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Etnográfica

versão impressa ISSN 0873-6561

Etnográfica v.14 n.3 Lisboa out. 2010

 

Réplicas topográficas nas narrativas de viagem sobre a Índia

 

Sandra C. S. Marques

CRIA/ISCTE-IUL, Portugal, sandrasimoesmarques@hotmail.com

 

Resumo

Este artigo pretende analisar os modos de desempenho das narrativas de viagem sobre a Índia, os significados que traduzem e transportam e o seu impacte ao nível das percepções e práticas discursivas no encontro do turismo internacional em Kolkata (capital do estado de West Bengal, Índia). Através da abordagem do estilo de narrativa verbal utilizado pelos turistas “ocidentais” que contactei nesta cidade entre 2004 e 2007, foi revelada uma característica transversal aos seus relatos: a tentativa de aproximação às técnicas estilísticas do género literário indexado às narrativas de viagem, fazendo recurso de réplicas de estilo, termos, conteúdos manifestos e significados, de forma cumulativa.

PALAVRAS-CHAVE: relatos de viagem, Índia, Kolkata (Calcutá), Oriente, terceiro mundo, turismo.

 

Topographical replicas in travel narratives about India

Abstract

In this article, I intend to examine the ways in which travel accounts about India perform, the meanings they carry and translate, and their impact at the level of perceptions and discursive practices in the international tourism encounter in Kolkata (the capital of the state of West Bengal, India). The scrutiny of the style of narratives used by the Western tourists, approached in this city during 2004-2007, revealed a characteristic, transversal to most of the accounts, which is the attempt towards the reproduction of stylistic techniques of the travel literature genre by using replicas of style, terms, manifested contents and meanings, in a cumulative way.

KEYWORDS: travel accounts, India, Kolkata (Calcutta), Orient, third world, tourism.

 

AS FONTES DE INFORMAÇÃO E O ESTILO DAS NARRATIVAS

Como demonstrou Foucault, se, em teoria, o autor pode dizer / escrever qualquer coisa, em verdade, os enunciados discursivos revelam na sua expressão material um constrangimento extraordinário, traduzindo em si mesmos repetitividade, restrições de estrutura, de conteúdos, de significados, escolha de linguagem, estratégias, estilo de narrativa, tropos, etc. (ver Foucault 1984), a que também este texto, mesmo na sua procura deliberada de desconstrução dos modelos dominantes, não é alheio. E isso considero válido – assumindo-o como central ao argumento – para todo e qualquer enunciado verbal, textual ou pictórico, em que se incluem as narrativas fotográficas e histórias contadas pelos turistas internacionais em Kolkata (também conhecida como Calcutá, capital do estado de West Bengal, Índia) que incluo como fontes neste estudo.[1]

Mesmo entre cientistas sociais, sobretudo historiadores, são muitos os que continuam a manifestar a sua indignação perante este tipo de asserções – “Though it is fashionable in some quarters to equate textual analysis with historical writing (a new moment of Eurocentricism), historians know that there is no substitute for the hard work of discovering and ordering data of past human experience” (Kopf 1980: 499). Recusam-se a aceitar que não existe um real passível de ser apropriado separadamente do sujeito que o percebe e o expressa; que os objectos são estruturados, formados, enfim, construídos pelos discursos. A sua dificuldade de aceitação parece residir no alheamento relativo a todo um corpo de produção das últimas quatro décadas, permanecendo obstinadamente firmados no velho paradigma legitimador da autoridade científica de que o conhecimento verdadeiro é objectivo, imparcial, exacto e independente do sujeito (ver Clifford e Marcus 1986).

Desde os anos 70 do século XX os teóricos da linguagem contestaram o que consideravam os dois dualismos prevalecentes na teoria linguística, a saber, a crença de que o significado pode ser separado do estilo ou expressão e a validação da separação entre a estrutura e o uso linguísticos, substituindo-os pela asserção de que a capacidade linguística de produção de significado é um produto da estrutura social, pelo que os significados sociais e as suas materializações textuais devem ser incluídos nos desígnios da sua descrição (Halliday 1970; Fowler e Kress 1979; Kress 1988 [1985]). Ou seja, independentemente das variantes nas posições assumidas pelos especialistas de análise da linguagem e do discurso (que naturalmente persistem na actualidade), é consensual que os eventos discursivos, por um lado, variam na sua determinação estrutural de acordo com o domínio social particular ou enquadramento específico em que são gerados; e, por outro, que o discurso é um princípio estruturador, no sentido que lhe dá Foucault, em que os objectos, os sujeitos e os conceitos são formados discursivamente.

Sem me alongar sobre a falácia da discussão da veracidade (ou objectividade e imparcialidade) de qualquer texto ou narrativa, argumento que, antes, importa recentrar a análise na circunstância de que, mais ou menos ficcionado, qualquer texto e estilo narrativo é sempre enquadrado pelo corpo literário da sua época e reflexo dos modelos políticos, económicos, sociais e académicos vigentes na altura que se cruzam com as intenções do autor. Significa isso que não é possível dizer sobre qualquer coisa em qualquer momento; que não é fácil dizer algo novo; que não é suficiente observar, atentar – estar motivado para a procura do novo – para perceber um novo objecto (ver Foucault 1969: cap. 3). Assim, da informação relevante que pode ser obtida a partir da análise destes materiais, mais valiosa do que a descrição relativa ao objecto é a informação relativa à sua produção, ao autor e aos significados e representações da unidade social em que se inscreve e que aplica a essa descrição – para dizer sobre o objecto, para o manipular, nomear, analisar, classificar, etc. (Foucault 1969). Os relatos de viagem não são excepção.

Como já extensamente analisado por inúmeros autores de diversas áreas disciplinares e sob diferentes perspectivas (K. Adams 1984; Hummon 1988; Cohen 1989; Fakeye e Crompton 1991; Hughes 1992; Dann 1996; Edwards 1996; McGregor 2000), as representações visuais e textuais desempenham um papel fundamental na indústria turística, determinando desde o primeiro momento (directa ou indirectamente) a escolha do produto, experiência e destino, assim como expectativas, imagens antecipadas e práticas no local. Mas, mais do que isso, autores das áreas da psicologia e cognição social argumentam que a informação quotidianamente adquirida sob a forma de narrativa é a que mais facilmente é retida na memória, sendo determinante, por isso, na construção do conhecimento. Investigadores como Adaval e Wyer Jr. terão mesmo estabelecido uma relação directa entre este processo de construção de representações mentais e a vantagem da veiculação da informação em formato de narrativa – mais ainda se acompanhada de conteúdos pictóricos – na construção de conhecimento sobre um qualquer objecto e, especificamente, sobre um destino turístico (Adaval e Wyer Jr. 1998).

