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Etnográfica

versão impressa ISSN 0873-6561

Etnográfica v.13 n.2 Lisboa nov. 2009

 

Museu de Arte Popular: oportunidades perdidas, novas oportunidades

Paulo Ferreira da Costa

CRIA

 

História e memória

O debate em curso (2006-2009) sobre o Museu de Arte Popular constitui-se actualmente como um dos mais férteis terrenos para a reflexão sobre o património etnológico, em particular para as áreas disciplinares nele mais directamente implicadas – a museologia e a antropologia. Não obstante as diversas variantes até agora enunciadas, uma estratégia apresenta-se como predominante, assim sintetizada no último boletim do ICOM: a da “Reabertura do MAP no seu lugar próprio, devidamente modernizado, mas respeitando a colecção e o conceito original” (n.º 5, Jun/Ago de 2009, p. 13).

Trata-se de uma estratégia de (re)valorização patrimonial assumidamente de vocação historicista (fundada na história da arte, da arquitectura, do design, da antropologia e do Estado Novo) e que privilegia o facto de o MAP ter permanecido praticamente inalterado, desde a sua fundação, no que respeita ao seu imóvel, ao seu património integrado e móvel, ao seu discurso e equipamento museográfico primitivos, como reflexo de políticas e medidas de um determinado período (histórico, político, cultural e científico). Sendo lugar de memória bom para pensar e ensinar muitas coisas sobre aquele período e alguns dos seus protagonistas e ideias, o MAP revela-se, pois, para utilizar a expressão de João Leal, com vocação para “museu de si próprio”.

Sendo patrimonialmente válidos os argumentos que configuram esta estratégia, o que considero particularmente interessante, para a reflexão suscitada por aquele debate, é o plano secundário a que as colecções do MAP nele têm sido remetidas, designadamente quando considerado que as colecções constituem a razão primacial da existência de um museu e, como tal, o factor primordial em função do qual se definem a sua missão e as estratégias de gestão daquelas. Ora, neste debate, (quase) tudo se passa como se a restituição do MAP à sua condição física original (ainda que paralelamente a outras componentes de actuação) devesse ser feita apesar das colecções com que se articulou a missão de que foi originalmente investido e que, até à criação do Museu Nacional de Etnologia (MNE), em 1965, o afirmaram certamente como o mais proeminente museu etnográfico em Portugal.

Precisamente por se tratar de um museu etnográfico, parecem-me constituir particular matéria de reflexão muitos dos discursos sobre as suas colecções, entre os quais os que persistem em classificá-las como “arte popular”, não obstante a grande diversidade de tipologias materiais ali representadas, e recorrendo a esse polissémico ainda fortemente eivado dos sentidos que lhe imprimiu a etnografia ao tempo do SPN, como conceito genericamente aceite e plenamente operatório no actual contexto científico. Paralelamente, é matéria para reflexão o conjunto de dúvidas e certezas que desde há muito circulam sobre a autenticidade dessas 13.000 peças e que, a par da escassa documentação que as acompanha, por vezes se constituem como premissas para o seu entendimento como objectos etnográficos menores e, acima de tudo, reforçam a concepção de que no MAP tudo era discurso e ideologia do SPN. Parece-me que esta perspectiva deverá ser interrogada sob um duplo prisma: por um lado, considerando que o actual quadro de exigência ética, técnica e científica para a constituição e documentação de colecções não poderá ser aplicado retroactivamente no contexto do MAP, como aliás também não o pode no caso de quaisquer outras colecções; por outro lado, tomando como pressuposto evidente que, independentemente da sua maior ou menor polissemia, os bens patrimoniais são invariavelmente objecto de um discurso específico e decorrente de um determinado contexto de intenções e contingências.

Na ausência de quaisquer contributos por parte dos anteriores responsáveis directos das colecções do MAP sobre esta questão, apenas o MNE poderá esclarecer em definitivo este universo discursivo, na qualidade de seu depositário e no âmbito do trabalho de conservação e documentação em curso. De qualquer modo, até que se verifique esse esclarecimento, o que parece evidente é que tais argumentos não podem constituir-se como premissas para a reposição total ou parcial do discurso museográfico original do MAP, ignorando a relevância patrimonial das suas colecções no seu âmbito disciplinar evidente.

 

História e estratégia

Num âmbito especificamente museológico, de procura de uma alternativa para o destino anunciado para o MAP desde 17/5/2006, articulando as suas componentes de maior perenidade e valia patrimonial, i.e., o seu edifício e colecções, a própria história do museu encerra uma das soluções possíveis para a sua revalorização, provavelmente a mais avisada e a de maior relevância não apenas para aquelas componentes, mas também para as mais importantes colecções etnográficas nacionais consideradas globalmente. A lição que a história do MAP encerra é, aliás, dupla.

Em primeiro lugar, tal como frequentemente referido no debate em curso, o MAP permaneceu como tal até recentemente (i.e., às obras de fundo iniciadas como etapa indispensável do seu processo de requalificação) pela ausência de projecto alternativo ao projecto original, com excepção do esboçado em dois momentos recentes da sua história (1993-1997 e 1999-2006), em ambos os casos a partir do exterior do MAP, mas cuja concretização foi impossibilitada por constrangimentos de ordem diversa. O museu não permaneceu como museografia de época por mérito próprio, mas sim pela ausência de um projecto sustentado para ele.

