SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.23 número3Sob diferentes tetos: etnografando casas e revelando dimensões educativas e patrimoniaisFormarse al interior de un linaje: el caso de los estudiantes de teatro del circuito realista en Buenos Aires índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Etnográfica

versão impressa ISSN 0873-6561

Etnográfica vol.23 no.3 Lisboa out. 2019

https://doi.org/10.4000/etnografica.7511 

ARTIGO ORIGINAL

Erótica dos fluidos masculinos em práticas sexuais coletivas

Eroticism of masculine fluids in collective sexual practices

 

Victor Hugo de Souza Barreto*

*Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense (PPGA-UFF), Brasil torugobarreto@yahoo.com.br

 

RESUMO

A proposta de se levar a sério a maneira como a corporalidade e os fluidos corporais são elementos significativos em determinados contextos ainda é relativamente recente na ciência antropológica. Este artigo é uma contribuição nesse sentido, na medida em que procuro descrever e analisar como funciona uma certa erótica da fragmentação corporal e dos fluidos corporais masculinos em um contexto de práticas sexuais exclusivas para homens. A partir de dados produzidos em duas pesquisas etnográficas sobre encontros de grupos para práticas sexuais grupais ou coletivas aponto como “produtos” corporais tais como secreções, fluidos e excreções são atravessados aqui por diversos fatores (principalmente o de gênero) e entram em uma determinada circulação de “economia libidinal”. Atento também para como essa circulação atravessa e distende noções de risco, nojo, repulsa, desejo e excitação.

Palavras-chave: corpo, fluidos, masculinidade, nojo, sexualidade

 

ABSTRACT

A relatively recent approach in anthropological knowledge takes corporality and bodily fluids as significant elements in particular contexts. Within that frame, the article offers description and analysis of the workings of a kind of eroticism drawing on body fragmentation and masculine bodily fluids in the context of group sexual practices exclusive for men. Data resulting from two ethnographic researches among groups that meet to engage in plural or collective sexual encounters shows that bodily “products” such as secretions, fluids and excretions are connected to different factors (mainly gender) and participate in a certain circulation of “libidinal economy”. These exchanges both cut across and extend notions of risk, disgust, repulsion, desire and sexual arousal.

Keywords: body, fluids, masculinity, disgust, sexuality

 

Introdução

O interesse da antropologia por uma certa fenomenologia corpórea pode ser rastreado já desde os trabalhos de Mauss, por exemplo. De fato, a atenção exclusiva a essa temática – do corpo (fragmentado ou não), seus componentes, orifícios, secreções, fluidos, excreções e mesmo as mais diversas emoções que circundam esses elementos (nojo, repulsa, desejo, excitação, etc.) – só se conforma enquanto um campo teórico e uma linha de pesquisa independente e consistente nos últimos 20 anos. Porém, essas problematizações podem ser encontradas de forma transversal em vários trabalhos da disciplina: na observação que Mauss faz sobre a importância de perceber as diversas formas de construção do corpo e as “técnicas corporais” que cada sociedade possui e elabora (Mauss 2003), nas análises estruturalistas de Lévi-Strauss sobre os mitos que envolvem questões corporais (Lévi-Strauss 2004), nas discussões sobre parentesco (Schneider 2016; Carsten 2004) nas quais diferentes fluidos e moralidades se entrelaçam na definição de parentes afins ou não, no estudo da presença ritualizada e simbólica de elementos corporais (Turner 1974), etc., é possível perceber a relevância de atentarmos para como, em diferentes contextos, são construídos diferentes corpos e seus fluidos, assim como maneiras de percebê-los e de construir (ou não) “tabus” sobre esses elementos (Rodrigues 2006).

Proponho me ater aqui justamente a essas produções de corpos e sentidos dados a seus elementos naquilo que se relaciona com uma questão de gênero, de valorização de uma determinada masculinidade, em um contexto de interação sexual exclusivo para homens.[1] A masculinidade que é produzida nesses eventos atende ao que eu chamei de “princípio da masculinidade” (Barreto 2018a), ou seja, valores, normas e roteiros que dão forma e conteúdo a uma performance de uma “masculinidade exagerada” que é desejada nesses espaços. O que percebi é que esses eventos possuem uma certa produção subjetiva e desejante específica, a de um homem que seja “macho, discreto e puto”.[2]

Nesse artigo apresento algumas das conclusões obtidas através de duas pesquisas: a primeira, de onde retiro a maior parte dos dados, foi realizada para meu doutorado em antropologia (Barreto 2017a). Ali desenvolvi uma pesquisa sobre a prática do sexo coletivo/grupal em festas organizadas exclusivamente para homens na cidade do Rio de Janeiro. Ao longo dos anos de 2013 a 2015 acompanhei quatro desses eventos que são periodicamente organizados em espaços comerciais pela cidade.[3] As festas se dividiam entre aquelas que exigiam algum tipo de processo seletivo para os participantes e aquelas que eram abertas para que qualquer um que quisesse ir, desde que fosse homem (cisgênero) e correspondesse a um determinado perfil de masculinidade desejado. O número de participantes variava muito, mas ficava em torno de 150 a 200 homens naqueles eventos que não exigiam seleção e no máximo 50 naqueles onde havia o processo seletivo.[4]

A segunda pesquisa se refere a um projeto de pós-doutorado realizado entre 2017 e 2018,[5] no âmbito do qual acompanhei alguns grupos de conversas online (seja em aplicativos de celular como WhatsApp, ou alguns fóruns e sites) e seus respectivos encontros de sexo coletivo voltados para interações e trocas de materiais sexuais. Problematizei então a tensão entre prazer e risco encontrada nessas práticas. Trata-se principalmente de grupos que organizam encontros e debates sobre sexo bareback (sem preservativo) e o chamado sexo pig (também conhecido como “sexo sujo”, ou seja, um conjunto de práticas sexuais que envolve elementos escatológicos ou daquilo que consideramos “sujeira” ou “nojento”). Os grupos também são exclusivos para homens “cis” (ainda que eventualmente pessoas transgênero, como travestis e transexuais, sejam adicionadas às redes virtuais, sua participação nos encontros presenciais é vedada); os grupos virtuais podem contar com até 250 participantes, e os encontros presenciais podem variar bastante de acordo com os interesses, de uma dinâmica de apenas uma dupla, ou um trio, até eventos festivos com cem participantes.

Acredito que as festas de orgia das quais falo aqui têm as suas especificidades. Claro que possuem muitas semelhanças com outros espaços de sexo disponíveis nas grandes cidades e tão importantes na construção de uma socialidade homoerótica (como saunas, cinemas pornográficos, cabines privês, dark rooms, etc.), mas essas festas não são organizadas para serem eventos cotidianos. São verdadeiros acontecimentos onde um grande grupo de homens se reúne para se ligarem numa prática de sexo coletivo totalmente oposta aos modelos tidos como padrões e onde o que importa é aquele encontro e mistura de corpos anônimos e desconhecidos, o puro prazer que o corpo do outro pode proporcionar. Aqui a palavra falada quase desaparece, a linguagem toma outros meios, como os toques e os gestos. A visão é desprivilegiada pelo tacto, e o cheiro e a audição tornam-se mais sensíveis e são estimulados pela multidão de corpos misturados no sexo coletivo na escuridão desses ambientes. Proponho ao leitor, portanto, um mergulho sobre o corpo “de homem” que é produzido nesses contextos e a singular erótica dos fluidos desses corpos masculinos encontrada ali.

 

O corpo-fragmento do homem e seus “produtos”

Há um uso e uma elaboração do corpo masculino muito próprios que percebo no desenrolar desses eventos. Os sentidos dados aos orifícios, extensões, substâncias e secreções da multidão de corpos nesses eventos orgiásticos tomam aqui atribuições que tentarei explorar nesse item.