Na actualidade, a imagética de lugares, cidades e nações, particularmente quando distantes, é fortemente influenciada pelas narrativas representacionais dos mediadores de informação massificada, assumindo posição de liderança a este nível a televisão, o cinema de grande difusão e a Internet. Para os turistas, adicionam-se habitualmente a estas fontes, no momento prévio à viagem e in situ, o que poderei designar como “fontes orientadas para o turismo nesse lugar”: literatura impressa de viagem sobre o lugar (incluindo os mais específicos guias de viagem, brochuras e mapas); narrativas verbais, textuais e pictóricas (via Internet em travelogues, por exemplo) de amigos e outros viajantes / turistas, profissionais do sector e outros residentes no local (sobre fontes de informação referidas pelos turistas internacionais para o destino Índia, ver, por exemplo, Chaudhary 2000).

McGregor (2000), no seu estudo conduzido em Tana Toraja, na Indonésia, em 1994, verificou que, para os viajantes que procuram demarcar-se das práticas habituais do turismo de massa – em que se enquadra também a maioria dos turistas internacionais contactados por mim em Kolkata –, as fontes de obtenção de informação sobre o local mais referenciadas foram os guias de viagem, em particular o Lonely Planet (AAVV 2001),[2] e a comunicação verbal com amigos e outros viajantes. Para os que mencionaram ambas as fontes, o processo mais referido seria: “First we heard about it, then we looked it up in the guidebook” (em McGregor 2000: 34). Em Kolkata, a situação é semelhante, acrescendo apenas a estas fontes a comunicação textual com amigos e outros viajantes / turistas via travelogues ou travel spots e correio electrónico, e literatura impressa sobre o local, sendo a mais comum a literatura de viagens, muitas vezes comprada já na cidade (factor para o qual contribui a diversidade e o apelativo baixo preço do material impresso em Kolkata) e mediada pela língua inglesa.

Graham Dann (1996) argumenta que o turismo se fundamenta no discurso e, certamente que para todos os que já viajaram ou se encontraram com amigos que acabam de regressar de uma viagem, é uma evidência que o capital narrativo é parte essencial da experiência turística – a aventura de viagem deve ser contada, a experiência não é completa sem o seu relato. O meu propósito, aqui, é o de analisar os modos de desempenho das narrativas de viagem contadas, os significados que traduzem e transportam e o seu impacte ao nível das percepções no encontro do turismo internacional em Kolkata, centrando a abordagem no estilo de narrativa verbal e textual utilizado pelos turistas “ocidentais” que contactei nesta cidade entre 2004 e 2007.

Embora alguma investigação tenha sido efectuada no que diz respeito à linguagem, comunicação interpessoal e retórica usadas pelos turistas, esta tem sido sobretudo centrada nas suas implicações para a construção de identidades (Dann 1996; Desforges 2000; Galani-Moutafi 2000) e, em particular, da identidade dos jovens turistas “de mochila às costas”, em turismo de aventura (Desforges 1998; Elsrud 2001, 2005; Noy 2002, 2004; Huxley 2004).

For these young travelers, the popular tourist attractions that have become recognizable worldwide, while still “valid,” are now so passé that there is a growing desire for new and different experiences. Backpackers place importance on their search for alternative experiences and believe that “the tourist traps” cannot provide access to the “real cultures” of the places they are visiting. (Huxley 2004: 40)

Tal como Huxley descreve a partir das narrativas destes turistas ocidentais “de mochila às costas” que inquiriu, também em Kolkata a maioria dos turistas internacionais – que enquadro de forma mais alargada em viajantes que procuram demarcar-se das práticas habituais do turismo de massa – insiste na sua motivação da procura da experiência de viagem alternativa, da experiência de contacto com a alteridade, com algo novo e extraordinário que lhes proporcione “the experience of a lifetime” (turista alemã, cinco meses de estadia em Kolkata em 2006). Saliento aqui que o uso que faço do conceito de motivação assenta na linha de Schutz (1972) de um-zu-Motiv (“em ordem para”), que condiciona o que se faz, como se faz e sobretudo determina, a posteriori, o modo como se narra a história do que aconteceu (sobre as opções teóricas de conceptualização da motivação no turismo, ver Dann 1981).

O paradoxo encontrado a partir desta aproximação é o de que, embora o ponto de partida motivador seja o da experiência nova, extraordinária, à semelhança dos profissionais que geram os materiais de mediação cultural no seio da indústria, recorrendo a fórmulas representacionais de outros mediadores de cultura popular para expressão dos significados imediatos partilhados com o seu público, também para os turistas não existe uma procura constante de novos modos de representação. Em vez disso, observa-se uma recorrência às mesmas narrativas organizadas e preestabelecidas das suas fontes, que servem não só de quadro referencial para confirmação e legitimação das histórias que narram mas, mais do que isso, como modelos a duplicar. Especificamente, a análise dos materiais obtidos revelou uma característica transversal a muitas das narrativas e que é a tentativa de aproximação às técnicas estilísticas do género literário indexado às narrativas de viagem, fazendo recurso de réplicas de estilo, termos, conteúdos manifestos e significados.

 

A LITERATURA DE VIAGENS SOBRE A ÍNDIA E AS NARRATIVAS DOS TURISTAS OCIDENTAIS EM KOLKATA: RÉPLICAS SUCESSIVAS DE MODELOS RETÓRICOS FAMILIARES

O género “reportagem”, autenticidade e plagiato

A influência da literatura de viagens na cultura popular tem feito um longo percurso, sendo uma evidência a sua importância na Europa já nos séculos XVI, XVII e XVIII, o período de expansão e dominação das culturas europeias (Bailey-Goldschmidt e Kalfatovic 2004). Tradicionalmente percepcionada como reportagem – relatos objectivos da experiência do autor –, partilha com os textos jornalísticos a mesma aura do “contamos-lhe como foi”. Este cunho de objectividade permitiu a difusão da sua legitimação como fonte informativa segura para a construção das representações dos lugares e dos outros distantes. Mohammed Bamyeh relembra que, até à sua substituição pelas compilações de material etnográfico, a literatura de viagens detinha o monopólio da transmissão de conhecimento sobre os outros no sistema educativo ocidental:

When Rifa’a Rafe’ at-Tahtawi, an Arab traveler, visited Paris in post-Napoleonic times (1826-31) to become acquainted with “the West” in general, he found an educational system in which accounts of travels into Algeria and the Ottoman Empire were taught, side by side with French, general history and historiography, Greek mythology, and Napoleon’s biography. (Bamyeh 1994: 39)

E com efeito, os relatos escritos de viagem continuam a ser usados até hoje, por exemplo no âmbito da historiografia, como documentação preferencial de informação primária, em detrimento da história oral que é tomada como fonte narrativa “menos verídica”. O meu argumento é o de que esta distinção não possui base de sustentação: escritos ou verbais, os enunciados discursivos, embora diferindo na sua expressão formal, são sujeitos às contingências referidas, sendo a sua validade limitada ao enquadramento em que se inscrevem. Isso acontece para os relatos amadores orais e escritos dos turistas tanto quanto para os exercícios dos profissionais da literatura de viagens, nas suas diversas formas.

