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Etnográfica
versão impressa ISSN 0873-6561
Etnográfica vol.21 no.3 Lisboa out. 2017
ARTIGOS
Entre fábulas e reformulações: o turismo na Mauritânia pós-colonial
Between fables and reformulations: tourism in post-colonial Mauritania
Joana LucasI
ICentro em Rede de Investigação em Antropologia (CRIA/NOVA FCSH), Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, Portugal. E-mail: joana.i.lucas@gmail.com
RESUMO
Este artigo pretende refletir sobre as reconfigurações recentemente operadas no âmbito da atividade turística na Mauritânia. Procurando, em primeiro lugar, elencar os processos que conduziram à formalização do turismo no período pós-colonial, caracteriza-se posteriormente a crise que se vive atualmente no setor, procurando identificar as suas origens. A partir de uma etnografia realizada em Nouakchott em 2010 e 2011, o texto procura dar voz a diversos interlocutores ligados ao setor do turismo. Por último, são discutidas algumas estratégias de reconversão do turismo mauritano que passam pela exportação de símbolos culturais e marcadores de autenticidade, e sugere-se a existência de novas relações de dependência entre França e o antigo território colonial.
Palavras-chave: Mauritânia, turismo, pós-colonialismo, mercantilização da cultura
ABSTRACT
This article aims to reflect on the reconfigurations recently performed within the scope of Mauritanian tourism. Seeking in a first moment to list the processes that led to the formalization of tourism in the post-colonial period, it then characterizes the crisis currently experienced in the sector, pursuing to identify its origins. Starting from an ethnography carried out in Nouakchott in 2010 and 2011, the text seeks to give voice to various parties linked to the tourism sector. Finally, the text discusses tourism reconversion strategies that include the export of cultural symbols and authenticity markers, and suggests the existence of new relations of dependence between France and its former colony.
Keywords: Mauritania, tourism, post-colonialism, commodification of culture
Centrando-se no período pós-colonial da Mauritânia e na sua (tardia) consolidação turística, este texto procura esboçar uma breve contextualização relativa à formalização da atividade turística, discutindo igualmente os desafios contemporâneos de um país que se tornou refém da política externa francesa e das suas idiossincrasias.
A partir de uma pesquisa de terreno etnográfica realizada em 2010 e 2011 em Nouakchott, procurarei ilustrar, dando voz a interlocutores diversos, as formas como é vivida e percecionada a já duradora crise no setor do turismo nacional, e que reconfigurações foram operadas localmente, com especial ênfase nas áreas geográficas onde a atividade turística era mais expressiva.[1]
O turismo irá assumir-se assim enquanto objeto central deste texto. Creio que, se o turismo deve ser entendido quer como um ato de consumo quer como uma construção social, não faz sentido, tal como afirma Sampaio, reduzi-lo a uma atividade estritamente económica, nem [ ] alienar as práticas turísticas dos contextos materiais (sociais, económicos e político-económicos) em que se inserem (Sampaio 2013: 178).
Assim, procurarei privilegiar o entendimento do turismo enquanto fenómeno cultural complexo, tal como é proposto por Leite e Graburn:
Tourism is [ ] most productively viewed not as an entity in its own right, but instead as a social field in which many actors engage in complex interactions across time and space, both physical and virtual (Leite e Graburn 2009: 37).
Desta forma, o estudo do turismo na Mauritânia deverá ter em conta a especificidade dos encontros históricos e coloniais que tiveram lugar no território, e ao longo deste texto procurarei lembrar como o mesmo foi construído turisticamente através de discursos heterogéneos e variáveis, mas também através de agendas políticas em constante transmutação.
A estruturação da atividade turística na Mauritânia pós-colonial
Ao contrário do período colonial, em relação ao qual é possível traçar e contextualizar, essencialmente através de material de arquivo, o desenvolvimento da atividade turística na Mauritânia, as fontes relativas ao período que se segue à independência do território são escassas.[2] Torna-se, portanto, tarefa árdua a perceção de um desenvolvimento linear da atividade turística a partir de 1960, e aqui darei conta do parco material de arquivo encontrado, a partir do qual procurei construir uma tímida e modesta genealogia da atividade turística na Mauritânia pós-colonial.
