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Etnográfica

versão impressa ISSN 0873-6561

Etnográfica vol.19 no.3 Lisboa out. 2015

 

ARTIGOS

 

A arte urbana entre ambientes: “dobras” entre a cidade “material” e o ciberespaço

 

The urban art between environments: “folds” between the “material” town and cyberspace

 

 

Glória DiógenesI

IPrograma de Pós-Graduação em Sociologia, Universidade Federal do Ceará (UFC), Brasil. E-mail: gloriadiogenes@gmail.com

 

 


RESUMO

Este texto tem como objetivo a partilha de uma experiência etnográfica no campo da street art desenvolvida em Lisboa. Em uma investigação realizada anteriormente, observei que o ciberespaço pode proporcionar às inscrições urbanas consideradas ilegais um lugar de visibilidade e de não efemeridade. O ciberespaço, como aludiu um dos interlocutores de pesquisa, muitas vezes eterniza o que a cidade apaga. Decidi implementar um itinerário marcado por intervenções de artistas urbanos que se moviam entre uma zona de Lisboa e ambiências das redes sociais digitais. Por meio do trabalho de observação realizado com o artista denominado Dalaiama Street Art, efetuo os processos de desdobramento entre as instâncias material e digital. Finalizo o texto apontando que a natureza ubíqua das esferas que perpassam a Internet acaba por produzir argúcias, inversões e o mútuo reconhecimento entre atores que povoam narrativas, envolvendo quem pesquisa e quem é pesquisado.

Palavras-chave: antropologia urbana, etnografia, arte urbana, ciberespaço, dobra


ABSTRACT

This text aims to share an ethnographic experience in the field of street art developed in Lisbon. In a previous investigation I had observed that cyberspace can provide visibility and non-ephemerality to urban inscriptions considered illegal. Cyberspace, as one of the interlocutors of the research alluded, many times makes eternal what the city erases. I decided to implement an itinerary marked by the interventions of urban artists who move between an area of Lisbon and digital social network environments. Upon observing the work of artist Dalaiama Street Art, I experience the processes of unfolding of material and digital instances. And I end by pointing out that the ubiquitous nature of the various spheres of the Internet end up producing sagacity, inversions and the mutual recognition between the actors who are part of narratives, involving those who research and those who are researched.

Keywords: Urban Anthropology, Ethnography, urban art, cyberspace, fold


 

 

O dentro e o fora da elástica arte das ruas: trancelins do terreno[1]

Durante quase todo o ano de 2013, lancei-me na empreitada de efetuar um trajeto etnográfico em meio às intervenções de artistas urbanos e graffiters entre espaços da cidade e à ambiência das redes sociais digitais.[2] Ao invés de encetar o caminho mediado por um mapa prévio no que tange à percepção da totalidade da paisagem, experimentei viandar, observar e, nessa deslocação, engatar aproximações, encontros, conexões e familiaridades.[3]

Defini uma zona de itinerância em Lisboa relativa a uma área específica de seu perímetro histórico,[4] a qual é marcada por frequentes ­produção de graffiti [5] e inscrição de tags.[6] Em 2008, após uma vasta campanha empreendida para a “reabilitação do Bairro Alto”, foi criada, através da Câmara Municipal, a Galeria de Arte Urbana (GAU), cuja inauguração foi marcada pela instalação de uma série de painéis na Calçada da Glória (Câmara 2014). A referida zona passa a ser alvo, mais especificamente a partir de 2009, de múltiplas intervenções na esfera da street art. Recentemente, Lisboa foi apontada como sendo a sexta cidade do mundo para se apreciar a arte urbana,[7] e isso salta aos olhos dos que circulam por suas ruas, particularmente no que diz respeito à visão indicial [8] de antropólogos urbanos. Seguia movida pela ideia de que, mesmo cruzando terrenos descontínuos (físico e digital) que ultrapassavam fronteiras por meio da deslocação incessante dos artistas nos espaços da cidade e da web, essa “rede ampla continua a ser local em todos os pontos” (Latour 1994: 114). O que figura nas páginas de jornais, revistas e nos espaços online são imagens que localizam a arte disseminada na paisagem lisboeta.

O ato de percorrer quase que cotidianamente as ruas possibilitou-me ir identificando uma curiosa tela pictórica em suas reiteradas mutações. Os desenhos e letras que pareciam anunciar-se eram sucessivamente ilustrados e apagados das paredes. O intento de situar, por meio da assinatura de seus autores, obras e inserções no ciberespaço, em alguns momentos parecia me colocar diante de uma cilada. O que via em um dia já no outro “sumia” dos suportes materiais da cidade e, por vezes, permanecia com cores nítidas nas páginas e sites de imagens organizados e divulgados por seus autores.[9] Percebi que havia, entre as “cenas virtuais” [10] e as cenas urbanas da street art, singulares planos intermitentes.

Segui, então, o ritmo de uma espécie de ziguezague etnográfico, como se o campo incidisse entre saltos e platôs.[11] Traçava aproximações, identificando “perfis”, partilhas, pontos de cruzamento de interesses e ações de artistas; montava, a partir daí, um mapa sui generis que unificava eixos dos domínios online e off-line. Esse batismo entre campos [12] me revelou o indispensável esforço de inserir-me em uma paisagem que também estava em constante deslocamento. Isso porque, após quase dois meses de observação, registros e percepção de conexões entre colagens, pinturas, graffiti e estêncis [13] na esfera da cidade e no ambiente das redes sociais digitais,[14] pude perceber uma expansão do “terreno” e a dificuldade que teria em realizar uma pesquisa com a extensão desejada nos nove meses que me restavam em Lisboa.

Até então, era desconhecida entre os writers [15] e praticamente não contava com o apoio de mediadores locais.[16] Percebi assim a necessidade de suscitar novas estratégias, tanto para dar visibilidade ao trabalho de campo e acelerar o seu ritmo como para catalisar a participação e a confluência de outros potenciais narradores ainda distantes do escopo de investigação. Decidi, portanto, mesmo sem nenhuma habilidade de criar ferramentas digitais, ensaiar a concepção de uma espécie de blog que funcionaria como diário de campo. Imaginei que, em se tratando de uma pesquisa in between, o blog tanto propiciaria a partilha célere de anotações quanto poderia atuar, também, como “dobra” etnográfica, anexando planos distintos e comumente fragmentados [17] de observação.[18] É assim que, em 27 de fevereiro de 2013, efetuo uma primeira publicação no AntropologiZZZando: [19]

“Estarei divulgando aqui, diários e imagens de uma pesquisa antropológica. Durante todo o ano de 2013, realizarei uma etnografia sobre o graffiti legal e ilegal em Lisboa. Interessa-me identificar o impacto da arte e dos escritos urbanos no ciberespaço. Criei esse blog para compartilhar ‘achados’ de pesquisa e conectar-me com todos os interessados em discutir a temática”.

