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Etnográfica

versão impressa ISSN 0873-6561

Etnográfica vol.23 no.1 Lisboa jan. 2019

https://doi.org/10.4000/etnografica.6395 

ARTIGOS

 

Políticas públicas e produção artístico-cultural entre jovens das periferias de Lisboa e São Paulo

 

Public policies and artistic-cultural production among young people from Lisbon and São Paulo outskirts

 

 

Otávio RaposoI; Guilhermo AderaldoII

IInstituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL), Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES-IUL), Portugal. E-mail: otavio_raposo@iscte-iul.pt
IIUniversidade de São Paulo (USP), Brasil. E-mail: guiade@ymail.com

 


RESUMO

O artigo pretende debater alguns aspetos de dois modelos de política pública dirigidos a jovens de camadas sociais desfavorecidas, tomando como base o acompanhamento etnográfico das práticas de coletivos culturais das periferias de Lisboa (Portugal) e São Paulo (Brasil), os quais são beneficiários, respetivamente, dos programas “Escolhas” (PE) e “Valorização de Iniciativas Culturais” (VAI). Por meio da reconstituição de algumas das experiências dos nossos interlocutores em suas negociações com os poderes públicos, queremos analisar aspetos do impacto dessas políticas no fomento da capacidade associativa da juventude “periférica”, bem como conhecer as influências que exercem nas suas subjetividades e trajetórias de vida. Em particular, interrogamos os limites da “economia da cultura” como meio para contornar os processos de segregação e estigmatização, quando atreladas a conceções políticas que restringem a participação juvenil à execução de projetos e à busca de soluções para a chamada “questão social”.

Palavras-chave: política pública, economia da cultura, juventude, periferia, produção artística


ABSTRACT

The purpose of this article is to discuss some aspects of two models of public policies addressing young people from disadvantaged social classes, based on the ethnographic studies of cultural practices of collectives from Lisbon (Portugal) and São Paulo (Brazil) outskirts which are beneficiaries, respectively, of the public programs “Choices” (“Programa Escolhas,” PE) and “Valorization of Cultural Initiatives” (“Valorização de Iniciativas Culturais,” VAI). By making a reconstitution of some of the experiences of our interlocutors in their negotiation with public authority, we want to analyze aspects of the impact of these politics on the promotion of the associative capacity of “peripheral” youth, as well as to understand the influence they have on their subjectivities and life trajectories. In particular, we question the limits of “cultural economy” as a means to overcome segregation and stigmatization processes, namely when linked to political conceptions that narrow the participation of youngsters to the execution of projects and to a search for solutions to the so-called “social issues.”

Keywords: public policy, cultural economy, youth, outskirts, artistic production


 

 

Juventudes “periféricas”: dilemas e impasses contemporâneos

Homogeneizados em torno da imagética da pobreza, da carência e da violência, os jovens das classes desfavorecidas foram, amiúde, transformados num “problema social” pelos discursos oficiais desde que a juventude se tornou uma categoria analítica na passagem do século XIX para o século XX (Pais 1990; De Tommasi 2013).[1] Entendida como um estágio intermédio entre a infância e a idade adulta, a juventude passou a ser problematizada pelo prisma da crise e dos conflitos, na convicção de que essa condição etária reproduziria, em termos orgânicos, a suposta evolução do ser humano: da “selvajaria” à “civilização” (Feixa 1999).[2] Com a influência dessas formulações, a chamada “crise da juventude” foi teorizada pela sociologia funcionalista através do enfoque no desvio e na anomia, efeito de uma socialização desajustada, incapaz de fazer os jovens, principalmente os mais pobres, assimilarem os papéis sociais considerados legítimos em sociedade. Sob esta perspetiva adultocêntrica, os “jovens” viveriam numa espécie de vazio de ideias e cultura, consequência da suposta incivilidade do seu modus vivendi e da barbárie em que estariam mergulhados.

A ênfase nos comportamentos “rebeldes” também marcou a produção sociológica sobre a juventude, numa análise que tende a sobrevalorizar o caráter de resistência das suas ações coletivas e práticas culturais. Os estudos culturais britânicos produzidos pela “Escola de Birmingham” foram determinantes nessas formulações, servindo de base para pesquisas em todo o mundo, como no caso da sociologia latino-americana. Esta destacava as condutas contestatárias dos jovens, muitas vezes entendendo a sua rebeldia como expressão de relações antagónicas de classe.[3] Não por acaso, as investigações sobre o movimento estudantil nos anos 1970 foram precursoras no olhar da sociologia brasileira sobre os jovens, considerados agentes “da mudança social” por excelência (Foracchi 1972).

Nesta altura, ser “jovem” era privilégio de um setor restrito da população brasileira: o dos universitários das classes médias e altas engajados no movimento estudantil (Abramo 1994; Souza 2008). Aqueles pertencentes às classes desfavorecidas, pelo contrário, não gozavam do pleno reconhecimento como integrantes das categorias sociais “infância” e “juventude”, tão-pouco eram vistos como sujeitos dotados de “direitos”, sendo classificados como “menores” até completar os 18 anos por instituições preocupadas em assegurar a sua disciplinarização.[4]

Em Portugal, também foram os universitários a chamar a atenção da sociedade para a problemática juvenil, quando, nos anos 1960, as lutas estudantis iniciaram uma crítica aberta ao regime ditatorial em prol da democracia. Anos mais tarde, com a Revolução de 1974, reforçou-se a construção sociocultural da categoria “juventude” a partir da sua relação com a “ação política” e o “estatuto universitário”, uma representação condicionada pelos média, que atribuíam aos jovens uma atitude “militante”, “consciente” e “solidária” (Cruz et al. 1984; Pais 1990). Mais uma vez, a juventude das camadas populares não tinha lugar nas abordagens sociológicas ou jornalísticas na incipiente democracia portuguesa.[5]

Os jovens vinculados aos círculos sociais populares em ambos os países (Brasil e Portugal), portanto, só ganharam projeção pública por meio da sua associação à criminalidade e a certos territórios considerados à margem da cidade. No caso brasileiro, a juventude das favelas e periferias urbanas fora transformada pela imprensa e por setores da intelectualidade, sobretudo a partir dos anos 1980, no protótipo das novas “classes perigosas”, principalmente após o significativo aumento da violência nas principais capitais do país (Zaluar 1996; Valladares 2005).

Esta criminalização também atingiu a juventude dos bairros sociais (e “de lata”) dos subúrbios lisboetas na década de 1990, sustentada por inúmeras notícias mediáticas através da “equação pobreza-negritude-violência-bairros” (Raposo e Varela 2017: 10). Mas se os jovens “periféricos” continuam a ser objeto de problematização no campo do desvio e da marginalidade, a crescente importância das suas expressões artísticas e, sobretudo, políticas conferiu-lhes uma nova visibilidade (Caldeira 2012; Raposo 2016; Aderaldo 2016, 2017), capaz de desmontar, em parte, os discursos estereotipados que pesam sobre eles.[6]

Atualmente, mediante o significativo desenvolvimento de novas formas de produção, consumo e difusão cultural, as expressões artísticas e políticas contemporâneas extrapolaram os espaços de consagração e prestígio ­historicamente definidos pelas elites (Crespo, Morel e Ondelj 2015). Isto é bastante claro tanto nas favelas cariocas (Raposo 2012) e periferias paulistanas (Nascimento 2011; Macedo 2016; Aderaldo 2017), como nos bairros sociais lisboetas (Raposo 2010; Henriques 2016), onde jovens negros oriundos de núcleos sociais subalternizados se tornaram agentes de inovações musicais, estéticas, plásticas, poéticas e performativas, além de representantes de novas posturas e modalidades de inserção política nos espaços urbanos. Muitos deles marcam a sua presença na cena pública através da arte e da cultura, justamente na tentativa de influenciar as sociedades desiguais em que vivem.

