica v.13 n.2 Lisboa nov. 2009
Uma proposta antropológica para o futuro do Museu de Arte Popular
Sónia Vespeira de Almeida e Vera Marques Alves
FCSH-UNL, CRIA / CRIA
Nos anos 80, James Clifford (cf. 1988: 229) regozijava-se com o abandono do projecto de modernização da Boas Room of Northwest Coast Artifacts do Museu Americano de História Natural. E isto porque essa sala, com a sua configuração e atmosfera datadas, desvendaria um momento particular do interesse pelos objectos não ocidentais. Aliás, adiantava ainda Clifford, qualquer exposição de antropologia deveria tornar visíveis as condições históricas que levaram à constituição da colecção exibida. Este posicionamento evidenciaria, antes de mais, a forma como antropólogos, artistas e públicos se coleccionavam a si próprios e ao mundo.
Em 2006, o Ministério da Cultura anunciou o encerramento do Museu de Arte Popular (MAP) de modo a instalar no seu edifício o Museu da Língua Portuguesa. Neste artigo apresentamos alguns argumentos que explicam porque é que esta decisão é um erro. A extinção do MAP, mantendo, por um lado, a integridade exterior do edifício, implicaria, por outro, a ocultação dos murais que decoram as suas paredes interiores, o armazenamento de parte do seu mobiliário original noutras instituições e a deslocação da sua colecção para o Museu Nacional de Etnologia (MNE). Desmembrar-se-ia, assim, uma unidade museológica que se mantivera quase inalterada desde os anos 40, cujos diferentes elementos arquitectura, decoração interior, arranjo expositivo e colecção foram concebidos em conjunto, só ganhando significado em relação mútua.
Tal como Clifford defendeu a -necessidade de manter a configuração inicial da Sala Boas, também nós propomos a preservação do MAP, sugerindo a sua -musealização de modo a dar a ver as ideias e valores que estiveram subjacentes à sua criação. O museu pode, assim, tornar-se não só um lugar de reflexão sobre as conotações ideológicas da arte popular durante o Estado Novo, mas também um instrumento decisivo para a compreensão de outras etapas do interesse intelectual e ideológico pela cultura demótica ao longo dos séculos XIX e XX. Em última instância, é a própria ânsia contemporânea pelo autêntico e pelo genuíno através do popular que pode ganhar um espaço ideal de interrogação crítica.
Só recentemente começou a perceber-se a complexidade de sentidos que o MAP incorpora. Durante longos anos, o museu foi vítima de um processo de negligência, de ordem museológica e científica, que resultou na ausência de informação, quer sobre os Mecanismos que acompanharam a constituição da sua colecção, quer sobre o contexto intelectual e político que lhe conferiu um determinado formato. Inaugurado em 1948 pelo Secretariado da Informação, Cultura Popular e Turismo (SNI) o órgão do Estado Novo responsável pela propaganda e política cultural do regime , o MAP tem sido várias vezes reduzido a um produto acabado da ideologia ruralista e passadista de Salazar, imagem que empobrece e lesa a compreensão do que é o museu e do que foram as ideias e processos históricos que explicam o seu aparecimento. O MAP veiculava uma imagem do povo que ia ao encontro do projecto social e político do regime, mas essa imagem não devia menos à vivência modernista e cosmopolita de António Ferro, primeiro director do SNI.
Com efeito, o MAP foi o culminar de uma política folclorista que começou a ser concebida por Ferro ainda nos anos 20, tendo sido depois sistematicamente desenvolvida no quadro da actividade do . A grande preocupação que orientou essa política, e nessa medida o projecto do próprio museu, foi a da afirmação de Portugal como uma nação moderna, mas distinta de todas as outras. No -desenho dessa distinção, a arte popular portuguesa teria uma vantagem em relação ao culto das glórias do passado pátrio: falaria de uma nação plena de vitalidade que não vivia apenas da grandeza pretérita (cf. Alves 2008). É neste contexto que a colaboração dos artistas modernos nas acções de carácter etnográfico do é tão significativa. Colocando o arranjo expositivo e pinturas murais interiores do MAP nas mãos da equipa de pintores decoradores do e atribuindo ao arquitecto modernista Jorge Segurado a responsabilidade da transformação da estrutura da Secção da Vida Popular da Exposição do Mundo Português no edifício do museu, António Ferro impedia assim que a arte popular fosse um mero sucedâneo do culto das antiguidades históricas. Por isso, separar os objectos expostos no museu do seu contexto original, relegando-os para outro espaço, prejudicaria profundamente a capacidade de compreensão das ideias que estiveram subjacentes à criação daquela colecção.