Durante quase nove meses, pelo menos uma vez por semana fazia apontamentos no AntropologiZZZando. Ao contrário do que mencionou James Clifford [20] (2011: 38), realizei a menor distância possível entre os encontros efetuados em campo e a construção dos textos etnográficos. Era como se as cenas e conversas travadas naqueles territórios permanecessem flutuando no registro das narrativas. Dilui-se o intervalo entre o campo e o texto etnográfico, sendo ele mesmo um rascunho em constante construção. Em muitas ocasiões, logo após ter efetuado a publicação e já tendo enviado o link para o ator central de observação, recebia alguma mensagem dele, fosse acrescentando, fosse corrigindo ou solicitando que se refizesse determinada parte da sua fala ou de legendas das fotos. Alguns estudos antropológicos na web apontam nuances que vêm ampliar os contornos das práticas etnográficas. Pereira (2012: 21) realizou uma pesquisa sobre a presença nativa de indígenas no ciberespaço, por meio de narrativas anunciadas por eles mesmos, o que a autora denomina de autoetnografias. Elas mobilizam, em tempo real, conexões do trabalho realizado pelo pesquisador com autodescrições de si ensejadas pelos narradores da pesquisa. De forma similar, o blog potencializou uma espécie de etnografia-em-ato, tal qual relato registrado no diário e publicado no dia 27 de setembro, já evidenciando o esboço de um certo “balanço” dessa experiência: [21]

“A iniciativa de comunicar alguns dos achados de campo, leituras e reflexões por meio de um blog me possibilitou aproximações com potenciais atores do campo, estreitou laços com pesquisadores, intensificou convites para palestras, publicações e promoveu trocas profícuas na área de estudo. Se por um lado o blog atuou como paisagem potencializadora do tempo, abrandou distâncias, multiplicou encontros e trocas, por outro diminuiu o intervalo que se estabelece entre pesquisar, ler, escrever, redigir e publicar. Experimentei mover-me em um campo simultâneo, como se ele condensasse, na mesma paisagem temporal, etapas usualmente sucessivas de uma experiência etnográfica: momento de familiarização com e incursões exploratórias, inserção no campo, anotações, redação de textos, publicação, compartilhamentos; tudo acoplado a leituras e reflexões. Pesquisava, escrevia, lia e, na mesma sincronia, estabelecia debates e diálogos presenciais e por meio da internet acerca dos percursos da pesquisa. O blog criou uma espécie de vizinhança etnográfica, produziu concomitâncias entre lugar, tempo e sujeitos. Precisei desenvolver uma certa astúcia de me mover entre limites, de transitar na paisagem material da cidade de Lisboa e cruzar fluxos, num tempo contíguo, das extensões dessa cidade no ambiente digital. É quase óbvio, assim, que o blog esteja envolto num diálogo de risco, tal qual o trecho de um dos diários publicados no dia 11 de abril:
Nesse meio tempo, li um instigante artigo de Appadurai denominado ‘Diálogo, risco e convivialidade’. Logo no início do texto, o autor fala o que naquele momento pareceu fazer um grande sentido na esfera de experiência mobilizada pelo AntropologiZZZando: ‘Ninguém pode envolver-se num diálogo sem correr sérios riscos. Ele é sempre uma transação arriscada’ (2009: 23). Compreendi que um blog-diário-de-campo, ao contrário do tempo que um antropólogo precisa para burilar, interpretar, repensar, estilizar sua narrativa, flui como um discurso em ato. O pesquisador se coloca não apenas diante do seu narrador, como coparticipante oculto do texto, podendo, nessa feita, logo depois dos seus escritos, ter que readequá-lo, corrigi-lo, ampliá-lo e até mesmo refazê-lo. E não apenas. Tanto os narradores como os intercessores que o visitam, pesquisadores sobre a temática, atores da cena street art, ou apenas aqueles que comentam e povoam o blog, passam a tomar parte ativa do ato da escrita. No inquietante texto de Appadurai, ele ressalta que o primeiro risco (do diálogo) é o do mal-entendido, inerente a toda comunicação humana (2009: 23). Creio que um blog dessa natureza, tendo em vista o caráter quase sincrônico desse feitio de comunicação, ameniza o acenado primeiro risco. São essas algumas das incitações que dão vigor a uma experiência etnográfica entre paisagens, entre sujeitos, entre signos de um esforço da tradução. Além da riqueza do percurso etnográfico, que se torna para o antropólogo um acontecimento, uma vivência, também pessoal, o blog me propiciou outras experimentações”.

Curiosamente, as estatísticas das publicações sinalizadas por meio de uma ferramenta do Blogspot [22] foram confirmando a ampliação do número de visitantes de tal modo que, muitas vezes, ao se realizar uma pesquisa no ­Google [23] sobre alguns dos street artists atores centrais do blog, costuma surgir, em ­primeiro plano, a indicação do relato de campo compartilhado no site. Isso se deve ao fato de eles estabelecerem referências ao AntropologiZZZando em suas páginas no Facebook. Por meio dessa difusão, passei a ser estimulada a participar de exposições, mostras de arte e, por vezes, recebi mensagens diretas de alguns writers expressando a vontade de inserção de sua trajetória artística nas páginas do blog.

De modo geral, como balanço dessa experiência, posso dizer que a criação do diário de campo virtual ocasionou um redesenho do campo nos seguintes aspectos:

– A ampliação e o desdobramento da paisagem etnográfica.

– A publicação “em tempo real” do processo de investigação, da expressão das artes e narrativas dos atores para além do perímetro delimitado de observação.

– A legitimação e construção de pactos de confiança entre o pesquisador, os sujeitos que pontuaram a cena etnográfica e outros potenciais narradores.

– A transparência dos processos de pesquisa de campo (o que um pesquisador faz com os “dados” de pesquisa) para além dos livros e revistas científicas, o que permitiu, entre os narradores, o desempenho de um papel ativo na construção da experiência etnográfica.

– O destaque da atuação dos atores urbanos no blog promoveu um inusitado olhar dos próprios artistas em relação à sua obra. Após a publicação, muitos deles me enviavam mensagens expressando o contentamento em “ler” sobre imagens e desenhos tantas vezes imersos e mudos nas amplificadas caixas sonoras urbanas. Alguns textos ali presentes, como no caso de Tamara Alves,[24] foram utilizados como apresentação de exposições e trechos de referência às obras.