A popularização do acesso aos meios digitais e a aprendizagem informal da manipulação das ferramentas tecnológicas também ajudaram alguns desses jovens a “mobilizar projetos culturais autónomos com o propósito (político) de interpelarem a precarização quotidiana de suas vidas” (Aderaldo e Raposo 2016: 283). Em outros casos, o acesso a recursos tecnológicos voltados para a comunicação em rede e a disseminação viral de conteúdo estimulou o desenvolvimento de “estilos de vida” (Becker 2008; Velho 2004 [1987]) caracterizados por um considerável adensamento das experiências de circulação pela cidade.

Assim, os jovens das periferias urbanas forjam inovadores circuitos de convivialidade, produção e consumo capazes de darem novos sentidos existenciais e proporcionarem identidades coletivas que contrariam os estigmas e a atomização da vida urbana. A “sensação de cidadania” (Arantes 2000) decorrente desse projeto de visibilidade influencia a autoperceção crítica dos jovens e incentiva-os a organizarem-se em torno de coletivos culturais e/ou de estilos de vida específicos.

Se as produções artístico-culturais de populações historicamente invisibilizadas e subalternizadas passaram a marcar presença em lugares de maior visibilidade nas últimas décadas, as suas lutas e demandas contribuíram igualmente para uma redefinição das políticas culturais em vigor. Atualmente, é possível dizer que a ligação entre as expressões artístico-culturais e o engajamento político dos jovens das periferias urbanas não é ignorada pelo Estado. Pelo contrário, as ações coletivas das populações consideradas jovens transformaram-se em objeto de intervenção prioritária de instituições públicas e privadas, sendo enquadradas para efeitos de “integração” e “gestão” das contradições inerentes a uma ordem neoliberal. Neste contexto, as esferas da arte e da cultura passaram a ser, cada vez mais, mobilizadas para fins de “inclusão social”, muitas vezes sob a forma de “prevenção do risco” real ou potencial de jovens rotulados como “problemáticos” ou “em risco” (Souza 2008; De Tommasi 2013).

 

Políticas públicas de cultura: Brasil e Portugal em debate

A centralidade da “cultura” na resolução dos problemas sociais foi apontada por George Yúdice (2002) como resultado de uma nova estratégia de legitimação que a concebe como um “recurso”; efeito da desmontagem dos serviços sociais (e culturais) oferecidos pelo Estado na era pós-fordista. Esta perspetiva utilitarista da cultura, segundo o autor, expandiu a sua atuação para as dimensões política e económica, abrindo caminho para a proliferação das diversas organizações agenciadoras de cultura, sobretudo organizações não governamentais (ONG).[7] Estas, por sua vez, passaram a competir por recursos (públicos e privados) segundo critérios de utilidade, numa economia da cultura que leva os artistas e as lideranças comunitárias a gerenciarem o social, ora revigorando a participação local na luta pela “emancipação”, ora produzindo uma “­ong-ização” das, assim denominadas, “culturas locais” (Yúdice 2002).

As políticas públicas no Brasil e em Portugal não ficaram indiferentes a este novo receituário global, em que a arte e a cultura emergiram como dispositivos tanto para solucionar problemas sociais, como para estimular uma “cidadania cultural” entre aqueles que são considerados “jovens” e “periféricos”.

No Brasil, a atenção dirigida à juventude desfavorecida em termos de políticas públicas é algo muito recente. Só no princípio da década de 1990 foi aprovado o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), seguido por um conjunto de medidas estatais relacionadas com os direitos dos jovens maiores de 18 anos considerados “em risco” (Brenner, Lanes e Carrano 2005).[8] Foi então que se desenvolveram muitas ONG, associações e outras instituições de assistência sem fins lucrativos, cujos projetos destinados aos jovens são mais antigos e em maior número que os programas governamentais (Abramo 1997). Grande parte desses projetos privilegiava a “integração” dos jovens “carentes” e de “comunidades”, para usar o habitual jargão, “tomando os jovens eles próprios como problemas sobre os quais é necessário intervir, para salvá-los e reintegrá-los à ordem social” (Abramo 1997: 26).

Nesta primeira fase, a participação dos jovens nos “projetos” era extremamente distante e restringia-se à sua condição de “público-alvo”.[9] Posteriormente – e já sob a influência de tratados internacionais, surgidos em convenções produzidas por organizações como a UNESCO –, a retórica desses programas foi gradualmente alterada.[10] O novo discurso hegemónico parte do pressuposto de que os jovens deveriam ser incentivados a integrar projetos de “responsabilidade social” nos seus bairros, tornando-se importantes agentes na busca de soluções para os problemas enfrentados nos seus territórios de vivência. É neste contexto que os “jovens-problema” de antigamente são convertidos nos atuais “jovens-solução” (Souza 2008; De Tommasi 2013), quando dispositivos de gestão (pública ou privada) passam a intervir prioritariamente sobre populações jovens em situação de “vulnerabilidade social”, cumprindo alguns deles a função de “mediadores” em projetos culturais entendidos como “comunitários”.

Todavia, é importante ponderar que, apesar da hegemonia dessas duas formas de pensar os sentidos e objetivos dos sistemas de financiamento e gestão cultural junto das juventudes “periféricas”, também surgiram, no decorrer do tempo, algumas experiências inovadoras nesse campo, as quais não podem ser totalmente encaixadas num ou noutro desses modelos. Esse parece ter sido o caso do programa de Valorização de Iniciativas Culturais (VAI), lançado em 2003 pela Secretaria de Cultura do município de São Paulo.[11]

Visando descentralizar os financiamentos até então destinados à “cultura” e colaborar de modo mais efetivo (e menos tutelado) com iniciativas estéticas e políticas promovidas pela juventude menos privilegiada da cidade, o VAI tornou-se um instrumento bastante arrojado. Isso porque criou ferramentas para converter os jovens nos reais “beneficiários”, na medida em que estes passaram a aceder diretamente aos recursos oferecidos pelo poder público, sem necessidade de intermediários. Os equipamentos adquiridos com as verbas do programa passaram a poder ser doados aos coletivos contemplados, desde que comprovada a sua importância para a continuidade dos projetos após o seu financiamento. Para um grande contingente de jovens moradores de áreas periféricas da cidade, isso significou poder contar, de forma permanente e autónoma, com modernos computadores, câmaras, equipamentos de som, entre outros recursos.[12]

Em Portugal, a formulação de políticas públicas para os jovens das classes desfavorecidas esteve inicialmente vinculada ao desafio da massificação do sistema de ensino público colocado após o 25 de Abril de 1974. O combate ao insucesso e abandono escolar, no quadro do alargamento da escolaridade obrigatória e da democratização do direito à educação, propiciou a criação de inúmeros programas, como, entre outros, as Escolas de Intervenção Prioritária (1988), o Programa Educação para Todos (1991), os Territórios Educativos de Intervenção Prioritária (1996) ou o Programa Integrado de Educação e Formação (1999).[13] Todas essas políticas podem ser enquadradas como medidas compensatórias orientadas para os alunos com insucesso escolar (Ferreira e Teixeira 2010; Seabra et al. 2016).

