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Etnográfica

versão impressa ISSN 0873-6561

Etnográfica vol.18 no.2 Lisboa jun. 2014

 

MEMÓRIA

 

Na encruzilhada portuguesa: a antropologia contemporânea e a sua história

 

At the Portuguese crossroads: contemporary Anthropology and its history

 

 

Susana de Matos ViegasI; João de Pina-CabralII

IInstituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa, Portugal. e-mail: susana.viegas@ics.ulisboa.pt
IISchool of Anthropology and Conservation, University of Kent, Reino Unido. e-mail: J.Pina-Cabral@kent.ac.uk

 

 


RESUMO

No presente artigo, sugerimos uma leitura da formação da antropologia em ­Portugal que assume que a “construção da nação” e a “construção do império” nunca estiveram muito afastadas uma da outra e tenderam sempre a mesclar-se – em certos momentos de forma muito evidente, noutros de forma mais mediada. De facto, numa perspetiva mais ampla, entendemos a antropologia em Portugal como parte do que poderíamos denominar uma “quinta tradição” – isto é, uma história disciplinar abertamente cosmopolita, que se posiciona fora das quatro tradições imperiais da antropologia dos séculos XIX e XX (alemã, francesa, britânica e americana). Neste sentido, o cosmopolitismo não hegemónico dos cientistas sociais portugueses coloca-os numa posição semelhante à dos japoneses, indianos ou brasileiros. Em particular, o lugar de Portugal na encruzilhada das rotas euro-americanas de intercâmbio intelectual e das rotas do Atlântico Sul reafirma-se recorrentemente como marca central da forma como as ciências sociais portuguesas intervêm no debate científico global.

Palavras-chave: história da antropologia, antropologia em Portugal, ciência em Portugal, investigação em antropologia, epistemologia e política em antropologia


ABSTRACT

In this article, we suggest a reading of the formation of Anthropology in Portugal that considers that “nation-building” and “empire-building” were never very far from each other and tended to fade into one another. In fact, from a broader perspective, we see Anthropology in Portugal as part of what might be called a “fifth tradition” – that is, one that places itself beyond the four main imperial traditions of Anthropology (German, French, British and American). In this sense, their non-hegemonic cosmopolitanism places Portuguese social scientists in a position that is akin to that of the Japanese, the Indians or the Brazilians. In particular, Portugal’s place at a crossroads of the Euro-American routes of intellectual exchange and the South Atlantic routes has recently reaffirmed itself as an important mark in the way Portuguese social sciences intervene in the global scientific debate.

Keywords: history of Anthropology, Anthropology in Portugal, science in Portugal, anthropological research, epistemology and politics in Anthropology


 

 

Desde o seu início no fim do século XIX, a antropologia académica, como projeto de estudo da condição humana, teve de integrar dois eixos tensos de polarização: um relacionado com questões de representação política e o outro com preocupações de natureza epistémica. No que concerne ao eixo político, a antropologia teve sempre de contribuir para a fundamentação intelectual das entidades coletivas emergentes na transição do Antigo Regime: povos, nações, etnicidades. A antropologia europeia foi, assim, chamada a dar conta da constituição da “nação” tanto quanto do “império”. Na Europa continental em particular, onde a burguesia nacional detinha a nova hegemonia política, uma elite que se definia como essencialmente cosmopolita necessitava de captar a essência daqueles em cujo nome governava: quer fosse o “povo” quer os “nativos” do império.[1] A possibilidade de uma ordem imperial exigia a capacidade de descrever tanto aqueles que eram governados internamente (o “povo”), quanto os que eram governados externamente (os “indígenas”). A este respeito, Portugal não se diferenciava muito do rumo geral da antropologia neste período. Ao longo do século XIX e do século XX, a antropologia académica, enquanto discurso sobre a natureza da humanidade, viu-se presa entre estes dois polos do eixo político: o nacional e o imperial. Sempre que o império se tornava politicamente menos relevante, o folclore e a etnologia assumiam centralidade; sempre que crescia a relevância política do império, a antropologia dos povos exóticos dominava a disciplina.

Relativamente ao eixo epistémico, a antropologia deparou-se com preocupações mais universalistas. A causalidade divina foi abandonada como meio de determinação analítica a partir de meados do século XIX, sobretudo na sequência do impacto da obra de Darwin. No entanto, os fundamentos científicos sobre os quais a antropologia académica se construiu na segunda metade do século XIX eram solidamente neocartesianos e, mais tarde, neokantianos. A separação entre a “condição corporal” e a “condição mental” do homem foi tida como incontornável. Embora, em última instância, se supusesse que as duas coderivavam, elas eram concebidas como exigindo diferentes metodologias de análise. Desde o início, o campo emergente da antropologia viu-se dividido entre aqueles que davam maior ênfase aos valores, significados e narrativas e os que davam maior destaque a regras, funções e instituições. A antropologia de inspiração romântica, baseada na filologia e na etnologia cultural germânicas, viu-se confrontada com a antropologia positivista de inspiração científica neocomtiana. A relação entre ambas foi sempre tensa, mas as duas nunca deixaram de ser interdependentes, porque ambas se inseriam num projeto científico mais abrangente dominado pelo universalismo implícito no naturalismo darwiniano. Durante quase dois séculos de prática académica, só em casos extremamente raros é que houve antropólogos que não tomaram como ponto assente uma condição humana comum. O universalismo antropológico, portanto, atava um ao outro estes dois projetos de estudo científico da humanidade (que, no século XX, foram o projeto boasiano frente ao projeto durkheimiano). Foi esse universalismo antropológico que impediu que os dois polos de cada um dos eixos (nacional versus imperial, institucional versus narrativo) se desagregassem.