Em 1972 é formalizada a primeira agência de viagens em território mauritano: LAgence Mauritanienne de Voyages et Transit, única agência de viagens até ao início da década de 1980. Alguns anos depois, em 1975, é editada uma brochura relativa às possibilidades de turismo em vários países da África Ocidental onde a dificuldade de organização de circuitos turísticos na Mauritânia é evidenciada, propondo esta publicação uma visita ao recém-inaugurado Museu Nacional de Nouakchott como forma de substituir uma viagem pelo país:
Les difficultés que pose lorganisation de circuits touristiques en Mauritanie ont conduit à développer la description du Musée dont la visite donne un excellent aperçu de cet immense pays ([Anónimo] 1975: 169).[3]
Esta brochura, editada em Paris, recupera o embaraço e a inabilidade do turismo colonial em gerir turisticamente as características do território da Mauritânia: grandes extensões áridas e desérticas, ausência quase generalizada de monumentos ou outro tipo de atrações materiais associadas às motivações de grande parte das viagens turísticas.[4] É neste contexto que o Museu Nacional se apresenta como um aparente condensado da cultura nacional e uma montra oficial do país.[5]
Numa publicação bilingue (francês / inglês) e editada em Nouakchott, a Mauritânia aparece como um destino turístico onde o deserto constitui uma das principais atrações, algo que é enfatizado na forma romantizada e metafórica como este é promovido:
[ ] le Grand Désert du Sahara dont les dernières grandes vagues de sable blanc et blond viennent mourir en moutonnements opales au pied des massifs gris de lAdrar et du Tagant ([Anónimo] s. d.).
Mas, para além do deserto, a Mauritânia poderia também oferecer a sua antítese: o grande oásis como reverso e contraponto da aridez da paisagem. Descrito a partir das suas cores luxuriantes e da sua flora abundante, o oásis é apresentado como o duplo do deserto, o segredo bem guardado e oculto que reforça e consolida o discurso orientalista aplicado à paisagem:
Terre des grands espaces et des vertes oasis où, de mai à juillet, les grosses grappes de dattes rouges se nichent à la naissance des palmes vertes, lamellées comme détranges stores vénitiens. [ ] Ainsi placée entre ces grands axes naturels, la Mauritanie a connu de bonne heure le double contact de lOrient et de lOccident ([Anónimo] s. d.).
Esta brochura enfatiza igualmente a pluralidade geográfica do país, a sua ligação ao Norte de África e a possibilidade de aliar deserto e floresta sem maiores dificuldades do que as centenas de quilómetros necessários para percorrer o território:
[ ] le choix est large, pour le visiteur désireux de sites variés, du Nord des longes chaines de dunes de sable dont la blancheur et la pureté fascinent, au bord du fleuve où lenchevêtrement chaotique des lianes de mimosées et des rideaux verts de palétuviers respire quelque chose des grands forêts africaines ([Anónimo] s.d.).
Somente em 1987 é criada a Somasert (Société Mauritanienne de Services et Tourisme), que acaba por funcionar durante perto de uma década como a principal impulsionadora do turismo em território mauritano, assim como interlocutora privilegiada de operadores turísticos internacionais.[6]
Será necessário esperar até 1994 para que a iniciativa estatal com vista à coordenação e organização do setor do turismo se manifeste através da publicação da Déclaration de Politique Générale du Tourisme e da criação do Ministério do Comércio, do Artesanato e do Turismo, seguidas em 1996 de uma lei que regulamenta o setor.[7] As principais questões e condições para o desenvolvimento do turismo no país são enunciadas neste documento: o turismo deveria respeitar os valores religiosos e culturais do país, assim como o seu equilíbrio ambiental.
Em 2003, quase uma década após a criação do referido ministério, é fundado, em julho, o Gabinete Nacional do Turismo, estrutura administrativa intermédia que se ocuparia de gerir a atividade turística a nível nacional, mas também de promover o turismo mauritano para o exterior.
Estas estruturas de gestão e administração do turismo nacional são concebidas e postas em marcha alguns anos depois do início de um movimento de crescimento progressivo da atividade turística no país, que começara no final de 1996 na região do Adrar. De facto, foi a Somasert que tomou em mãos a consolidação do turismo e fê-lo, em grande medida, substituindo o Estado mauritano.