Que as extensões e partes do corpo ganhem agência e tomem “vida” neste contexto, me parece ser aquilo que chama mais a atenção. O corpo masculino, nesses eventos, é dividido e captado por seus fragmentos, há uma dissolução de formas constituídas – característica do erotismo, segundo uma definição clássica de Bataille (2013) –, um corpo decomposto, em pedaços que possuem vida própria, um “corpo impossível” (Moraes 2002). “Queria dar para os 22 centímetros dele”, agência do pênis, você não quer “dar” para o outro indivíduo, você quer “dar” para o membro dele, um membro que toma vida e persona aqui.[6]

A extensão do pênis como um corpo único, separado e com agência própria aparece durante as interações no tratamento dele: como se fosse um ser com vontade própria, referenciado na terceira pessoa, alguns com nomes ou apelidos, olhados, tocados e desejados como o elemento único de apreensão do outro. Isso pode chegar até o uso de algumas “tecnologias”, como o anel peniano, um acessório feito de plástico ou metal, colocado na base do membro (alguns incluem o escroto também) e que prende a circulação sanguínea no pênis, mantendo a ereção. Para quem usa, a sensação parece ser de uma excitação constante: “parece que alguém está apertando o meu pau o tempo todo”. Para o outro, a sensação é mais complexa. O toque, a manipulação do pênis, causaria uma relação/sensação estranha, pela percepção até de uma ­temperatura diferente, ele fica mais frio/gelado do que o restante do corpo, como um membro dormente, apesar de intumescido, o que acaba aumentando a sensação de uma separação de corpos, de objetificação de uma parte, de um membro: “eu gosto e desgosto; gosto porque o pau tá ali sempre duro, mas é estranho ao mesmo tempo, porque fica parecendo uma carne morta”. Assistimos à formação de um corpo “outro”, em um exercício de transformar partes do corpo em “dildo”, nos termos de Preciado (2014). Mesmo o próprio pênis, no caso, poderia virar um dildo.[7] E ainda que tenha visto poucas vezes isso acontecer nas festas que acompanhei, havia outras formas de objetificação ou de “deslocamento do dildo” para outras partes do corpo, como dedos, mãos, braços e pés, em interações sexuais nas quais essas partes é que penetravam, numa forma de relação sexual desgenitalizada ou que não girava em torno da penetração do pênis.[8] Práticas como o fist fucking (penetração das mãos e punhos) ou foot fucking (dos pés) foram observadas por mim, ainda que nesses espaços não exista uma preparação específica necessária e que se costuma ter para essas formas de interação sexual (como cadeiras suspensas, luvas, grande quantidade de lubrificante, etc.). Eram coisas que surgiam na intensidade das interações e que chamavam bastante a atenção, justamente por sua raridade ali.

Apesar disso, a centralidade do pênis como objetificação do outro permanece hegemônica, ainda que com usos que podem relativizar ideias generalizadas. Comecemos pelos sentidos que são dados ao ato que comumente é tido como um sinal de perda da virilidade: o “brochar”. À primeira vista, num espaço onde o ato sexual e a masculinidade demonstrada entre “machos” é performatizada de uma forma tão exagerada, não conseguir ter ou manter uma ereção poderia ser lido de uma forma desastrosa. Não é o caso.[9] O “brochar” aqui é relativizado e entendido de outra forma. Rodrigo (uso nomes fictícios) se aproxima de mim depois de ter transado e fala sobre o cara que foi ativo com ele:

“Meio decepcionante. Às vezes você vê o cara assim e tal, maior pinta, mas aí na hora nem manda tão bem assim. É diferente do cara que brocha. Quando brocha sempre dou uma segunda chance. Hoje ele pode não estar bem, mas quem sabe numa próxima? Ou então só não me curtiu”.

A fala de Rodrigo explicita o que, de maneira geral, encontrei no campo: não conseguir ter uma ereção não só não é um grande problema, como até acontece com regularidade. Além do mais, engana-se quem acha que a “obrigação” da ereção estaria restrita àqueles que seriam apenas ativos. Como já ouvi aqui, “passivo que é passivo dá o cu com o pau durinho do início ao fim e ainda goza dando sem nem colocar a mão”, uma máxima que de fato pouco vi acontecer ali. Há um afrouxamento ou uma maior compreensão com relação a isso. Como não há um compromisso com o outro, brochar não parece causar maiores constrangimentos. Aliás, a qualquer momento pode-se abandonar a interação, sem maior ou mesmo nenhuma explicação. A camisinha pode incomodar, bem como a falta de uma posição confortável, a dificuldade de penetração do passivo, as pessoas falando muito ao redor, ou “atrapalhando” por quererem passar a mão e participar de alguma forma. Ou, simplesmente, o encontro desses corpos desconhecidos pode não funcionar, não “encaixar”, não “dar liga” ou não “ter química” de alguma forma naquele momento. Enfim, são inúmeros os fatores que podem levar a uma desconcentração e perda de estímulo. O que comumente se entende como uma “fraqueza”, aqui é apenas resultado de um mau encontro.

Do brochar poderíamos passar para a questão do “cheque”. Afinal, como me disse um dos participantes: “o brochar está para o ativo assim como o cheque está para o passivo”. O “cheque” ou “passar o cheque”, é o aparecimento de fezes durante o sexo anal, que costuma ser evitado pela prática da “xuca”, uma ducha higiênica para retirar os resíduos do intestino, evitando uma situação constrangedora durante a penetração anal.[10] A “xuca” é um dos recursos possíveis, assim como a atenção a uma alimentação específica antes de ir para a festa ou mesmo a simples ida ao banheiro. Cada participante possui métodos próprios, a partir de um conhecimento do funcionamento do seu corpo. Porém, é muito comum, nas várias interações que acontecem durante as festas, alguém “passar cheque”, o que faz com que o cheiro de fezes recorrentemente apareça e tome conta de determinados espaços por alguns momentos. As reações são várias, pode-se ignorar e continuar a interação, com ninguém se importando com o odor e a “sujeira”, principalmente se a intensidade da interação for alta, as fezes ali até podendo entrar como elemento erótico na cena, ou pode-se começar a ouvir reclamações e denúncias: “Porra, quem passou cheque aí? Vai se lavar, meu irmão. Fica cagando no pau. Bando de gente porca!”

Se as fezes, enquanto excremento, possuem esse valor ambíguo nesses espaços, o mesmo não pode ser dito do sêmen. O sêmen é um líquido costumeiramente impregnado de significados simbólicos que são associados a valores ligados à masculinidade, à força, à reprodução, à própria vida e, da mesma forma, a riscos e perigos que podem ou não ser erotizados (Miller 1997; ­Pelúcio 2009). O aparecimento do sêmen é sempre algo buscado, desejado, e gera atenção. Sempre que alguém vai ejacular, há como que uma suspensão dos que estão em volta para acompanhar a expulsão do sêmen, mesmo que ele não seja visível. A excitação e o prazer que muitos sentem em ver, tocar, sentir ou mesmo beber a “porra”, “tomar o leite”, são nítidos e perfazem a ideia de uma relação pela troca de fluidos que só é possível entre homens.[11] O contato com o esperma de outro homem aqui não teria um efeito “femininizador”, como pode ser percebido em uma leitura mais generalizadora (Miller 1997), mas sim de incremento de uma masculinidade. Ainda que, principalmente nos grupos virtuais e encontros bareback, tenha observado alguns interlocutores acionarem termos como “engravidar” se referindo à recepção do sêmen (“Pode gozar dentro, me engravida”; “Vou te deixar grávido de tanta porra que vou colocar aí dentro”), percebo que essa “gravidez” não se dá em termos femininizadores; “engravidar”, nesses contextos, significa receber e acumular em si esse fluido tido como potente e altamente masculino, incrementando a própria masculinidade e não a diminuindo.[12]

Herdt (1993) também conta como entre os Sambia as relações masculinas passam através do sêmen. Para eles, esse fluido corporal não é apenas uma coisa, ele tem um valor transcendental que o autor mostra através das “transações seminais” entre os homens Sambia. Naquilo que o autor chama de “homossexualidade ritualizada”, homens mais velhos doam sêmen para os mais novos através dos ritos iniciáticos de masculinidade. Os mais novos tomam o sêmen em rituais de sexo oral como forma de aumentar sua força, de “empoderamento” de sua masculinidade e como “manutenção” espiritual daquele grupo. A troca de sêmen é indispensável aos rapazes para que eles se tornem homens, para adquirirem força e separarem-se do mundo das mulheres.

Essa prática, para Herdt, teria criado entre os Sambia uma arte que poderia ser chamada de “semenology” (1993: 210), ou seja, um conhecimento das formas, texturas e sabores do sêmen, que é debatido e analisado como por apreciadores de vinhos, entre os jovens que o tomam. Eles mesmos criam seus favoritos, assim como aqui.