À luz disto (ver figura 1), podemos observar que, no eixo político, a construção do império e a construção da nação (Volkskunde e Völkerkunde, respetivamente) tenderam sempre para a especialização subdisciplinar, sem nunca a terem conseguido realizar por completo; ao passo que, simultaneamente, no eixo epistémico, o esforço positivista para encontrar a determinação do comportamento social dentro de uma perspetiva centrada em leis científicas nunca abandonou completamente o compromisso com as abordagens filológicas e interpretativas. Nos dois últimos séculos, a antropologia enquanto ­empreendimento académico deparou-se regularmente com este dilema; cada antropólogo individual e cada escola local foram desafiados pelo facto de outros antropólogos e outras escolas locais favorecerem combinações profundamente diferenciadas entre estes quatro polos. No entanto, existe uma disposição analítica que veio unir o campo e que foi universalmente aceite durante todo o século XX: o que poderíamos chamar, na continuação do argumento bem conhecido de Adam Kuper (1988), o paradigma primitivista. O primitivismo surgiu como estratégia metodológica para o projeto mais amplo de identificação da condição humana, inserindo-se diretamente no impacto que a biologia darwiniana teve durante a Belle Epoque nas ciências sociais e humanas. Não podemos esquecer que o texto fundacional da etnografia moderna – o artigo que W.H.R. Rivers (2010 [1913]) escreve em 1913 para a Carnegie Foundation sobre “trabalho de campo fora da América” e que é a principal inspiração metodológica de Malinowski entre os Kiriwina – é uma tentativa de adaptar os métodos desenvolvidos pelas ciências da vida às ciências sociais. Como tem sido frequentemente observado, o paradigma primitivista postula que algo que é elementar (isto é, que não pode mais ser reduzido) é necessariamente simples e, dado que se supunha que a sociedade humana evoluíra de uma condição mais simples para uma condição mais sofisticada e civilizada, o que era primitivo seria também anterior. Portanto, ao estudar formas de vida humana que eram mais simples, seria também possível identificar os elementos analíticos da vida humana e, ao mesmo tempo, aceder ao passado. A antropologia podia, assim, alcançar diretamente o passado; podia ultrapassar os limites da coevidade (cf. Fabian 1983) e atingir uma universalidade a-histórica.

 

 

Com efeito, postulando a evolução conjunta da família e da religião, o paradigma primitivista permitia a integração das preocupações com a lei e as instituições, por um lado, e com os valores e as narrativas, por outro (cf. Kuper 1988). No referente ao eixo político, todavia, a questão colocava-se de forma diferente, dependendo das condições políticas e sociais particulares de cada sociedade europeia onde a antropologia estava a ser desenvolvida. Em ­Portugal, tal como em França e Espanha, a integração entre nação e império foi levada a cabo sob a égide da burguesia nacional governante, o que não aconteceu na Grã-Bretanha. A separação radical entre o projeto etnológico (de construção da nação) e o projeto antropológico (de construção do império) que ocorreu no Royal Anthropological Institute no fim dos anos 1930 sob a égide de Radcliffe-Brown, nunca ocorreu na Europa continental, onde os dois projetos antropológicos permaneceram intimamente interligados até ao presente.

No presente artigo, sugerimos uma leitura da formação da antropologia em Portugal que assume que a “construção da nação” e a “construção do império” nunca estiveram muito afastadas uma da outra e tenderam sempre a mesclar-se uma com a outra – em certos momentos de forma muito evidente, noutros de forma mais mediada. De facto, no caso português, da segunda metade do XIX até à década de 1970, possuir um império foi uma condição decisiva para a sobrevivência de um projeto português de nação (cf. Pina-Cabral e Feijó 2002). Neste sentido, distanciamo-nos aqui um pouco das interpretações mais polarizantes inspiradas pelo trabalho de George Stocking Jr. (1982) e que, no caso português, têm sido representadas pela análise de João Leal (2000, 2001, 2006, 2008). Este autor situa a história da antropologia em Portugal sob a força motriz do processo de “construção da nação”:

“De facto, apesar da existência de um Império e da inexistência de um problema nacional no sentido clássico do termo, a antropologia em Portugal constituiu-se e desenvolveu-se entre os anos 1870/80 e os anos 1970, como uma anthropology of nation-building, isto é, como uma antropologia que privilegia não apenas o estudo da tradição camponesa nacional, mas que o faz de acordo com pressupostos em que a problemática da identidade nacional é determinante” (Leal 2001: 646; 2006: 112-113).

Para João Leal, a prevalência desta disposição nacional num país imperial não é paradoxal porque do seu ponto de vista o empreendimento imperial português foi sempre débil: “a inexistência de uma tradição antropológica de empire-building em Portugal deve ser relacionada com a fraqueza do colonialismo português, exercido por um país periférico, ele próprio dependente das grandes potências centrais europeias, particularmente da Inglaterra” (Leal 2001: 646; 2006: 113). Contudo, têm emergido novos dados que sugerem que esta visão necessita de ser revisitada. Mais recentemente expandiram-se e diversificaram-se as perspetivas, em muitos casos a partir de investigações focalizadas em temáticas históricas específicas, nomeadamente a história da ciência (e.g. Bastos 2013). No seu estudo sobre a coleção de crânios humanos da então colónia de Timor, Ricardo Roque argumenta que “em Portugal, a antropologia de construção da nação coexistiu com as antropologias de construção do império” (2010: 148).

Face a este pano de fundo histórico iremos argumentar que as mudanças analíticas das agendas de investigação que temos testemunhado durante os já 40 anos do regime democrático português estão, tal como no passado, associadas à situação de Portugal na ordem global (onde o polo “império” se transforma em relações globais mais complexas mas não menos impactantes). De facto, numa perspetiva mais ampla, entendemos a antropologia em Portugal como parte do que poderíamos denominar uma “quinta tradição” – isto é, uma história disciplinar abertamente cosmopolita, que se posiciona fora das quatro tradições imperiais da antropologia dos séculos XIX e XX (alemã, francesa, britânica e americana). Neste sentido, o cosmopolitismo não hegemónico dos cientistas sociais portugueses coloca-os numa posição semelhante à dos japoneses, indianos ou brasileiros (e.g. Pina-Cabral 2004: 262). Em particular, o lugar de Portugal, na encruzilhada das rotas euro-americanas de intercâmbio intelectual e das rotas do Atlântico Sul, reafirma-se recorrentemente como marca central da forma como as ciências sociais portuguesas intervêm no debate científico global.

 

Na encruzilhada portuguesa

As ciências sociais emergem em Portugal a partir de dois ímpetos que correspondem a diferentes combinações dos eixos de polarização acima referidos: por um lado, na primeira metade do século XIX, um movimento romântico de inspiração nacionalista que acompanha a ocupação inglesa e a posterior guerra civil e, por outro lado, na segunda metade do século, um movimento positivista que procura estabelecer as bases para a ocupação imperial de África. Ambos os ímpetos, há que ter em conta, se conjugam e inspiram mutuamente. Após a abertura da linha de caminho de ferro de Lisboa para Paris (“Sud Express”, em 1887), ocorre entre nós uma renovação académica notável. Surgem, então, novas formulações em quase todas as áreas das ciências sociais e humanas personificadas por um pequeno grupo de jovens investigadores do Porto, tanto de inspiração positivista – a obra de Oliveira Martins (1881) é o marco central – como de inspiração filológica – onde nomes como A.A. Rocha Peixoto, Consiglieri Pedroso e José Leite de Vasconcellos se destacam (cf. Pina-Cabral 1991: 26-27; Leal 2006: 63-81). Se nas décadas de 1870 e 1880 a questão imperial tinha presidido à fundação e afirmação intelectual da Sociedade de Geografia de Lisboa, nas décadas de 1890 e 1900 as questões do império eram menos prementes do que a reformulação do projeto nacional que acompanha a mudança do regime em 1910. Para figuras públicas como Bernardino Machado e Teófilo Braga, que foram ambos presidentes da República, os seus interesses de investigação na antropologia física e na filologia, respetivamente, faziam parte desse envolvimento com a renovação ideológica da nação perante a profunda crise que só terminaria com a afirmação da ditadura nos finais dos anos 1920.