A aproximação de António Ferro à arte popular em que o moderno e o tradicional se misturavam era já patente em 1921, quando o escritor promovia a constituição de bailados modernos portugueses -inspirados nas danças e trajos populares. Ganharia novo fulgor no encontro de Ferro com os modernistas brasileiros na Semana Moderna de São Paulo, na sua vista às Exposições Internacionais dos anos 20 ou nas suas viagens a Barcelona e Bucareste em 1929 (cf. Alves 2008). O MAP testemunha, de resto, uma opção que esteve longe de constituir uma estratégia isolada de Portugal, mas que, pelo contrário, dominou vários processos de afirmação nacional nos anos 30 e 40 (cf., por exemplo, Whisnant 1983). Para a sua compreensão é tão importante ter em conta as condicionantes da vida cultural e política portuguesa da I República e do Estado Novo como, por exemplo, a influência do pensamento de intelectuais franceses de entre-guerras, como Valéry ou Duhamel, para quem a grande preocupação era a diluição das diferenças culturais no âmbito de uma modernização supostamente massificadora (cf. Peer 1998).
Recuperar o museu não seria, assim, devolvê-lo à morte lenta em que o mesmo se encontrava, mas transformá-lo num instrumento de pensamento crítico e reflexivo, através da manutenção dos vários elementos que o compõem, bem como de numa agenda sólida de exposições temporárias que ajudasse a desvelar o variado conjunto de relações entre ideias, pessoas e instituições que contribuíram para a constituição daquela colecção.
O museu conduz-nos desde logo à complexidade de usos ideológicos a que a cultura popular foi submetida na primeira metade do século XX, no âmbito quer dos projectos de afirmação nacional, quer dos processos de construção social das elites e das classes médias. A política folclorista do SNI incorpora uma tendência mais ampla da história cultural do século XX, que se traduz na integração dos objectos da arte popular e também os da arte primitiva na vivência de certos grupos intelectuais e da burguesia cultivada, tornando-se essencial para o estudo deste processo.
Por outro lado, o MAP serve como pano de fundo para iluminar outros momentos da história das apropriações do popular em Portugal. Desde logo, o Museu de Arte Popular tem de ser relacionado com o movimento de -descoberta da arte popular que começou em finais do século XIX, com escritores como Ramalho Ortigão e historiadores de arte como Joaquim de Vasconcelos, e sobretudo com a I República. A colecção de objectos de arte popular apresentada foi de facto reunida com base num trabalho de inventariação prévio, realizado pela etnografia dos anos 10 e 20 (cf. Leal 2006; Alves 2008).
O MAP convida, também, à reflexão em torno das opções do grupo de Jorge Dias e de todo um conjunto de agentes que durante o Estado Novo empreenderam buscas pelo popular e que desafiaram a imagem cénica da nação , como, por exemplo, os agrónomos do Inquérito à Habitação Rural lançado no final dos anos 30, os artistas e escritores do movimento neo-realista, os arquitectos do Inquérito à Arquitectura Popular nos anos 50 (cf. Leal 2000), não esquecendo as recolhas de música de Lopes Graça e Michel Giacometti.
Mas o museu permite-nos ir mais além, na medida em que constitui como que uma plataforma de indagação de todo um conjunto de movimentos em torno do povo, empreendidos nos anos agitados e urgentes da revolução de 1974, que procuram fazer a ruptura com a concepção estadonovista da cultura popular (cf. Almeida 2009). Destas iniciativas destaca-se o Plano de Trabalho e Cultura coordenado por Michel Giacometti no âmbito do Serviço Cívico Estudantil (1974-1977), que assumidamente procurou combater a imagem idílica e pacífica da ruralidade exibida nas salas do Museu de Arte Popular (cf. Branco 1993).
É neste contexto que o MAP nos situa perante as mundividências de um conjunto de agentes diferenciados num arco temporal alargado que se prolonga até à actualidade. A sua colecção confronta-nos deste modo com a agência e os trânsitos de um conjunto particular de objectos. Dos seus locais de origem foram transportados para as salas do Museu de Arte Popular, habitando agora o Museu de Etnologia. São objectos viajantes que ocupam as páginas dos jornais nacionais, como um exemplar da cerâmica de Nisa que foi convocado para ilustrar a entrevista de Joaquim Pais de Brito ao Público (9 de Julho de 2009). Nesta fotografia, ampliada, podemos observar uma etiqueta com indicações manuscritas resultantes do processo de inventariação levado a cabo pelo MNE. Desta nova morada esperamos que a colecção, com cerca de 25.000 objectos, regresse ao edifício do Museu de Arte Popular para que, no futuro, possa dialogar com os outros usos do popular.
Bibliografia
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ALVES, V.M., 2008, Camponeses Estetas no Estado Novo: Arte Popular e Nação na Política Folclorista do Secretariado da Propaganda Nacional. Lisboa, ISCTE, tese de doutoramento.
BRANCO, J.F., 1993, Ciência e povo: a construção de universos camponeses, em J.F. Branco e L.T. de Oliveira, Ao Encontro do Povo I: A Missão. Oeiras, Celta Editora, 235-252.
CLIFFORD, J., 1988, The Predicament of Culture: Twentieth-Century Ethnography, Literature and Art. Cambridge e Londres, Harvard University Press.
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WHISNANT, D.E., 1983, All That is Native and Fine: The Politics of Culture in an American Region. Londres e Chapel Hill, The University of North Carolina Press.