Só a partir de 2001, com o Programa Escolhas (PE), é que se afirmou uma política pública direcionada para a “inclusão social” da juventude desfavorecida independente das áreas da Educação e da Justiça. Um marco importante para essa mudança foram a “Declaração de Lisboa sobre Políticas e Programas Relativos à Juventude” (ONU 2001a [1998]) e o “Plano de Ação de Braga para a Juventude” (ONU 2001b [1998]), ambos comprometidos com a necessidade de se implementar políticas públicas nacionais potenciadoras da “participação juvenil”, do “desenvolvimento sustentável” e da “prevenção de conflitos” e do “crime”, principalmente entre aqueles que se encontravam em situação de “vulnerabilidade social e económica”.

A cargo do Alto Comissariado para as Migrações (ACM), o PE tem como principais objetivos a “prevenção da criminalidade” juvenil e a “inserção de jovens dos bairros mais problemáticos”, como assinala a Resolução do Conselho de Ministros n.º 4/2001. Embora nos anos seguintes as premissas do programa tenham sido redirecionadas para a promoção da “inclusão social”, a ideia base do PE continua a ser, em grande medida, prevenir os riscos reais e potenciais de jovens de bairros socialmente precarizados entrarem nas redes do crime.[14] Essa visão redutora acaba por desvalorizar os efeitos das políticas económicas e sociais que precarizam a vida dos jovens abrangidos pelo PE, cristalizando os estereótipos que os consideram como inerentemente “problemáticos” e “marginais”. Por outro lado, as dificuldades de “integração juvenil” na sociedade portuguesa são circunscritas aos ciganos e à chamada “segunda geração de imigrantes”,[15] o que se torna evidente pelo facto de o PE estar ao abrigo do ACM. De facto, esta é a instituição estatal de referência para as questões de cidadania, cultura e política associadas àqueles que conformam o “outro” por excelência na sociedade portuguesa: ciganos, negros, imigrantes.

A instrumentalização da arte e da cultura para gerenciar o social (Yúdice 2002) ocorre em paralelo com a introdução de um novo discurso na orientação das intervenções direcionadas aos jovens. O “empreendedorismo”, o “empoderamento”, a “resiliência” e a “liderança”, conjuntamente com o “protagonismo juvenil”, transformaram-se na fórmula privilegiada de governamentalidade (e disciplinarização) do “outro”, um conjunto heterogéneo de relações entrecruzadas de poder e saber que serve à internalização do controlo social, seguindo os preceitos de Foucault (1977, 2011). A subjetividade dos jovens passa então a ser domada pelo receituário do desenvolvimento local, e a busca de solução para os seus problemas quotidianos, atravessada pela responsabilização individual, meritocracia e lógica do empreendedorismo (De Tommasi 2014).

A consolidação desses dispositivos de gestão tornou-se hegemónica a partir da primeira década do século XXI, com a participação ativa de câmaras municipais, ONG, programas governamentais e entidades privadas de cariz social. Mais uma vez, as produções artístico-culturais e o engajamento cívico dos jovens das periferias aparecem interligados com as políticas públicas a eles dirigidas, numa conexão que nem sempre é pacífica, mas produtora de negociações, tensões e resistências entre agentes posicionados de maneira desigual na disputa por uma determinada conceção de cidadania e política cultural. É esse processo que buscaremos compreender por meio da análise dos casos que se seguem.[16]

 

Engajamento político juvenil: a afirmação do Programa Escolhas numa associação de bairro

Num bairro da periferia da área metropolitana de Lisboa (AML), um grupo de jovens das classes desfavorecidas debatia a ideia de formar uma associação local no princípio dos anos 2000. Maioritariamente negros – filhos de pais oriundos dos países africanos de língua oficial portuguesa (PALOP) –, eles ­sentiam a falta de um espaço onde pudessem estar juntos sem estarem expostos às constantes rusgas da polícia. Também queriam criar atividades lúdicas e culturais, principalmente relacionadas com o hip-hop, pesquisar sobre a história da África e ­consciencializar os seus pares sobre a problemática do racismo. A adesão à música rap cumpria algumas dessas aspirações, principalmente entre aqueles que se envolviam profundamente com esta cultura urbana.[17] Contudo, alguns tinham a opinião de que deveriam estar melhor organizados, fosse para impulsionar os seus projetos musicais, fosse para conquistar mais direitos e representatividade na sociedade portuguesa. As primeiras “sementes” para a criação da associação Encontro[18] foram lançadas no momento em que passaram a reunir-se na casa de um deles para discutir temas ligados ao associativismo, ao racismo, ao desemprego e outros problemas que afetavam a juventude do bairro:

“Quando a gente se formou foi claramente pela cena da pobreza e do racismo, principalmente o racismo. A gente discutia bué, não sabíamos muito bem como elaborar a cena do racismo, mas a gente não estava contente. E era bué a cena de não termos nada no bairro. A nossa cena no bairro era estar à noite a fumar ganzas e mandar bocas à bófia e não havia nada, não havia um ringue, não havia um espaço onde pudéssemos estar, onde não tivéssemos que levar com os filhas da puta dos prédios a chamar a bófia para ti” [19] [André, 30 anos].

Após cerca de dois meses a encontrarem-se informalmente, conseguiram a instalação de uma entidade local para promover debates e atividades culturais, o que permitiu alargar o número de jovens envolvidos. Nessa altura, escolheram o nome da associação, ao mesmo tempo que o resgate das heranças culturais africanas e o combate ao racismo despontaram como principais referências políticas e ideológicas da Encontro. Parte substancial dos jovens do bairro envolveu-se com a associação nessa altura: formou-se um grupo de dança entre as raparigas; rappers do bairro passaram a ter um local onde ensaiar; as reuniões tornaram-se mais participadas. A informalidade e a inexistência de profissionais, hierarquias ou atividades estruturadas caracterizaram a fase inicial da Encontro. Um ano depois, funcionários do recém-criado PE propuseram uma parceria à associação naquele bairro, inclusive integrando alguns dos seus membros na equipa técnica.

Tendo como foco, numa primeira fase, os jovens de bairros “problemáticos” dos distritos de Lisboa, Porto e Setúbal, o PE pretendia oferecer uma resposta preventiva à questão da violência juvenil. Meses antes da sua criação, vivia-se em Portugal um “alarme social” decorrente de um presumido aumento da criminalidade, quando as agendas mediáticas e políticas se aliaram na ­responsabilização dos jovens negros pelo fenómeno da violência urbana. Embora a imagem dessa juventude já fosse associada a comportamentos desviantes,[20] os assaltos em sequência de três postos de abastecimento e a suposta tentativa de violação de uma atriz conhecida do grande público em Portugal fizeram com que a racialização do crime (e da periferia) conjugada com as narrativas de medo subissem de tom (Carvalheiro 2008), como é possível depreender pela notícia do jornal Público:

“Roubos violentos desfilaram nas autoestradas da Grande Lisboa. Todos muito rápidos. Todos aterrorizadores. Todos limpinhos. Sete a nove jovens negros, transportados em carros velozes, roubaram três postos de abastecimento, cinco automobilistas, e uma roulotte de comes e bebes. Tudo em duas horas. Pelo caminho ainda assaltaram pessoas e quase violaram uma atriz. A PSP, PJ e GNR montaram logo um cerco impressionante. Houve perseguições à Hollywood. Mas os assaltantes escaparam” (Viana e Felner 2000).