Considerando a evolução subsequente da antropologia social e cultural em Portugal, os trabalhos de Leite de Vasconcellos, Adolfo Coelho e Rocha Peixoto merecem uma atenção especial (cf. Pina-Cabral 1991: 24-26; Leal 2006: 114). Etnologia Portuguesa, a grande obra inacabada de Leite de Vasconcellos (1933-1985), mapeia o país, permanecendo uma inspiração fundamental até aos anos 1970. A sua visão da Etnologia como ciência, associada às suas preocupações museológicas, viria a ter repercussões consideráveis na segunda metade do século. A mente teórica cuja influência se revelou mais durável, contudo, foi Rocha Peixoto (1866-1909), cujo pensamento sobre o comunitarismo agropastoril lançaria um debate em torno das noções da “casa portuguesa” e de “comunidade” que durou mais de um século.[2] Esta conceção das formas de povoamento rural e sua metaforização em termos de nação e de império continuaria a ecoar até aos dias de hoje.[3] Foi Rocha Peixoto que identificou os locais clássicos de ­primitividade que sustentaram a conceção burguesa do caráter nacional e seus direitos de autoctonia ao longo do século XX. A sua morte prematura foi, sem dúvida, um rude golpe para as emergentes ciências sociais portuguesas.

Dos anos 1930 à década de 1970, vários antropólogos portugueses e estrangeiros prestigiados seguiriam os passos de Rocha Peixoto, escolhendo como locais de trabalho de campo contextos que ele identificara como exemplares primários da primitividade portuguesa. Vilarinho da Furna, estudado anteriormente no mesmo século por Tude de Souza, tornar-se-ia o primeiro estudo de Jorge Dias (1981 [1948]). Mais tarde ainda, em 1971, seria escolhido por António Campos como local de um documentário antropológico bem conhecido. Este filme, feito num momento em que a aldeia estava literalmente a desaparecer sob uma barragem, continua a ter hoje um impacto considerável.[4] Por sua vez, Rio de Onor foi o local dos famosos ensaios do Abade do Baçal (Alves 2000 [1908-1948]) e seria o segundo local de trabalho de campo de Dias (1981 [1953]). Mais tarde, esta aldeia e lugares vizinhos foram revisitados por vários colegas como Brian Juan O’Neill (2007 [1987]) e Joaquim Pais de Brito (1996), entre outros. De facto, mesmo quando os autores não estavam plenamente conscientes do ímpeto anterior, não podemos deixar de observar que a monografia marcante de José Cutileiro (1971) sobre a desigualdade no Alentejo ou o estudo de Sally Cole (1991) da comunidade piscatória de Vila do Conde seguem os passos dos trabalhos inspirados por Rocha Peixoto, tais como o estudo do proletariado rural do Alentejo de Silva Picão (1983 [1903]) ou o estudo de Santos Graça (1992) sobre o povo pescador, respetivamente.

No fim da II Guerra Mundial, a ditadura de Salazar conseguira criar as condições mínimas para um relançamento das instituições de investigação. Isto manifestou-se tanto no discurso etnológico sobre Portugal quanto no investimento nas instituições coloniais e respetiva ideologia. De facto, as principais figuras no discurso antropológico da altura – incluindo o antropobiólogo A. Mendes Corrêa – passaram por uma transição de preocupações nacionalistas (ver o seu famoso estudo racialista sobre Nuno Álvares Pereira, o “Santo Condestável” do século XIV) para questões imperiais (Corrêa 1924, 1949). No início dos anos 1950, Mendes Corrêa mudou-se para Lisboa para integrar a recém-reestabelecida escola de administração colonial – na altura renomeada ISCSPU (cf. Pina-Cabral 1991: 30-33; R. Roque 2010: 163). Daí em diante, Mendes Corrêa trabalhou explicitamente para construir uma escola de antropologia colonial que, como afirma Ricardo Roque (2010: 164), “deveria contribuir para a construção do império. Dito de outra forma, os seus objetos de conhecimento eram os “nativos” habitantes das colónias sob governo português”.[5]

Portanto, em meados do século, a etnologia ruralista foi sendo cada vez mais posta à margem pelo projeto de construção do império. As exposições coloniais de 1934 no Porto e 1940 em Lisboa estabeleceram um enquadramento ideológico importante, que teria reverberações até ao fim da ditadura nos anos 1970 (cf. Thomaz 2002: 205-287; Porto 2009: 92-102). Esta tradição museológica viria a ter um impacto considerável em Portugal e nas novas cidades das colónias africanas durante os anos de 1950: museus como o Museu de História Natural de Lourenço Marques ou o Museu Diamang do Dundo (Porto 2009) foram os novos loci para a prática antropológica, onde a antropologia física e a antropologia social e cultural estavam em constante correlação.

No fim dos anos 1940 e 1950, os intelectuais modernistas que estiveram ao lado de Salazar nos esforços de modernizar Portugal e de estabelecer as novas bases para as colónias africanas começaram a distanciar-se cada vez mais do regime. Por exemplo, um dos atores centrais na organização das exposições coloniais, Henrique Galvão, tornou-se um dos mais duros inimigos das políticas coloniais de Salazar (cf. Pina-Cabral 2001; Thomaz 2002: 159-165). O seu pensamento sobre o regime colonial constitui um excelente exemplo do estabelecimento de continuidades de primitividade entre o ruralismo português e o indigenismo colonial. Como afirma Omar Ribeiro Thomaz, “Henrique ­Galvão deixa claro que sua opção ‘africana’ não o distancia da ‘lusitanidade’; antes, transforma-a numa experiência mais densa e profunda, pois a conceção de nação passa obrigatoriamente pela experiência africana de Portugal” (Thomaz 2002: 159). Esta continuidade entre o mundo “tradicional” português e o dos nativos do império é expressa por Galvão tal como por muitos antropólogos do período, quer os que eram a favor, quer os que eram contra o regime ditatorial:[6] em meados dos anos 1950, “para Galvão – assim como para muitos dos opositores do salazarismo –, africanos e orientais das colônias portuguesas são vítimas não do colonialismo, mas do fascismo” (Thomaz 2002: 165). Na mesma época, porém, para a extrema-direita no poder, representada nas ciências sociais por Mendes Corrêa e os seus colegas no ISCSPU, o projeto colonial e o projeto ditatorial eram crescentemente concebidos como constituindo um molde único.