No que se refere aos modelos representacionais da literatura de viagens sobre a Índia, é habitualmente colocada uma marca temporal de viragem na viagem do português Vasco da Gama em 1498 (Bailey-Goldschmidt e Kalfatovic 2004). Antes da abertura do caminho marítimo da Europa para a Índia (porque o sentido inverso era conhecido), apenas os viajantes com acesso à rota terrestre através de Istambul ou vindos de norte e este, da China, Japão e Coreia, viajavam para este lugar. Assim, até essa altura, as narrativas de viagem sobre a Índia eram sobretudo domínio de chineses e muçulmanos (de várias origens), entre os quais, talvez o mais famoso, o ilustre viajante marroquino do século XIV, Ibn Battuta. Na sua maioria peregrinos, diplomatas, aventureiros ou negociantes com as necessárias relações ao mundo islâmico ou budista, estes viajantes não dependiam de patronato real ou oficial, o que lhes facultava uma latitude relativamente folgada na selecção de conteúdos e modo de abordagem nos seus relatos de viagem, marcados, acima de tudo, pela descrição da estranheza e exotismo. A recorrência destes temas/objectos conotados com estranheza e exotismo foi conservada até à contemporaneidade.

A partir do estabelecimento dos portugueses na Índia, e definitivamente a partir de meados do século XVII através da presença britânica, holandesa e francesa (com mais abundância de relatos), as narrativas escritas de viagem passam a ser enquadradas oficialmente e com propósitos claros de satisfação de necessidades relativas à natureza da implantação política e exploração económica no território, o que se traduziu num afunilamento de conteúdos e modos de abordagem, particularmente direccionados para esse propósito durante este período. Como declara Miles Ogborn, na sua análise da materialidade da literatura de viagens da English East India Company:

They were part of a world where mercantile capacity needed the protective envelope of the monarch’s political power to preserve markets, enforce authority onboard ship and make agreements with distant polities […]. Royal letters, ship’s journals, accounts and commissions are, in their making, transportation and use, always actively and directly involved in the specific social and political relations and practices – kingship, captainship, intercultural translation – of which they are a part. (Ogborn 2002: 167)

Ou seja, como bem faz notar Ogborn, a escolha de sintaxe e conteúdo destes textos não deve ser atribuída apenas ao autor e à sua autonomia individual para representação discursiva, antes deve ser entendida pelo seu contexto de produção e uso, circunstancialmente enquadrada, social e politicamente, e neste caso sob rígidas formalidades. No entanto, isso não justifica por si só o recurso às sucessivas duplicações de enunciados, termos escolhidos e carácter monolítico dos conteúdos manifestos. Atente-se às duplicações nos dois relatos quinhentistas que se seguem sobre Bengala. O primeiro, de Ludovico Di Varthema (1503-1508), terá sido publicado pela primeira vez em italiano em 1510:

The sultan of this place is a Moor, and maintains two hundred thousand men for battle on foot and on horse; and they are all Mohammedans […]. And here there are the richest merchants I ever met with. Fifty ships are laden every year in this place with cotton and silk stuffs […] through all Turkey, through Syria, through Persia, through Arabia Felix, through Ethiopia, and through all India. (Badger 1863: 211-212)

O segundo, um relato do português Duarte Barbosa, um pouco posterior ao de Ludovico Di Varthema, terá sido traduzido de um manuscrito espanhol de 1524:

Those [towns] of the interior are inhabited by gentiles, subject to the King of Bengal, who is a Moor; and the seaports are inhabited by Moors and Gentiles, amongst whom there is much trade in goods and much shipping to many parts […] They are all great merchants, and owe large ships of the same build as those of Mekkah, and others of the Chinese build which they call jungos. […] They load many ships with it and export it for sale to all parts. (Stanley 1866: 178-179)

Tal como se observa neste exemplo, vários estudos realizados por investigadores históricos revelam que na literatura de viagem estas condicionantes de estruturação são particularmente evidentes (para relatos de viagem de diferentes períodos e para relatos não enquadrados oficialmente), sendo facilmente identificável a duplicação de conteúdos e sintaxe discursiva de textos anteriores do mesmo tipo, disponíveis para suporte da actividade discursiva do autor.[3] E ainda que a questão das duplicações não se coloque ao nível do plágio ou da mentira leviana intencionais, como analisado por Bailey-Goldschmidt e Kalfatovic, por vezes isso acontece. Como declaram:

This borrowing inevitably leads to a multiplication of errors which created a chain of fibs stretching through the centuries. One such myth was that of the gold-digging ants who lived underground near the Indus river, heaping up sand mixed with gold in the process of carrying out their lives. If one attempted to retrieve this gold, so the story went, they were chased by these ants (the size of dogs) and killed. This legend can be traced as far back as Herodotus in the fifth century b. C., through Megasthenes and into the fictive Mandeville’s narrative in the fourteenth century. (Bailey-Goldschmidt e Kalfatovic 2004: 147)

Perpetuam-se desta forma, nas narrativas de viagem, modos de representação estreitamente limitados, imagens estereotipadas, objectos construídos discursivamente, que adquirem significados com existência autónoma, indiferentes à sua expressão (ou ausência) no real a que se referem (ver Silva 2003). O recurso ao estilo do género “reportagem”, sob a aparência da informação objectiva e pragmática, permite manter, todavia, a aura de credibilidade do sujeito conhecedor que narra o “autêntico”, que partilha o seu testemunho directo sobre o que “estava lá”, sobre propriedades intrínsecas ao objecto.

Devo referir aqui que durante os séculos XVII e XVIII, a escrita de narrativas de viagem em forma de cartas – formais ou familiares (privadas) – terá sido muito popular, sobretudo entre os viajantes da Grand Tour europeia.[4] Alguns autores argumentam dever ser feita uma distinção no tratamento da sua forma retórica em comparação com outras narrativas de viagem, por serem documentos particulares, mais subjectivos, menos fidedignos e até “femininos” (ver Smith 2003), contrariando, por isso, o estilo de exposição objectiva da informação.[5] Todavia, essa distinção não me parece pertinente. Como demonstrado por Smith, muitas destas cartas, formais ou familiares, foram escritas desde um primeiro momento com propósitos de publicação, recorrendo-se a esse formato, precisamente, pela sua popularidade como expressão máxima do testemunho directo, o que, como argumentado também por Struever (1995), seria conforme ao modelo da retórica clássica e à sua integração no domínio pragmático de expressão da “verdade”, dominante na época.