A urina, enquanto um elemento também produzido pelo homem, tem o seu valor nesses eventos como força erótica. “Gosto de tudo que sai do pau. Não tenho nojinho nem frescura de nada: porra, mijo, sebo…” As interações com urina não foram muito observadas por mim, também eram raras, mas eram sempre lembradas e marcadas com desejo. As imagens de “um macho mijando” são acionadas como forte componente erótico e não são à toa os olhares e toques trocados durante o ato nos mictórios das festas. Um dos quartos coletivos de uma das festas possuía uma banheira de hidromassagem sempre vazia que, segundo um dos organizadores, era justamente para ser usada na prática da “chuva dourada”: “Isso daqui é para alguém ficar ali dentro e o pessoal mijar nele ou encher ele de porra, eu sempre digo isso, mas o pessoal não usa muito. Imagina que delícia, você ali dentro e um monte de homem em volta mijando ou gozando em você”.[13]

Percebe-se também como esses fluidos, secreções e excreções corporais (suor, sêmen, urina, sangue e mesmo fezes) estão totalmente relacionados a um recorte de gênero ligado a essa “masculinidade exagerada” que referi no início do texto.[14] A erótica está associada, dessa forma, à produção de certos fluidos que se generificam e têm o poder de generificar (no caso, masculinizar) em sua produção, troca e consumo. O suor, desde há muito tempo associado à imagem viril (Almeida 1995), também a saliva, trocada aqui de inúmeras formas, de beijos a atos de cuspir como dramatizações de cenas de dominação ou humilhação, além dos outros exemplos tratados até aqui, são fluidos que ganham essa valorização masculina não apenas para os corpos que os ­produzem, mas também para aqueles que os desejam e têm a coragem de consumi-los. O “macho” aqui não é só aquele que, por exemplo, urine ou cuspa no outro, mas também aquele que tenha disposição para consumir esses fluidos. Enfim, é a performance de gênero da “masculinidade exagerada”, relacionada ao homem que “não fica de nojinho”, que “não tem frescura”, que apresenta resistência, coragem e disposição na intensidade das interações.

“Espera-se que você aja/seja mais homem que a imagem do homem másculo e viril convencional. Alguns autores marcam isso como valorização de uma ‘hipermasculinidade’ ou ‘hipervirilidade’. Prefiro pensar que no contexto das festas de orgia o que se pratica é uma masculinidade exagerada. A escolha do adjetivo (exagerado) é para que se perceba que o ‘ser macho’ nesse contexto é tão valorizado que pode alcançar níveis paradoxais, abrindo a possibilidade para aquilo que [Judith] Butler chama de ‘paródia de gênero’” (Barreto 2018a: 116, itálico no original).

Essa relação com o corpo masculino em suas partes e substâncias gera também uma “arte”, como Herdt lhe chama, de conhecimento e apreciação de tamanhos, formas, gostos, sabores, cheiros e texturas – uma exacerbação dos sentidos e a constituição de um conhecimento próprio a partir desses elementos corporais.

Esse “conhecimento”, essa “arte”, é produzido aqui em vários níveis e mesmo na própria prática sexual daqueles que gostam e “sabem dar”, mas é mais presente ainda naqueles que “sabem comer”, os que se dizem “viciados” ou “apreciadores de cu”. Para esses, “comer cus” é não só como praticar um esporte, mas como comer um bom prato, como faria um gourmet. Há técnicas, há um gosto e um sabor refinado que é preciso ter para se apreciar e para se comer bem. Esses que elevam essa “putaria” a uma arte e conhecimento são comparáveis a apreciadores sofisticados. Isso é valorado mesmo entre aqueles que não preferem ser passivos nos intercursos sexuais: “Eu não curto muito dar, esse cara é o único para quem eu dou aqui. Nossa, ele é profissional! Viu o que ele fez? Chupou meu cu como se chupasse uma manga!” É também usado como forma de diferenciação entre os ativos:

“Sou um ativo experiente em fazer o parceiro ter extremo prazer, tenho um pau de 17 centímetros, duro e que sabe penetrar sem dó e sem dor. Já experimentei ser passivo, pois para saber comer tem que conhecer como é a sensação de ser muito bem comido, mas são raros os que verdadeiramente sabem comer, por isso sou o ativo quase sempre. Sou excelente dominador. E quando venho procurar um cara aqui não fico nessa de beleza. Não precisa ser modelo, pois esses transam muito mal. Adoro quando o cara se diz hetero e também comer outros ativos”.

 

O cu problematizador

Que o pênis tem uma centralidade inegável nas interações sexuais em uma festa de orgia entre homens já deve ter ficado perceptível a essa altura. Porém, é importante também destacar o papel central que o ânus recebe nesses espaços. A própria negociação de quem vai ser ativo ou passivo naquela interação não se dá, surpreendentemente, apenas pela figura ou centralidade do pênis, mas também pelo orifício do ânus. É na dinâmica de quem vai alcançar o ânus do outro primeiro e da recepção deste, em sua abertura ou fechamento, que vai estar a definição de papéis situacionais nesse contexto. Essa dinâmica é maior do que a do pênis, já que não é quem fica “pegando no pau” ou quem chupa e é penetrado oralmente que faz essa definição, mas aquele que primeiro tenta colocar o dedo ou o pênis no “cu do outro”, ou daquele que “oferece a bunda”, e, mais importante, quando este decide se deixar penetrar ou não.

A centralidade e agência do ânus pode ser vista em discurso nas mensagens trocadas nos grupos de conversa das festas. Assim como existem os “viciados” ou “apreciadores de cu”, existe também a figura daqueles que querem ser “detonados” ou “arrombados” e deixam mensagens como: “mija no meu cu”, “procuro metedores de cu pra fazer de buceta e deixar bem rasgado”, ou “Me arrombe! Me satisfará…” Às vezes, “cuceta”, categoria em sites de vídeos pornôs gay, e mesmo palavras de ordem ditas nessas festas criam a figura de um ânus que está longe de ser um local de (ou um portal para a) passividade, mas sim que o afirma como ativo, agente e desafiador.

O papel e a localização do ânus como âmbito definidor e estratégico diante de nosso sistema de gênero e sexualidade é algo que deve-se às problematizações trazidas pela teoria queer. Serão esses trabalhos que mais irão chamar a atenção para o fato de que, em nossas sociedades,

“O sexo é uma tecnologia de dominação heterossocial que reduz o corpo a zonas erógenas em função de uma distribuição assimétrica de poder entre os gêneros (feminino/masculino), fazendo coincidir certos afectos com determinados órgãos, certas sensações com determinadas reações anatômicas […]. O sistema sexo/gênero é um sistema de escritura. O corpo é um texto socialmente construído, um arquivo orgânico da história da humanidade como história da produção-reprodução sexual, na qual certos códigos se naturalizam, outros ficam elípticos e outros são sistematicamente eliminados ou riscados. A (hetero)sexualidade, longe de surgir espontaneamente de cada corpo recém-nascido, deve se reinscrever ou se reinstruir através de operações constantes de repetição e de recitação dos códigos (masculino e feminino) socialmente investidos como naturais” (Preciado 2014: 25-26).

Inspirado nas elaborações de Deleuze e Guattari, Hocquenghem (2009), na efervescência dos anos de 1970, foi um dos primeiros a chamar a atenção para o papel e potência do ânus na indiferenciação de modelos de desejo. Argumenta que o prazer anal não se restringe a uma prática especificamente homossexual, mas se trata de uma forma de minar todas as categorizações sexuais. O uso sexual do ânus, em sua visão, é revolucionário, não só no sentido de embaralhamento das categorias sexuais, mas também de questionamento ao poder patriarcal capitalista ocidental, estabelecido sobre o que esses autores chamam de um “fechamento” ou “privatização do ânus”, a evitação constante do corpo penetrado.