Nos meados do século XX (anos 50 e 60), o regime de Salazar encaminhava-se cada vez mais para uma postura ideológica perversa na qual o povo do “Ultramar português” era tratado como essencialmente português. ­Conjugavam-se assim as duas formas de primitividade numa interpretação fantasmagórica em que as duas reivindicações de autoctonia (rural e indígena) eram apresentadas como coconstitutivas da nação imperial transcontinental (cf. Thomaz 2002: 165). Durante este período foram subsidiadas várias “expedições científicas” aos “territórios ultramarinos” envolvendo intelectuais notáveis como Ruy Cinatti no caso de Timor (um poeta e antropólogo treinado em Oxford), Jorge Dias no caso de Moçambique,[7] e ainda muitos mais hoje largamente esquecidos. Gilberto Freyre, discípulo brasileiro de Franz Boas, revelou-se um dos principais inspiradores deste esforço ideológico. Durante o período colonial tardio (1961-1974), a sua tentativa de fornecer um enquadramento conceptual para a sociedade brasileira como “democracia racial” veio a constituir o pilar ideológico indispensável para o sitiado regime de Salazar (Bastos 2001). A noção de lusotropicalismo operou uma mediação entre ser português e ser “tropical” cujos ecos continuariam a reverberar até aos dias de hoje (cf. Freyre 1940; Castelo 1999).

Há algo de paradoxal no facto de o surto de crescimento económico dos anos 60 ter acompanhado um período de crescente isolamento internacional. À época, e ao contrário do que se passava no nosso país, as nações europeias moviam-se no sentido da democracia e da descolonização. Em 1961, o isolamento ideológico de Portugal exigia uma resposta decisiva, particularmente à luz da ocupação indiana de Goa e Diu nesse ano e do lançamento das guerras de guerrilha na Guiné, Angola e Moçambique (1961/1964). A escola colonial (ISCSPU) acabada de reformar era o lugar onde se estabeleceria este esforço para reconstruir as fundações intelectuais da portugalidade (tanto internamente quanto além-mar).

Na antropologia, no entanto, quem incorporou a renovação do pensamento antropológico português em meados do século foi Jorge Dias, um antropólogo formado na Alemanha (Munique e Berlim) durante a guerra (cf. Oliveira 1974: 14; Pina-Cabral 1991: 12; Leal 2006: 149-166). Inicialmente muito próximo de Mendes Corrêa, Dias veio a distanciar-se no período do pós-Guerra do pensamento de inspiração fascista do seu mentor, nomeadamente devido ao impacto da antropologia americana da época no seu pensamento. Ele fundou o Museu de Etnologia, cuja coleção central se baseia nos seus anteriores interesses ruralistas portugueses, mas nela integrando coleções valiosas de todos os cantos do império português (África, Índia e Extremo Oriente). Tal como os discípulos diretos de Leite de Vasconcellos (entre eles Viegas Guerreiro), durante o período colonial tardio, os antropólogos portugueses endereçaram predominantemente a sua atenção para as questões imperiais utilizando a antropologia de Freyre como uma espécie de molde ideológico que permitia mediar nação e império.

A revolução democrática de 1974 foi um momento decisivo. Dias morrera precocemente pouco antes (1973) e o seu Museu entrou num longo período de hibernação. No início, a velha escola colonial foi temporariamente tomada pelos estudantes de esquerda, entre os quais vários antropólogos, mas logo de seguida regressaram ao controle da escola os académicos anteriormente associados ao regime salazarista.[8] Ao longo dos anos 1980, a escola foi dirigida cientificamente por um antropólogo africanista que tinha tido um papel de destaque no aparelho de segurança colonial nos últimos anos da ditadura (José Júlio Gonçalves).

No início dos anos 1980, as universidades portuguesas reestruturaram-se e adotaram vigorosamente estilos mais internacionais de prática académica. Esta foi uma década de intensa construção institucional. Dois departamentos de Antropologia foram totalmente renovados, um deles fundado (no ISCTE, Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa) por um grupo de investigadores formados no estrangeiro (predominantemente França e Reino Unido). No fim da década, os novos cursos de licenciatura em Antropologia estavam completamente consolidados e fora fundada a Associação Portuguesa de Antropologia (cf. Pina-Cabral 1989). Na década pós-revolucionária (1976-1986), o trabalho de investigação dos antropólogos respondeu ao desafio central de libertar as conceções de portugalidade das peias ideológicas legadas pela ditadura. A revolução democrática fora levada a cabo em nome do “povo” mas, no fim dos anos 1970, tornava-se cada vez mais evidente que essa categoria era profundamente ambivalente. Nesse momento, os antropólogos deparavam-se com duas aparentes contradições: (a) uma conceção recebida da portugalidade que era essencialmente ruralista, num país que almejava ser moderno, industrial e democrático, e (b) ser português estava profundamente associado a uma ideologia católica e imperialista lusotropicalista que era percebida pelas novas gerações como um beco sem saída e se apresentava como antagónica ao futuro desejado por Portugal de ser parte de uma União Europeia.

Para a geração que refundou a antropologia portuguesa nos anos 80, a única inspiração antropológica disponível à época era a monografia de José Cutileiro sobre o conflito de classes no Alentejo, que fora publicada em inglês em 1971 e rompera com uma tradição secular de leituras primitivistas da ruralidade portuguesa. A leitura anticomunitária de Cutileiro era, todavia, estranhamente ambígua (cf. Fernandes 2006) – como posteriormente a sua carreira veio a demonstrar – mas, naquele momento, forneceu um enquadramento importante para o debate sobre o significado da ruralidade e da portugalidade, que pode ser também identificado no trabalho das primeiras monografias escritas após a revolução: Pina-Cabral (1986) e Brian O’Neill (2007 [1987]). Os anos seguintes foram um momento de labuta intensa, que se manifestou no ­trabalho de colegas cujo trabalho de campo foi realizado nos anos 1980 e início dos anos 1990 (e.g. Cristiana Bastos, João Leal, Jorge Freitas Branco, José Manuel Sobral, Miguel Vale de Almeida, Paula Godinho). No início dos anos 90, porém, começou a emergir uma nova abordagem à etnografia não europeia no trabalho de investigadores como Rosa Perez (Gujarati, Índia), Amélia ­Frazão Moreira e Clara Carvalho (Guiné-Bissau), Maria Cardeira da Silva (Marrocos), incluindo ambos os autores do presente ensaio. A partir de meados dos anos 1990 a produção dos antropólogos portugueses é tão vasta e diferenciada que não conseguiríamos incluir aqui uma amostra representativa e justa.[9]

Já na primeira década do século XXI assistimos a uma tendência ténue para a retoma dos velhos temas lusotropicalistas enquanto inquietações mediadas por uma antropologia histórica que se debruça prioritariamente sobre os processos ideológicos de constituição do colonialismo português. Este surto é porventura uma resposta a um sentimento crescente de desilusão com o projeto nacional dos anos 80 baseado no ideário europeu federalista. Face ao esmorecer do eixo identitário europeu que esse ideário enfatizava, o eixo identitário transatlântico emerge como crescentemente relevante.