O blog acabou atuando como o usual mediador local das investigações de campo, qual seja, a instância que “costura” encontros, antecipa uma certa “ficha técnica” dos eixos da observação, assim como de algum modo abona a ética e a idoneidade do pesquisador. Por meio do AntropologiZZZando, segui, como analogia, um jogo de trancelim [25] – ora interligando fios elásticos, ora prendendo-os, ora soltando linhas de conexões entre ambientes online e off-line. Creio que os laços de confiança, a empatia, a percepção da natureza da pesquisa que realizava em Lisboa ocorreram de forma mais veloz e com evidências mais nítidas por meio do acesso dos artistas ao blog e à minha página do Facebook. Seguramente eu também era pesquisada enquanto pesquisava.

Vale ressaltar que, embora tenha executado, ao longo de um ano de bolsa de pós-doutorado, uma série de encontros, acompanhados de diários de campo, realização de entrevistas (Tamara Alves, Pantônio, Tinta Crua, Fidel Évora, Hazul Luzah do Porto, Nómen, Slap, MaisMenos), participação em pinturas de muro, exposições de writers de Lisboa, preferi, para fins deste artigo, destacar apenas o encontro com Dalaiama Street Art. Isso porque, no âmbito destes escritos, trago duas experiências que considero exemplares do ponto de vista metodológico: a criação do blog diário de campo e a comunicação encetada, de forma mais sistemática e frequente, com o destacado artista por meio de uma ferramenta do Facebook: as mensagens diretas por inbox.[26] Pode ser esse um curioso contributo para pesquisas efetuadas no ciberespaço: a realização de uma etnografia entre ambiências materiais e digitais, tomando elementos visuais de produção das artes de rua e discursos efetuados pelo artista Dalaiama acessados diretamente nos percursos urbanos e por meio de mensagens diretas na inbox.

Vale ressaltar que o recurso contínuo a conversas e trocas efetuadas por meio do Facebook permitiu-me, quase concomitantemente, compartilhar o conjunto de anotações no AntropologiZZZando, o diário de campo digital mencionado. Certamente, esse lugar antropológico, a inbox, de natureza eminentemente intersubjetiva, deixa emergir na cena de pesquisa o fator reflexividade. Assim como Machado Pais (2007: 42), creio que “dois espelhos, ao refletirem-se um no outro, acabam por se refletir cada um em si mesmo. Por esta razão não penso que a individualização apague os reflexos da socialização”. Esse diálogo de “individualidades” efetuado por inbox traduz um dos mais significativos locus de socialização da contemporaneidade. Sarah Pink (2006: 35) [27] também destaca a reflexividade como sendo um dos indicativos centrais nas pesquisas que atuam tendo como referente a produção de imagens. Assim como ventila a autora, tomo a posição assumida por parte dos etnógrafos que atuam no campo de uma antropologia visual, no que concerne a argumentar ser a reflexividade integrada e parte efetiva dos processos de pesquisa.

Os diálogos executados por meio de uma ferramenta digital, no artifício sucessivo de troca de impressões sobre imagens, seja do autor-artista em relevo, seja de Lisboa como um todo, produziu uma espécie de “antropologia compartilhada” (Lessa 2014), tendo como terreno o ciberespaço. Muito embora não esteja este artigo voltado para o universo das práticas juvenis, destaco também a significativa pesquisa efetuada por José Alberto Simões, Entre a Rua e a Internet, em que o autor afirma um dos paradoxos desencadeados pela utilização da tecnologia: “por um lado, as redes digitais tornam possível a desterritorialização dos processos e das relações sociais, por outro lado, estas não podem ser separadas dos contextos sociais que as enformam, como, na grande maioria dos casos, têm por referência acontecimentos, assuntos e interesses ‘reais’” (Simões 2010: 354). Foi nessa “dobra” entre o lugar desterritorializado da inbox do Facebook e os encontros e identificação das produções concretas de Dalaiama pontilhadas em várias partes de Lisboa que se construíram as vias e relatos dessa experiência etnográfica.

 

O face to face: ligações presenciais e digitais com Dalaiama Street Art

Mesmo antes de aportar em Lisboa em 2013, em visitas anteriores já havia atinado para a impertinência [28] e a constância das intervenções de Dalaiama Street Art em sítios históricos da cidade. Desde as primeiras publicações do blog, não apenas passei a seguir a página do artista no Facebook e a visitar seu blog, como também a compartilhar com ele as publicações semanais do ­AntropologiZZZando.[29] No dia 3 de maio de 2013, envio ao artista o primeiro convite para um contato direto, em inbox, por meio do Facebook:

“Olá, sou uma antropóloga brasileira e estou fazendo uma pesquisa aqui por um ano sobre Arte Urbana. Tenho conversado com alguns artistas de Lisboa. Além de ver teu trabalho nas ruas, Eduardo, o Tinta Crua, me falou que seria imprescindível contatar você. Criei um blog para registro dessa experiência. Gostaria muito de poder conversar. Obviamente, respeitarei o sigilo sobre tua identificação. O endereço do blog é http://antropologizzzando.blogspot.pt/”.

Em seguida, no dia 7 de maio, recebo de Dalaiama uma resposta animadora – a sinalização do encontro que veio a concretizar-se de forma presencial apenas em meados de outubro de 2013, após um manancial de outras mensagens e conversas. O diário de campo relativo a essa primeira abordagem expressa o grau de aproximação que foi sendo efetuado ao longo do referido período, por meio de mensagens diretas (inbox) no Facebook:

“Com o passar do tempo, mesmo ainda sem o encontro frente a frente, trocamos inúmeras e extensas mensagens diretas. Em muitas delas permutamos escritos acerca da arte urbana, do contexto da crise político-econômica em Lisboa e sobre vivências dos encontros e desencontros que a vida leva-e-traz. Durante um dilatado espaço de tempo, comunicamo-nos enquanto Dalaiama e Glória. Até que aproximadamente seis meses depois, ele decide professar seu nome próprio. Após tomar conhecimento de quem seria Dalaiama, durante dois meses, a comunicação, então entre ‘nomes’, suscitou maior proximidade nas mensagens diretas efetuadas no Facebook” [diário de campo, novembro de 2013].

 

 

Esse relato ratifica as considerações que tenho delineado acerca dos liames entre recintos de sociabilidades presenciais e não presenciais. Por vezes, essa experiência de pesquisa, que combina aproximações de natureza física às da paisagem do ciberespaço, me fez arrazoar acerca do leque de significações daquilo que nós antropólogos cognominamos de “encontro face a face”. Nas vivências com Dalaiama, presumo que as mensagens diretas no Facebook (e que, por uma dimensão ética, serão aqui publicadas apenas parcialmente) se reverteram num engate de confiança e proximidade tão vivaz quanto aquele efetuado nas imediações do Rato,[30] já bem depois da primeira abordagem online, na noite do dia 14 de outubro de 2013.