Foi este despertar tardio em relação ao setor do turismo que levou a que a Somasert operasse durante cerca de dez anos sem qualquer enquadramento, tendo como parceira uma organização francesa de turismo solidário: a Point-Afrique. Esta constitui-se em 1996 enquanto cooperativa de viagens, muito centrada na figura de Maurice Freund, seu diretor e principal dinamizador de circuitos, propondo aos seus clientes uma deontologia turística, assim como cartas éticas do viajante, no sentido de uma moralização do turismo, tal como é definida por Butcher (2003).[8] A deontologia turística defendida pela Point-Afrique procura não perder de vista a defesa de um turismo pelo desenvolvimento e propõe uma prática turística assente na igualdade e no respeito pelo outro.[9]
Assim, e após o estabelecimento de uma parceria entre a Somasert e a Point-Afrique, em dezembro de 1996 começam a ser realizados voos charter entre França e Atar, uma pequena localidade no nordeste da Mauritânia. O primeiro voo transportou 135 passageiros, e nos anos seguintes o número de voos charter não parou de aumentar.[10]
Do boom ao desconcerto: sobrevivência e nichos de mercado
Avancemos para o acontecimento que transformou radicalmente o panorama turístico da Mauritânia e pôs ponto final ao crescimento de uma década. A 24 de dezembro de 2007 são assassinados quatro cidadãos franceses em Aleg, no sul do país, e poucos dias depois é cancelada a edição de 2008 do rali Paris-Dakar, que a partir dessa data deixa de se realizar no continente africano.[11]
Este homicídio foi rapidamente imputado à Al Qaeda do Magreb Islâmico (AQMI) e constituiu algo inédito na Mauritânia, país sem historial de extremismos religiosos e / ou políticos. Estes acontecimentos levaram a que o Ministério dos Negócios Estrangeiros francês classificasse no seu website a Mauritânia como lugar desaconselhável para as deslocações turísticas, e dividisse o território entre zona vermelha, formalmente desaconselhada, e zona laranja, desaconselhada salvo razão imperativa, correspondendo à proclamada zona vermelha a principal área de desenvolvimento da atividade turística o Adrar (ver figura 1).[12]
A partir desse momento, a atividade turística na Mauritânia teve um decréscimo abrupto. A Point-Afrique, principal operadora turística no país desde 1996, manteve numa primeira fase os voos charter com destino à Mauritânia, mas rapidamente é levada a reconsiderar a decisão.
A Point-Afrique daria assim por suspensa a sua atividade turística na Mauritânia e começava a programar novos destinos, tais como o Chade, que nas palavras da operadora constituiria O único deserto saariano aberto ao turismo.[13] Quanto à Mauritânia, e apesar das dúvidas da Point-Afrique relativamente ao verdadeiro perigo que a visita turística representava, ficaria fora dos seus circuitos durante largos anos.
Após a suspensão dos voos charter e a retirada da Point-Afrique da Mauritânia, interessava-me perceber se seria mantida alguma atividade turística que não estivesse enquadrada na lógica e nos circuitos outrora frequentados pelos passageiros dos voos charter. Foi nesse sentido que questionei os meus entrevistados, procurando perceber se haviam sido criados nichos de mercado ou se a Mauritânia teria acentuado o seu caráter de país de passagem, lugar temporário para turistas que atravessam o território com destino a outros países africanos.
Se o seu caráter transitório foi, e continua a ser, uma realidade que importa discutir no contexto do panorama turístico nacional da Mauritânia, interessaria igualmente perceber se existiria vida para além da Point-Afrique e dos seus circuitos pelo Adrar. Alguns dos meus interlocutores confirmaram a existência de nichos de mercado turísticos, constituindo-se na sua maioria enquanto programas que não beneficiavam as populações locais, tal como refere M. Hamza Babetta:
Neste momento há muita gente que vem da Argentina, do México, da América do Sul para a caça no sul do país. Temos uma casa mauritana que recebe todos os anos centenas de turistas que vêm de muito longe e que gastam muito dinheiro para vir à Mauritânia, para irem à caça perto de Rosso [no sul, junto ao rio Senegal]: eles caçam o facochero. Eu sei que os caçadores não são muito queridos na Europa, mas eles têm o direito de fazer o que gostam [ ] Recebemos também gente do Golfo que vem para a caça com falcões. É gente muito rica. Eles compram as suas autorizações de caça no Ministério, trazem carros, ficam um mês, mês e meio, e vêm em família. Eles acampam, mas trazem tudo dos seus países [entrevista a M. Hamza Babetta, Nouakchott, 20 de outubro de 2011].[14]
Também Mohamed Mahmoud Bewba Nemoud confirma a existência de um turismo autossuficiente, não beneficiando as populações locais, como é o caso dos circuitos de camping-car, nos quais os turistas utilizam as suas próprias viaturas como lugares para pernoita e alimentação, apenas recorrendo ao comércio local para o abastecimento de combustível e bens alimentares.[15]
Apesar da existência destes nichos de mercado, o panorama turístico nacional está ainda de luto, assistindo-se a um êxodo com origem no Adrar. Se, com o início dos voos charter em 1996 e o crescente movimento por eles gerado, uma importante fatia da população que havia outrora migrado para os principais centros urbanos (Nouakchott e Nouadhibou) regressara aos seus lugares de origem, então o movimento tendia a inverter-se.