A hiperexposição mediática deste episódio, ocorrido no verão de 2000, consolidou na esfera pública uma visão estigmatizante da juventude negra da periferia, vista como responsável por espalhar a delinquência nos espaços “legítimos”. Esse processo de codificação da violência urbana, assente na racialização do crime e na sua delimitação geográfica nos bairros periféricos de Lisboa (Raposo 2010), ampliou a sensação de insegurança, incitando a elaboração de políticas públicas de controlo, contenção e gestão de riscos daqueles que eram entendidos como os “outros” da cidade. O PE nasceu desta conjuntura de medo, quando inúmeras vozes se levantaram a exigir medidas mais duras nas políticas de combate à violência juvenil, inclusive propondo a redução da maioridade penal.[21]

Apesar das muitas dúvidas e desconfianças em aliar-se a uma instituição governamental, os jovens aceitaram a proposta do PE, entendendo-a como uma oportunidade para fortalecer ações mobilizadoras, reclamar direitos e ascender a uma existência valorizada. A hipótese de terem um espaço próprio onde pudessem criar um estúdio para os rappers e impulsionar atividades do seu interesse era por demais sedutora. Mesmo assim, optou-se pela tentativa de manter a Encontro independente do PE. Essa demarcação pretendia conservar os jovens ativos nas atividades da associação e evitar as lógicas de cooptação ou acomodação. Por outro lado, os objetivos do PE e da Encontro eram, em muitos sentidos, divergentes. O primeiro tinha como finalidade a prevenção da criminalidade juvenil, tendo como método de trabalho a ocupação dos tempos livres dos jovens ditos “problemáticos” em atividades de lazer, na escola e em cursos profissionalizantes. Tal cariz “assistencialista” não caracterizava a Encontro, cujo propósito era ser uma ferramenta de questionamento (e consciencialização) das estruturas desiguais de poder.

Após a seleção de dois mediadores locais entre os membros do grupo, delineou-se um projeto de atuação no âmbito do PE. Nesta ótica, os próprios jovens da Encontro passaram a dinamizar projetos de responsabilidade social, tornando-se os principais intervenientes na busca de soluções para os problemas enfrentados na “comunidade”. Esta perspetiva ficou patente no texto de fundamentação do Projeto da Associação Encontro:

“[…] O número de jovens apanhados nas teias da criminalidade, do insucesso escolar, do desemprego ou trabalho não qualificado e do consumo de drogas é muito preocupante, e as autoridades competentes não conseguem encontrar soluções concretas para esta realidade, que tem raízes em questões muito mais complexas como por exemplo o racismo, a pobreza e o choque de culturas. Estes jovens acima mencionados somos Nós, e se alguém se lembrasse de nos perguntar qual a nossa opinião em relação a este assunto, Nós, principais interessados em encontrar a solução, teríamos a oportunidade de responder que o problema por detrás de todos os outros é, para além de problemas económicos, a acentuada falta de estruturas de apoio e incentivo que nos ajudem a criar novos e melhores caminhos […]” [texto de fundamentação do Projeto da Associação Encontro].

Os anos seguintes consolidaram o PE como o principal agente na configuração das atividades da Encontro. Transformados em “jovens-solução”, os antigos “jovens-problema” (Souza 2008; De Tommasi 2013) passaram a ter a sua força, criatividade e rebeldia aprisionadas segundo as normas de solidariedade e cidadania elaboradas pelo Estado. Mas este não foi um processo pacífico, e as divergências com os responsáveis do PE surgiram desde o princípio. A tentativa, por exemplo, de terem como símbolo da Encontro uma imagem do continente africano foi logo desincentivada pelas autoridades do PE, temerosas de que a assunção de uma identidade negra e africana fosse prejudicial para o processo de “integração” juvenil que estimulavam. O mesmo se passou quando quiseram promover debates sobre a história da África.[22] Mais polémica foi a incompreensão do PE sobre a importância de haver um estúdio de gravação, um antigo sonho dos rappers do bairro.[23]

“Foram dois anos e tal de luta a dizer-lhes que a música podia ser um grande fator de envolvimento de jovens, porque eles não davam o dinheiro. […] Chegámos e inventámos uma cena. E até hoje [o estúdio] está improvisado, ainda agora estamos a tentar melhorar” [André, 30 anos].

Fórmula privilegiada de funcionamento do PE, o protagonismo juvenil tem como princípio recrutar os jovens para a resolução e gestão dos problemas que afetam os seus bairros. Contudo, esta participação não tem como propósito o agir político,[24] mas incentivar uma determinada via de integração marcadamente individual e meritocrática. Atraídos pela hipótese de influenciar as decisões de poder nos seus bairros e apoiar os seus pares na conquista de uma vida digna, o engajamento dos jovens é moldado por atividades que visam gerir a pobreza e evitar que o descontentamento juvenil se transforme em revoltas ou sublevações políticas. O protagonismo dado aos jovens ao abrigo do PE tinha nas suas entrelinhas uma participação encenada e restrita, dissimuladora de uma dominação que amansava os seus ideais. Este modelo de atuação diluía os antagonismos e diminuía o espaço para os discursos autónomos e emancipatórios, resultando naquilo que Regina Souza considera ser a “anulação da política” (2008: 12). Ora, a margem de manobra dos jovens da associação Encontro para pôr em prática ações do seu próprio interesse era reduzida, e inúmeras vezes foram forçados a desistir das suas ideias. O modo como o PE condiciona as atividades propostas pelos jovens desde a sua candidatura [25] foi explicado por uma antiga líder da associação:

“O PE limita as atividades. Ele não te dá um leque de abertura. Portanto, quando tu fazes a candidatura, se não vais de acordo com aqueles pontos que eles te dizem, a tua candidatura não é aprovada sequer. Quando tu vais com as atividades já aprovadas, tens que ter muita atenção com o que transmites, com o que passas, porque senão também é-te cortado, é-te limitado, percebes? […] E se ele não concordar com alguma coisa, ele não te deixa ir à frente com a ideia, nem para ver se realmente ia ser boa, percebes? E o moldar está aí. […] O PE diz-te que tens que fazer isto assim, assim e assim, caso contrário, cancelam-te. Não segues em frente. Fazes seis meses de projeto e tens a nota negativa, vêm outros seis meses, pumba, fecham-te o projeto. Nós chegamos a falar, nós chegamos a fazer as nossas questões políticas e ir mais à frente, mas nunca foi em relatório, porque não podia, não é?” [Soraia, 36 anos].

Os constrangimentos na planificação de ações no âmbito do PE reduziam a participação dos jovens à mera tarefa de execução de projetos, cujos princípios não eram definidos por eles. Paralelamente, a energia que antes era depositada em atividades organizadas pela própria associação, muitas delas de teor contestatário, passou a ser consumida pela lógica de funcionamento desta política pública.[26] Ao não existir um contrapeso suficientemente forte ao PE – tanto a nível das ações quanto em termos ideológicos –, os anos posteriores foram de progressivo desânimo entre os intervenientes da associação, que viam diminuir o número de associados. Aos poucos, a Encontro foi “engolida” pelo PE, dado que as suas iniciativas se resumiam, cada vez mais, às atividades previstas por este programa. Nas reuniões da Encontro, as discussões passaram a centrar-se nas questões burocráticas, tais como: relatórios ao PE, eleições dos órgãos diretivos, sustentabilidade financeira, planeamento de atividades, etc. Os assuntos de interesse mais relevante para os jovens eram pouco debatidos, contrariamente ao que acontecia na fase inicial da associação, quando os temas do racismo, da violência policial e da história da África eram prioritários. Esta transformação foi resumida da seguinte forma:

“Aqui é: se for pela cena black já não arranja dinheiro ou ganhas inimigos. Nesta altura, houve uma série de coisas que eu acho que desvirtuou logo ali, foi a partir dali que a associação deixou de ser aquela cena de nos encontrarmos, a martelar a cabeça, para ser uma cena pró-institucional. A partir daí a história da associação é, por um lado, o crescer do Escolhas no bairro; e por outro lado, é o diminuir do grupo de militantes. A militância na associação desce gradualmente à medida em que o assistencialismo social toma a associação: ‘vamos fazer cenas para os putos!’ Fomos perdendo, por um lado por acomodação, por outro lado por falta de tempo. A associação perdeu o vigor militante, porque as pessoas passaram a ser vistas como pessoal que está lá a trabalhar para os jovens, e não como gajos que tinham uma postura” [André, 30 anos].