Em segundo e mais importante lugar, em dois momentos da história do MAP e do Portugal moderno, aquele foi objecto específico de políticas culturais ambiciosas, não lhe dirigidas em exclusivo, mas reconhecendo a sua importância patrimonial e convocando a sua participação num quadro mais amplo e sistémico de valorização do património etnológico.

Em 1979, pouco antes da implementação do IPPC, o Decreto-Lei n.º 535/79 cria o Instituto-Museu Nacional de Etnologia (I-MNE), como entidade que agrega o Museu de Etnologia (ME), os Centros de Investigação que lhe estão directamente na origem – Centro de Estudos de Etnologia (CEE) e Centro de Antropologia Cultural e Social –, o MAP e as colecções etnográficas do Museu Nacional de Arqueologia (MNA), na perspectiva da institucionalização das longas relações de facto entre o ME e aqueles Centros e, entre outras virtualidades, na assunção do papel que o I-MNE poderia desempenhar como núcleo de apoio aos emergentes museus etnográficos locais, papel que, não obstante aquele diploma não ter entrado em vigor, efectivamente cumpriu a partir da década seguinte.

Resultando de um projecto do próprio ME, à data dirigido por Ernesto Veiga de Oliveira, a criação do I-MNE visava assim dar corpo a uma estratégia de reorganização das mais relevantes colecções etnográficas públicas nacionais, com vista a completar lacunas (tipológicas e cronológicas) mútuas. Na perspectiva da procura de uma alternativa para o destino traçado desde 2006 para as colecções do MAP, a estratégia de 1979 parece consistir num forte indicador qualitativo sobre estas, sobretudo quando considerado o papel desempenhado pela equipa fundadora do MNE na valorização da cultura material tradicional portuguesa, de cujo conhecimento e documentação, através de pesquisas no terreno, cartografia sistemática, constituição de arquivos públicos e divulgação editorial e expositiva foi o principal agente.

Frustrado o esforço de que resultou o Decreto-Lei n.º 535/79, em 1989 este é parcialmente tomado como inspiração no âmbito de nova medida. Corresponde esta ao enunciado no Decreto-Lei n.º 248/89, que novamente reúne sob a coordenação do MNE as colecções etnográficas do MNA e o MAP, desta feita individualizado como Núcleo de Arte Popular, mas que sastrosamente retira ao MNE um dos seus Centros de Investigação, decretando um divórcio sob a forma de uma união de facto. De qualquer modo, independentemente dos vários erros que dela derivaram, esta estratégia parece-nos assentar sobre uma intenção de valorização do património etnológico, no âmbito da qual o IPPC acolheu simultaneamente sob sua tutela não apenas o próprio MNE mas também, culminando insistentes pedidos da Assembleia Distrital do Porto, o Museu de Etnografia e História do Douro Litoral, então renomeado Museu de Etnologia do Porto, na perspectiva da sua requalificação futura. Paralelamente, a colocação sob a tutela do MNE das colecções etnográficas do MNA visou circunscrever a actuação deste à sua área disciplinar de enquadramento, em consonância absoluta com a sua missão e prática exclusiva desde há décadas.

Ao invés de outros olhares, não me parece que ambos os projectos/medidas traduzam um qualquer incómodo face às origens do MAP, sobretudo no caso do primeiro, o único verdadeiramente concertado pelo contexto institucional de então e resultante de uma visão solidamente documentada sobre as suas colecções. Antes parecem – apesar dos contraciclos de falta de vontades e/ou de meios que impediram a sua concretização – enunciar um desejo genuíno de impedir uma tragédia já então anunciada para o MAP, reinventando-o para assegurar a sua sobrevivência, adaptando-o a novos enquadramentos disciplinares, a novas exigências técnicas, e não encarando a sua integração na instituição museológica de referência nacional no âmbito do património etnológico senão como oportunidade para a valorização das suas 13.000 peças, representativas de tipologias muito diversas, e não apenas de carácter “artístico” ou de valor predominantemente estético. Esta seria a oportunidade também, já subjacente ao projecto inicial expresso no Decreto-Lei n.º 535/79, de dotar o MNE de um pólo dedicado à cultura tradicional portuguesa na frente ribeirinha de maior afluência de públicos da cultura, eixo do qual persiste em não beneficiar desde a sua inauguração em 1976, apesar da relativa proximidade.

É este, pois, um outro possível contexto histórico para a definição de estratégias para o MAP, não a partir da ideologia e estéticas do SPN e do Estado Novo, mas a partir da visão, dos princípios metodológicos e boas práticas que caracterizaram a actuação da equipa fundadora do MNE. Esta é inegavelmente merecedora de lugar de relevo na memória da antropologia, do património e da museologia: pelo modo como reinventou a primeira, precisamente no contexto de predominância da etnografia do SNI (note-se que o CEE é criado no ano anterior à inauguração do MAP); pelo modo como contribuiu para o conhecimento do património etnológico e a dignificação do seu estatuto; enfim, pelo modo como se assumiu, através do inovador e qualificado projecto do Museu Nacional de Etnologia, como referência na actividade museológica, e não apenas em Portugal.

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