Como refere M. Saad Maayniye Cheikh Saad Bouh, assistiu-se a uma inversão migratória no período posterior ao boom turístico e voltaram a ser os grandes aglomerados urbanos o destino migratório das populações que se haviam dedicado ao turismo na região do Adrar:
Há as populações que não têm escolha, que vivem no Adrar e que não se podem deslocar, que vão fazendo um pouco de agricultura enquanto as coisas não melhoram. E depois há uma segunda população, mais juvenil, que presta serviços. Esses vão certamente sair do Adrar, para Nouadhibou e Nouakchott [entrevista a M. Saad Maayniye Cheikh Saad Bouh, Nouakchott, 18 de outubro de 2011].[16]
Esta afirmação é corroborada por Nemoud, que relata a estagnação económica na região do Adrar, mas aponta algumas soluções encontradas pelos habitantes outrora dependentes da economia do turismo, que reconfiguraram as suas atividades e as puseram ao serviço das populações locais:
Nemoud afirma que as coisas na região do Adrar estão muito complicadas. A maior parte das pessoas mantém os albergues abertos porque não tem condições económicas para fazer outras coisas e porque não podem sair da zona. Algumas agências de viagem venderam os seus veículos e mudaram de ramo. Há o caso concreto da Salima Voyages, que transformou a sua frota automóvel, que servia para transportar turistas, em carreiras de autocarro entre Nouakchott e Atar. Nemoud refere também que grande parte da população mais jovem migrou nos últimos anos para as grandes cidades Nouakchott e Nouadhibou à procura de trabalho [excerto do diário de campo, Nouakchott, 25 de outubro de 2011].[17]
Já Zaida Mint Bilal, residente em Ouadane e proprietária de um albergue turístico, chama a atenção para o facto de as possibilidades de mobilidade não serem iguais para todos.[18] Zaida é menos otimista quanto às reais possibilidades de reconfiguração social para as populações que se dedicavam quase exclusivamente ao turismo desde a segunda metade dos anos 1990:
Não é toda a gente que se pode meter a caminho de Nouakchott ou Nouadhibou para trabalhar como taxista ou outra coisa qualquer A maior parte das Tour Operators de Atar, Ouadane e Chinguetti fecharam e venderam as viaturas. Outros montaram autocarros entre Atar e Nouakchott. Mas a maior parte das pessoas está lá à espera que as coisas mudem e que os turistas regressem [entrevista a Zaida Mint Bilal, Nouakchott, 26 de outubro de 2011].
A constatação das reconfigurações sociais na região do Adrar é igualmente observada pelas agências turísticas internacionais que operavam na área. Também estas referem uma alteração significativa da paisagem social e económica, provocada pela quebra drástica da atividade turística na região:
A Atar comme à Chinguetti, les touristes ont disparu. Parmi ceux qui ont travaillé avec Zig-Zag ces dernières années, certains sont partis pour Nouakchott et dautres accompagnent leurs troupeaux de chameaux au gré des précipitations, vers le Zemmour ou le Tagant (la Mauritanie est sans doute un des derniers pays au monde où existe encore un véritable nomadisme ou semi-nomadisme!). Une situation que nous espérons provisoire dautant plus que les quelques randonneurs présents dans lAdrar lhiver passé ont pu constater que tout était calme! [Website da agência de viagens Zig-Zag] [19]
Aquando da minha estadia em Nouakchott em 2011, a Association Nationale des Guides Sahariens acabara de publicar no seu website uma carta aberta ao então presidente francês, Nicolas Sarkozy. Nesta missiva criticavam a classificação de parte do país enquanto zona vermelha pelo poder político francês, e responsabilizavam a França pela destruição do tecido económico da região, deixando entrever a enorme dependência que o país continuava a ter em relação à metrópole francesa:
Mesdames et Messieurs, avez-vous vraiment conscience quen classant ainsi les zones touristiques mauritaniennes, vous condamnez à mort une activité essentielle au développement de notre pays vers un modèle respectueux de notre population, de lenvironnement, et riche de nos savoirs-faire ancestraux ? [Lettre ouverte à Monsieur le Président de la République française, 18 de outubro de 2011] [20]
Neste pequeno excerto vemos como as lógicas e a linguagem associadas a uma atividade turística política e moralmente correta a ecologia, a tradição e a sustentabilidade foram incorporadas pelos agentes locais da dinamização turística, e são acionadas quando em diálogo com as estruturas e os representantes do poder. Este apelo ao poder francês revela antes de mais o perpetuar de uma relação de dependência entre a Mauritânia e o antigo colonizador, assumindo agora outros contornos e nuances: o aval francês relativo à visitabilidade turística do país tornou-se um imperativo categórico para a sobrevivência das populações.