 

Ensinando, publicando e interagindo

Nesta secção apresentaremos um panorama do contexto institucional atual da antropologia em Portugal em termos de ensino, investigação, atividades de publicação e participação no domínio público, que mostra uma expansão crescente da antropologia em Portugal (cf. Viegas 2009). De facto, as décadas de 1990 e 2000 foram um período de crescimento intenso no ensino universitário, respondendo a uma necessidade, percebida por parte do público e das autoridades políticas, de ultrapassar um legado de atraso. Isto torna-se claro ao comparar os números de estudantes nos graus de licenciatura e mestrado. Em 1993, havia apenas 17.700 estudantes de licenciatura em Portugal, enquanto, em 2003, o número quase duplicara (30.012); havia apenas 5287 estudantes de mestrado e de novo o número duplicou nesse período (11.106) (cf. Dima 2005: 29, 30). A antropologia acompanhou inteiramente estas tendências. Enquanto no início dos anos 1990 não havia cursos de mestrado em antropologia e entravam cerca de 60 estudantes por ano nos cursos de licenciatura, estimamos que em 2011 tenham entrado cerca de 180 estudantes nos cursos de licenciatura em Antropologia, e 70 nos cursos de mestrado. Fundada em 1989, a Associação Portuguesa de Antropologia (APA) tem vindo a acompanhar os altos e baixos da disciplina. A APA constituiu-se como uma voz para a disciplina sempre que houve matérias de interesse comum e desde 2005 é membro fundador do World Council of Anthropological Associations.[10] Presentemente tem cerca de 300 membros e, na década passada, organizou três congressos. Os antropólogos tiveram um papel significativo e visível no processo de crescimento das ciências sociais portuguesas que ocorreu durante os anos 1990 e 2000, e participaram ativamente no processo de constituição do sistema nacional de investigação científica que se desenvolveu após a entrada de Portugal na Comunidade Europeia, liderado pela figura carismática de José Mariano Gago.[11]

O crescimento do ensino e da antropologia em Portugal concentrou-se, infelizmente, em Lisboa: o Departamento de Antropologia da UNL, o Departamento de Antropologia no ISCTE-IUL e o Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP, Universidade Técnica de Lisboa) ministram cursos de licenciatura, mestrado e doutoramento. O Instituto de Ciências Sociais (ICS, ­Universidade de Lisboa) – um instituto de investigação e pós-graduação – também teve um curso de mestrado e prossegue atualmente com um curso de ­doutoramento em Antropologia Social e Cultural. O ensino pós-graduado reflete as áreas de maior interesse temático na disciplina: antropologia visual – e.g. “Culturas Visuais”; “Cultura Material e Consumo”, “Turismo e Património”, “Cultura Visual Digital” –, questões de relevância política contemporânea – e.g. “Direitos Humanos e Movimentos Sociais” ou “Migrações” –, e questões de relevância regional – e.g. “Estudos Islâmicos”, “Estudos Africanos”, “Estudos Indianos” e “Estudos Brasileiros”.

Além destes departamentos, há também cursos de licenciatura e mestrado em Antropologia na Universidade de Coimbra.[12] A antropologia também está a ser ensinada na Universidade do Minho e na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, e há antropólogos a trabalhar em várias universidades e institutos politécnicos. Em 2010, o pessoal académico permanente em antropologia em Portugal totalizava cerca de 90 antropólogos. Além destes, existe um grande grupo de jovens doutorados com contratos temporários a trabalhar em centros de investigação financiados pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT).

Os centros de investigação especializados em antropologia desenvolveram-se em articulação estreita com o ensino universitário, tendo crescido exponencialmente nos últimos 20 anos em paralelo com o crescimento de outras áreas científicas. De facto, em comparação com outras ciências sociais, a antropologia portuguesa deu sinais de uma energia singular e de um propósito coletivo tanto no que respeita a organização quanto a produtividade académica.[13] Um exemplo disso foi a consolidação em 2008 de um grupo de pequenos centros de investigação no Centro em Rede de Investigação em Antropologia (CRIA) – uma rede nacional interinstitucional de investigação. Esta foi uma resposta ao apelo de racionalização de meios feito pela agência governamental de financiamento (FCT).

Atualmente o CRIA integra aproximadamente 70 investigadores doutorados com projetos em áreas como movimentos sociais e direitos humanos, migração e transnacionalismo, património e turismo, cultura material e antropologia visual, e conservação da natureza, e tem conexões com os programas de pós-graduação no ISCTE-IUL e UNL.[14] No ICS há vários antropólogos da área sociocultural. No momento presente, o CRIA e o ICS representam o grosso da investigação realizada em antropologia social e cultural em Portugal: 80% do financiamento atribuído à antropologia pela agência governamental de financiamento de investigação foi para o CRIA e o ICS.[15] Desde 1995, estes centros de investigação foram avaliados regularmente por comités internacionais indicados pela FCT, recebendo classificações de Muito Bom e Excelente, respetivamente.

Além disso, existem unidades de investigação mais pequenas. Entre elas, observamos: (i) o Instituto de Investigação Científica Tropical (IICT), um centro de investigação onde a antropologia é parte de um Programa Interdisciplinar de Desenvolvimento Global direcionado para países da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP); (ii) o Centro de Estudos Africanos (CEA) no ISCTE-IUL, com ênfase especial em países africanos que falam português; (iii) o CIAS (Centro de Investigação em Antropologia e Saúde), que ultimamente se virou para a genética e a paleontologia. Estes centros de investigação também realizam investigação colaborativa relacionada com temas de interesse público. O CRIA tem parcerias com organizações governamentais e não governamentais como o Alto Comissariado para a Imigração e Diálogo Intercultural (ACIDI), o Grupo para Imigração e Saúde (GIS), o Conselho Português para os Refugiados (CPR), o UniTwin-UNESCO (University Twinning and Networking Programme), o Museu do Dundo (Angola), o Quai Brainly e o Musée Ethnologique de Salagon (França). Por seu turno, o ICS desenvolveu parcerias semelhantes, por exemplo com o ACIDI, a agência federal brasileira para os assuntos indígenas (Funai), a polícia urbana (PSP) e outras agências.