A filosofia do protagonismo, alicerçada através da profissionalização de membros da Encontro no PE, contribuiu para afastar parte substancial das novas gerações da dinâmica associativa. Muitos deles passaram a vê-la como mais uma entidade prestadora de serviços, e não como um instrumento de intervenção para os jovens do bairro reivindicarem direitos. A introdução de uma hierarquia formal também desestabilizou antigos laços de amizade entre os membros mais coesos da associação, na medida em que a relação ­voluntária, pessoal e igualitária (Giner 1995) foi obstruída pela lógica institucional.

Com a dispersão dos antigos líderes da Encontro e o fim das ações de consciencialização que lhe deram origem, esta passou a ter uma existência meramente formal. Destituída do “vigor militante” de outrora, a “política” foi transformada em “política pública”, predominando a prestação gratuita de serviços e uma gramática discursiva moldada pelos interesses governamentais. Em 2015, a renovação da candidatura da Encontro foi rejeitada pelo PE, o que pôs fim a mais de uma década de “parceria” com o Estado. Desamparados, integrantes da associação ainda tentaram pô-la a funcionar em regime de “voluntariado”, mas as pressões da vida adulta [27] e o desencanto com a vida associativa impediram a sua reorganização. Embora alguns continuem a engajar-se em atividades político-cidadãs, a desmoralização gerada a partir da má experiência com o PE afastou a maioria deles do associativismo e da militância política.

 

O Programa VAI e os coletivos culturais nas “periferias” paulistanas

De modo relativamente semelhante ao observado entre os integrantes da associação Encontro, em meados de 2011, outro grupo de jovens, desta vez vinculados a um coletivo denominado Cinescadão,[28] cuja base fica na Favela do Peri, localizada numa região bastante precarizada, no extremo da zona norte de São Paulo, refletia constantemente sobre a relação (conflituosa) envolvendo as políticas culturais e a juventude residente de regiões periféricas dacidade.[29] No contexto destas reflexões, o  realizador audiovisual – e membro deste mesmo coletivo – Flávio Galvão disse as seguintes palavras:

“A gente vira bonequinhos que os caras [gestores de políticas culturais] manipulam […]. É isso a periferia deles. Fazem a gente se matar pelos [financiamentos destinados aos] projetos e depois ficam se dando créditos que, no fundo, são resultados do nosso trabalho. Com a grana dos projetos, a gente quer conseguir equipamentos para correr junto com movimentos sociais, com um pessoal que quer tomar a rua, isso sim. Não é para ficar fazendo propaganda para nenhum gestor ou político não. Mas enquanto não temos condições, vamos fazendo do jeito que dá” [Flávio Galvão, 36 anos].

A seguir complementou:

“O que eles [gestores culturais] querem é que a gente diga que a periferia é linda, que tem poesia lá, que estamos mudando o mundo. Que agora nós, os periféricos, é que vamos mostrar como somos. Essa papagaiada toda esconde muita coisa, mano […]” [Flávio Galvão, 36 anos].

Ao posicionar-se desta maneira, a intenção de Flávio foi apontar para os limites da complexa economia política da cultura que passava, cada vez mais, a gravitar em torno das periferias urbanas brasileiras, sobretudo entre as suas populações mais jovens.

Na sua visão crítica, os efeitos aparentemente benéficos das políticas culturais voltadas para a juventude pobre do país poderiam converter-se numa verdadeira armadilha ideológica, na medida em que a gramática institucional tenderia, em muitos casos, a transformar questões relativas à “desigualdade” no tocante ao acesso a direitos em simples noções vinculadas à ideia (positiva) da “diversidade cultural”. Dizendo de outro modo, para Flávio, a sedutora linguagem dos “projetos culturais”, ao transformar a “periferia” num paradigma positivo, poderia fazer com que a crítica às formas de dominação e exploração social cedesse espaço a uma perspetiva centrada no estímulo à produção e difusão de novos “produtos” (músicas, filmes, artes visuais, etc.) identificados com a marca “periferia”, para serem consumidos nos mesmos termos do mercado cultural hegemónico. Com isso, uma enorme variedade de coletivos, como o Cinescadão, tenderia a transformar-se em “pequenas empresas culturais”, formadas por um exército de jovens desempregados ou precariamente empregados e voltadas para uma cruel competição por editais, em vez de núcleos destinados ao fortalecimento de processos reivindicativos e insurgentes na metrópole paulista.

Por meio das suas palavras, este interlocutor buscava, portanto, atribuir a devida inteligibilidade aos riscos por trás da aceitação irrefletida de certos modelos de política cultural, os quais – como vimos no caso dos jovens ligados ao mencionado Programa Escolhas, em Portugal – se caracterizariam pelo modo como visam transformar os “jovens-problema” em “jovens-solução”.

A crítica de Flávio também tinha como alvo a forma como tais projetos e programas de cultura seriam, nas suas palavras, estrategicamente “manipulados” por determinados agentes políticos, com o objetivo de se capitalizarem no jogo das relações institucionais, ação que remetia o trabalho associativo dos jovens beneficiários dos projetos a uma quase completa invisibilidade, uma vez que os resultados das suas práticas ganhariam inteligibilidade pública apenas sob a forma de estatísticas, com vista a gerar dados para que políticos profissionais e gestores culturais diversos pudessem promover-se, em busca de certo destaque entre os seus pares.

É um facto que a fala ácida e amargurada de Flávio assentava sob uma considerável acumulação de experiências junto de movimentos sociais e culturais nos quais tinha participado ao longo de sua vida nas periferias de São Paulo.[30] No entanto, nem todos os integrantes do Cinescadão partilhavam essas mesmas impressões e opiniões, o que gerava tensões e conflitos nas relações entre os membros do coletivo, por exemplo, quando discordavam em relação à decisão de disputar ou não certos tipos de financiamentos e apoios com os projetos culturais que desenvolviam na região.

Descrentes no mercado de trabalho convencional, os jovens integrantes do Cinescadão consideravam os editais e a economia da cultura criticada pelo colega, não apenas uma plataforma para o engajamento, mas uma “oportunidade” de “trabalhar com aquilo de que se gosta” e, por conta disso, as opiniões de Flávio eram constantemente associadas a um “pessimismo” e “radicalismo” inoportunos.[31]

Apesar dos conflitos internos, ao menos um modelo de política cultural parecia gozar de maior credibilidade entre os integrantes do Cinescadão. Tratava-se do Programa para a Valorização de Iniciativas Culturais (VAI), criado em 2003 pela lei municipal n.º 13.540 em São Paulo.

Algumas especificidades deste programa tornavam-no, ao menos naquele período,[32] uma fonte de fomento particularmente interessante quando comparado à maioria dos editais públicos de “cultura” e, em especial, àqueles direcionados às populações residentes em áreas “periféricas”, sendo a sua principal atração o facto de estar vocacionado, prioritariamente, para coletivos sem formalização jurídica, fazendo com que essas associações não sejam obrigadas a institucionalizarem-se para poderem concorrer aos editais lançados anualmente pela Secretaria Municipal de Cultura. Ou seja, aqueles que buscam o subsídio não precisam de possuir um cadastro nacional de pessoa jurídica (­CNPJ),[33] necessitando apenas que um dos seus integrantes se inscreva na condição de “proponente”, comprometendo-se com algumas exigências para receber, em conta bancária particularmente criada para esse fim, os recursos destinados ao projeto. Parte desses recursos, por sua vez, pode ser empregada na aquisição de equipamentos que, em muitos casos, continuam com os coletivos mesmo após o fim do financiamento.[34]

Além disso, o facto de a seleção dos projetos ser feita por um conselho misto composto não apenas por técnicos vinculados ao poder público, mas também por membros da sociedade civil, confere maior horizontalidade ao programa. Tais particularidades abriram uma brecha para que organizações culturais com propostas politicamente mais ousadas pudessem, igualmente, beneficiar do referido edital, como foi o caso de uma rede de comunicadores populares chamada Coletivo de Vídeo Popular (CVP), da qual fez parte o próprio coletivo Cinescadão.

A formação desta rede deu-se após um conjunto de jovens realizadores audiovisuais politicamente identificados com diferentes movimentos de luta popular passarem a partilhar entre si a necessidade de criarem um sistema autónomo de comunicação e trocas entre áreas e populações marginalizadas de São Paulo.

Para a maioria dos atores envolvidos no processo de construção do CVP, mais importante do que criar comunicação entre espaços e populações supostamente separados por uma fronteira fixa do tipo centro/periferia seria interpelar criticamente os mecanismos políticos que asseguram a manutenção desta fronteira e do regime de desigualdades que ela conserva. Por isso, os mesmos visavam a realização, distribuição e discussão de filmes que pudessem, mais do que celebrar a pertença a uma identidade cultural “periférica”, questionar o modelo político e urbanístico responsável pela preservação das desigualdades em termos da distribuição do acesso a um conjunto de direitos à população menos privilegiada da cidade.

Em linhas gerais, portanto, os jovens que estiveram por trás desta articulação buscavam distinguir-se de um conjunto de iniciativas e representações vinculadas a instituições do chamado “terceiro setor”, cujas ações tendiam a reproduzir conceções normativas e “assistencialistas” sobre as populações subalternizadas que entendiam como seu “público-alvo”. O objetivo de consolidar a formação de uma rede de coletivos especialmente dedicados à comunicação popular seria, assim, desenvolver um circuito capaz de consolidar pontes comunicativas entre associações informais, com perfil mais reivindicativo e dissidente na metrópole.

Foi então que os mesmos decidiram, em meados de 2009, escrever coletivamente um projeto para o Programa VAI, tendo o CVP, após a seleção da proposta, desenvolvido durante dois anos seguidos um conjunto de ações, dentre as quais cabe destacar: (1) a elaboração de uma publicação semestral intitulada Revista Vídeo Popular; (2) a organização de pacotes de DVD produzidos por membros da rede e separados por linhas temáticas, os quais eram gratuitamente distribuídos, juntamente com a revista, em albergues, escolas públicas, bibliotecas comunitárias, associações de bairro, universidades, sedes de movimentos sociais, entre outros lugares; e (3) a criação de um circuito de exibição e debate de filmes em áreas marginalizadas da capital paulista.

Além de os recursos terem sido passados diretamente para a mão dos jovens, em nenhum momento houve controle externo ou exigências de que o conteúdo das ações da rede se adaptasse àquilo que o poder público desejava. Com isso, as experiências de troca partilhadas entre os coletivos vinculados ao CVP trouxeram aos seus membros uma condição privilegiada para conhecerem e, ao mesmo tempo, interpelarem de forma mais crítica a cidade e as causas por trás da sua paisagem segregada, por exemplo, por meio de textos (publicados na Revista Vídeo Popular), filmes (incorporados nos pacotes de DVD que organizavam) e debates (realizados durante as exibições itinerantes), nos quais críticas à própria prefeitura, bem como a certos aspetos da economia da cultura direcionada à juventude menos privilegiada eram claramente colocadas.[35]

Com o fim do financiamento após dois anos seguidos, no entanto, a falta de verba para darem continuidade às ações gerou uma série de desgastes e desentendimentos.[36] Assim como no caso da associação Encontro, as tentativas de prosseguirem atuando de maneira voluntária não tiveram sucesso, o que se agravou quando as pressões da vida adulta afastaram alguns dos membros mais ativos da rede, que acabou por encerrar as suas atividades no fim de 2012.

 

Considerações finais

A reconstituição etnográfica das experiências de distintas associações culturais vinculadas a regiões periféricas de Lisboa e São Paulo nas suas (complexas e desiguais) negociações com os poderes públicos, como procurámos fazer neste artigo, permite-nos apreender o mecanismo pelo qual, nos tempos atuais, a economia da cultura se transformou em “moeda corrente” para o controlo do tempo livre de populações juvenis subalternizadas.

Tal percurso leva-nos, ainda, a refletir sobre os problemas existentes por trás de interpretações “apocalípticas”, tendentes a compreender os jovens apenas como “vítimas” dessa economia da cultura. Ao fazê-lo, ignoram a sua capacidade de refletir e resistir aos efeitos normativos nas suas práticas quotidianas, assim como negligenciam a hipótese de surgirem dentro do poder público tendências mais progressistas, preocupadas em desenvolver políticas realmente capazes de estimular processos emancipatórios.

Como sustentam Crespo, Morel e Ondelj (2015: 10-11), as políticas culturais configuram um espaço público no qual se intersetam interesses e lógicas muitas vezes discrepantes. Trata-se de um terreno no qual se processam tanto formas de produção de legitimidades, quanto disputas entre diferentes atores sociais e as suas respetivas visões do mundo. Neste sentido, a aproximação comparativa entre certos aspetos relacionados com os programas Escolhas (em Portugal) e VAI (no Brasil) pareceu-nos uma opção profícua, pelo facto de se tratar de políticas inspiradas em princípios significativamente diversos e com desdobramentos igualmente distintos.

Conforme procurámos demonstrar, a aposta num sistema capaz de privilegiar a entrega direta de recursos aos jovens, assim como a análise baseada na participação de um conselho misto de avaliadores, evitando impor paradigmas fechados a respeito do que deveria ou não ser reconhecido como “cultura” por parte do poder público, foi uma alternativa inovadora e bem-sucedida do VAI. O investimento nesta metodologia permitiu aos beneficiários do programa auto-organizarem-se segundo os seus próprios modelos para pôr em prática projetos delineados efetivamente por eles.