Esta subordinação às políticas e imposições francesas remete-nos para as análises de Nash (1978) e Cazes (1989), para quem o turismo praticado em ex-territórios coloniais constitui uma nova forma de imperialismo, ou ainda uma perpetuação do seu estatuto colonial, respetivamente. Para Nash (1978), o poder dos centros metropolitanos para desenvolverem fora de portas atividades turísticas que respondam às necessidades de um centro produtivo aquele que gera os turistas e as suas necessidades é a essência mesma do turismo enquanto forma de imperialismo:
[ ] metropolitan centers have varying degrees of control over the nature of tourism and its development, but they exercise it at least at the beginning of their relationship with tourist areas in alien regions. It is this power over touristic and related developments abroad that makes a metropolitan center imperialistic and tourism a form of imperialism (Nash 1978: 35).
Mas se, como afirma Nash, é a expansão dos interesses de uma sociedade fora dos seus limites geográficos que a torna imperialista, as novas colónias de férias, tal como enunciadas por Cazes (1989) coincidem, como é o caso da Mauritânia, com ex-territórios coloniais que continuam a procurar responder às necessidades de um centro produtivo, perpetuando a sua essência enquanto lugares marcados pelo exotismo, mas também pela dependência económica.
Paralelamente, a carta redigida pela ANGS levanta igualmente o véu sobre a assimetria das políticas francesas quanto à classificação de destinos turísticos seguros e inseguros, revelando a desproporção das medidas adotadas face à Mauritânia quando comparadas com a atitude perante outros contextos geográficos:
Vous objecterez que des drames survenus en Mauritanie en 2007 et 2009 expliquent ce classement. Pouvons-nous humblement vous demander sil est des places au monde qui naient jamais été éclaboussées par les soubresauts liés à létat actuel du monde ? Plus récemment encore, le célèbre café Argana à Marrakech dans lequel plusieurs citoyens français ont trouvé la mort, a suscité même une réaction positive du gouvernement français en encourageant et en approuvant cette destination [Lettre ouverte à Monsieur le Président de la République française, 18 de outubro de 2011].[21]
A reação por parte do Ministério dos Negócios Estrangeiros francês ao caso do atentado ocorrido em Marraquexe em abril de 2011, no qual 17 turistas perderam a vida, parece ser, para Mohamed Nemoud, o exemplo mais claro da assimetria das políticas externas francesas face a eventuais ameaças terroristas. Para Nemoud, a manutenção de grande parte do território mauritano enquanto zona vermelha revela antes de mais a existência de interesses políticos e económicos por parte da França em relação à Mauritânia que não se coadunam com a atividade turística. Também outros interlocutores referiram alguma estranheza quanto ao facto de a França manter a classificação de metade do território da Mauritânia como zona vermelha,[22] fazendo alusão à possibilidade da existência de uma agenda oculta do lado francês.
O turismo reconfigura-se? Segurança, familiaridade e exportações
Entretanto, e em plena crise turística, a Point-Afrique lançava um novo produto turístico para o verão de 2013. Tratava-se do Campement Tamana, que consistia na instalação de tendas tradicionais mauritanas as khaïma-s no sudeste francês (mais concretamente em Ardèche, região de Rhône-Alpes), onde os turistas seriam acolhidos pelos guias aliás amigos mauritanos, que tratariam de recriar a vida e o ambiente de uma tenda moura.[23]
Sob o mote Si vous nallez pas en Afrique, alors lAfrique vient à vous, a operadora turística anunciava:
Vos hôtes venus du désert de Mauritanie, parés de leurs superbes boubous bleus, vous reçoivent sous la tente traditionnelle autour de la cérémonie de bienvenue de 3 thés Limmersion est immédiate et totale.