Penso que um antropólogo – e isso não faz parte e, possivelmente, quase nunca irá incluir-se nos relatos etnográficos – é levado não apenas a apreender técnicas de abordagem, mas também a estar receptivo aos afetos que passam a emergir nos recintos que povoam o edifício sempre aberto da pesquisa. Essa circunstância me evoca uma pertinente discussão de Gilberto Velho acerca do texto de DaMatta (1978) sobre “O ofício do etnólogo, ou como ter ‘Anthropological Blues’”, indagando o que realmente representa a propalada distância entre o “familiar” e o “exótico”.

Advertia Gilberto Velho (1987) que as longitudes do campo de pesquisa não seguem critérios geográficos nem sociais, e enfatizava que nesses processos é vital para o pesquisador estabelecer elos e artimanhas de comunicação. Encontrava-me no gume de dois desafios de natureza sutil: (a) compreender como emana a comunicação entre domínios da cidade e o âmbito do ciberespaço e (b) identificar quais ideações fomentariam essa esfera singular de estratégia comunicativa. As trocas com Dalaiama, estabelecidas por quase seis meses, de forma indireta, por meio de mensagens no Facebook, foram instaurando pórticos de confiança, recintos “sem paredes” que revestem a intimidade entre “desconhecidos”.[31]

Em 25 de setembro de 2013, antes do nosso primeiro encontro presencial, percorri todos os rastros possíveis da obra de Dalaiama no extensivo espaço da Internet. Escrevi um texto prévio no blog, o qual enviei ao artista no mesmo dia da postagem, com o seguinte título: “O que pensam as artes de Dalaiama Street Art no ciberespaço, ou o que eu penso do que elas pensam?” Considerava que me arriscava nessa empreitada. E se as linhas escritas a um tipo de distância tão próxima refletissem, na leitura do artista, um visível desconhecimento meu de si e de sua obra? Fiquei a visitar ininterruptamente minha caixa de mensagens diretas do Facebook. E eis que no mesmo dia tenho o retorno das linhas enviadas ao artista.

“Minha querida Amiga! Fiquei comovido Glória, mesmo muito! Nem sei bem como expressar. Para compreenderes, acho que, neste momento, tu precisavas de ser eu…
A primeira coisa que me ocorreu é que aquilo que tu escreveste estava tão bem estruturado, tão bem coordenado entre o cérebro, o coração e os dedos do teclado, que o texto alcançou uma elevação que eu não merecia.
Tu podias ter escrito ali observações negativas, desnudando pontos fracos do trabalho. Também poderia esperar críticas. Por exemplo, há várias paredes que eu devia ter pintado diferente. Outras, é verdade, ficaram bonitinhas, consegui um resultado próximo do desejado. Mas há sempre tantos imponderáveis, não é Glória? Nas tintas como na vida, às vezes achamos que controlamos tudo e isso até nos pode dar uma sensação de conforto, mas depois somos confrontados com percepções, sensações e compreensões novas… Na vida, como na street art: uma parede mais alta do que parecera, uma superfície mais lisa do que pensáramos, uma lata mais vazia, com uma tinta mais clara do que estaríamos à espera. E em meio a tantas surpresas, tudo está bem, tudo segue o seu curso normal, é a vida em estado líquido, fluindo, derretendo, escorrendo. Sabes Glória, às vezes eu saio pra pintar com um número limitado de cores de propósito. Tinha vontade de levar mais, mas não levo. A intenção é, precisamente, aceitar as condições do acaso. Muitas vezes nem escolho com grande critério, quero descobrir uma parede inventada, com um desafio que acontece naquele momento exato, vendo-me conduzido pelo rio da existência. Queria um determinado azul, que pena se não há, não faz mal, o que há também é bonito, tudo tem magia. Mas nisso, Glória, nessa confiança no inesperado do instante presente, em que tanto me lanço, nisso há incertezas projetuais, improvisações que bem podem desviar o rumo da qualidade. Daí eu ter mesmo a ideia de que há imperfeições nos trabalhos do Dalaiama. Irias, ou irás ainda, eventualmente falar nelas. Depois o interessante nisto tudo é que cada um tem o seu ­próprio e único olhar, a sua irrepetível noção do que é bom, bonito, acertado… Ninguém pode substituir ninguém, no juízo que se possa fazer das coisas do mundo, nem da qualidade estética (ou da falta dela) dessas mesmas coisas”.[32]

Até que ponto o deambular da observação não segue vias da mútua contaminação de olhares, do contato interligado de percepções estéticas, de rearranjos em mão dupla das artes de fazer e pensar? Na introdução do livro Etnografia de Rua, Rocha e Eckert (2013: 15) ressaltam que “uma etnografia percorre o sensível, se perguntando sobre os gostos, as paixões, os dramas que impregnam a vida nas ruas e configuram a cidade […]”. Eu tateava uma cidade para além dos suportes-paredes, de suas argamassas materiais. Conduzia-me por meio dos engates subjetivos que iam se formando na confluência entre meu olhar e o dos narradores de pesquisa.[33] Com o blog, movimentando-me entre fios e balizas, assim como Dalaiama, eu também pretendia “descobrir uma parede inventada, com um desafio que acontece naquele momento exato, vendo-me conduzido pelo rio da existência”. O campo autoriza não apenas o encontro com narradores, o registro de imagens, oralidades, gestualidades: ele conduz o antropólogo a compor, igualmente, originais percepções de si, admitindo, assim, também avistar “paredes inventadas”. O risco acompanha essas trilhas em ziguezague. Provavelmente por ter estampado no AntropologiZZZando uma foto de Tinta Crua, um dos artistas narradores da pesquisa, quase perdi a possibilidade do encontro com Dalaiama, tal qual ele me noticiou no nosso primeiro contato presencial:

“Lá no Facebook, notei que estavas presente. Mas fiquei sempre com uma ideia positiva e é engraçado que… há muita gente que tem curiosidade, por razões diferentes, por coisas diferentes, as pessoas têm alguns contatos que a gente sente logo que não vale a pena, que não há sintonia, as pessoas não vão falar a mesma língua, está a me entender?… Mas esse negócio, eu ainda lembro que li a tua comunicação, estava no Brasil até, eu lembro disso e tive a ideia que, uma coisa que me, sinceramente sei que me, fez o caranguejo ir um bocadinho ir para dentro da casca foi quando eu vi, quando tu falou do Tinta Crua, do Eduardo, uma fotografia dele, meu Deus, eu fiquei super assustado com isso assim”.