É possível dizer que o programa VAI identifica os jovens como mais do que simples técnicos comunitários a executarem projetos estatais numa lógica top-down. Como os recursos oferecidos pelo programa não são exclusivos das ONG e instituições com identidade jurídica formalizada, uma diversidade imensa e heterogénea de iniciativas culturais – que já brotavam nas bordas da capital paulista – passou a ter condições para se consolidar, sendo parte significativa dessas iniciativas, como vimos no caso do Coletivo de Vídeo Popular (CVP), vocacionada para realizar projetos mais engajados politicamente.[37]

Em contraste com o VAI, o Programa Escolhas tende a remeter os jovens para uma posição passiva, pois a sua participação encontra-se subordinada a uma conceção ideológica que obstrui a emergência de posturas mais reivindicativas e insurgentes. As atividades e discussões realizadas no âmbito desta política pública tornam-se blindadas a pontos de vista mais críticos, sendo desestimuladas as vias de consciencialização sobre a desigualdade estrutural em que eles estão imersos.

A ausência da palavra autónoma torna os jovens objeto de discursos e políticas, “não-sujeitos”, na medida em que as suas exigências e os seus anseios são ocultados. Embora a lógica do “protagonismo juvenil” seja legitimada por um suposto discurso da juventude, este é o “discurso da juventude sem voz”, como explicou Regina Souza (2008: 16), justamente porque as suas prioridades são invertidas. É diante deste quadro analítico que devemos entender, não só a pressão constante das autoridades do PE para evitar que os jovens da Encontro debatessem os temas que julgavam relevantes, mas o próprio fim da associação, cujos últimos anos de vida foram absorvidos por uma lógica assistencialista de prestação gratuita de serviços em detrimento da conquista de direitos.

Sem querer menosprezar os efeitos benéficos da economia da cultura na consolidação da cidadania, o facto é que a sua aplicação pode contribuir para afirmar tanto uma agenda emancipatória quanto uma lógica de controlo social e gestão da pobreza. As políticas públicas debatidas neste texto são exemplificativas desse paradoxo, em que as possibilidades de engajamento político-associativo dos jovens são incentivadas ou bloqueadas dependendo do modo como se fundam os princípios que orientam essa participação.

 

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Receção da versão original | Original version 2017/07/28
Aceitação | Accepted 2018/02/27

 

 

NOTAS

[1] Agradecemos especialmente à Fundação para a Ciência e a Tecnologia (SFRH/BPD/94011/2013), em Portugal, e à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (processos n.º 2009/50153-2, n.º 2014/04243-8 e n.º 2017/04416-8), no Brasil, pelo financiamento das pesquisas que dão lugar ao presente artigo.

[2] A obra de G. Stanley Hall (2004 [1904]) é paradigmática dessa abordagem.

[3] Para uma visão mais aprofundada sobre esta questão, ver Martínez e Valenzuela (1986).

[4] Até à promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) no Brasil, em 1990, o termo “menor” era hegemónico e servia para nomear desde leis direcionadas às crianças e aos adolescentes pobres (Código de Menores) a órgãos específicos (Serviço de Assistência ao Menor, Juizados de Menores), num arcabouço institucional que privilegiava o controlo social sobre os seus corpos (Coimbra e Nascimento 2005).

[5] Isso só veio a ocorrer a partir do final da década de 1970 com os temas da droga, sexo, delinquência e desemprego (Cruz et al. 1984).

[6] O alargamento da juventude para outras classes sociais deslocou a episteme das investigações sobre juventude da ideia de crise para a situação de exclusão-inclusão, o que é flagrante tanto na produção académica como nas políticas públicas e recomendações de organismos internacionais (Souza 2008).

[7] A cultura passou a ser compreendida como uma área central para a criação e atração de investimentos, numa culturalização da economia que busca extrair o máximo valor do património cultural e das atividades lúdicas, seja através da indústria cultural e de um comércio de produtos de cariz comunitário/sustentável, seja através de uma “economia das experiências” que busca atrair turistas e capital, transformando áreas das cidades em “territórios consumíveis” (Yúdice 2002; Baptista 2004).

[8] O Ano Internacional da Juventude, proclamado pela ONU em 1985, foi um marco decisivo para a mudança de certos paradigmas que até então caracterizavam as políticas públicas direcionadas ao setor, ao movimentar uma série de entendimentos e iniciativas em diferentes estados nacionais com vista a que a juventude fosse abrangida como segmento populacional e social específico (Souza 2008).

[9] Numa primeira visão panorâmica dos programas dirigidos aos jovens desfavorecidos para fins de inclusão social, Helena Abramo (1997) referiu que estes se dividiam em dois grandes blocos: programas de ressocialização que utilizavam a educação não formal, oficinas ocupacionais e de desporto; e programas de capacitação profissional e orientação para o mercado de trabalho que, muitas vezes, estariam desconectadas de uma real inserção laboral.

[10] Sobre este aspeto, ver Souza (2008).

[11] Trata-se da lei municipal n.º 13.540, de autoria do vereador e arquiteto Nabil Bonduki (PT). Para mais detalhes, consultar http://programavai.blogspot.com.br/ (última consulta em fevereiro de 2019).

[12] Para uma visão mais abrangente de algumas políticas culturais relativamente inovadoras que foram adotadas no Brasil durante a primeira década dos anos 2000, ver, particularmente, Ortellado e Lima (2013).

[13] Paralelamente, assistiu-se à emergência das Comissões de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ) em 2001, que alargou as competências das antigas Comissões de Proteção de Menores (CPM), criadas na sequência do Decreto-Lei n.º 189/91. Ver Tomás e Fonseca (2004) e Sarmento, Fernandes e Tomás (2007).

[14] A partir de 2004 o eixo de intervenção do PE deixou de ser a “prevenção da criminalidade”, passando a ser a “inclusão social”. O programa foi alargado a todo o país, ficando sob a alçada do Alto Comissariado para a Migração e Minorias Étnicas (ACIME), atual ACM.

[15] Com forte cariz essencialista, esta denominação surgiu da necessidade de delimitar uma série de problemas sociais, servindo-se das referências culturais dos pais desses jovens para legitimar a sua suposta não integração na sociedade portuguesa. O resultado desse enquadramento oficial é a restrição dos direitos de cidadania dos filhos de imigrantes. A lei de nacionalidade que vigora atualmente é disso mesmo exemplo, ao considerar que não basta nascer em Portugal para se ser português. Fundada na prevalência do princípio do jus sanguinis sobre o jus soli, esta lei exclui do acesso imediato à nacionalidade portuguesa todos aqueles que, nascidos em Portugal, são filhos de imigrantes sem residência regularizada há pelo menos dois anos. Para mais informações, consultar https://www.publico.pt/2018/04/20/politica/noticia/esquerda-e-pan-aprovam-alargamento-da-nacionalidade-1811095 (última consulta em fevereiro de 2019).

[16] Embora o Programa Escolhas e o VAI sejam iniciativas de Estado de dimensões diferenciadas – nacional e municipal, respetivamente –, o contraste entre essas políticas é bastante pertinente na medida em que os princípios que guiam ambas as políticas públicas têm como base a economia da cultura e o engajamento cidadão de jovens de camadas sociais desfavorecidas.

[17] O rap detinha uma forte centralidade nas dinâmicas do grupo, sendo um estilo musical que fomentou em muitos dos jovens o engajamento político e associativo.

[18] Optou-se por não utilizar o nome verdadeiro da associação e dos nossos interlocutores, de forma a preservar o seu anonimato.

[19] “Bué” e “bófia” são termos de calão que significam, respetivamente, “muito” e “polícia”.

[20] O reconhecimento público da existência de jovens negros (ou afrodescendentes) na sociedade portuguesa, no princípio da década de 1990, não pode ser dissociado da racialização da periferia de Lisboa, em que as noções de anomia, incivilidade e violência serviram de “guia” para os discursos mediáticos. Para um aprofundamento dessas dinâmicas, consultar Alves (2013) e Raposo e Varela (2017).

[21] O projeto de lei apresentado por Paulo Portas (CDS-PP) propunha que os jovens passassem a ser imputáveis criminalmente a partir dos 14 anos de idade, enquanto a proposta de Durão Barroso (PSD) fixava esse marco nos 15 anos. Ambas foram chumbadas no Parlamento, mantendo-se a maioridade penal de 16 anos em Portugal (Felner 2001).

[22] Se no primeiro caso a associação recuou, no segundo os jovens não aceitaram as orientações dos responsáveis do PE, continuando a promover atividades relacionadas com a história africana.

[23] O estúdio acabou por ser construído anos depois de forma improvisada e com poucos recursos, impedindo que os jovens gravassem as suas músicas de forma profissional.

[24] A capacidade para agir (ou ação) na conceção de Hanna Arendt está diretamente ligada à condição plural do homem, sendo a sua “atividade política por excelência” (Arendt 2007: 17). Ao ser capaz de interromper rotinas e recomeçar, traz coisas novas ao mundo, que de outro modo seria previsível.

[25] Todas as candidaturas ao PE devem conter um projeto estruturado na área da inclusão juvenil, sendo formulado segundo alíneas, objetivos e princípios predefinidos. Estes dão forma às áreas estratégicas de intervenção do PE, que até ao momento são: inclusão escolar e educação não formal; formação profissional e empregabilidade; dinamização comunitária e cidadania; inclusão digital; empreendedorismo e capacitação.

[26] A pressão crescente por resultados impelia as principais lideranças da associação Encontro (transformadas em técnicos do PE) a atingir um certo número de jovens em cada uma das atividades propostas, uma forma de gerar dados estatísticos para legitimar a eficácia do PE. Neste simulacro de intervenção social, a pretensa inclusão dos jovens esbarrava na lógica dos números, não interessada num acompanhamento personalizado.

[27] Muitos dos membros da Encontro já tinham filhos e/ou viviam com os seus cônjuges, sendo responsáveis por garantir o sustento familiar.

[28] Diferentemente da secção anterior, aqui optamos por manter os nomes originais dos coletivos, instituições e jovens envolvidos. Tal escolha se deu em função de conversas com os próprios interlocutores, que desejaram ter os seus nomes reais divulgados, além de as críticas e posicionamentos dos mesmos já terem sido explicitados publicamente, tanto em textos e comentários na Internet, quanto em vídeos e outras práticas políticas protagonizadas por eles.

[29] Nascido em 2007, a partir da iniciativa de seis jovens moradores de diferentes áreas da região norte de São Paulo, o Cinescadão é um coletivo dedicado a múltiplas linguagens artísticas, sobretudo o audiovisual e a música rap. No período da pesquisa etnográfica, realizada entre 2009 e 2013 no contexto de um projeto doutoral na área da antropologia, a sua “base” localizava-se em frente a uma grande escadaria (daí a origem do nome), situada numa viela na Favela do Peri, numa das regiões com pior índice de desenvolvimento humano (IDH) do município e onde viviam três dos seus integrantes. As intervenções do coletivo consistiam na ocupação de espaços marginalizados (não apenas na Favela do Peri) para exibição de vídeos com conteúdo político, os quais eram intercalados com músicas, principalmente rap, além de inscrições de grafíti. Tais atos eram denominados “ocupações audiovisuais” pelos mesmos. Para maiores detalhes, ver Aderaldo (2016, 2017) e Aderaldo e Raposo (2016).

[30] Com quase 37 anos naquela altura, Flávio era o integrante mais experiente do coletivo Cinescadão e possuía uma trajetória bastante particular. Filho de uma família “operária” e de camada média baixa, conseguiu ingressar no curso de Letras na Universidade de São Paulo (USP), onde se formou. O realizador audiovisual também fez parte de diversos movimentos políticos, desde o movimento punk, na adolescência, até movimentos de luta por moradia, nos quais participava como cinegrafista/militante. Além disso, Flávio também somava, conforme dito, passagens por distintos movimentos culturais nas periferias da cidade, entre os quais o próprio Cinescadão.

[31] A maior parte dos integrantes do coletivo não possuía profissão fixa naquela altura, vivendo dos poucos rendimentos que conseguiam em projetos culturais e trabalhos temporários. Esta situação de precariedade laboral fazia da atuação em atividades como as promovidas pelo Cinescadão uma fonte de “renda”, já que parte dos recursos que conseguiam com prémios e projetos podia ser convertida em pequenas “ajudas de custo”, assim como os equipamentos adquiridos eram muitas vezes utilizados para a realização de outras atividades económicas. Para uma crítica mais aprofundada da relação entre programas de financiamento cultural e formas de precarização do trabalho, ver De Tommasi (2016).

[32] É importante adiantar, no entanto, que, conforme argumentaremos mais à frente, após a mudança na gestão municipal de São Paulo, com a substituição do prefeito Fernando Haddad (PT), pelo sucessor João Dória (PSDB), houve uma série de controvérsias relacionadas com o programa, as quais afetaram, sensivelmente, a credibilidade que o mesmo possuía até então entre os jovens.

[33] Trata-se de uma ficha cadastral junto ao Ministério da Fazenda, que, mediante uma série de garantias, confere a identidade de “pessoa jurídica” a grupos e associações com ou sem fins lucrativos. Todavia, para conseguir um CNPJ, exigido por muitos editais de financiamento cultural no país, é necessária, entre outras coisas, a constituição de um quadro hierárquico de funções, algo que nem sempre se enquadra nos princípios e formas de organização dos coletivos.

[34] Para ter acesso aos recursos, no entanto, é preciso enviar um formulário com a previsão exata de como os recursos serão gastos. O “proponente” também firma um contrato, assumindo responsabilidades diante do financiamento a ser recebido. Para evitar problemas, a equipa do VAI disponibiliza-se a auxiliar tecnicamente os coletivos no tocante à execução dos projetos e à prestação de contas.

[35] Ver detalhes deste processo em Aderaldo (2017).

[36] Naquele momento, dois anos era a duração limite para que um mesmo grupo pudesse receber os subsídios do programa.

[37] Apesar destas considerações, é preciso evitar uma representação idealizada deste programa, uma vez que, como vimos, o mesmo não é capaz de retirar os seus jovens beneficiários da situação de precariedade laboral na qual se encontram. É comum, por exemplo, que os coletivos tenham dificuldade em manter-se organizados após o fim do financiamento, entrando num processo de busca contínua de novos financiamentos. Além disso, o VAI tão-pouco pode proteger-se de possíveis alterações decorrentes das trocas de comando na gestão municipal. Um bom exemplo disso ocorreu durante o mandato de João Doria (PSDB) como prefeito de São Paulo. De perfil liberal e conservador, o mandatário não somente cortou uma grande fatia da verba tradicionalmente afeta ao programa, como modificou parte significativa da equipa responsável pelo mesmo, devido à sua suposta identificação com a gestão do ex-prefeito Fernando Haddad (PT). Segundo uma série de denúncias e reportagens recentes, tais mudanças desdobraram-se em tomadas de decisão que passaram por cima daquilo que fora decidido nas reuniões do conselho. Para uma visão mais detalhada desses desdobramentos, ver, especificamente, a seguinte reportagem: http://www.redebrasilatual.com.br/entretenimento/2017/05/secretaria-da-cultura-de-doria-interferiu-no-resultado-do-programa-vai-acusam-julgadores (última consulta em fevereiro de 2019).

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