Segundo Kemp (2013) o advento da aids na década de 1980 lançou uma sombra sobre esse discurso de prazer, que começou a ser visto de forma pejorativa, como altamente utópico e, naquele contexto de epidemia, como irresponsável. O ânus volta uma vez mais ao lugar significativo da negação, dissolução e morte (Kemp 2013: 6-7). Ainda levaria uma década para que os trabalhos da teoria queer colocassem novamente o ânus em um novo lugar.[15]

Em um posfácio à reedição da obra de Hocquenghem, Preciado afirma que esse “terror anal” é justamente derivado de uma potência política do ânus: “Podemos dizer que as políticas do ânus são contra-biopolíticas. Portanto, políticas do corpo, redefinições da espécie humana e seus modos de (re)produção” (Preciado 2009: 148). O que está em jogo aqui, e que nos interessa mais de perto para pensar essas festas de sexo coletivo entre homens, é como a construção social do ânus, sua abertura, seu fechamento, sua penetração e seus significados está recoberta de relações de poder:

“Se poderia dizer que o cu cumpre um papel primordial na construção contemporânea da sexualidade, na medida em que está carregado de fortes valorações sobre o que é ser homem e o que é ser mulher, o que é ser um corpo valorizado e um corpo abjeto, um corpo ‘bicha’ e um corpo hetero, sobre a definição do masculino e do feminino” (Sáez e Carrascosa 2011: 172).

Não é por acaso que o ânus é o local central de um trabalho de mudança dos paradigmas de nosso sistema de sexo/gênero como colocado por Preciado em sua proposta de contrassexualidade:

“O ânus apresenta três características fundamentais que o transformam no centro transitório de um trabalho de desconstrução contrassexual. Um: o ânus é o centro erógeno universal situado além dos limites anatômicos impostos pela diferença sexual, onde os papéis e os registros aparecem como universalmente reversíveis (quem não tem um ânus?). Dois: o ânus é uma zona primordial de passividade, um centro produtor de excitação e de prazer que não figura na lista de pontos prescritos como orgásticos. Três: o ânus constitui um espaço de trabalho tecnológico; é uma fábrica de reelaboração do corpo contrassexual pós-humano. O trabalho do ânus não é destinado à reprodução nem está baseado numa relação romântica. Ele gera benefícios que não podem ser medidos dentro de uma economia heterocentrada. Pelo ânus, o sistema tradicional da representação sexo/gênero vai à merda” (­Preciado 2014: 32, itálico no original).

É importante perceber, da mesma forma, que se a construção social do ânus está recoberta de relações de poder, não se pode deixar de notar que esse ânus (assim como qualquer parte do corpo nesse e em outro contexto) está atravessado por uma estrutura social que condiciona os comandos e os significados que o modelam em função de outros eixos e demarcadores, como o sexo, a classe, a raça ou a religião (Sáez e Carrascosa 2011: 13). Nem todo ânus é igual, assim como nem todo pênis e as substâncias produzidas por esses diferentes corpos masculinos estão numa situação de igualdade. E muitas das frases soltas que ouvia nas interações observadas dão conta disso: “Está gostoso dar para esse pau preto?”, “Esse cuzinho rosinha vai aguentar esse pau?”, “Tá a fim de tomar porra de macho?”, “Gosta de rabo de novinho?”, “Vim aqui achando que ia dar para um negão e tô comendo um cu branquelo”.

Mesmo o sêmen pode ser marcado racialmente; por exemplo, certa vez um interlocutor negro me disse que chamava o seu esperma de “Toddynho” (uma marca de leite achocolatado) e que era assim que ele oferecia o seu sêmen aos seus parceiros sexuais: “Quer tomar Toddynho?” O discurso acionado por esse interlocutor, de racializar um fluido corporal, se tratava de um recurso que o mesmo compreendia como de alto potencial erótico, justamente por tensionar libidinalmente um marcador de diferença. Como explica Gregori,

“Os tensores libidinais são resultantes da noção de que o desejo é feito daquilo que provoca, que incita e que aponta a diferença. Assim, os chamados “marcadores sociais de diferença” – que incluem gênero, idade, classe/status, cor/raça –, que operam como eixos na configuração das posições sociais desiguais, quando consideramos relações de abuso, também atuam no delineamento daquilo que proporciona prazer. As hierarquias, normas e proibições formam o repertório do erotismo, a partir de todo um esforço de transgressão” (Gregori 2016: 24).

Um último ponto que queria apontar aqui rapidamente, já que mereceria uma problematização própria, é que o ânus (mais do que o pênis e o sêmen) ainda é entendido como um lugar de vulnerabilidade e de entrada principal para o perigo e as doenças, com uma preocupação principal incidindo sobre a aids. Ele é tido como o lugar principal de contaminação e é sobre aquele que se deixa penetrar que, sem dúvida, pesam mais os valores de abjeção presentes em nosso sistema heteronormativo.

 

Entre o nojo e o prazer

É possível verificar a existência de muitas semelhanças (e choques) entre essas perspectivas que venho apresentando aqui e as de Elias (1994). O autor, em O Processo Civilizador, descreve o aumento da pressão para o controle das emissões corporais, um crescente autocontrole que se efetuaria em termos da crescente psicologização e racionalização das condutas. Acredito que as práticas corporais observadas nesses eventos de sexo coletivo se contrapõem a esses mecanismos de evitação, separação e distanciamento estipulados pelas regras de etiqueta e de higiene. O que dizer do contato com as secreções e excreções corporais alheias, como saliva, suor, esperma, urina e fezes, e da exposição daquilo que é considerado íntimo e privado? Do cheiro forte que se sente assim que você se aproxima da multidão de corpos aglomerados e que, para os frequentadores desse tipo de orgia, é uma das fontes de excitação?

Em um pioneiro ensaio sobre o nojo, Kolnai aponta o quanto essa emoção está profundamente relacionada aos nossos sentidos e a reações corporais. Não se estranha que as principais descrições sobre o nojo sejam em torno da percepção de algum “cheiro ou gosto ruim”, do toque em alguma textura que de alguma forma nos incomode (principalmente se for úmida e gelatinosa), da visão de algo que fere a nossa sensibilidade. A corporalidade do nojo viria principalmente como uma reação de defesa perante um suposto elemento perigoso. O nojo seria a forma visceral de nos protegermos contra algo que nos causa aversão, que acreditamos ser ruim ou perigoso. Daí, inclusive, a reação clássica do nojo: o vômito, ou seja, a devolução ou expurgação do próprio corpo daquilo que nos faria mal, seja por ser tido como poluído, venenoso, contaminado, abjeto, ou, enfim, nojento (Kolnai 2013: 14-15).

Por maior que seja a visceralidade da emoção do nojo, ele claramente diz respeito a nossas leis morais e àquilo que cada cultura ou sociedade estabelece como abjeto. É disso que trata, inclusive, o clássico trabalho de Douglas (1976), onde a autora aponta como a relação entre aquilo que consideramos puro e o que é tido como perigoso são elaborações culturais próprias. Ou seja, a ideia de sujeira, poluição, impureza, do que contamina e do que precisa ser apartado de nós, de nossos limites corporais, para nossa segurança, não é fruto de uma sensibilidade “natural”, mas sim de um conjunto de discursos e construções culturais.[16]

Kolnai também não deixa de apontar para a “natureza paradoxal do nojo”, ou seja, o nojo pode ser acompanhado de perto por emoções como o desejo e mesmo pelo erótico, ou seja, pode existir uma atração inerente por aquilo que também causa aversão. Essa relação não é nem um pouco nova para a psicanálise (Menninghaus 2003), mas Kolnai aponta para a importância de entendermos esse fenômeno para além de uma leitura ou interpretação do “inconsciente”.[17] Décadas depois, Miller também vai apontar essa relação entre nojo e desejo, repulsa e atração:

“De muitas formas o nojo não é simplesmente aversivo, e o conteúdo do repugnante é complexo e, por vezes, paradoxal. É um lugar-comum que o nojento pode atrair, bem como repelir; as indústrias de cinema e entretenimento, entre as quais se poderão incluir a cobertura de notícias, literalmente trabalham com esse fascínio. O repugnante é uma característica insistente do escabroso e do sensacional, e estes são informados seja por sexo, violência, horror, e a violação das normas da modéstia e do decoro. E mesmo que o nojo possa causar repulsa, raramente faz isso sem também captar a nossa atenção. Ele se impõe sobre nós. Achamos que é difícil não roubar um segundo olhar ou, menos voluntariamente, nós encontramos nossos olhos não resistindo a olhar novamente as mesmas coisas que nos enojam” (Miller 1997: x).