Quase o “caranguejo volta à casca” e a “amizade” ensejada, passo a passo, correu o risco de prosseguir apenas através de contato direto no Facebook, sem que o artista se colocasse diante de mim, olho a olho. Na noite de 14 de outubro de 2013, encontrei Dalaiama pela primeira vez. Após um diálogo sem hora para acabar e um tempo de anotações e gravações, chego em casa ávida para deixar no blog algo que pudesse traduzir uma interlocução vasta, rica em trocas e informações tanto no que tange ao contexto de street art em Lisboa, à discussão da estética da arte, como a elementos que compõem a trajetória e a prática artística de Dalaiama. Foi sempre muito penoso para mim entender e transcrever, com fidedignidade, a fala dos portugueses. Este foi o diário mais árduo de ser traduzido em letras. A aproximação da finalização da estada em Lisboa e o cuidado em bem transladar o aporte pictórico e político da obra do artista me fez demorar mais que o previsto na confecção deste registro. No dia 7 de novembro, publico “Face to face: Dalaiama e eu”. Envio o link para o artista no dia 7 de novembro e, em seguida, no dia 8, recebo o tão aguardado retorno:

“Desculpa-me ser tão tarde, já é madrugada alta, escrevo com bastante sono espero não pedalar sobre as palavras erradas.
Essencialmente, o que te quero transmitir é o sentimento de gratidão e comoção diante dos escritos do teu blog, do modo (na minha opinião, correto) como absorveste os contextos da street art em Portugal. E, especialmente, pelas palavras gentis dirigidas ao trabalho e à pessoa do Dalaiama. Obrigado.
Achei particularmente engraçada a tua descrição sobre o modo como nos fomos aproximando (risos) Sem me dar conta, acho que foi mesmo aquilo que aconteceu.
É verdade que sempre fui desconfiado, quase paranoico, por causa da ilegalidade das intervenções do Dalaiama. Desculpa ter sido sempre tão amedrontado, sempre evitei entrevistas, também receei as abordagens superficiais do tema da street art, os pontos de vista gelatinosos no preconceito, seguindo a maré da moda que alimenta o consumismo por parte de públicos sedentos de novidades vazias. Não sou importante, por solicitação é que cheguei a dar umas poucas entrevistas, mas nunca presencialmente. Eu tive sorte em que, num belo dia, tenha-te ocorrido este tema para a tua pesquisa.
Na minha perspectiva, é exata a tua leitura acerca do fenómeno das intervenções no espaço público português. Na verdade Glória, nós acabamos por ter interpretações muito aproximadas do que acontece nas paredes destas cidades. Como eu não tenho a tua cultura, deves imaginar a minha satisfação pessoal, uma certa vaidade até, porque o que sinto é que, estando eu imerso na cegueira inconsciente do dia a dia, afinal até consigo coincidir as minhas opiniões de leigo com as de uma antropóloga de pensamento consolidado (risos)”.[34]

Após esse encontro, veio o temor que nutria em, de algum modo, colidir com a necessidade de sigilo que sempre evidenciou Dalaiama em suas falas; de não conseguir de forma eficaz, tendo em vista minha recente aproximação às artes plásticas, concretizar um bom trabalho de tradução.[35] Conforme ressaltou Dalaiama no nosso primeiro contato,

“em cada parede jazem camadas e camadas de memória, em cima do mesmo efêmero tem outro efêmero. Aquela parede já tem um montão de história. Pintaram por cima, pintaram de branco, pintaram, pintaram de branco, assim. A rua, depois, a internet traz isso. Essa parede, também tenho uma foto dessa parede, uma espécie de galeria de camadas da memória”.[36]

O ofício de etnógrafo, tanto no fluxo das ruas como nas avenidas digitais, é ir retocando o “montão de histórias” que jaz nas paredes “desdobradas” de memória. Compondo e recompondo a efemeridade das artes urbanas entre espaços, o sujeito-ator da pesquisa acaba por se tornar, também, guardião de “galerias de camadas de memória”.

 

De quantas “dobras” se constitui um espaço ou como experimentar um bombing etnográfico? [37]

Após esse primeiro contato direto, em decorrência da filmagem de um documentário que realizei no final da minha estada em Lisboa, estive ao lado de Dalaiama numa intervenção, durante toda a madrugada, achegando-se ao amanhecer.[38]

 

 

Obviamente, o receio em deixar pistas da “identidade oficial do artista, do registro sujeito em plena ação” deixou-me ainda mais tensa. Nos dias posteriores dessa gelada madrugada de outono, Dalaiama me escreve por mensagem direta:

“A partir do momento em que saímos todos juntos naquela noite de bombing memorável ficou implícito que as imagens recolhidas seriam vossas e com elas vocês fariam o que quisessem. O único cuidado a ter é eu não ser identificado, mas isso já estava tranquilo, é na boa, as imagens pertencem-vos e, aliás, vocês até podem exibi-las num tom crítico ou de desaprovação, têm esse direito, liberdade de expressão é precisamente isso Queridos, Glória e Davi, eu é que vos devo agradecer, mesmo muito, porque os tempos por aqui andam doidos e no ano passado inteiro eu só pintei na rua, talvez, uma dezena de vezes, ou nem isso não lembro bem… o que sei é que aquela saída foi uma força grande que vocês me deram, gente CINCO estrelas, pessoas muito especiais são vocês, eu estou verdadeiramente agradecido. Só gente especial ia aceitar, assim de chofre, o impulso de sair numa noite gelada, nem sequer sabendo exatamente onde íamos (lembram do pequeno passeio que demos antes? LOL bem bacana!) Glória querida, aquela noite colocou vocês no fundo do meu coração, o gelo foi inesquecível, em contraste com o calor dos afetos e da ação aerosol, clandestina, desautorizada (‘we don’t ask for the space, we take the space’). Obrigado meus queridos pela cumplicidade. Aquela foi a melhor intervenção do Dalaiama no ano passado inteiro e uma das mais marcantes desde sempre!”[39]

O antropólogo, em suas anotações permeadas de adrenalina, assim como o bombing, segue realizando interferências em campos potencialmente ou efetivamente desautorizados. O lema do referido sujeito da intervenção urbana pode ser adaptado para o papel de anotações e de compartilhamentos dos escritos de pesquisa: “We don’t ask for the space, we take the space”. Isso abrange, inclusive, o desafio do pesquisador de “tomar o espaço” e alcançar as rotas de transposição que os artistas efetuam da paisagem material para o ambiente digital e vice-versa. Muitas vezes o street artist compartilha na sua página do Facebook um desenho, uma pintura, o esboço de estêncil, uma colagem ainda a ser efetuada em algum recanto da cidade.