Num ambiente tranquilo e preservado, onde a vegetação local faria lembrar aquela da Mauritânia ou do Sahel, e numa estadia 100% natural pontuada por duches aquecidos por energia solar com saneamento fitossanitário e casas de banho secas, a operadora turística tentava acrescentar uma dimensão ecológica à já presumida vertente étnica e tradicional deste acampamento. Mas, para que não se duvidasse da genuinidade destes anfitriões, eles revelariam presencialmente a sua história e atestariam, acima de tudo, as suas origens:
Enfin, sous les étoiles de ce petit bout du monde ardéchois, vos hôtes du Sahara, selon lhumeur, vous content anecdotes, mystères et secrets de leur oasis et villes ensablées.
Esta transposição do cenário turístico mauritano para o ambiente seguro e sem surpresas do sudeste francês, no qual o turista poderia desfrutar da uma recriação da autenticidade sem correr riscos, é uma interessante manobra de marketing turístico que é útil para nos fazer pensar. Aqui trata-se de valorizar mais a performance turística do que o destino turístico: é até certo ponto irrelevante estar no deserto, ou no Adrar mauritano, quando a Mauritânia vem até Ardèche, empunhando alguns dos seus símbolos identitários: a khaïma, a cerimónia do chá, e os anfitriões mauritanos.
O Campement Tamana tenta assim confundir os valores de casa e de estrangeiro, criando um território híbrido que dá novos significados e leituras à própria ideia de viagem, e que redimensiona o desejo de consumo turístico da alteridade, imbricando-o com a familiaridade (e a segurança) do terreno, sintetizando aquilo que Dicks identifica como bringing there here (Dicks 2003: 2). Esta deslocalização permitiria o consumo de um condensado de cultura, ou daqueles que são considerados os símbolos de uma cultura, consumo esse que possibilitaria um vislumbre rápido e organizado dos referentes culturais daqueles lugares, substituindo a viagem que comportaria, invariavelmente, o acesso a uma realidade desorganizada e de consumo mais arriscado:
[ ] these various sites of display, which appear to obviate the need for travel, have developed in an era in which travel has become a mass activity easy and affordable for large sections, at least, of the worlds wealthier populations. What this suggests is that, rather than travelling to places in order to interact with the people who live there, visitors are travelling to places to interact with displays of those people (and of people who live elsewhere). In other words, the more people travel, the more they encounter their destinations culture in the form of visitable representations (Dicks 2003: 4).
São estas representações visitáveis, enquanto condensados de cultura, que se apresentam como uma alternativa à viagem, quando os terrenos como a Mauritânia deixam de ser apelativos ou possíveis para o consumo turístico. Mas para lá da caricatura que esta iniciativa da operadora Point-Afrique deixa transparecer sobre conceções de autenticidade, será talvez mais prolífica a reflexão sobre como são construídos (e / ou destruídos) os destinos turísticos.
Tal como durante o período colonial, quando a sua validade turística era questionada, a Mauritânia continua a estar hoje sujeita às agendas da antiga potência colonizadora, que constrói narrativas e atribui valor, a partir da suposta autoridade de um passado de coexistência e dependência, mobilizando e recorrendo concomitante e estrategicamente à narrativa do perigo. Mais do que à procura da autenticidade, assistimos recentemente a uma valorização turística de uma ideia de segurança, em nome da qual quer os Estados quer as operadoras turísticas usam as suas estratégias: construir narrativas sobre e para os territórios, em relação às quais estes ficam, irremediavelmente, reféns.
BIBLIOGRAFIA
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NOTAS
[1] Este texto é resultado da minha pesquisa de doutoramento em Antropologia, financiada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (SFRH / BD / 46734 / 2008) entre março de 2009 e fevereiro de 2013. A dissertação (Lucas 2014) foi defendida em novembro de 2014 na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.