Os museus etnológicos tiveram um papel importante no passado abrindo a antropologia a um público mais vasto. O grupo de investigação de Jorge Dias no Museu Nacional de Etnologia (Ernesto Veiga de Oliveira, Fernando Galhano e Benjamim Enes Pereira) deixou uma herança museológica significativa, sendo o museu dirigido nos últimos anos por Joaquim Pais de Brito. Algumas exposições sobre o fim da ruralidade, máscaras africanas, o fado ou as culturas ameríndias brasileiras tiveram impacto público. Do mesmo modo, o Museu Antropológico da Universidade de Coimbra, constituído em torno das coleções brasileiras do século XVIII e das coleções africanas da universidade, teve alguma vida durante o curto período em que existiu aí uma licenciatura em Antropologia Social e Cultural. Infelizmente, no momento atual, por várias razões, ambas as instituições estão pouco ativas. Benjamim Enes Pereira e vários colegas mais novos inspirados por ele investiram em museus e coleções locais, dando origem a alguns espaços museológicos interessantes, dos quais o Museu da Aldeia da Luz é talvez o que teve um maior impacto público. Finalmente, a antropologia tem sido visível para o público mais vasto através da produção de filmes documentários. A partir dos anos 1990, um grupo de documentaristas antropólogos, inicialmente sob a inspiração do Centro Granada da Universidade de Manchester, produziu uma obra considerável.[16]

A publicação antropológica em Portugal também cresceu. No CRIA, a revista Etnográfica (fundada em 1997) atingiu um bom nível de reconhecimento internacional. A Análise Social, uma revista interdisciplinar fundada em 1963 e associada ao ICS, publica na área das ciências sociais, incluindo a antropologia social e cultural. Outras revistas tiveram um papel relevante em décadas passadas, como a Ethnologia ou a Antropologia Portuguesa. Nos anos 1980 e 1990, várias editoras publicaram em antropologia, por exemplo: a Fundação Calouste Gulbenkian e as Edições 70 com coleções de manuais traduzidos; as Publicações Dom Quixote, com a sua coleção Portugal de Perto; e a Celta Editora, com um conjunto de monografias de relevo. Atualmente as editoras Livros Horizonte, Colibri, Difel e Almedina também publicam na nossa área. Mais recentemente, a Imprensa de Ciências Sociais, a única imprensa universitária ativa em Portugal nas ciências sociais, tem sido muito fecunda em livros de antropologia.

Com efeito, esperamos que este breve panorama tenha demonstrado que a antropologia portuguesa continua a existir na encruzilhada entre o polo ­temático extraeuropeu e o polo temático nacional. De facto, desde 1976, a construção do império deixou de ser uma questão relevante e, no entanto, as agendas de ensino e de investigação continuaram a orientar-se para trás e para diante entre os dois polos (cf. Pina-Cabral e Feijó 2002).

 

Travessias da antropologia

A partir de meados dos anos 1990, as ciências sociais e as humanidades portuguesas foram integradas nos programas de promoção da ciência subsidiados pela União Europeia. As primeiras bolsas de doutoramento e de investigação verdadeiramente competitivas começaram a ser atribuídas em 1995 como ­resposta aos compromissos políticos do governo socialista. Os projetos atribuídos passaram nesse momento a ser avaliados competitivamente por comités que integravam peritos internacionais. Tal teve um impacto extraordinário nos padrões de investigação a nível nacional e levou à constituição de uma nova geração de cientistas (entre estes, antropólogos que, pela primeira vez, tiveram recursos para realizar investigação em todos os cantos do mundo).

Por conseguinte, no período entre 1995 e 2009, assistimos a um crescimento contínuo e uma consolidação em todas as ciências sociais e humanas com respeito à internacionalização, à qualidade da investigação e à sua diversidade. A figura 2 apresenta a evolução do número de bolsas de doutoramento atribuídas pela agência governamental para a investigação (FCT) entre 1994 e 2010. Neste período, o número de bolsas de doutoramento em curso aumentou 20 vezes (de 466 para 8636) e as bolsas de pós-doutoramento, que eram quase inexistentes em 1994 (apenas 23 bolsas), passaram a 2044 (estas bolsas têm duração de três anos, renováveis por mais três).

 

 

De facto, o que estes números mostram é que, durante cerca de 15 anos, o país recuperou rapidamente do contexto de enorme devastação em que fora deixado pela ditadura (1926-1974) e, posteriormente, pela crise financeira do início dos anos 1980. O problema até 1994 foi tanto o da inexistência de bolsas de doutoramento e de investigação, quanto o do pequeno número de candidatos a doutores, uma vez que a primeira geração de doutorados depois da Revolução de 1974 foi contratada para a docência imediatamente após a obtenção da sua licenciatura. De facto, na maior parte das áreas, tal como na antropologia, foi apenas em meados de 1990 que se criou a maioria dos programas de mestrado. Além disso, houve uma mudança considerável no que respeita a obtenção de graus internacionais. Não temos dados discriminados para a antropologia, mas temos razões para acreditar que a nossa disciplina seguiu a tendência geral no país. De 2000 em diante, existe uma diminuição notável do número de pessoas a realizar os seus doutoramentos fora do país (de 43% em 1995 para 20% em 2010). Ao contrário, existe um aumento correspondente no número de “doutoramentos mistos”, isto é, resultando de colaboração internacional (8% em 1995 para 27% em 2010).[17] No início dos anos 2000, muitos dos nossos programas de doutoramento eram reconhecidos internacionalmente e começaram a receber os seus primeiros estudantes estrangeiros. Isto aplica-se de novo tanto à antropologia como a muitas das outras ciências sociais.