Percebe-se que, muito embora o olhar do antropólogo esteja ainda, de forma geral, voltado para as múltiplas espacialidades urbanas, proliferam as instâncias de atuação e socialização de planos denominados por Appadurai (1996) de tecnopaisagens.[40] Nesse sentido, Appadurai propõe, diante dos novos processos culturais globais, tomar a instância da imaginação como prática social. As tecnopaisagens promoveriam um tipo de estar no urbano entremeado, de forma direta ou indireta, à paisagem material, sendo os sujeitos mediados por artifícios e práticas que agem e atuam entre “dobras” das geografias urbanas.[41] Há quem, como no caso de Di Felice,[42] propale “o fim da experiência urbana e as formas comunicativas do habitar” (Di Felice 2009: 19). O antropólogo, nesse esteio de observação, se posicionaria diante de um “desdobramento” também corporal – no caso, o de combinar ações etnográficas presenciais e outras em meio ao ambiente da Internet; ora ele estaria diante de corpos orgânicos, ora perante dimensões de existências pós-orgânicas.[43] Desse modo, o próprio antropólogo estaria sendo arremetido para um novo regime digital da exposição dos corpos no panorama da contemporaneidade.

 

O “inbox” e a relação face a face: linhas conclusivas

O ciberespaço se traduz em um regime digital que, mesmo atuando de forma peculiar nas performances corporais e nas narrativas de si, não se distingue de forma absoluta, como indica Christine Hine (2010: 9), das experiências de percepção e interpretação da cultura e da plêiade de construções identitárias realizadas face a face. Provavelmente, esse desafio antropológico tem suscitado reflexões e a produção de novas estratégias de campo que possam transitar entre sujeitos, espaços e tempos. Como bem alega Canevacci,

“o etnógrafo não é mais só o antropólogo ou pesquisador de estudos culturais, treinado segundo procedimentos estabelecidos durante a pesquisa de campo. No sentido de que o campo se ampliou, se estendeu em uma simultaneidade diaspórica, digital e multividual, na qual é cada vez mais imanente à ubiquidade material/digital” (Canevacci 2013: 86).

A condição da ubiquidade material/digital processa níveis diferenciados de argúcias, inversões e mútuos reconhecimentos entre os atores que povoam as narrativas das cenas etnográficas.[44] Ao findar o processo de acompanhamento de escuta, das ações de Dalaiama Street Art, tanto em nível presencial como no ciberespaço, fui percebendo que, no final das contas, o que traduz o campo é a intensidade dos afetos, a supremacia das máquinas de guerra em oposição às máquinas do Estado.[45] Recebi uma mensagem do referido artista, já próximo à finalização da pesquisa realizada em Lisboa, esboçada nos seguintes termos:

“Sinto por ti uma estima ancestral Glória, devemos ter feito street art juntos noutra vida minha Amiga! Se calhar pintámos murais egípcios para agradar aos faraós, ou partilhámos tintas renascentistas em afrescos religiosos, ou ajudámo-nos mutuamente a transportar pedras para construir esculturas em cultos ancestrais, ou simplesmente eu fui o porteiro numa exposição de pinturas da tua autoria na Alemanha expressionista. Quem sabe?…” [46]

Os papéis que se permutam no vinco material/digital e nas tantas “dobras” de afetos que atravessam os campos mediados pela tecnologia recolocam o ofício do pesquisador diante da cena primordial que descerra os pioneiros destes estudos. Diante das tantas “dobraduras” aqui assinaladas, cabe bem a indagação que funda o aspecto central destacado por Malinowski acerca das “condições adequadas à pesquisa etnográfica”:

“O que significa estar em contato? Para o etnógrafo significa que sua vida na aldeia, no começo uma estranha aventura desagradável, por vezes interessantíssima, logo assume um caráter natural em plena harmonia com o ambiente que o rodeia” (Malinowski 1978: 21).

De todo modo, no que tange ao ciberespaço e à comunicação de prováveis corpos pós-orgânicos (Sibilia 2002), o bom percurso no âmbito da investigação é aquele que provoca alguma sensação de harmonia do pesquisador em relação às paisagens em que se situa e nas quais se movimenta. Dalaiama bem sabe que narrador e observador-narrador ensaiam uma dupla condição: ajudamo-nos mutuamente a transportar pedras para construir esculturas em cultos ancestrais. Arrisco dizer, sem que este texto assuma nenhuma conotação conclusiva, que as tecnopaisagens ou qualquer maneira pela qual se denomine o intercurso material/digital entreabriram um terreno intensivo de experimentação e de percepção de originais práticas de pesquisa. Estamos diante de inusitadas aldeias e fronteiras; horizontes que recriam e dilatam os continentes da aventura antropológica.

 

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NOTAS

[1]     “Terreno” é um termo utilizado em Portugal para designar o campo de pesquisa.

[2]     Este trabalho foi apresentado na 29.ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 3 e 6 de agosto de 2014, na cidade de Natal, RN. Resulta de um estágio pós-doutoral efetuado entre janeiro e dezembro de 2013, sob a supervisão do Professor José Machado Pais, no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, com bolsa de estágio sênior da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).

[3]     Sobre o percurso etnográfico realizado em Lisboa em 2013, ver o documentário produzido pela autora no decorrer da pesquisa, disponível em https://vimeo.com/116549650.

[4]     A área de percurso quase diário da pesquisadora iniciava-se no Largo do Rato e passava pela Rua da Escola Politécnica. Dali chegava ao Chiado, atingindo o Rossio, descendo até o Cais do Sodré e toda extensão da Avenida da Liberdade.

[5]     Ricardo Campos (2010: 280) situa o graffiti como sendo um dos principais elementos da cultura visual contemporânea. Considera o autor a cultura visual, primeiramente, como repositório onde “determinados léxicos e signos visuais são elaborados e trocados”, e que atua, em segundo aspecto, como um modo privilegiado de apreensão e de descodificação visual da realidade na mobilização de “um dispositivo composto por um aparato tecnológico, político, econômico e simbólico”. O grafitti é uma expressão significativa das artes de rua (street art), tendo como sua principal marca a transgressão e a irreverência. De algum modo pode-se considerar, tal qual assinalou Tricia Rose (1997: 192), que o movimento hip-hop, surgido às margens da América urbana e pós-industrial anterior à era Bush-Reagan, tem o graffiti como uma de suas mais destacadas formas de expressão. Observa-se que tais dispositivos de conceituação (grafitti e street art) abrem o leque para tantas outras formas de apropriação e inscrição de sujeitos que atuam nas artes de rua. Waclaweck (2008: 121) também associa o graffiti a uma forma de participação transgressiva nas dinâmicas socioculturais das cidades – a natureza ilegal e transgressora acompanha de forma mais direta a genealogia do graffiti. Provavelmente, tal qual discute Pallamin (2000: 46), a arte urbana, de modo geral, diz respeito às práticas sociais de natureza estética, de uso e apropriação visuais dos espaços da rua, não assumindo necessariamente um caráter ilegal. No Brasil, define-se como pichação o graffiti ilegal, criando uma outra fenda de análise. Vale ressaltar, retomando o diálogo com Campos (2013: 119), que as artes urbanas, de modo geral, pelo “facto de não estarem encerradas, protegidas, e com acesso condicionado [são convertidas] em obras potencialmente disponíveis para todos”. A natureza efêmera desse tipo de inscrição urbana, efetuada sem uma finalidade específica, como no caso da publicidade, imprime a ela características singulares comparativamente às demais obras de arte. No campo da arte urbana, além do graffiti, as pinturas de muros, também denominadas de muralismo, o estêncil, técnica de pintura por meio de elementos vasados, a colagem ou lambe, os stickers, dentre outros, se inserem dentro do mesmo campo semântico. Trouxe esse conjunto de considerações para que se possa identificar o terreno complexo e ambíguo de qualquer esforço de conceituação desses campos de ação e de intervenção urbana.

