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Etnográfica

versão impressa ISSN 0873-6561

Etnográfica v.15 n.3 Lisboa jun. 2011

 

Kelly Silva

(Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília)

 

Obra recenseada: José Mattoso, A Dignidade: Konis Santana e a Resistência Timorense, Lisboa, Temas e Debates, 2005, 323 páginas.

 

Eis-nos diante de uma obra fundadora da história e da sociologia da resistência leste-timorense à ocupação indonésia, desde suas configurações no interior do país. Mediante a recomposição e análise da trajetória de Konis Santana – guerrilheiro responsável pelo comando interno da luta entre, aproximadamente, abril de 1993 e março de 1998, quando veio a falecer – A Dignidade apresenta ao leitor diferentes fases, tensões, disputas, estratégias, valores, atores e grupos que estruturaram as dinâmicas da resistência em seus 24 anos de atuação. Autor consagrado na ­historiografia da Europa Medieval, José Mattoso elabora importantes insigths ao longo da obra, explorando, por exemplo, o fundamento simbólico da guerrilha no conjunto da ­resistência – apesar de sua fragilidade material e numérica – e as bases cosmológicas de suas estratégias de sobrevivência e reprodução. Escrita de maneira clara e elegante, a narrativa toca os sentimentos de quem dela se aproxima. É impossível passar ileso pela narração do “cerco das pernas” e do massacre de Lakluta, por exemplo. Ao mesmo tempo, a abordagem da perspicácia e inteligência das respostas das lideranças da luta às investidas javanesas impõe ao leitor um sentimento de respeito e admiração por sua capacidade de resiliência, tornando ainda mais inteligível o fato de o sofrimento figurar como importante mobilizador político entre as populações do país (cf. Kelly Silva, 2008, “Reciprocity, recognition and suffering: political mobilizers in independent East Timor”, Vibrant, 5 (2): 156-178; Elizabeth G. Traube, 2007, “Unpaid wages: local narratives and the imagination of the nation”, The Asia Pacific Journal of Anthropology, 8 (1): 9-5).

A narrativa é estruturada de modo a situar a trajetória de Konis Santana na resistência e para além dela. A biografia do guerrilheiro é então construída como representando a de todos os seus companheiros de luta entre 1975 e 1998 (p. 287) e tecida a partir de fundos documentais disponibilizados por Ramos Horta, Riak Leman, Tutola e Salabae – todos personagens importantes na resistência –, além de documentos do próprio Konis Santana, entregues ao autor por Xanana Gusmão (p. 20), e narrativas orais produzidas ao longo da pesquisa que deu origem ao livro. Trata-se de uma versão autorizada da história da resistência, construída a partir do protagonismo atribuído a Xanana Gusmão e à guerrilha por ele comandada (pp. 188-189). Nesse contexto, o autor lembra que o acesso aos documentos da resistência é reservado, sendo controlado pelo governo da República Democrática de Timor-Leste (p. 23).

O livro é composto por 12 capítulos, pelos quais o leitor acompanha a conformação da trajetória de Konis e de seus ­companheiros na epopeia da resistência. Ao contextualizar o percurso de Konis ­Santana, Mattoso apresenta ao leitor as diversas fases e estruturas hierárquicas da resistência timorense em suas várias frentes de atuação – a saber: militar, clandestina e diplomática – e as disputas que as constituíam. Dada a natureza da participação de Konis na mesma como membro das Forças Armadas de Libertação Nacional de Timor-Leste (Falintil), a dinâmica e tensões da frente armada têm precedência na análise. Entre outras coisas, expõem-se as estratégias utilizadas pelas lideranças políticas e militares da luta para manterem seu comando dentro de Timor e assegurarem sua unidade pela subordinação, construída em meio a muitas tensões, das frentes diplomática e clandestina. Acompanhamos, assim, a configuração das Falintil em força de guerrilha e o empoderamento da Frente Clandestina, da qual ela se tornou absolutamente dependente.

Dentre as principais contribuições da obra, destaca-se a indicação do fato de as Falintil terem atuado, durante quase toda a sua existência, de maneira mais densa na região leste do país. Pode-se atribuir tal fenômeno a pelo menos dois eventos: 1) a ocupação indonésia ter-se iniciado pela fronteira terrestre de Timor com a ­Indonésia, portanto a oeste da metade da ilha; 2) a presença das forças militares indonésias ter sido mais efetiva também na região oeste do então Timor Timur, tornando os terrenos a leste menos vigiados durante longos períodos e assim mais propícios para a ação da guerrilha. Embora as Falintil tenham, de modo geral, operado de forma bastante frágil ao longo de todo o seu período de existência, Mattoso indica como elas foram particularmente voláteis e débeis na região oeste do país (p. 194). Quando Xanana Gusmão foi preso, em novembro de 1992, as Falintil, na região da fronteira sul, dispunham somente de quinze guerrilheiros e seis armas, e o terreno por onde podiam se deslocar tinha-se reduzido a um terço do que era anteriormente.