[2] A Mauritânia obteve a sua independência da França a 28 de novembro de 1960. Até esta data foi promovida turisticamente enquanto destino de caça e de turismo etnográfico, essencialmente enquanto parte do grupo de colónias da África Ocidental Francesa (AOF), conjuntamente com o Senegal, o Mali, o Níger, a Guiné, a Costa do Marfim, o Benim e o Burkina Faso. Sobre a promoção turística da Mauritânia colonial, veja-se a minha dissertação de doutoramento (Lucas 2014). A pesquisa sobre turismo colonial na Mauritânia teve lugar nos Archives Nationales dOutre-Mer em Aix-en-Provence (França) entre fevereiro e abril de 2012.
[3] O Museu Nacional de Nouakchott foi concluído em 1972, e a sua construção esteve a cargo de empresas da República Popular da China. A respeito do Museu Nacional de Nouakchott, Ould Cheikh refere: Exceptuando a incorporação de pedras de alvenaria trazidas das pedreiras da região de Atar para a fachada principal, o edifício não deve muito nem aos materiais, nem às conceções arquitetónicas locais que, em verdade se diga, são particularmente pobres em monumentos de alguma dimensão. Edifício solenemente quadrangular, construído sobre dois pisos de pé-direito elevado, a Casa da Cultura, como passará a ser pomposamente chamada, constitui, com os seus pórticos e altas colunas quadrangulares que percorrem três das suas fachadas, uma terna síntese da arte monumental estalinista com vagas revisitações da tradição chinesa (Ould Cheikh 2013: 162).
[4] Sobre a construção de atrações turísticas, veja-se MacCannell (1976), entre outros autores.
[5] Durante o trabalho de terreno realizado em 2011 tive ocasião de efetuar uma visita ao Museu Nacional de Nouakchott, conduzida pelo seu diretor, M. Kanadiyya. Ao longo desta visita pude constatar o apreço pela coleção arqueológica, considerada joia da coroa do museu e sempre em crescimento, por oposição à coleção etnográfica, congelada e exclusivamente consagrada à sociedade moura, eterna representante das tradições nómadas e beduínas do país. Efetivamente, apesar de o discurso oficial enfatizar a pluralidade e diversidade étnica da Mauritânia (com a presença de comunidades mouras, fula, soninké e wolof), as suas representações identitárias continuam a cingir-se à realidade moura.
[6] A Somasert contituiu-se como filial da Société Nationale Industrielle et Minière (SNIM), que sucedeu à Société des Mines de Fer de Mauritanie (Miferma), criada em 1952 com vista à exploração dos recursos minerais do país pela administração colonial francesa.
[7] A lei n.º 96-023, de 7 de julho de 1996, regulamenta a organização da atividade turística na República Islâmica da Mauritânia.
[8] A ideia de que o turismo podia contribuir ativamente para pôr em perigo não só o meio ambiente, mas também as populações e as suas identidades, levou a uma moralização do turismo, conducente à criação de novas formas de turismo (alternativo, ético, comunitário, ecoturismo), que rapidamente se constituíram enquanto produtos alternativos e moralmente superiores (Butcher 2003: i).
[9] Point-Afrique Voyages considère le tourisme comme un moyen, et non une fin en soi. Un moyen de faire dialoguer les hommes et les cultures; un moyen doffrir, non pas une assistance ou une aide, mais la possibilité de gagner dignement sa vie par son travail, dans le respect mutuel (do website da Point-Afrique, em http://www.point-afrique.com/point-afrique/default.aspx?toid=notre+histoire-266&t=10, última consulta em outubro de 2017).
[10] A partir do que nos refere Pierre Bonte (2010), a pista de Atar só será melhorada de forma a receber os voos provenientes de França em 1997: La réfection et la modernisation de la piste daviation dAtar, principale ville de lAdrar, à la suite dun voyage officiel de Jacques Chirac dans le pays [em 1997], et grâce à la coopération française, allaient rendre possible le débarquement des touristes au cur de la région (Bonte 2010: 89). Com base nos números divulgados por um relatório de 2007 elaborado pelo Ministério do Artesanato e do Turismo, podemos constatar o crescimento exponencial do número de passageiros a cada nova época turística entre 1997 (1500 passageiros) e 2007 (9752 passageiros), do qual destacamos o aumento considerável (de 10.000 para 12.000 passageiros) entre 2001 e 2004 (ver Le secteur du Tourisme en Mauritanie, Rapport Annuel 2007, Ministère de lArtisanat et du Tourisme, République Islamique de Mauritanie).