[6]     Tag é a assinatura, e o termo é comumente utilizado para designar os graffiti ilegais.

[7]     Matéria do jornal The World Post, em http://www.huffingtonpost.com/2014/04/17/best-street-art-cities_n_5155653.html?&ir=World&ncid=tweetlnkushpmg00000017 (consultado em 18/07/2014, última consulta em setembro de 2015).

[8]     Refiro-me ao texto de Carlo Ginzburg denominado “Sinais: raízes de um paradigma indiciário”, onde o autor ressalta que “o conhecedor da arte é comparável ao detetive que descobre o autor do crime baseado em indícios perceptíveis para a maioria” (Ginzburg 1990: 145).

[9]     Por exemplo o Flickr, uma plataforma da web caracterizada como uma rede social e cujo foco é o armazenamento e a partilha de fotografias.

[10]    Utilizo aqui a expressão discutida por Andy Bennett (2004).

[11]    O termo “platô” é aqui utilizado na perspetiva do diálogo efetuado entre Gregory Bateson, Deleuze e Guattari para designar regiões descontínuas de intensidade da arte urbana numa mesma paisagem (Deleuze e Guattari 1995: 33).

[12]    Mais interessante foi perceber mais tarde que o Instituto de Ciências Sociais (instituição do estágio pós-doutoral) se situa em Entrecampos.

[13]    Nas colagens, os denominados stickers, que no Brasil recebem também o nome de lambe-lambe, são desenhos feitos no papel ou impressos digitalmente anexados aos suportes materiais. Os estêncis são basicamente qualquer tipo de material vazado em que são aplicados pigmentos.

[14]    Lúcia Santaella e Renata Lemos (2010: 14) entendem por redes sociais digitais laços de variadas métricas, utilizando-se de meios técnicos disponíveis para a mediação de interações.

[15]    O indivíduo que faz graffiti, também conhecido por graffer.

[16]    No segundo mês recebi o decisivo apoio do antropólogo português Ricardo Campos.

[17]    Sobre esse assunto, Ricardo Campos, no livro Porque Pintamos a Cidade?, acerca da condição de fazer etnografia, ressalta que “este espaço fragmentado e disseminado, físico e virtual, é acompanhado por um tempo igualmente descontínuo” (Campos 2010: 37).

[18]    Utilizo a categoria “dobra” tomando por base a discussão efetuada por Deleuze (1991) na sua obra A Dobra: Leibniz e o Barroco. Assim sendo, a “dobra”, ao invés de aludir a uma dimensão de duplicidade, sinaliza uma conexão de multiplicidades. Vale ressaltar que, para Leibniz, “o múltiplo não é o que tem muitas partes, mas o que é dobrado de muitas maneiras” (Deleuze 1991: 46). Atuando na qualidade de um espaço contíguo de representações, a dobra não possibilita discernir onde acaba o espaço configurado e onde se iniciam os perímetros de um outro espaço. No âmbito desta pesquisa etnográfica, realizada entre ambientes digitais e cidade material, tenta-se ultrapassar os frequentes binarismos entre real e virtual, entre espaço da Internet e relações presenciais, considerando assim uma espécie de copresença. Nesse caso, também um texto de blog publicado no ciberespaço age “alimentando correspondências online e conferências eletrônicas, correndo em redes, fluido, desterritorializado, mergulhado no meio oceânico do ciberespaço, esse texto dinâmico reconstitui, mas de um modo infinitamente superior, a copresença da mensagem e de seu contexto vivo que caracteriza a comunicação oral” (Lévy 1996: 39). “Dobras” entre ambientes de pesquisa e a copresença de narrador e pesquisador caracterizam a trilha metodológica do esforço etnográfico aqui narrado.

[19]    Como já havia outros domínios com o nome Antropologizando, decidi incluir três ZZZ, conseguindo assim criar um novo site (ver http://antropologizzzando.blogspot.pt) e dando a conotação do som da lata de tinta em spray ao ser acionada pelo graffiter.

[20]    Como destaca o referido autor, estamos cada vez mais familiarizados com os relatos de campo feitos em separado. “O texto, diferentemente do discurso, pode viajar. Se muito da escrita etnográfica é produzida no campo, a real elaboração de uma etnografia é feita em outro lugar” (Campos 2010: 38).

[21]    Ver http://antropologizzzando.blogspot.com.br/2013/09/o-que-pensam-as-artes-de-dalaiama.html.

[22]    O blogger dispõe não apenas do número de acessos e visitas como também destaca os países de origem do tráfego e a diversidade do público.

[23]    Google é uma empresa de alcance multinacional de serviços online e software dos Estados Unidos que propicia buscas na Internet.

[24]    Há nos desenhos de Tamara uma espécie de violação das convenções que padronizam e disciplinam gestos e comportamentos, uma deslocação entre permitido e proibido, legal e ilegal. A obra da referida artista é uma espécie de convocação corporal. É como se cada uma de suas ilustrações evidenciasse o corpo e a arte como dispositivos de passagem, válvulas comunicantes de instintos. “A artista esboça o que Deleuze e Guattari cognominaram de um corpo sem órgãos. Suas pinturas transpõem hierarquizações que fundam os organismos, elas quase sempre alteram a posição de um membro ou órgão do corpo, encontrando um modo de escorrer, como circuitos dentro-fora, fora-dentro. A obra de Tamara enuncia-se como extensivo panorama erótico do corpo contemporâneo, agenciando contínuos efeitos de dilatação dos limites corporais” (em http://antropologizzzando.blogspot.pt/2013/04/tamara-alves-animalidade-no-ciberespaco.html).

[25]    Brincadeira de infância em que, no geral, se usa um elástico em forma de círculo ou aro. Duas crianças esticam o elástico por detrás das pernas para que uma terceira criança ultrapasse o retângulo formado por entre as pernas dos participantes, efetuando movimentos onde se prende e se solta o material.

[26]    Inbox é a caixa de mensagens diretas do Facebook.