Durante o trabalho de campo realizado para as duas pesquisas pude perceber como as práticas sexuais coletivas tensionam, às vezes em um nível máximo, justamente esse paradoxo entre prazer e aversão. O erotismo, a intensidade das interações e o encontro orgiástico dos corpos fazem com que essas dimensões se esbarrem, misturem, criem “fissuras” (Díaz-Benítez 2015), mas também permitam experimentações, criem novos prazeres e mesmo componham conjuntamente uma certa “estética”.

Certa vez estava de pé em uma das suítes coletivas e, ao me aproximar da parede para me encostar em uma posição confortável, um dos presentes chamou minha atenção para umas marcas nessa parede. Eram marcas de esperma escorrido, alguém tinha acabado de ejacular ali. Depois percebi que essas marcas estavam presentes em quase todos os ambientes; não que eles tivessem sido sujos naquele momento, mas, com certeza, as festas e os gozos seguidos fizeram as marcas perdurarem. Aliás, a questão da limpeza foi motivo de uma bronca dada por um dos organizadores a todos durante um show: ao microfone, ele chamou a atenção das pessoas dizendo que recebe e-mails e reclamações referentes à limpeza da casa, mas que também conta com o bom senso das pessoas: “Imagino que ninguém aqui suja o vaso de casa e entope ele de papel como algumas pessoas fazem aqui. Então vamos usar a cabeça. Tem lixeiras grandes e pequenas espalhadas não só no banheiro do lado do vaso, como pela casa toda”. O organizador se refere aqui ao estado em que costumam ficar os banheiros da casa em toda festa: vasos sanitários entupidos, chão e paredes sujos com urina e “água de xuca”, além da lama que acaba se formando com os banhos seguidos dos participantes. Pude acompanhar também a reclamação de um dos participantes sobre a falta de sabão e papel toalha e a sujeira nos banheiros (o organizador agradeceu e disse que ia tomar providências). Comentou comigo: “Ah, tive que falar. Cara, é um absurdo, né? A gente paga uma fortuna, essa festa não é barata… tem que ter um mínimo, né?”

Porém, é importante apontar como a “sujeira” também faz parte de uma certa “cosmética ou estética da dissidência”, na qual essa “contravenção” de valores de contenção e higiene contribui para a composição de uma cena de alto potencial erótico. O acúmulo de lixo, principalmente no espaço do dark, não desestimula as práticas sexuais ali, pelo contrário, até pode incrementá-las, mesmo que em grandes quantidades e causando alguns acidentes. Eu mesmo certa vez levei um tombo no dark por ter escorregado em um conjunto de camisinhas usadas e jogadas no chão. A intensidade das interações pode tanto distender os limites das noções e hábitos de higiene quanto também estimular práticas mais incomuns, como a interação com urina, fezes e mesmo vômito. Este último foi observado por mim em uma interação no dark: um rapaz, ajoelhado com as costas encostadas na parede, chupava um outro, de pé em sua frente, que forçava a sua cabeça de encontro à parede, cada vez com mais força. O rapaz ajoelhado se engasgava bastante no sexo oral, mas se mantinha ali incentivando o outro para movimentos mais fundos, até que se ouviu o barulho do vômito e do líquido escorrendo no chão. O que vomitou disse: “Caralho, foi lá no fundo. Botei tudo pra fora”. Ainda continuaram um pouco a interação, até o rapaz que estava sendo chupado dizer: “Vai lá no banheiro se limpar, cara”. O tom dos dois era calmo, sem alarde, nenhuma gafe tinha sido cometida, ninguém ao redor interrompeu suas ações, mesmo com o barulho e o cheiro. O chão permaneceu sujo até o fim da festa e não afastou as outras interações no local.

 

A circulação de fluidos

Há, de uma maneira inevitável, uma circulação e uma mistura de fluidos entre todos nesses eventos. Um comentário solto por um dos participantes me chamou a atenção para isso, quando veio até mim e disse: “Olha que engraçado, eu fiquei com aquele cara que você viu ali no quarto. Só que agora no dark eu acabei de ver ele chupando um moreno pauzudo que eu peguei hoje logo quando cheguei, é como se todo mundo ficasse com todo mundo aqui”. O que eu passei a notar a partir desse comentário foi essa “onda” específica possível no sexo grupal ou coletivo: a de chupar alguém já chupado, ou mesmo chupar junto, compartilhando o mesmo membro, “comer um cu já largo ou aberto”, “dar para um pau que já comeu vários”, beijar uma boca que já passou ali por outras bocas e por partes de outros corpos, enfim, sentir no outro os outros, um cheiro, um molhado, um gosto, um compartilhar desses corpos quase fractais. São corpos que se sobrepõem ou que carregam fragmentos dentro da permutação dos encontros, como se das interações ficassem não só os fluidos, mas partes, pedaços, restos dos outros. “Comer um cu que um cara interessante acabou de comer”, por exemplo, é compartilhar com aquele uma forma de relação ou aproximação. Beijar alguém que chupou um terceiro é, para alguns, como tê-lo chupado também. Ligações, ou melhor, relações se formam a partir dessa circulação de fluidos e fragmentos corporais numa “putaria”. Os encontros sexuais coletivos produziriam, portanto, uma certa concepção de “pessoa divisa”, “fragmentada” ou “fractal”, próxima da ideia de “divíduo” melanésio trazida por Strathern (2006) e Wagner (2011), guardadas as devidas proporções.[18] Os fluidos e outros “produtos” do corpo masculino, nesse contexto, seriam os elementos de ligação, o meio para algumas relações onde a sua troca estabelece uma verdadeira economia libidinal.

Claro que cada um cria as suas regras ali, a partir desse compartilhamento de fluidos. Vejamos a questão do beijo, por exemplo. Ao que parece, ele é tido, de maneira geral, como um ato que exige mais entrega ou intimidade do que tudo o resto: “Dou para vários todo arreganhado aqui, mas não consigo beijar ninguém, tenho nojinho… Quer dizer, até beijo alguns quando me dá muito tesão, mas é mais difícil”. A evitação do beijo se dá não só pela associação a uma relação afetuosa, mas também pela circulação de fluidos nesses espaços, como disse anteriormente. Lembro de um rapaz que, ao se aproximar de mim para me beijar na boca e eu afastar a cabeça, disse em meu ouvido: “Ainda não chupei nenhum pau aqui não”, como que me assegurando, “pode beijar, está tranquilo, ao me beijar você não estará chupando outro pau que eu tenha chupado, estou limpo ainda”.[19] Há, portanto, aqueles que não beijam, que preferem beijar só quando o interesse é grande ou quando são tomados pelo tesão do momento, e também aqueles que só interagem quando o outro está disposto ao beijo. “Eu detesto aquela postura tipo: me chupa aí que eu fico aqui pagando de gostosão e quando eu vou beijar ele vira a cara, fico com muito ódio”. Ódio também foi o que Bernardo me disse que sentiu em uma interação com um casal:

“O mais gostoso dos dois estava me comendo, o outro, que era até mais bonitinho, ficava só mordendo meu peito. Estava ótimo, gozei e tal, aí baixei para chupar o cara e fazer ele gozar também. Deixei que ele leitasse minha cara, foi muito bom. Só que aí, quando eu fui beijar ele de novo, ele fez cara de nojo, riu e saiu! Nojo com a própria porra, imagina! Fiquei com tanto ódio! Só fiquei pensando no trabalho de tirar essa porra agarrada na minha barba pra nada”.