Na década de 2000 a 2010 começaram a desenvolver-se novos programas de pós-graduação e os académicos portugueses formados no estrangeiro podiam agora levar a cabo a sua investigação no seu país de origem. A competição por fundos de investigação aumentou em conformidade: enquanto em 2000 foram submetidos à FCT 1961 projetos em todas as áreas científicas, em 2008 o número era três vezes maior (5697). Nas ciências sociais houve um aumento equivalente: (cerca de 200 em 2000 e cerca de 700 em 2008). No que concerne a bolsas aprovadas na área subdisciplinar de antropologia, os números mostram que, de 2000 a 2009, houve um grande aumento do financiamento disponível: de uma média de 250 mil euros por ano no início dos anos 2000 para uma média de 700 mil euros por ano no fim dessa década.[18] Este aumento correspondeu, no entanto, a uma enorme crescimento da ­competição. Enquanto 39% dos projetos de investigação receberam financiamento em 2000, em 2008 essa percentagem decresceu para 25% e em 2010 estava em 10%.[19]

De forma a poder responder às possibilidades de financiamento abertas pela FCT, a antropologia teve de se afirmar como uma disciplina distinta dentro do campo mais amplo das ciências sociais. Face a outras disciplinas, a ­antropologia procurou afirmar a sua singularidade, ao mesmo tempo que, internamente, teve de preservar a sua pluralidade. Ao contrário de muitos outros países europeus, conseguimos em Portugal manter o título subdisciplinar de “antropologia” na atribuição de bolsas de investigação e na nomeação de comités de avaliação. Tal não foi sempre tarefa fácil, tanto por razões endógenas quanto por razões exógenas. Por um lado, ao longo destas duas décadas, a relação com as tendências mais direcionadas para dar resposta às políticas públicas (tendência hegemónica na sociologia) obrigou os antropólogos a lutar sistematicamente pelo valor epistemológico da investigação etnográfica quando confrontada com inquéritos quantitativos. Por outro lado, internamente, a relação com a “antropologia biológica” revelou-se por vezes complexa, em particular porque essa denominação é frequentemente pouco clara. Por exemplo, de 2000 a 2009, 33% do financiamento da FCT no título disciplinar “antropologia” foi atribuído a projetos em genética ou paleontologia. No entanto, o único centro de investigação que reivindica a antropologia biológica (o CIAS em Coimbra) apenas recebeu 12% dessas verbas, sendo a maioria do financiamento atribuída a geneticistas em centros prestigiados de investigação médica.[20]

Apesar de tais ambiguidades, em Portugal, a insistência na própria especificidade disciplinar da antropologia para o propósito de financiamento foi extremamente importante, tanto na preservação da pluralidade metodológica das boas práticas de investigação etnográfica, quanto na preservação da abertura interdisciplinar que sempre caracterizou a nossa disciplina quando confrontada com outras ciências sociais, tais como a sociologia ou a psicologia social. Ser reconhecida enquanto área subdisciplinar foi essencial para manter um investimento sustentado na disciplina ao longo dos anos. Finalmente, no que respeita a evolução dos temas de investigação, pode observar-se uma tendência geral durante este período. O foco sobre a sociedade rural portuguesa que dominava nos anos 80 foi abandonado em favor, primeiro, dos estudos de espaços urbanos e problemas de modernidade em Portugal (55% das bolsas atribuídas); segundo, de contextos de campo que incluem a vasta área do mundo que fala português (33%); e, terceiro, um interesse sobre investigação de arquivo, museologia e antropologia histórica (12%).[21] Nesse aspeto, a internacionalização do debate antropológico é, obviamente, uma questão relevante. A análise de Peter Fry, em 2004, sobre a internacionalização da antropologia brasileira corresponde em geral ao que se passou entre nós. O autor mostra que existe uma correlação entre os países que os académicos brasileiros mais visitam e a nacionalidade das revistas e livros onde eles publicam no estrangeiro (Fry 2004: 239). Além disso, observa que a França e os EUA permaneceram muito importantes, mas que se verifica uma “crescente importância de Portugal e dos países da América Latina no padrão de visitações” (Fry 2004: 232). Na década que passou entre a publicação daquele artigo e a atualidade, houve um aumento significativo das relações entre os académicos que escrevem em português, particularmente nas ciências sociais e nas humanidades. Por exemplo, tanto no IV Congresso da Associação Portuguesa de Antropologia, em 2009, como no V Congresso em 2013, entre os 500 participantes, cerca de metade eram estrangeiros, entre os quais cerca de 80% brasileiros. Dos restantes, a maioria eram colegas que trabalham sobre contextos onde se fala português. A antropologia em português explorou visivelmente estas possibilidades na última década, o que se torna evidente nas revistas disciplinares, tanto em Portugal (especialmente a Etnográfica e a Análise Social), quanto no Brasil, onde revistas como a Mana, a Horizontes Antropológicos, a Novos Estudos CEBRAP, a Revista Brasileira de Ciências Sociais, começaram a publicar regularmente contribuições de colegas portugueses. Mais ainda, as editoras brasileiras tiveram um grande impacto em Portugal, particularmente desde meados dos anos 1990, quando as duas comunidades académicas desenvolveram relações mais intensas.

De facto, a nível global, a partilha de uma linguagem científica cria as condições para o surgimento de áreas intermédias de negociação (cf. Pina-Cabral 2007: 234). Isto significa que os investigadores que escrevem e leem português têm vindo a desenvolver entendimentos mútuos sobre conceitos e autores de referência. Tal tendência não é contrária à participação no debate científico mais global em inglês, muito pelo contrário. Contudo, ela fortalece a possibilidade de os colegas lusófonos afirmarem as suas visões e problemáticas próprias face às tendências globais vigentes no mundo anglo-americano. Um outro aspeto da internacionalização da ciência que ocorreu neste período foi o início do acolhimento de investigadores pós-doutorados estrangeiros nos centros de investigação portugueses. Em particular como resultado do programa intitulado “Compromisso com a Ciência”, investigadores de vários países europeus foram contratados, em 2008 e em 2009, por cinco anos. Esses contratos e bolsas de pós-doutoramento permitiram que o CRIA tivesse 12 antropólogos estrangeiros nessa situação entre os seus membros integrados em 2010, o que também aconteceu noutros centros de investigação, como o ICS. A crise económica crescente nos últimos anos, está claro, veio pôr cobro a este processo.

 

Concluindo em crise

Neste artigo traçámos a forma como a antropologia evoluiu em Portugal no século XX, com particular destaque para as três últimas décadas. Argumentámos que as tensões originais que marcaram o nosso projeto disciplinar desde o seu início em meados do século XIX permaneceram vivas ao longo do século XX. Hoje, porém, estamos perante novos desafios que correspondem a um mundo ideológico onde o paradigma primitivista já não domina; e onde a oposição entre nação e império é tão inoperante quanto a oposição entre significado subjetivo e comportamento objetivo.

Cremos ter mostrado que os antropólogos portugueses, na sua condição periférica, foram muito bem-sucedidos na abordagem aos desafios da ciência contemporânea. Conseguiram criar uma voz distinta, não apenas marcada pela natureza global do uso da língua portuguesa, mas também pelas suas múltiplas redes na Europa e no mundo atlântico. Juntamente com os antropólogos brasileiros e a crescente comunidade de cientistas sociais em África, foi produzido um corpo de trabalho e um cânone distintivo que deixará marcas, sem dúvida, nos tempos que virão. No entanto, enquanto escrevemos estas linhas, a prossecução deste esforço parece incerta. Os próximos anos serão certamente sombrios. A julgar pela história portuguesa do século XX, podemos estar a testemunhar outro paralisante e longo período de recessão económica que traz consigo resultados trágicos no que concerne o avanço científico.