Deste ponto de vista, a carta como testemunho directo confunde-se também com o “contamos-lhe como foi” característico do estilo de reportagem informativa que, argumento, é marca retórica das narrativas de viagem. A sua perda de popularidade nos finais do século XVIII prende-se apenas com a mudança epistemológica na produção de conhecimento em geral, que passou a favorecer a exposição da evidência circunstancial em detrimento deste modelo de testemunho (Smith 2003: 200), e que terá sido rapidamente incorporada pelos autores da literatura de viagem. Um excerto do prefácio do diário de viagem de Hester Thrale Piozzi, Observations and Reflections Made in the Course of a Journey through France, Italy, and Germany, editado em 1798, é ilustrativo disso mesmo: “I have not thrown my thoughts into the form of private letters; because a work of which truth is the best recommendation, should not above all others begin with a lie” (cit. em Smith 2003: 200).

Ou seja, o que poderia parecer a um primeiro olhar como mudanças ocorridas em resultado da procura de modos alternativos de descrição da experiência, de facto não o é. Pelo contrário, o que se verifica é que os enunciados discursivos a que se recorre para narrar a experiência de viagem requerem sempre um significado partilhado, com vista à sua compreensão pela comunidade interlocutora. Só adquirem significado enquanto produtos narrativos partilhados por outros similares que os integram e reiteram, aproximando os seus autores numa espécie de “sistema de crenças” ou “corpo de conhecimentos” que serve de base ao entendimento do real, que estrutura, define e materializa, pelo seu sucesso cumulativo, objectos pré-organizados discursivamente.

Na actualidade, o recurso ao estilo “reportagem” (de exposição objectiva da evidência circunstancial) continua a ser o mais generalizado entre os profissionais da literatura de viagem, e é adoptado também em guias, brochuras e narrativas impressas e online das agências de viagens e promotores turísticos e ainda reproduzido nas histórias contadas pelos turistas. Veja-se a narrativa de um turista norte-americano em circuito de aventura pela Índia, que terá permanecido cerca de dois dias em Kolkata, em Março de 2006. Começa assim: “Had to visit Calcutta”, e continua,

I wandered around the city, observing, until finally my feet were tired. Crowded streets, every one of them, bustling with people. Derelict cows wandering about, cars, buses, trucks, carts pulled by ox. Feet that have known saddles perhaps, but never shoes. Slums, awful, but no worse than I expected, thank God. […] People appeared to not be starving, thankfully, true of everywhere I went in India. People sleeping on the streets for sure, a few desperately thin legs and arms, but the real worry that any Westerner would feel is that there had to be millions that were one large natural disaster, or a few consecutive drought years, or a major political upheaval away from death. [Turista norte-americano, dois dias de estadia em Kolkata]

Apenas 30 horas de estadia na cidade para que se torne mais um conhecedor da cidade e dos seus habitantes. O turista, de credibilidade atestada pela sua experiência de viajante e caminhante nas ruas da Índia (que refere várias vezes, ao longo da sua narrativa), em algumas horas, observa, reconhece e analisa a “evidência circunstancial” encontrada. Em reforço da “objectividade”, “autenticidade” e princípios de isenção na descrição do objecto, sente-se compelido a referir que não escamoteia resultados: “Slums, awful, but no worse than I expected, thank God” – denunciando assim, imediatamente, o encontro do objecto antecipado.

“Feet that have known saddles perhaps, but never shoes”, constata o turista. Qual o propósito deste enunciado para a descrição da cidade? Aparentemente apenas a sua ressonância literária de significados de pobreza que associa a Kolkata (e à Índia). Mas, na verdade, é apenas mais um objecto que outros “já haviam dito”. Simon Winchester, no livro Simon Winchester’s Calcutta, de 2004, escreveu:

Calcutta is the only city on earth to still allow hand-pulled rickshaws […] How can it project itself to the world as a successful and cosmopolitan city when it still exploits people quite so blatantly and inhumanely as to use them as human mules? […] None of the pullers seem to possess shoes.(Winchester e Winchester 2004: 85)

E, por exemplo, uma outra turista norte-americana com um mês de estadia em Kolkata, em Outubro do mesmo ano, terá enunciado o seguinte:

Where else in the world can you take a foot rickshaw? Yes, with huge wooden spoke wheels and a snowy-bearded barefoot man trundling you along the street – a foot rickshaw. [Turista norte-americana, um mês de estadia em Kolkata]

Que significado pode ser inferido a partir da leitura destes enunciados sobre pés descalços e a cidade? Para os leitores de Winchester: que os puxadores de rickshaw são uma marca da singularidade de Kolkata – “the only city on earth to still allow hand-pulled rickshaws” –, infame e desumanamente explorados como mulas, não auferindo tão-pouco rendimento suficiente para adquirir calçado. De acordo com a narrativa da turista norte-americana, pode inferir-se que também ela teve oportunidade de observar a cidade única em que se podem encontrar puxadores de rickshaw descalços. Mas, aos ouvintes / eitores do primeiro, bastante mais audacioso no seu testemunho, é atestado que, nas “Crowded streets, every one of them, bustling with people” desta cidade, a larga maioria da população, mesmo que alguma vez tenha tido a oportunidade de usar chinelos de couro (na hipótese interpretativa mais positiva para a metáfora subjacente ao termo saddles – selas), nunca terá sequer conhecido sapatos; nunca os usou, nunca os viu, não sabe o que são ou para que servem. Ou seja, através da duplicação de um enunciado discursivo já construído anteriormente, este turista não só produziu a sua reiteração, como ainda amplificou o seu significado, alargando esta representação específica a toda a generalidade da população nas ruas da cidade, sob o cunho da autenticidade do testemunho directo.

A fotografia abaixo, recolhida por um turista canadiano em Kolkata no final de Novembro de 2005 (mês de Inverno, habitualmente de temperatura amena, mas que os residentes consideram frio, tendendo a usar agasalhos e sapatos mais fechados), que permaneceu na cidade quatro meses para o seu aperfeiçoamento como músico instrumentista de sitar (cítara indiana), exibe um rickshaw estacionado e o seu condutor calçado com sapatilhas. E sobre esta imagem diz: “This is typical, I have seen a lot of pictures like that, but I like it. I asked him to take this picture and he said ‘yes, I just stand here or should I…?’ [risos]”. Refere ter sido sua intenção exibir a imagem do rickshaw de indexação imediata à cidade e descrever a generosidade e disponibilidade por parte do seu condutor para ser fotografado.

 

 

Embora julgue ter captado uma imagem típica, em verdade, pelo que acabei de referir acima, a sua fotografia é extraordinária. Não tendo manipulado a fotografia, preparado a pose oferecendo-lhe sapatos ou procurado durante dias especificamente um puxador de rickshaw calçado, como terá sido possível conseguir obter esta foto num universo repetidamente relatado como de pés descalços? A resposta é simples: os pés descalços não eram algo que procurasse.