[11] Tendo sido criado em 1979 por Thierry Sabine, o percurso do Paris-Dakar inclui de forma categórica a Mauritânia a partir de 1987. Desde essa data o país passa a constituir, salvo raras exceções, uma das principais etapas do rali. O incidente de 2007 é invocado pela organização do Paris-Dakar para justificar o cancelamento da edição de 2008: After the murder of four French citizens and three Mauritanian militaries in the days before the start, and answering the strong recommendations of the French Foreign Affairs Ministry not to go to Mauritania, the 2008 edition of the rally was cancelled. Terrorist threats identified by the French authorities were directly pointed at the rally (em Dakar Retrospective 1979-2009, informação relativa a 2008, p. 166, disponível em https://pt.scribd.com/document/77339528/Historique-Dakar-1979-2009-Us, última consulta em outubro de 2017).
[12] Em http://www.diplomatie.gouv.fr/fr/conseils-aux-voyageurs/conseils-par-pays/mauritanie-122 91/ (última consulta em outubro de 2017). Na definição das zonas assim classificadas, para além da arbitrariedade da divisão entre zonas desaconselhadas salvo razão imperativa e zonas formalmente desaconselhadas, era possível observar no mapa então publicado um pequeno círculo laranja na região de Zouerate (a norte), o local onde se realizavam as prospecções petrolíferas francesas.
[13] Em Lettre de Point-Afrique, 47, setembro de 2012, consultado em http://www.point-afrique.com/newsletters/nl047/Newsletter047.html a 7 de junho de 2013.
[14] M. Hamza Babetta era, à data de realização desta entrevista, secretário-geral da Union Nationale du Patronat Mauritanien Fédération de Tourisme.
[15] Mahmoud Bewba Nemoud é fundador da Association Nationale de Guides Sahariens (ANGS), criada em 2010 e que teria, à data de realização da entrevista, cerca de 70 guias inscritos.
[16] M. Saad Maayniye Cheikh Saad Bouh foi diretor geral da Somasert entre 2009 e 2011.
[17] As cidades de Atar e Nouakchott distam 406 quilómetros entre si, em estrada alcatroada.
[18] Zaida Mint Bilal era proprietária do Auberge Vasque em Ouadane. Sobre o Auberge Vasque e a gestão do mesmo por Zaida Mint Bilal, ver Maria Cardeira da Silva (2006).
[19] Em http://www.zigzag-randonnees.com/579/mauritanie.html (última consulta em outubro de 2017).
[20] Em http://angs-mauritanie.blogspot.pt/2011/10/lettre-ouverte-monsieur-nicolas-sarkozy.html (última consulta em outubro de 2017).
[21] Em agosto de 2009, um ataque suicida contra a embaixada francesa em Nouakchott provocou feridos ligeiros, entre os quais dois franceses do corpo de segurança da embaixada e uma mulher mauritana. O ataque foi levado a cabo por um jovem mauritano, única vítima mortal da ofensiva.
[22] Durante o processo de revisão deste texto, o mapa da Mauritânia que figurava no site do Ministério dos Negócios Estrangeiros francês foi finalmente substituído. O mapa a que me refiro ao longo deste texto e que serviu de mote para parte da reflexão aqui presente foi colocado no site do MNE francês em finais de 2007 ou início de 2008, pouco depois do assassinato de Aleg e na sequência do cancelamento da edição de 2008 do rali Paris-Dakar. Dez anos depois, em finais de março de 2017, o MNE francês procedeu a uma revisão da cartografia mauritana e da alegada segurança com que o território pode ser visitado e fez algumas alterações das quais destacamos as que nos parecem ser as mais relevantes: (1) uma grande fatia da costa atlântica de Nouadhibou ao Senegal passou a zona amarela (vigilância reforçada), mas manteve-se a fronteira com o Saara Ocidental a vermelho; (2) Chinguetti e Ouadane, outrora principais atrações turísticas do país, passam de zona vermelha a zona laranja. Ainda é cedo para perceber quais os efeitos desta alteração, quer na Mauritânia quer junto dos operadores turísticos internacionais, mas para já parece poder ser um sinal de alguma flexibilidade por parte da política externa francesa.
[23] A informação relativa ao programa Campement Tamana foi consultada no website da Point-Afrique (http://www.point-afrique.com/tamana/campement-tamana.html) em 10 de junho de 2013, mas não se encontra já disponível.