A circulação dos fluidos também está presente no uso singular que se faz aqui de algumas peças de vestuário. Na pesquisa, realizada em parte nos grupos virtuais de práticas sexuais bare e pig, pude perceber, por exemplo, um certo comércio muito específico: a venda e “leilões” de roupas usadas. Chama a atenção o fetiche pelo uso repetido de peças “íntimas” (cuecas e meias, principalmente) para que elas acumulem não só uma certa “sujeira” erotizada, mas um material do próprio sujeito – para que elas se personalizem com o excesso de cheiro, de restos, enfim, do corpo do sujeito. A cueca, por exemplo, surge como uma extensão do corpo do indivíduo, um pedaço ou fragmento dele: já que estariam ali urina, esperma, restos de fezes, pelos, cheiro, gosto, marcas dele, carregaria, portanto, uma individualidade específica. O fato de as peças serem principalmente cuecas e meias possui também uma leitura subjacente à ideia de masculinidade, pelas partes corporais que cobrem, seja o pênis e ânus, seja o pé (ideia de dominação, submissão, poder e humilhação). Essas peças de vestuário, portanto, “são” o outro e também estabelecem relações.[20]

O mesmo pode ser dito sobre a venda e troca de preservativos usados, que também acompanhei nesses grupos. Alguns interlocutores chegaram a relatar o hábito de recolher as camisinhas usadas que cobrem o chão de muitos desses encontros orgiásticos, ou o desejo (nem sempre realizado) de tomarem depois o esperma encontrado ali ou de se banharem com ele. O preservativo usado também entraria nessa lógica da “peça” que carrega o(s) outro(s), já que está para além do esperma em si, mas também de todo um acúmulo de matéria produzido em uma determinada interação. Ou seja, a camisinha usada não é só sobre o “leite” de um “macho, discreto e puto”, mas o produto de uma cena a dois (ou mais). Vem da erotização de um sexo visto, acompanhado ou presenciado, ou então fantasiado ou efabulado (como no caso do comércio nos grupos virtuais). Esse “comércio” de peças usadas não descartaria a opção mais “direta”, ou seja, a dos encontros coletivos como via para que esses fluidos corporais sejam trocados, tomados ou tidos “diretos da fonte”, seja “tomando o leite” direto do pênis (via anal ou oral) ou se “alimentando” de outros produtos corporais (esperma, urina, fezes, sebo, saliva, etc.). A ideia de “alimentação” aqui diz respeito a essa leitura de um valor nutritivo imbuído nesses fluidos e nessas práticas, tanto como valor de masculinidade quanto como valor nutricional mesmo.[21]

 

Concluir sem riscos?

Antes de terminar esse texto, será prudente dedicar algumas palavras finais à questão dos perigos (principalmente para a saúde) que estão implícitos nas práticas descritas ao longo desse trabalho. A intenção aqui não foi a de invisibilizar os riscos em prol de uma valorização do gozo e dos prazeres e nem a de dizer que os meus interlocutores o fazem estritamente. Ainda mais que muito do desejo e do prazer nas práticas analisadas aqui vem justamente de uma certa erotização dos riscos e perigos, e não do desconhecimento deles.

É importante observar que termos como “prevenção”, “cuidado” e “risco” são polissêmicos, isto é, seus significados e usos são sempre historicamente situados, relacionais e contextuais (Duarte 1998), variando de acordo não somente com as escalas locais, mas também entre os diferentes atores ­implicados. Ao mesmo tempo, Gambôa também lembra que se faz necessário o reconhecimento da “liberdade criativa das pessoas para a produção de (novos) prazeres”, considerando que “dimensões “sensoriais” e “sensuais” também mobilizam decisões e escolhas, colocando em cheque a racionalidade instrumental prevalente no campo da saúde (Gambôa 2013: 17). Fica destacada, portanto, a importância de estudos etnográficos nesses contextos e sua contribuição para a construção de conhecimento sobre algumas dimensões dos “roteiros sexuais” (Gagnon 2006) e sua relação com as práticas sexuais enquadradas por comportamentos para a prevenção de doenças, o cuidado de si e a avaliação dos “riscos” – ou a ausência deles.

O que meus interlocutores parecem estar produzindo naquelas interações e circulação de fluidos são concepções outras, concepções próprias de “saúde”, “doença”, “cuidado” e “risco”; onde diversos fatores contribuem para essas percepções. Pesquisas realizadas em São Paulo, como a de Gambôa (2013) sobre as interações homoeróticas em cinemas pornográficos do centro da cidade, indicam que o manejo do risco nesses espaços, por exemplo, pode ser atravessado por elementos como o afeto. Dessa forma, outros fatores são agenciados nessa tensão, como a apresentação corporal do outro, cheiros, toques, classe, cor, idade, etc. Pode-se estar mais disposto a determinadas práticas com uma pessoa que com outra levando esses fatores em consideração; algumas, por inúmeras razões, podem “te passar mais confiança”.[22]

Do que eu percebi nos eventos que acompanhei, o “se jogar”, se arriscar, ou se colocar numa situação de potencial perigo, principalmente relativo a algum tipo de contaminação, não acontece por algum desconhecimento ou falta de informações técnicas sobre formas de contágio. Nem mesmo se deve a uma “atitude rebelde” de desobediência ao controle médico dos “poros e das paixões” (Perlongher 1985). O que eu percebi foi a elaboração de um conhecimento outro, próprio, que usa vários elementos, sejam eles vindos do saber médico, do cotidiano, e/ou de experimentações próprias. O que parece haver ali é uma “ciência do concreto” (em termos lévi-straussianos mesmo), a elaboração de um saber construído e posto em prática (nem por isso menos “científico”) sobre o que é o risco, o que é perigoso, sobre formas de contaminação e maneiras e técnicas para evitá-las. Se expor ou não a algo é, dessa forma, um “cálculo infinitesimal” feito a partir do prazer que se sente, da intensidade da interação e do que se percebe como riscos menores ou maiores (Barreto 2017d).[23]

Ao contrário do que se possa imaginar sobre um evento orgiástico, não impera um descontrole sem regras ou um “desgoverno de si”. Muito pelo contrário. Mesmo entre os participantes dos grupos de bareback há a preocupação de afirmarem que suas práticas partem de valores como a “responsabilidade”, o “consentimento” e o “cuidado”. O detalhamento desses valores nesses contextos exigiria um espaço que não me é possível aqui, mas por ora, de forma geral, diria que meus interlocutores estão chamando a atenção para o fato de eles serem responsáveis e conscientes dos riscos possíveis nas práticas em que se estão engajando, ao mesmo tempo que são autônomos e livres para todas as escolhas possíveis, desde que tomadas de forma consciente e que consentidas por todos os presentes, sendo também atentos a alguma forma de cuidado, mesmo que seja no “gerenciamento dos riscos”.

 

Bibliografia

ALMEIDA, Miguel Vale de, 1995, Senhores de Si: Uma Interpretação Antropológica da Masculinidade. Lisboa, Fim de Século.         [ Links ]

BARRETO, Victor Hugo de Souza, 2017a, Festas de Orgia para Homens: Territórios de Intensidade e Socialidade Masculina. Salvador, Editora Devires.         [ Links ]

BARRETO, Victor Hugo de Souza, 2017b, “ ‘Putaria’ enquanto conceito: desejo e sexualidade na prática orgiástica”, Revista Bagoas, 17: 251-281.

BARRETO, Victor Hugo de Souza, 2017c, Vamos Fazer Uma Sacanagem Gostosa? Uma Etnografia da Prostituição Masculina Carioca. Niterói, EdUFF.         [ Links ]

BARRETO, Victor Hugo de Souza, 2017d, “Risco, prazer e cuidado: técnicas de si nos limites da sexualidade”, Avá, 31: 119-142.

BARRETO, Victor Hugo de Souza, 2018a, “ ‘Venha se você for homem’: o princípio da masculinidade em orgias entre homens”, Sexualidad, Salud y Sociedad, 29: 99-122.

BARRETO, Victor Hugo de Souza, 2018b, “O ‘princípio da putaria’ nas orgias masculinas: diferença e singularidade no corpo orgiástico”, em E. Rangel, C. Fernandes e F. Lima (orgs.), (Des)Prazer da Norma. Rio de Janeiro, Papéis Selvagens, 161-182.

BARRETO, Victor Hugo de Souza, 2018c, “Prazer e risco: o desafio entre as políticas de saúde contemporâneas relacionadas ao HIV/aids e os roteiros eróticos de homens que fazem sexo com homens”, em R. Castro, C. e R. Martins (orgs.), Antropologias, Saúde e Contextos de Crise. Brasília, Sobrescrita, 149-162.

BARRETO, Victor Hugo de Souza, no prelo, “Sexo pig: algumas notas sobre prazeres extremos”, em T. Oliveira e H. Maia (orgs.), Práticas Sexuais: Itinerários, Possibilidades e Limites de Pesquisa. Salvador, Editora Devires.