Na Europa, os valores ecuménicos que emergiram no rescaldo da II Guerra Mundial e que conduziram ao projeto de integração política europeia parecem ter sucumbido face à atávica desconfiança interna. A presente crise financeira global e as mudanças abruptas causadas pela crise económica no projeto europeu deixaram com um futuro incerto toda uma nova geração de europeus, entre os quais uma geração de jovens cientistas portugueses. Tal significa que, presentemente, tememos que o trabalho notável realizado nas décadas passadas possa acabar por ter uma sequela atribulada, tal como aconteceu quando a I Guerra Mundial derrotou uma geração inteira de valiosos intelectuais portugueses; ou como quando a ditadura apoiada pelas forças imperiais a operar durante a Guerra Fria conseguiu sufocar mais uma geração de investigadores e intelectuais. Muitos são os antropólogos portugueses que nos últimos anos tiveram de procurar no exterior os meios para continuar as suas carreiras – entre estes, alguns dos melhores da sua geração. Da mesma forma, os jovens antropólogos europeus e brasileiros que tinham encontrado em Portugal um ambiente criativo para a sua investigação, contribuindo decisivamente para o dinamismo do projeto antropológico local durante a década de 2000, viram-se, na sua maioria, obrigados a partir uma vez mais. Não obstante, temos esperanças de que a perspetiva cosmopolita de tais pessoas, assim como a firmeza dos que continuam acolhidos nas instituições nacionais, assegurem um futuro para o valioso legado antropológico constituído em Portugal nas décadas de 1990 e 2000.

 

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[1]       Diferindo, desta forma, da antropologia norte-americana: “Os estudos de nativos americanos […] tomaram forma […] em 1879. Mas o estudo antropológico dos africanos americanos permaneceria de mínimo interesse, pelo menos para os académicos brancos, por mais meio século. Ainda assim, uma diferença profunda entre a história da nossa disciplina na Europa, por um lado, e no hemisfério Ocidental, por outro, é inerente ao simples facto de que os nossos sujeitos de estudo, os nossos povos ‘primitivos’, eram nossos vizinhos – os nossos maltratados e frequentemente perseguidos, vizinhos. Nesta instância, como noutras, a antropologia que fazemos e fizemos é condicionada pela história e compleição social da sociedade onde vivemos” (Mintz 1996: 290; ver também Pina-Cabral 1991: 19-22; Herzfeld 1986; Leal 2000).

[2]       Ver Peixoto (1967-1975, vol. I: 330-347, 1990).

[3]       Os ensaios de Rocha Peixoto sobre ofertas votivas (e.g. Pina Cabral et al. 1997), sobre a “casa  portuguesa” e os palheiros do litoral (e.g. Oliveira, Galhano e Pereira 1988), etc., constituirão pontos de referência para muitos dos debates da segunda metade do século XX na antropologia, arquitetura e arqueologia portuguesas. Um dos casos mais vivos é o impacto da noção de “casa portuguesa tradicional” na escola portuguesa de arquitetura dos tempos de Raul Lino nos anos 1930, na geração dos anos 1960 e até aos nossos dias (Távora e Roseta 2004 [1961]). As formas populares de arquitetura continuam a repetir involuntariamente as características distintivas identificadas por Rocha Peixoto – ver Pais de Brito (1982) sobre o concurso “A aldeia mais portuguesa de Portugal”.

[4]       Ver Catarina Alves Costa, Falamos de António Campos, filme documentário, Lisboa, 2009.

[5]       No que respeita a Mendes Corrêa e à sua relação com o esforço colonial, ver também R. Roque (2003, 2006).

[6]       No que respeita a Henrique Galvão, ver Pina-Cabral (2001) e Thomaz (2002: 157-190). Como observaram vários historiadores culturais, desenvolveu-se nesta época um movimento intelectual associado ao apoio da ditadura de Salazar que enfatizava a importância do folclore para o prosseguimento da identidade nacional (cf. Branco 1994, 1999; Melo 2001).

[7]       Para investigações recentes sobre o caso de Timor, ver: A.C. Roque, Marques e Roque (2011); Hicks (2011); Viegas (2011).

[8]       Hoje denominada ISCSP, a escola abandonou a referência ao ultramar aquando da Revolução.

[9]       Infelizmente, devido aos limites do presente artigo, fomos forçados a limitar ao mínimo as referências depois deste período.

[10]     Ver <www.apantropologia.org>.

[11]     Ver a entrevista a José Mariano Gago publicada na Análise Social, XLVI (200): 388-413, 2011.

[12]     Em 1995, foi criado um Departamento de Antropologia em Coimbra, mas foi extinto em 2010, altura em que os seus membros (12 paleontólogos e biólogos e um grupo drasticamente reduzido a cinco antropólogos da área social e cultural) foram integrados no Departamento de Ciências da Vida. O atual grau de licenciatura em Antropologia é direcionado para o estudo da “variabilidade biológica, social e cultural dos grupos humanos” e a paleontologia.

[13]     Ver a avaliação feita por António Barreto em entrevista publicada na Análise Social, XLVI (200): 414-429, 2011.

[14]     Para mais informação sobre o CRIA, consultar <www.cria.org.pt>.

[15]     Análise de dados de: Bolsas de investigação aprovadas pela FCT na área subdisciplinar Antropologia de 2000 a 2009 – cf. <http://www.fct.pt/apoios/projectos/consulta/projectos.phtml.pt> (última consulta em maio de 2014).

[16]     Note-se o papel da Apordoc – Associação pelo Documentário – neste desenvolvimento.

[17]     Cf. Bolsas de doutoramento concedidas pela FCT: <http://www.fct.pt/estatisticas/bolsas> (última consulta em maio de 2014).

[18]     Análise de dados de: Bolsas de investigação aprovadas pela FCT na área subdisciplinar de Antropologia de 2000 a 2009, <http://www.fct.pt/apoios/projectos/consulta/projectos.phtml> (última consulta em maio de 2014).

[19]     Cf. <http://www.fct.pt/apoios/projectos/estatisticas/index.phtml.pt#c> (última consulta em maio de 2014).

[20]     Centro de Investigação em Biopatologia e Oncobiologia, Universidade do Porto; Instituto de Patologia e Imunologia Molecular, Ipatimup – Universidade do Porto; Instituto Nacional de Medicina Legal.

[21]     Análise feita por nós a partir do tratamento de dados de projetos de investigação aprovados pela FCT no campo subdisciplinar Antropologia de 2000 a 2009, <http://www.fct.pt/apoios/projectos/consulta/projectos.phtml.pt> (última consulta em maio de 2014).

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