[27]    “Across the different approaches reflexivity has commonly been coined as a need for understanding ‘where the researcher is coming from’ and how this impacts on the knowledge produced. Some leave this at a question of validity and research quality control. However, most visual anthropologists take a quite different tack to argue that reflexivity should be integrated fully into processes of fieldwork and visual or written representation in ways that do not simply explain the researcher’s approach but reveal the very processes by which the positionality of researcher and informant were constituted and through which knowledge was produced during the fieldwork” (Pink 2006: 35). Tradução livre da autora: “Dentre as diferentes abordagens, o termo reflexividade tem sido comumente cunhado como uma necessidade de compreensão sobre de onde parte o pesquisador e como isso impacta no conhecimento produzido. Alguns veem isso como uma questão de validade e controle de qualidade da pesquisa. No entanto, a maioria dos antropólogos visuais toma um rumo bastante diferente para argumentar que a reflexividade deve ser integrada plenamente nos processos de trabalho de campo e representações visuais ou escritas de uma forma que não apenas explique a abordagem do pesquisador, mas que revele os próprios processos pelos quais a posicionalidade do pesquisador e informante foram constituídas e através dos quais o conhecimento foi produzido durante o trabalho de campo”.

[28]    Andrea Mubi Brighenti, ao discorrer sobre uma experiência etnográfica acerca do impacto das imagens nas cidades contemporâneas, afirma ter percebido que o graffiti é um fenômeno que irrita, representando algumas vezes “um ataque, um insulto, uma degradação” (Bringhentti 2011: 37).

[29]    Ver https://www.facebook.com/dalaiamaa?ref=ts&fref=ts e http://dalaiama.blogspot.com.br.

[30]    Sítio de Lisboa próximo à minha residência na época.

[31]    Vivenciei, junto a Dalaiama, num ambiente fechado do Facebook, um tipo de etnografia “inbox”, qual seja, uma cena dual, confessional, íntima e de natureza virtual. Machado Pais (2006), no prefácio de um livro intitulado Culturas Jovens (organizado por Maria Isabel Mendes de Almeida e Fernanda Eugenio), destaca o lugar da criação no campo dos afetos virtuais. Instauramos um tipo de contato “montado” por elementos desenhados mentalmente e mediados por pequenas pistas, “como representação do que dele se constrói imaginariamente” (Pais 2006: 20).

[32]    Correspondência através do Facebook com Dalaiama feita em 23 de maio de 2013. As mensagens diretas do artista, em sua grande maioria, eram muito extensas. Aqui publico apenas o trecho que, creio, não irá comprometer sua identidade.

[33]    James Clifford, ao refletir acerca dos meandros da autoridade etnográfica, ressalta que “o trabalho de campo etnográfico permanece como um método notavelmente sensível” (Clifford 2011: 19).

[34]    Resposta de Dalaiama (através do Facebook no dia 8 de novembro de 2013) ao texto “Face to face: Dalaiama e eu”, postado no site AntropologiZZZando em 7 de novembro de 2013 (ver http://antropologizzzando.blogspot.pt/2013/11/face-to-face-dalaiama-e-eu.html).

[35]    Utilizando a ideia de Latour (2000: 178) acerca da necessidade “da interpretação dada pelos construtores de fatos aos seus interesses e aos das pessoas que eles alistam”.

[36]    Trechos do encontro realizado entre a pesquisadora e o artista, no dia 11 de outubro de 2013.

[37]    Bombing é o graffiti pintado em movimento, no geral em metrôs e trens, com pouco trabalho de finalização, sendo, usualmente, utilizadas as cores preta e silver. No geral, são efetuados em locais de grande visibilidade. São associados, em geral, a uma prática underground.

[38]    Ver Rastos da Arte Urbana em Lisboa (disponível em https://vimeo.com/116549650). Todas as filmagens foram realizadas nesse período; a edição e a finalização do documentário apenas ocorreram no início de junho de 2014.

[39]    Mensagem direta por inbox, no Facebook, recebida no dia 20 de novembro de 2013.

[40]    “Por tecnopaisagem refiro-me à configuração global, sempre tão fluida, da tecnologia e ao facto de a tecnologia, tanto a alta como a baixa, a mecânica e a informacional, transpor agora a grande velocidade diversos tipos de fronteiras antes impenetráveis” (Appadurai 1996: 52).

[41]    No diálogo com Christine Hine, na publicação realizada no dia 15 de abril de 2013 no AntropologiZZZando, pontuei as tensões e mediações que se estabelecem na paisagem das práticas e relações de natureza cultural quando se trata de observar e etnografar o ciberespaço. Vale ressaltar que, assim como indica Christine Hine (2010), não por isso devemos considerar a etnografia, na arena do ciberespaço, um modo distinto de percepção da cultura e de suas construções identitárias. Segundo a autora, “o uso da Internet representa uma experiência localizada culturalmente e, concomitantemente, se constitui numa interpretação flexível do objeto” (Hine 2010: 9, tradução livre). Torna-se possível, assim, perceber que as experiências culturais se travam num âmbito capaz de condensar linguagens globais consorciadas a referentes culturais locais.

[42]    Assinala Di Felice que habitar naquilo que ele denomina de “metropoleletrônica” “significa, portanto, inevitavelmente atravessar tais fluxos de comunicação, deslocar-se no interior desses inputs informativos, e não somente ultrapassar geografias, estradas, praças e bairros […] flâneurs eletrônicos, footings midiáticos, consumos visuais e formas transorgânicas e híbridas do habitar. Na metropoleletrônica e comunicativamente atravessável, é a paisagem que se move. Um simples bit, alguns sons, o aperto do play ou a digitação de uma senha numérica nos proporcionam a deslocação das paisagens e a superação do lugar e do seu sentido social” (Di Felice 2009: 164).

[43]    Paula Sibilia, no livro O Homem Pós-Orgânico, sinaliza que “afastados da lógica mecânica e investidos pelo novo regime digital os corpos contemporâneos se apresentam como sistemas de processamento de dados, códigos, perfis cifrados, feixes de informação. Assim, entregues às novas cadências da tecnociência, o corpo humano parece ter perdido a sua definição clássica e a sua solidez analógica: inserido na esteira digital, ele se torna permeável, projetável, programável” (Sibilia 2002: 19).

[44]    Vale ressaltar que a suposta distância instaurada pelo contato entre pesquisador e narrador no ambiente digital possibilita que se exerça um tipo de interpretação. James Clifford adverte que “a interpretação não é uma interlocução. Ela não depende de estar na presença de alguém que fala” (Clifford 2011: 38).

[45]    “Mas o regime da máquina de guerra é antes dos afetos, que só remetem ao móvel em si mesmo, a velocidades e composições de velocidades entre elementos. O afeto é descarga rápida de emoção, o revide ao passo que o sentimento é uma emoção sempre deslocada, retardada, resistente” (Deleuze e Guattari 1997: 79).

[46]    Mensagem recebida por inbox em junho de 2014.

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