BATAILLE, Georges, 2013, O Erotismo. São Paulo, Autêntica Editora.         [ Links ]

CARSTEN, Janet, 2004, After Kinship. Cambridge, Cambridge University Press.         [ Links ]

CASTRO, Eduardo Viveiros de, 2002, A Inconstância da Alma Selvagem e Outros Ensaios de Antropologia. São Paulo, Cosac Naify.         [ Links ]

DEAN, Tim, 2009, Unlimited Intimacy: Reflections on the Subculture of Barebacking. Chicago, The University of Chicago Press.         [ Links ]

DÍAZ-BENÍTEZ, María Elvira, 2015, “O espetáculo da humilhação, fissuras e limites da sexualidade”, Mana, 21: 65-90.

DOUGLAS, Mary, 1976, Pureza e Perigo. São Paulo, Editora Perspectiva.         [ Links ]

DUARTE, Luiz F. D., 1998, “Investigação antropológica sobre doença, sofrimento e perturbação: uma introdução”, em L. F. D. Duarte e O. F. Leal (orgs.), Pessoa, Doença e Perturbação: Perspectivas Etnográficas. Rio de Janeiro, Editora Fiocruz, 9-27.

ELIAS, Norbert, 1994, O Processo Civilizador, 2 vols. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor.         [ Links ]

GAGNON, John, 2006, Uma Interpretação do Desejo: Ensaios sobre o Estudo da Sexualidade. Rio de Janeiro, Garamond.         [ Links ]

GAMBÔA, Ricardo Fernandes, 2013, De Prazeres e Perigos: Abordagem Etnográfica dos Roteiros Eróticos de Homens que Fazem Sexo com Homens e Desafios à Prevenção do HIV na Região Central da Cidade de São Paulo. São Paulo, Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, dissertação de mestrado.         [ Links ]

GREGORI, Maria Filomena, 2016, Prazeres Perigosos: Erotismo, Gênero e Limites da Sexualidade. São Paulo, Companhia das Letras.         [ Links ]

HERDT, Gilbert, 1993, “Semen transactions in Sambia culture”, em G. Herdt (org.), Ritualized Homosexuality in Melanesia. Berkeley, CA, University of California Press, 167-210.

HOCQUENGHEM, Guy, 2009, El Deseo Homosexual. Barcelona, Melusina.         [ Links ]

KEMP, Jonathan, 2013, The Penetrated Male. Brooklyn, NY, Punctum Books.         [ Links ]

KOLNAI, Aurel, 2013, Asco, Soberbia, Odio: Fenomenologia de los Sentimentos Hostiles. Madrid, Editora Encuentro.         [ Links ]

LEITE JR., Jorge, 2006, Das Maravilhas e Prodígios Sexuais. São Paulo, Annablume/Fapesp.         [ Links ]

LÉVI-STRAUSS, Claude, 2004, Mitológicas I: O Cru e o Cozido. Rio de Janeiro, Cosac Naify.         [ Links ]

LORES MASIP, Fernando, 2012, Deseo y Peligro: Anotaciones Antropológicas a Una Teoría de la Contaminación y de los Cuidados Sexuales. Madrid, Departamento de Antropología Social, Universidad Complutense de Madrid, tese de doutorado.         [ Links ]

MAUSS, Marcel, 2003, Sociologia e Antropologia. São Paulo, Cosac Naify.         [ Links ]

MENNINGHAUS, W., 2003, Disgust: Theory and History of a Strong Sensation. Nova Iorque, SUNY Press.         [ Links ]

MILLER, William, 1997, The Anatomy of Disgust. Cambridge, CA, Harvard University Press.         [ Links ]

MORAES, Eliane, 2002, O Corpo Impossível. São Paulo, Iluminuras.         [ Links ]

PELÚCIO, Larissa, 2009, Abjeção e Desejo: Uma Etnografia Travesti sobre o Modelo Preventivo de Aids. São Paulo, Anablume/Fapesp.         [ Links ]

PELÚCIO, Larissa, 2016, “O cu (de) Preciado: estratégias cucarachas para não higienizar o queer no Brasil”, Iberic@l: Revue d’études ibériques et ibéro-américaines, 9: 123-136.

PERLONGHER, Nestor, 1985, “Aids: disciplinar os poros e as paixões”, Lua Nova, 2 (3): 35-37.

PRECIADO, Beatriz, 2009, “Terror anal: apuntes sobre los primeros días de la revolución sexual”, em G. Hocquenghem, El Deseo Homosexual. Barcelona, Melusina, 133-174.

PRECIADO, Beatriz, 2014, Manifesto Contrassexual: Práticas Subversivas de Identidade Sexual. São Paulo, N-1 Edições.         [ Links ]

RODRIGUES, José Carlos, 2006, Tabu do Corpo. Rio de Janeiro, Editora Fiocruz.         [ Links ]

SÁEZ, Javier, e Sejo CARRASCOSA, 2011, Por el Culo: Políticas Anales. Madrid, Egales.         [ Links ]

SCHNEIDER, David Murray, 2016, Parentesco Americano: Uma Exposição Cultural. Petrópolis, Vozes.         [ Links ]

STRATHERN, Marilyn, 2006, O Gênero da Dádiva: Problemas com as Mulheres e Problemas com a Sociedade na Melanésia. Campinas, Editora da Unicamp.         [ Links ]

TURNER, Victor, 1974, O Processo Ritual: Estrutura e Anti-Estrutura. Petrópolis, Vozes.         [ Links ]

WAGNER, Roy, 2011, “A pessoa fractal”, Ponto Urbe, 5: 1-12.

WERNER, Florian, 2013, La Materia Oscura: Historia Cultural de la Mierda. Madrid, Tusquets Editores.         [ Links ]

 

Receção da versão original / Original version         2018 / 02 / 19 Aceitação / Accepted           2018 / 09 / 19

 

Notas

[1]             As problematizações que aparecem nesse artigo muito se devem ao trabalho pioneiro de Miguel Vale de Almeida (1995), onde, a partir de uma etnografia em um povoado português, traz reflexões sobre gênero e masculinidade, inclusive naquilo que se relaciona a questões corporais e fluidos específicos.

[2]             O termo “puto” aqui está longe de ter o mesmo significado que possui no contexto português. “Puto”, nos encontros orgiásticos entre homens analisados, se refere ao “princípio da putaria” (Barreto 2017b, 2018b), isto é, qualifica aquele que se destaca na performance das práticas sexuais, que sabe manipular os fatores que aumentam ou diminuem a intensidade das interações.

[3]             Acrescente-se os nove meses de pesquisa durante o doutorado-sanduíche financiado pelo CNPq e realizado na cidade de Lisboa, em Portugal, com acolhimento do CRIA/ISCTE-IUL, sob orientação do Professor Miguel Vale de Almeida.

[4]             Ambos os tipos de festas valorizam muito claramente, em seus sites e materiais de divulgação, aquilo que eu chamei de princípios: a masculinidade, a discrição e a putaria. O “processo seletivo” refere-se à proposta de uma festa de orgia onde só podem entrar/participar pessoas que correspondam a um perfil pré-determinado, que seria: “homens magros, sarados, boa pinta, em boa forma física e dotados”. Há três formas de seleção: ser convidado; mandar fotos de rosto, de corpo e nu via e-mail ou Whatsapp; ou ser avaliado na recepção mesmo do evento. A última foi a avaliação pela qual eu mesmo passei. Porém, a tentativa de estratificação do desejo pela forma de exclusão através da hierarquia dos corpos, ou mesmo de outros marcadores sociais de diferença nas festas com seleção, também se percebe nas festas “abertas”. Em Barreto (2017a), descrevo com detalhes as diferentes características das festas pesquisadas.

[5]             A pesquisa, que teve financiamento do CNPq e supervisão do Professor Luiz Fernando Dias Duarte, teve o título “Prazer e risco: reflexões sobre o desejo nos limites da sexualidade”.

[6]             No contexto brasileiro, “dar” se refere à posição exercida pelo elemento passivo naquela interação sexual, enquanto “comer” refere-se àquele atuando como ativo.