Dada a duração da estadia de DB na cidade e a sua coincidência com a minha própria estadia, tornámo-nos amigos, mantendo uma relação de proximidade. Em conversa informal que mantivemos já no final do mês de Fevereiro de 2006, fiz referência ao facto de alguns dias antes, ao rever a sua fotografia, quando procedia a uma reorganização de arquivo do material narrativo obtido (fotografias e histórias contadas), ter notado que esta apresentava um condutor de rickshaw calçado – algo que ambos não tínhamos notado ou mencionado na conversa em Novembro. Respondeu-me que, chamando-lhe eu a atenção para esse facto, era realmente interessante o que se podia ver posteriormente numa fotografia – “things that were there” e que não haviam sido vistas no momento da sua captação. E relativamente ao tema dos sapatos:

Now, thinking of that, since I’m staying here, there was really a significant change on the feet of the pullers, coolies, and so on. I mean, it changes according to the weather, isn’t it? If I had taken the same picture during this season, the guy would probably appear with bare feet! [Conversa com DB, Kolkata, 26 de Fevereiro de 2006]

 

A INTERTEXTUALIDADE, OS CONTEÚDOS MANIFESTOS E A CONSTITUIÇÃO DA NARRATIVA DE VIAGEM COMO GÉNERO DE CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA

De acordo com Sara Mills (1991), outra característica que emerge da análise diacrónica e sincrónica das narrativas de viagem é o seu carácter de intertextualidade. Os autores não só tendem a reproduzir enunciados de outros relatos de viagens reais ou ficcionadas, mas também, de acordo com as motivações subjacentes à sua viagem e ao destino escolhido, tendem a procurar e duplicar narrativas em diferentes áreas de produção de conhecimento: novelas de quotidiano, textos de carácter científico, representações convencionais da paisagem (imagens pictóricas), narrativas sobre a situação política e relação histórica entre os dois locais, etc., o que lhes confere uma marca distintiva em forma de colagem de textos e discursos fragmentados (Mills 1991: 80).[6]

Isto mesmo é particularmente evidente a partir do século XVIII, já que a acessibilidade relativamente alargada aos textos escritos só é iniciada na Europa nesta altura, o que se traduziu em maior produção, abundância de cópias e reedições, diversidade de mediadores linguísticos e, consequentemente, maior familiaridade para leitura e apropriação, fazendo desta circunscrição temporal o enquadramento determinante para as possibilidades de “sobre o que dizer” nas narrativas de viagem da contemporaneidade.

Quando a relação de dominação económica e política britânica sobre a Índia se consolida, na segunda metade do século XVIII, os temas orientados para o mercantilismo e exploração económica dominantes nas narrativas de viagem dos dois séculos anteriores perdem significado, dando lugar a todo um corpo de produção de conteúdos mais familiar, mais difundido e presente, de forma evidente, nos relatos de viagem contemporâneos, pautado pelo que desde Edward Said é conhecido como o discurso hegemónico colonial ou orientalismo[7] (Said 1990 [1978], 1985). Como argumentado por inúmeros autores, desde Said, as narrativas de viagem a partir desta época passam a responder, deliberada ou involuntariamente, aos desígnios de uma Europa imperial, servindo à reafirmação do seu poder sobre o território colonizado e as suas populações. Ou, como salienta Menezes de Souza (2004), a narrativa passa a servir a construção da identidade colonial e a narrativa de viagem a constituir o seu género, por excelência.

Suportado pelas metanarrativas evolucionisto-progressistas, de superioridade racial, expansão colonial, hierarquização civilizacional, “bom selvagem” e “vil oriental”, etc., para o qual concorreram todos os campos de saber ocidentais da época (nesta altura, um “ocidente” ainda confinado à Europa e América do Norte), este tipo de construções representacionais culmina na criação de um corpo de referência de especialistas na Índia, orgulhosamente designados “orientalistas”,“indianistas” ou “indologistas”.[8] Sob a alçada da governação de Warren Hastings, William Jones (1746-94) foi o grande responsável pela criação da Asiatic Society no ano de 1784, na então capital do British Raj, Calcutta. Defensores da importância do estudo das línguas “orientais” e textos produzidos na Índia, juntamente com os seus colegas desta instituição, designaram-se a si próprios como “orientalistas” em oposição aos utilitários “anglicistas”, dominantes na administração e ostensivamente antagonistas do reconhecimento de qualquer produção vernácula (ver, por exemplo, Inden 1986). A criação da Phrenological Society na mesma cidade, nos anos de 1820, por George Murray Paterson, vem complementar este conhecimento com a sua contribuição de estudos comparativos de crânios e teorias derivativas sobre diferenças “raciais”, intelectuais, de mentalidades e pensamento religioso, que serão difundidas em artigos, livros, palestras, aulas e debates, quer na metrópole europeia quer entre as elites locais (ver Kapila 2007).

É a partir desta variedade de formações discursivas que as narrativas de viagens reais ou ficcionadas à Índia adquirem forma, ao mesmo tempo que aí se inscrevem, em relação de validação mútua. No prefácio ao seu Journal of a Residence in India (1812), a inglesa Maria Graham (1785-1842) reforça a credibilidade da “autenticidade” da sua narrativa, precisamente com o esclarecimento de que a informação nela inscrita deriva de “many individuals distinguished for Oriental learning and research” e não directamente da população “nativa”, já que para si, mesmo os indianos mais eruditos serão “ignorant, even with regard to their own sciences” (Graham 2000 [1812]: 11).

Não cabendo aqui o aprofundamento da fabricação e modos de difusão e impregnação popular das construções discursivas sobre “raças” e diferenciação racial, suas correspondências frenológicas ou seus propósitos de legitimação de exercícios de poder e expansão colonial, sublinho, apenas, que a sua difusão foi de tal forma extraordinária (mesmo entre as populações colonizadas) que a sua presença nos enunciados discursivos sobre os outros – dominantes nas narrativas de viagem – se mantém inabalável até hoje. Para este facto concorre, naturalmente, a sua perenidade ao nível das metanarrativas dominantes difundidas pelos mediadores de cultura massificados.

Devo clarificar que a Índia ocupa um lugar consideravelmente especial neste imaginário narrativo sobre o “Oriente”, oscilando entre dois modelos de representação que se difundem paralelamente ao longo dos anos de 1800. O primeiro era generalizado a todo um universo nebuloso “não ocidental”, de construções representacionais sobre a inferioridade racial intelectual e civilizacional, anomalias mentais e de comportamento, e natural posição de subalternidade das populações “nativas” dos territórios colonizados, emanado de grande parte dos representantes das administrações coloniais. Na Índia, este modelo terá sido defendido e difundido, sobretudo, por parte de “anglicistas”,[9] que produziram enunciados como, por exemplo, o de William Wilberforce (1813): “Hindu divinities were absolute monsters of lust, injustice, wickedness, and cruelty. In short, their religious system is one grand abomination” (extraído de Hansard’s Parliamentary Debates, 22 de Junho, cit. em Kopf 1980: 503), ou como o de James Mill, na sua History of British India (1840):

Even in manners, and in the leading parts of the moral character, the lines of resemblance (between Indians and Chinese) are strong. Both nations are to nearly and equal degree tainted with the vices of insincerity; dissembling, treacherous, mendacious, to an excess which surpasses even the unusual measure of uncultivated society. (Mill, cit. em Kopf 1980: 504)

Tomemos como exemplo estes enunciados com mais de dois séculos e veja-se como estas construções representacionais e escolha de termos persistem de forma cumulativa ao longo do tempo até às narrativas da actualidade. Em 1975, afirma o escritor de viagens Paul Theroux:

I stayed in Calcutta for four days, giving lectures, seeing the sights and loosing my lecture fees at the Royal Calcutta Turf Club […]. On the first day the city seemed like a corpse on which the Indians were feeding like flies; then I saw its features more clearly, […] having decided that Calcutta was Dickensian (perhaps more Dickensian than London ever was) […] in a city of mutilated people only the truly monstrous looked odd. (Paul Theroux, The Great Railway Bazaar, cit. em Winchester e Winchester 2004: 281-282)

Já em 2004, na narrativa de um turista francês em Kolkata, encontra-se o seguinte:

Ce n’est qu’un visage de la grande Calcutta, mais de la noirceur d’un abîme qui phagocyte toute autre impression, de la noirceur de Kali, la féroce. […] J’apprendrai que parfois, ce sont des rigoles de vrai sang qui s’écoulent sur le marbre blanc et froid baignant les pieds nus des fidèles, le sang de chèvres égorgées dans la clameur collective d’une ferveur excessive. Folie pure, scandaleuse barbarie… les mots se bousculent, tranchants comme les bourreaux, j’imagine… j’imagine bien, du reste, à constater, interdit, l’hystérie qui gagne Kali-ghat. [Turista francês, quatro dias de estadia]

E ainda, em 2005, a narrativa de uma turista inglesa:

They will do anything for a few rupees and it is especially heartbreaking to see the amputations that have been done at the hands of unscrupulous parents, or guardians so their children can play on the sympathies of visitors. […] Give at your peril – there may only be a few dozen beggars, but get out your cash and you will be swamped until you have had the shirt off your back removed! […] if a taxi driver knocks someone down in the street, get out of the car and run! The people will kill the driver and burn the car, whether or not there is someone in it…. I never saw this happen, fortunately, but I have been told by countless people that it does – so people beware! [Turista inglesa, uma semana de estadia em Kolkata]

Paralelamente a este modelo (mantendo, embora, as mesmas premissas de distanciamento, de extremo exótico, de estagnação civilizacional e condição natural de subalternidade), na esteira do romantismo do século XIX, a Índia terá sido elevada por alguns intelectuais europeus (destes, intelectuais franceses e britânicos foram alvo de extenso estudo por Said em 1978) ao estatuto de supremo representante de afirmação do passado, do exótico e da alteridade cultural, de lugar mítico notável pela espiritualidade e sabedoria e, simultaneamente, povoado pelo “bom selvagem”. Particularmente relevantes foram os indologistas / indianistas alemães (estes não contemplados na análise de Said), como Johann Herder, os irmãos August e Friederich Schlegel, ou Max Mueller (1823-1900),[10] ou ainda, não especialistas como Novalis, Schopenhauer e Friedrich Nietzsche, o que demonstra o impacte da difusão destas narrativas ao nível das possibilidades de construção discursiva em áreas de produção textual tão distintas. Como refere Kaushik Bagchi, apoiando-se no estudo de Herman Tull:

With the British now involved in the down-to-earth task of actually governing a colony, Romantic interpretations of India became the preserve of the Continentals, especially the Germans, who were already cut off from India politically, and who further “isolated themselves from the ‘living’ Indian tradition.” They did this, for example, by disparaging native commentaries on the Vedas, or deliberately ignoring aspects of Indian culture that appeared “tasteless and monstrous” in favor of what they considered more refined. (Bagchi 2003: 296)[11]

Este tipo de representação discursiva terá obtido grande expressão no género romântico na literatura europeia, por autores de narrativas de viagem ou ficção dedicada ao “oriente” de grande sucesso, de várias nacionalidades e largamente difundidos, como Flaubert, Goethe, Rudyard Kipling ou Byron. E a procura do objecto mítico supremo em sapiência espiritual continua ainda a ser encontrada e manifesta nos relatos de muitos turistas:

This is the Art of Living. It is in a session, near the Tram Depot. I didn’t want to disturb anyone, there’s a spirit of being together, sharing the truth. At the end, there was somebody reading – they went to a class in Rishikesh – and one girl said, after, she was so much inspired that she could jump from 30 feet to the Ganges and she said she had never done that before. She was like radiating. […] I was very happy to be there. [Turista canadiana, algumas semanas de estadia em Kolkata em 2007]

Contudo, desde meados do século XX terá emergido uma outra imagem que passa a concorrer com estas, ou melhor, uma imagem de continuidade com uma nova roupagem política: após a II Guerra Mundial, a nova Índia independente (desde 1947) vê o seu estatuto romântico obscurecido pela sua inclusão no grande bloco difuso de jovens e velhas nações ex-colónias colocado sob o rótulo de “terceiro mundo” e pelo discurso de desenvolvimento que substituiu o discurso colonial. As novas narrativas da viagem passam então a ser organizadas genericamente de dois modos: ora, conformes ao progressismo moderno, repudiam aberta e veementemente esta visão de exotismo romântico e estatuto particular da Índia entre as nações, abraçando o discurso sobre subdesenvolvimento, decorrente (e por isso mais próximo) dos anteriores discursos extremados colonialistas; ora, entre os menos progressistas e mais críticos da “nova ordem mundial”, procuram incorporar a velha visão romântica com os novos termos discursivos sobre “terceiro mundo”, criando um tom renovado, marcado pela ambivalência entre os dois universos representacionais.

Habitualmente, no entanto, mesmo quando os dois universos representacionais são incorporados, verifica-se que o autor procede à apologia de um deles:

In India, ancient beliefs and customs seem to be as alive as ever, caught in a state of suspended animation side by side with the modern. Everywhere you would run into educated minds of great sophistication and insight as you would meet illiterate people who clearly live simple lives. […] India is unsanitary and crowded, a bad combination […] I’m compensating by enjoying the sense of belonging to a culture [whose] “state of the art” is cleanly, hygienic, protected modern living. [Turista norte-americano, dois dias de estadia em Kolkata em 2006]

O escritor / jornalista Peter Holt é exemplar a este respeito. Através da referência aos dois modelos na sua narrativa, não só efectua a validação do discurso terceiro-mundista, como o legitima pela sua atribuição, em conversa, a um jovem indiano residente na cidade, estudante de medicina:

He talked about his life in the city. “India is the black hole of Asia, Calcutta is the black hole of India. There is no future here. […] They say I will not like the West. There is too much rudeness, it is a bad way of life, they say. […] I hate these foreigners for their arrogance. They see India as nicely old-fashioned and polite. I would rather have the rudeness of the West and a good job and maybe a car. […] When they are forty they will have cars, homes of their own and gardens where their children can play. I will not.” Depressing stuff. (Peter Holt, In Clive’s Footsteps, cit. em Winchester e Winchester 2004: 175)

Durante os 15 meses de trabalho de campo que efectuei neste país e, designadamente, nesta cidade, tive oportunidade de conhecer vários profissionais de medicina, muitos deles sem experiência de emigração para o “Ocidente”, e em caso algum encontrei um médico ou médica que não tivesse emprego, carro (com motorista), e casa com ou sem jardim (com uma ama ou familiar para acompanhar as crianças a brincar em espaços exteriores apropriados para o efeito). Mas essa, claramente, é apenas a representação de Kolkata que experimentei. No caso de Peter Holt, é óbvio não ser essa a cidade que procurava, mas antes, como ele próprio afirma: “my quest for Clive’s Calcutta” (cit. em Winchester e Winchester 2004: 175). E não duvidando de que aquela conversa tenha tido lugar, não deixa de ser intrigante que esse jovem indiano tenha usado por duas vezes a expressão “black hole” num diálogo informal. Pessoalmente, nunca tive oportunidade de a ouvir por parte de qualquer indiano em Kolkata, a não ser em contexto académico ou em visita turística ao monumento histórico em memória do incidente “Black Hole of Calcutta” ocorrido em Junho de 1756. De facto, o seu uso parece até só adquirir significado quando entendido como artifício literário de referência a esta imagem representacional.

Em 1756, o Nawab Siraj-Ud-Daula, soberano de Bengala e Bihar, sentindo a sua condição de soberania ameaçada pelo abuso dos privilégios de dastak (permissão de comércio livre) por parte da English East India Company, acrescido ao reforço efectuado nas defesas da fortaleza britânica, terá decidido atacar o seu centro de poder: a cidade de Calcutta e, em particular, Fort Williams. “Black Hole of Calcutta” é indexado ao evento histórico de tomada de Fort Williams e aprisionamento de mais de uma centena de europeus que aí foram mantidos numa cela de pequenas dimensões durante alguns dias, o que terá resultado na morte por asfixia da sua maioria. Porém, nas narrativas britânicas, a sua conotação adquire um significado bastante mais amplo: o “Black Hole” representa a “insolência” do ataque de inferiores “nativos” ao centro de poder britânico na Índia, com o “ultrajante” aprisionamento de mais de uma centena de membros da elite “branca” e a morte de um grande número destes. Na sequência destes eventos, a presença britânica ter-se-á decidido pela demonstração do seu poder como força ocupante imperial, reconquistando o forte e a cidade sob o comando do jovem Robert Clive em 1757 e consolidando nesse mesmo ano o seu poder sobre Bengala com a batalha de Palashi (ou Plassey) e Robert Clive como seu governador.

Este episódio histórico terá sido conotado com um significado de tal modo ofensivo e ultrajante para a identidade de “superioridade colonial” britânica e, ao que parece pela narrativa de Holt e de muitos outros, ainda hoje, para a sua identidade de “superioridade ocidental”, que, para além dos inúmeros relatos, apontamentos históricos, polémicas sobre o número de mortos e dimensão da tragédia ocorrida[12] e vários livros dedicados exclusivamente a este tema (pelo menos quatro), ainda, sob o domínio de um único título apenas – Clive of India –, terão sido escritos pelo menos mais quatro livros e Richard Boleslawski terá realizado um filme, em 1935. Não encontrei qualquer evidência, todavia, de que este interesse pelo assunto seja partilhado ao nível da cultura popular pelos residentes em Kolkata; ou seja, parece ser apenas uma narrativa que serve aos propósitos de construção identitária “ocidental” e designadamente “anglo-saxónica”.

 

CONCLUSÃO

Como procurei demonstrar, as representações discursivas apresentadas na contemporaneidade sobre este lugar e outros distantes não são a expressão da estranheza provocada por um primeiro contacto, mas, antes, o resultado do convívio de séculos com limitadas construções discursivas. Recorrendo a Edward Said:

So saturated with meanings, so overdetermined by history, religion, and politics are labels […] that no one today can use them without some attention to the formidable polemical mediations that screen the objects, if they exist at all, that the labels designate. (Said 1985: 93)

As narrativas de viagem não só procedem à validação da “autenticidade” do objecto que reportam, pelo recurso à réplica de enunciados de produtos narrativos similares e de outros que os integram e reiteram, como também, através do uso repetido dos artifícios estilísticos que (em cada momento sócio-histórico) acreditam o testemunho directo, reeditam sucessivamente a aparência do encontro do novo e do extraordinário.

Para o turista, não se trata apenas de contar a história, a história de viagem deve ser contada do modo que se habituou a ler e a ouvir – “sobre o que dizer” e “como dizer”. Deve ser apresentada com abundância de quadros vívidos e de estímulos capazes de envolver o interlocutor; deve sugerir estranheza e distância, reforçando a separação do capital de aventura do viajante face ao dos seus ouvintes / leitores; deve fazer recurso de descrições pontuadas por termos ou expressões locais que reforçam o papel de conhecedor e o testemunho directo do objecto reportado. Para os menos fleumáticos, sempre que possível, deve ainda fazer uso da ironia, revelando o humor e o comprometimento característico do mediador cultural e do contador de histórias:

After nearly one year in South India, Calcutta is a new level of sub-continental insanity – like Dickens’ London with palm trees. A different kind of heat – Indian languages should have as many words for heat as Inuit does for “snow” – this variety, sticky and humid without the direct sun. [Turista norte-americana, um mês de estadia em Kolkata em 2004]

E, notavelmente, também este tom marca os discursos de muitos dos agentes de viagem e guias turísticos nestes lugares:

Kolkata? The best of this city is the people. Except for the working attitude! Canada is a great place. USA is different. Americans are very different from the Europeans. Americans are like machines: a lot of technology; produce a lot of wealthy, but they function like machines! […] Europeans are very conservative. I have never been in Portugal or Spain or France… [Conversa com BCK, reformado da administração da Indian Airlines e proprietário de uma agência de viagens na zona sul da cidade, Kolkata, de Março de 2006]

Pratt (1985) define dois modelos de narrador comuns à maioria das narrativas de viagem. Um, que designa por “manners and customs narrator”, mais impessoal, empenhado no estilo informativo da voz omnisciente e ubíqua que relata o que vai sendo observado. Este tipo de narrador, mais associado ao discurso colonial e à imagem do descobridor (e acrescento, também associado ao estilo narrativo clássico do discurso antropológico), é aquele que mantém a sua posição de superioridade inabalável reprimindo a expressão de qualquer influência por parte dos visitados. O outro, o tipo “sentimental narrator”, é aquele que, usando um estilo mais intimista, expressa em alguns momentos da sua narrativa o seu envolvimento e influência pelos visitados; de acordo com a autora, o tipo de narrador que procura interessar-se pelas pessoas enquanto indivíduos, pelos seus pontos de vista (ver Pratt 1985: 125).

Considerando também a validade da transposição desta subdivisão de modelos-tipo para as histórias contadas pelos turistas ocidentais em Kolkata, devo, contudo, salientar que esta se dilui no que designei, de forma mais alargada, como estilo “reportagem”. Os modelos definidos por Pratt são ambos correntemente utilizados pelos meios de comunicação massificada nos formatos narrativos de informação e, designadamente, por repórteres e jornalistas na construção da narrativa de reportagem. E também como é ilustrado por alguns enunciados apresentados, sendo exemplar o de Peter Holt, o envolvimento manifesto parece servir apenas para suportar a reafirmação de julgamentos, pré-organizados, sobre as identidades dos anfitriões e de si próprios. À semelhança do modo como é usado pelos media nos formatos narrativos informativos, constitui apenas uma outra técnica narrativa de reforço de “autenticidade”.

O papel das viagens e das suas narrativas, particularmente quando levam a lugares distantes, é de tal forma importante em áreas diversas que governos, instituições nacionais e internacionais, organizações de todo o tipo e empresas, desde há muito, despendem somas avultadas no seu patrocínio e no seu controlo. Como sublinhou Percy Adams, no século XVIII, o Almirantado Britânico terá até procedido à confiscação de todos os relatos e diários enquadrados por viagens financiadas pelo governo e tomado a seu cargo a sua edição cuidadosa em versão oficial (P. Adams 1983: 42). Por serem as viagens motivadas por razões diferentes – comerciais, políticas, religiosas, geográficas, científicas, económicas, de lazer, organizacionais ou pessoais –, a um primeiro olhar, as suas narrativas poderiam apresentar-se como híbridas ou fragmentadas por diferentes universos. Mas, na verdade, no essencial, o que dá forma à narrativa de viagem é sempre o encontro com o outro e a reafirmação / recriação da identidade do sujeito que narra.

 

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Notas

[1]O nome Kolkata foi restituído oficialmente à cidade em Janeiro de 2001, oficialmente transcrito assim para o alfabeto latino. Calcutta (termo inglês) ou Calcutá (termo português) resultaram de uma incorrecção de tradução fonética pelos colonizadores, não existindo sequer a possibilidade [continua][continuação] de transcrição fonética do termo inglês na escrita bengali ou bangla (bangla lipi), a língua oficial deste estado de West Bengal. Deste modo, embora a primeira designação e suas derivações fonéticas tenham sido correctas até um passado recente e ainda sejam amplamente utilizadas, entendo como legítima a vindicação bengali de reposição do nome da sua cidade. Kolkata (Kolkaataa, কলকাতা)é o seu nome, e em conformidade assim será designada pela autora. Contudo, os diferentes termos serão alternados ao longo do texto de acordo com o seu uso no contexto material em que aparecem nas diferentes narrativas.

[2]O Lonely Planet foi também identificado por Elsrud (2005) como a fonte mais referenciada entre os turistas “de mochila às costas” na Tailândia e Cambodja; Sorensen (2003) verificou o mesmo em “Eight spells of fieldwork, spanning from two to seven months, [that] have covered East Africa, India, the Middle East, North Africa, and South-East Asia, while Europe was included in numerous brief forays into the backpacker scene”; Huxley (2004) reafirma-o ao trabalhar com turistas “British, with some additional ‘Westerners’ from Canada, Australia, New Zealand, Norway, and America” com experiência de viagens que incluíam estadias superiores a três meses, cobrindo pelo menos dois continentes e vários países; Bhattacharyya (1997) encontrou a mesma referência entre turistas de baixo orçamento na Índia; especificamente em Kolkata, esse predomínio é afirmado por Hutnyk (1996).

[3]Em Bailey-Goldschmidt e Kalfatovic (2004) são apresentados vários exemplos deste tipo de duplicações ao longo do tempo.

[4]Sobre a Grand Tour, ver Towner (1985).

[5]Sobre a historicidade da associação simbólica entre “feminino” e ausência de razão, ver Lloyd: “from the beginnings of philosophical thought, femaleness was symbolically associated [continua]with what reason supposedly left behind – the dark powers of earth goddesses, immersion in unknown forces associated with mysterious female power” (1993: 2).

[6]As representações pictóricas constituem, desde sempre, parte integrante da literatura de viagem. Relembro que aqui se incluem o desenho ilustrativo e, mais tarde, a fotografia, mas também mapas, cartas náuticas, etc. Relativamente aos usos e tipos de representação cartográfica nas narrativas de viagem ocidentais do período colonial, sugiro a leitura do trabalho de Jordana Dym (2004).

[7]Nas palavras de Said: “Orientalism of course refers to several overlapping domains: firstly, the changing historical and cultural relationship between Europe and Asia, a relationship with a 4000 year old history; secondly, the scientific discipline in the West according to which beginning in the early 19th century one specialized in the study of various Oriental cultures and traditions; and, thirdly, the ideological suppositions, images and fantasies about a currently important and politically urgent region of the world called the Orient” (Said 1985: 90). Saliento, ainda, que como sistematizado por Peter Heehs, existem variantes sincrónicas e diacrónicas de estilos / modelos de discurso passíveis de serem enquadradas no orientalismo (para mais, ver Heehs 2003: 172-176).

[8]Notavelmente, estas designações e outras similares, como “africanistas”, “indigenistas”, etc., continuam a resistir nas academias, indiferentes a décadas de movimentos de autocrítica na disciplina antropológica, o que reforça o argumento da reificação das organizações discursivas e dificuldade na sua substituição, em todas as áreas de produção de conhecimento.

[9]Embora tenham sido os britânicos, pela sua posição privilegiada de administradores no terreno, as principais fontes emissoras e difusoras deste modelo imagético, este terá sido sustentado e expandido por todo um corpo de produção de pensadores europeus e norte-americanos (ver, por exemplo, Inden 1986).

[10]Max Mueller foi um dos mais importantes indologistas da época, terá ensinado ingleses e franceses e, à semelhança de muitos dos seus colegas, nunca terá visitado a Índia.

[11]Citações conformes à referência em Bagchi: Herman W. Tull, “F. Max Mueller and A. B. Keith: ‘Twaddle’, the ‘Stupid’ Myth, and the Disease of Indology”, Numen, 38 (1): 31-32.

[12]Ver, por exemplo, Sinha (2005 [1990]); Winchester e Winchester (2004: 29-86).

 

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