Não obstante, apesar de toda fragilidade, Mattoso sugere que a manutenção da guerrilha foi fundamental, na medida em que ela objetivava a resistência que alimentava a promessa de independência para os leste-timorenses que estavam dentro e fora do território. Eis um dos mais brilhantes trechos da obra: “Em suma, se, no plano simbólico, a guerrilha representava o núcleo duro da resistência, no plano prático ela não poderia subsistir sem a luta clandestina, e dificilmente atingiria seus objetivos sem a frente diplomática; era nesta que se travava a batalha decisiva. Mas se a guerrilha acabasse, quem acreditaria na independência? A população das montanhas, verdadeira alma da Resistência, considerava os aswain como os representantes do seu combate. Por isso, a luta pela independência de Timor foi verdadeiramente uma questão de resistência. Os guerrilheiros não podiam ganhar a guerra. Mas tinham que continuar a combater até à morte, porque esse era o sinal de que, enquanto resistissem, não havia solução possível para o caso de Timor. Assim, o símbolo tornou-se fundamento da realidade, e não o contrário” (p. 194).

As bases socioculturais das estratégias de sobrevivência, organização e reprodução das Falintil são também tematizadas pelo autor. Mattoso as apresenta como condicionantes importantes para o apoio popular à guerrilha e demais frentes da resistência (p. 61). Apesar da retórica revolucionária da Fretilin, inspirada em preceitos socialistas e comunistas, o autor indica que a guerrilha respeitava as hierarquias de saber e poder locais, atuando de modo solidário a elas, na maioria dos casos. O apelo a obrigações de parentesco por parte de Konis, em momentos de grande agonia, é tematizado no texto como exemplar quanto à relação de dependência da guerrilha em relação aos preceitos locais de sociabilidade, em consonância com o argumento proposto por McWilliam em “Houses of resistance in East Timor: structuring sociality in the New Nation” (Anthropological Forum, 15 (1): 27-44, 2003) – para este antropólogo, parte do sucesso da resistência timorense à ocupação indonésia no espaço das aldeias se deve às aliança entre “casas”, conectadas por relações de parentesco. Mattoso identifica também a existência de uma diarquia na dinâmica da resistência já em 1976, quando o Comitê Central da Fretilin ­realizou sua Reunião Plenária em Soibada (p. 63). Para cada nível de organização da luta havia uma autoridade militar e outra política.

Mas nem todos os fenômenos culturais característicos das populações do território facilitavam a atuação da guerrilha. Ao narrar o deslocamento de Konis para a região Haksolok, depois chamada de “Região 4”, em 1986, Mattoso relata as dificuldades na construção de relações de solidariedade e apoio junto da população em razão da diversidade linguística existente (p. 125).

O autor arrisca-se ainda em uma narrativa sedutora, ao sugerir que o engajamento de grande parte da população timorense no apoio ou ação direta na resistência foi produzido em razão de os ocupantes terem humilhado os leste-timorenses, indo de encontro ao seu sentido de dignidade e respeito. No entanto, não há fatos históricos sustentando tal interpretação. Por sedutora que seja a sugestão – figurando quase que como uma metanarrativa –, ela esbarra primeiramente na extensão do valor da defesa da dignidade a todos que habitam as fronteiras sociopolíticas do que hoje chamamos de Timor-Leste. Mas como explicar os esforços que foram necessários para conquistar o apoio da população por parte das frentes armada e clandestina e, apesar disso, o apoio à ocupação de muitos leste-timorenses? Talvez a questão seja justamente a validade analítica de categorias como “timorenses” ou “leste-timorenses”. De um ponto de vista antropológico, elas nos dizem muito pouco. Em minhas investidas de pesquisa entre a elite política moderna leste-timorense, a ideia de dignidade aparece como importante mobilizador político. Seu sentido, contudo, é inverso àquele que lhe atribuímos no senso comum ocidental. Ele é muito mais próximo daquilo que nossa episteme qualifica como honra. Em tal universo empírico, dignidade significa ser reconhecido em uma certa posição hierárquica que prescreve deferência e obediência. Àqueles que a detêm cabe um decoro particular, que proíbe a ofensa ou a desconsideração aos outros em público.

Por fim, a obra de Mattoso, edificada com a colaboração de José Sequeira (­Somotxo) e Florbela Marante, é também um convite a explorar mais a fundo a história da resistência – tarefa urgente, dado o desaparecimento progressivo de seus heróis e protagonistas anônimos.

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