[7]             Em seu Manifesto Contrassexual, Preciado propõe uma série de exercícios e “práticas de subversão” para desconstruir sistematicamente a naturalização e função reprodutora das práticas sexuais e de nosso sistema de gênero. Para Preciado, o “dildo” desestabiliza as lógicas instituídas pelo pênis e pelo falo, já que o dildo não imitaria o pênis, por ser primeiro, mas sim o suplementaria (Preciado 2014: 23). Para isso, propõe uma mudança de perspectiva segundo a qual “a prótese” enfatiza a necessidade de pensar o corpo e o sexo como “tecnologias” que reformulam o uso heterossexual. Esse princípio torna-se um ato reflexivo fundamental na história da “tecnologia contrassexual” proposta no Manifesto de Preciado (2014: 25).

[8]             Até mesmo o olho aqui torna-se um órgão sexual, na medida em que olhar é estabelecer uma forma de interação erótica e sexual com o outro. Aliás, essa percepção chegou a mim através de um “acidente” durante o trabalho de campo, quando numa interação observada em um dos dark rooms numa festa onde se reuniam cerca de 50 homens num mesmo espaço, alguém subiu numa cama da qual estava próximo e ejaculou no meu rosto, atingindo o esperma a minha boca e dentro do meu olho. Para os padrões da festa, o que essa pessoa fez está totalmente contra as “regras locais” de consentimento, uma gafe arbitrária e inconsequente que me obrigou a fazer um tratamento de seis meses com a profilaxia pós-exposição ao HIV, a PEP.

[9]             Para evitar essas situações ou para se intensificar a performance, a própria organização de uma das festas busca lucrar vendendo na recepção comprimidos como Viagra. Um dos cartazes na entrada dizia: “Temos Diamante Azul – R$10,00 (falar com [X])”.

[10]           Todos os organizadores pedem em seus sites dos eventos que as pessoas que sejam passivas durante as interações na festa tenham o cuidado de fazerem a lavagem em casa, antes de ir. A preocupação aqui é não sujar os banheiros do evento com “água de xuca”, que é o que normalmente acontece.

[11]           O prazer aqui é mais relacionado ao fluido seminal produzido e oriundo de um homem do que ao ato de ejacular propriamente dito, já que as mulheres (cis ou trans) e outras pessoas transgênero também podem ejacular.

[12]           Essa noção também não se relaciona necessariamente ao breeding do contexto de surgimento da cultura bareback americana (reproduzida em uma certa produção pornográfica), em que “engravidar” ou “semear” podiam ser associados ao vírus HIV (Dean 2009).

[13]           Fora do Rio de Janeiro percebi que a prática ou mesmo as “piss parties” (festas do mijo) são mais comuns. Na cena erótica de São Paulo, algumas já são organizadas; durante o período na Europa pude acompanhar como a prática já é incorporada na cena das orgias entre homens na Lab.oratory de Berlim, por exemplo, onde homens ficam ajoelhados entre os mictórios de boca aberta pedindo para tomarem a urina durante o ato. As posições durante esse ato, quem urina em quem, em que lugar do corpo e em que momento, compõem toda uma linguagem específica.

[14]           Naquilo que foi possível observar durante os encontros orgiásticos, o sangue aparecia em alguns ferimentos decorrentes de uma penetração anal um pouco mais agressiva ou violenta. Ainda que seu aparecimento, na maioria das vezes, não fosse intencional, estava ligado tanto a uma valorização do homem que estivesse atuando como penetrador naquela interação quanto à da resistência do penetrado. A masculinidade aqui se relacionava tanto a um pênis que fosse muito grande ou grosso, que podia “causar estragos em quem o desafiasse”, quanto a uma penetração de ritmo mais agressiva, “de pegada forte”, com a capacidade de resiliência do ânus. É comum ler nos grupos de conversas virtuais alguns participantes fazerem autopropaganda de sua masculinidade nesse sentido, dizendo, por exemplo, “Hoje eu vou comer até tirar sangue”, ou afirmarem aguentar serem penetrados por qualquer coisa, sem medo.

[15]           Em um artigo publicado em 2016, Pelúcio fala sobre o impacto da teoria queer em países de língua portuguesa, principalmente no cenário brasileiro e latino-americano. A autora destaca a importância de não nos limitarmos a reproduzir o que foi dito por esses autores a partir de seus contextos nacionais específicos, afirmando que precisamos também pensar em uma forma de aproximar, atravessar ou mesmo penetrar esse corpus teórico a partir de uma elaboração própria. Pelúcio cita o exemplo do uso do próprio termo “queer”, que pouco sentido tem para o contexto latino-americano, e defende que um nome mais representativo para as questões produzidas aqui seria “teoria cu” (Pelúcio 2016).

[16]           Nesse sentido, é importante pensar o nojo como componente essencial do fazer social, já que a ideia de “nojo moral” também compõe nossa sensibilidade ética. Estou chamando a atenção nesta nota para uma dimensão maior e mais “política” do nojo. Explico: o nojo é uma ferramenta continuamente usada em processos de discriminação e condenação de grupos de pessoas e comportamentos, principalmente se pensarmos em grupos minoritários (negros, LGBTQI, judeus, imigrantes, etc.). Os discursos e políticas condenatórias se utilizam da ideia de nojo como forte reação emotiva. Nesses casos, o “nojo é uma via para certezas morais ou normativas” (Kolnai 2013: 28).

[17]           Freud foi um dos primeiros a salientar a relação entre o nojo e o prazer como fundo para as piadas ou para o riso, de uma forma geral. Não é estranho também observar como a indústria pornográfica, principalmente em sua vertente “bizarra”, também se alimenta da relação entre o riso, o nojo e o prazer (Leite Jr. 2006). O riso, tal como explica o sociólogo Werner, é uma forma de reação que serve de certo modo para a limitação, a proteção e a conservação de nossas fronteiras físicas e psíquicas (2013: 83). Daí o riso e as piadas estarem cercadas de situações e assuntos como a morte, as doenças, o sexo ou outras atividades físicas consideradas vulgares, como o defecar e outras funções de excreção. São fatos ou ações que “nos inquietam, nos desconcertam, nos dão nojo e, precisamente por isso, nos fazem rir” (Werner 2013: 82). O autor aponta como o nojo e o riso, ainda que possam ser vistos como reações opostas, são, na verdade, muito próximos um do outro.

[18]           Faço essa aproximação com ressalvas por entender que o tipo de experiência e de experimentações corporais que observei se circunscreve apenas a uma determinada parcela de homens que enveredam nesse universo (ainda que a quantidade de pessoas presentes nessas festas seja sempre significativa), o que me impede tanto de generalizar o que se passa aí quanto de tomar o tempo dessas festas como algo da totalidade da vida dessas pessoas. Não que pensar a “totalidade” seja a minha intenção aqui (ou que a antropologia ainda reivindique para si esse papel).

[19]           Também na prática da prostituição existe o costume de “preservar” determinadas práticas sexuais ou partes do corpo para relações que não estejam marcadas pela troca comercial. O beijo na boca acabou se tornando mais emblemático, mas também pode-se aplicar ao “dormir junto”, ao “sexo anal”, ao “beijo grego” ou ao “cunete” (no ânus), ao sexo sem preservativo, etc. (Barreto 2017c).

[20]           O universo do sexo pig, de fato, é muito rico para se pensar alguns dos pontos levantados nesse artigo. Apresento maiores desdobramentos da pesquisa realizada sobre o tema em Barreto (no prelo).

[21]           Me falta espaço nesse artigo para um aprofundamento dessa ideia sobre a alimentação e nutrição a partir dos fluidos em um diálogo com a rica literatura etnológica sobre rituais de comensalidade de populações ameríndias e sua respectiva produção de noções de pessoa (Castro 2002). Agradeço aos pareceristas anônimos da Etnográfica por essa indicação.

[22]           Pesquisa semelhante foi realizada por Lores Masip (2012) tendo como cenário a cidade de Madrid.

[23]           Em Barreto (2017d) procuro descrever e desenvolver com mais detalhes essa “ciência do concreto” observada nesses espaços e a ideia de cuidado enquanto uma técnica de si nessas práticas tidas como “de risco”, demonstrando o quanto o prazer e o perigo se percebem tensionados por diversos fatores. Já em Barreto (2018c) aponto os desafios que essa “teoria nativa” coloca às políticas de saúde contemporâneas, principalmente aquelas referentes ao HIV/aids.

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons