Apresentação
Este artigo foi escrito a partir de pesquisa etnográfica disposta a seguir os movimentos de conexões comerciais e produtivas entre o quilombo de Palmas, na zona rural do município de Bagé, no estado brasileiro do Rio Grande do Sul, e terreiros da Região Metropolitana de Porto Alegre, capital do mesmo estado. No rastro de animais, plantas e alimentos cultivados em quilombos para serem enviados aos terreiros das regiões mais urbanizadas, eclode um cosmo de seres vivendo vidas em aliança, multiplicando pactos entre viventes e vozes nos estudos de etnologia afro-americana.1
Segundo o Instituto Nacional da Colonização e Reforma Agrária, do Brasil, existem aproximadamente três mil comunidades quilombolas no país. Tais comunidades são definidas pelo INCRA como grupos étnicos, constituídos, predominantemente, por população negra rural ou urbana, autodefinida de acordo com o parentesco, o território, as relações com a terra, a ancestralidade, as tradições e práticas culturais próprias. Atravessando esse conjunto de relações está o compartilhamento da experiência de escravização das populações de origem negro-africana trazidas à força para a América durante séculos de colonização: a formação de quilombos está diretamente associada a movimentos de resistência ao cativeiro e ao trabalho escravo, tais como a fuga para lugares remotos e de difícil acesso, as deserções de guerras e insurreições.
O Ministério da Cidadania considera povos e comunidades de terreiro como famílias, assim autodefinidas, predominantemente negras, vinculadas a casas de tradição de matriz africana (chamadas também de terreiros). A noção de família aqui possui sentido amplo, não nuclear, e os laços de parentesco são definidos seguindo uma genealogia iniciática na vida do terreiro, organizada a partir de uma ancestralidade de matriz africana, que rege cada casa e as linhagens de onde descende - o que não quer dizer que os laços de consanguinidade sejam aqui desconsiderados, mas combinados com outros. Há também a definição popular de terreiro como casa de religião de matriz africana, marcando a presença de suas práticas ancestrais de relação com o sagrado, também chamadas de religiões afro-brasileiras (candomblé, batuque, xangô, tambor de mina, dentre outras). No Rio Grande do Sul, as casas de batuque (ou nação), seguem os princípios do que se denominou terreiro. No que diz respeito à religiosidade, o batuque cultua os orixás como divindades ancestrais de matriz africana, que também são forças da natureza2. Ademais, preocupa-se aqui em lidar com terreiros e quilombos como comunidades tradicionais de matriz africana, enfatizando a noção de modo de vida (Ingold 2015).
Os intercâmbios de aves, caprinos, ovinos, ervas, mel, grãos, bem como os cuidados mútuos com essas culturas, esboçam coexistências partilhadas por meio de trilhas, que surgem de experiências negras corporificadas nos movimentos constantes de suas epistemes peregrinas (Ingold 2015). Tais cultivos são realizados nos quilombos, mas seguem regras de criação e manejo pautadas pelas exigências dos orixás e entidades cultuadas nos terreiros.
Interlocutores mais constantes deste trabalho - além de vetores dos fluxos mais intensos entre quilombos e terreiros - as cabras e bodes criados nos quilombos para participarem dos rituais de iniciação nos terreiros são criados e selecionados seguindo especificações de cor, sexo, reprodução, tamanho e espécie diretamente relacionados com as qualidades esperadas por cada orixá e seus filhos.3 Quanto às ervas e demais plantas, a Iyá Sandrali da Oxum, yalorixá 4 e representante do Conselho Estadual do Povo de Terreiro do estado do Rio Grande do Sul, afirma que pelo formato das folhas de um guaco, por exemplo, há como saber qual o orixá protetor da pessoa que o cultivou. Isso se daria pelo manuseio e a convivência entre planta, ser humano, orixá e ambiente - pensando-se que essas existências estão engajadas umas às outras, compondo multiplamente. Outro exemplo é o caso do quilombo da Mutuca, em Turuçu, que vende milho para uma cooperativa de terreiros da região de Pelotas, no sul do Rio Grande do Sul. Os grãos de milho em diferentes estados (cozidos, torrados, pipocas) são comida de vários orixás e utilizados para uma sorte de rituais, dentre os quais alguns serão descritos mais adiante.
Quanto ao mel produzido no quilombo de Palmas, durante minha pesquisa de campo recebi muitas encomendas para um terreiro de Pelotas. O mel - assim como o sangue e o azeite de dendê - é substância fundamental para o equilíbrio cosmológico, no batuque, para as relações entre “os vivos”, “os mortos” e “os deuses” (Corrêa 2006). Além disso, o uso de mel nas oferendas aos orixás e nos rituais de iniciação agencia uma perspectiva política de não aniquilação da diferença, transportada na noção de “axé de doçura” como um jeito de estar no mundo em que “não se pode ter só bravura na vida” (Kosby 2015). No quilombo, atualmente, a produção de mel se dá por meio de caixas de abelha e subsídio governamental. Mas a relação com as abelhas e colmeias remonta aos ancestrais da comunidade que, escondidos no mato, se alimentavam de palmito e mel. Até hoje, há quem saiba reconhecer a presença das colmeias nativas dentro das árvores pelo zunido que fazem.
Esses dois domínios etnográficos, quilombos e terreiros, costumam ser abordados de forma isolada na maior parte da bibliografia do campo das pesquisas em ciências sociais sobre as populações afro-americanas. Neste artigo, entretanto, busca-se conhecer as possíveis histórias de “construção ativa de similaridades” (Despret 2007: 40) 5 entre os modos de estar no mundo das religiões de matriz africana e os dos quilombos, operacionalizando-se essa mesma premissa para o “devir com” de humanos e não humanos (Despret 2007). Para isso, lança-se mão do conceito de cosmoecologia (Despret 2016), no qual estão reunidas cosmologia e ecologia, para dar conta dos caminhos e destinos interligados de humanos, deuses, cabras, ervas, terreiros, quilombos. Aqui, portanto, propõe-se o esboço de uma cosmoecologia negra, que entrelaça as transformações mútuas imanentes ao devir-negro dos corpos aqui envolvidos - sem ignorar as atualizações de suas singularidades.
Assim, partindo de pressupostos contraidentitários (Anjos 2006), atenta-se para o compartilhamento de fluxos cosmopolíticos - o que não pressupõe que se busque, entretanto, continuidades ou descontinuidades identitárias entre tais territórios, mas a possibilidade de cartografia de uma ecologia da vida (Ingold 2002) em comum. Pretende-se, assim, abordar como terreiros e comunidades negras rurais compartilham mundos na resistência ao racismo, às forças de aniquilação da diferença do Estado brasileiro e seus tentáculos colonialistas. As cabras serão, portanto, os corpos-território 6 cujos movimentos nos levarão mais longe na tarefa de esboçar as transformações mútuas envolvidas na atitude epistemológica de, como diz Despret (2007: 41), “estender seu ser ao ser do outro”.
Grande parte das discussões aqui apresentadas são impulsionadas pela tese de doutorado Alma-Caroço: Peregrinações com Cabras Negras no Extremo Sul do Brasil (Kosby 2017), que acompanhou, entre 2014 e 2017, os rastros das cabras quilombolas da comunidade de Palmas, desde suas perambulações pelas trilhas que atravessam a localidade do quilombo e sua vizinhança, até sua chegada à cidade de Alvorada, de onde são vendidas para participarem dos rituais de abate sacralizado nos terreiros da região de Porto Alegre. A referida tese coloca-se como desdobramento das pesquisas do Inventário Nacional de Referências Culturais - Lidas Campeiras na Região de Bagé/RS.
Os postulados metodológicos empreendidos para a realização da pesquisa aqui apresentada baseiam-se no intento de se construir uma etnografia peregrina (Ingold 2015), em contraposição ao postulado de etnografia multissituada (Marcus 2001), pois, ao contrário desta, não se realiza em diferentes localidades, mas através, em torno de lugares, de um lugar para outro. Assim, pretende-se ultrapassar o que Ingold, em Estar Vivo: Ensaios sobre Movimento, Conhecimento e Descrição (2015), chamou de “lógica da inversão”, uma lógica de fato sedentária, segundo a qual todo organismo é reconfigurado como expressão externa de um desígnio interior - a vida fica instalada dentro das coisas. Encontrar “aberturas” no mundo que permitam acompanhar os movimentos dos viventes entre terreiros e quilombos permite que se ultrapasse os limites impostos pelas políticas de identidade, que se preocupam mais em sedentarizar comunidades dentro de territórios do que em permitir que habitem o mundo conforme suas necessidades de mobilidade e intercâmbio. O objetivo de construir uma etnografia peregrina carrega de desafios a escrita de um texto antropológico peregrino, que se movimenta conforme as linhas de vida que aciona.
Outro eixo a ser deslocado é aquele que centraliza humanos como agentes por excelência do social. Pretende-se considerar outras espécies animais e vegetais como interlocutores da pesquisa, propondo-se, assim, a realização de uma antropologia menos antropocêntrica e instrumental, com viés pós-humanista (Digard 1999; Kirksey e Helmreich 2010; Haraway 2008) e pós-naturalista (Descola 2005).
Dentre os principais interlocutores da pesquisa aqui apresentada estão os seguintes moradores e moradoras da comunidade quilombola de Palmas, e suas respectivas cabritas: Dona Zair Franco, Dona Onélia Franco e Seu Alcíbio (moradores do Rincão do Inferno), Seu Pedro e Dona Neli Alves, os irmãos Leomar e Vanderlei Alves, Ana Luísa Soares, Fabiani Alves Franco (filha de Leomar).
O vizinho desta comunidade Teodoro Valente também foi visitado.7 Teodoro é o principal opositor à demarcação de terras quilombolas em Palmas. Tem cerca de 45 anos de idade, é branco. Também cria cabras, mas em larga escala, e faz a mediação com o aviário de Porto Alegre. Pode ser considerado um grande proprietário de terras, para os padrões da região, tanto no sentido agrário quanto no sentido de suas movimentações políticas - defende o desmatamento de mata nativa, a extração de minérios na região e o uso de agrotóxicos.
Outro interlocutor significativo foi o caminhoneiro e comerciante de animais Alfredo da Graça.8 Alfredo é um homem branco, tem pouco mais de 30 anos, e é um dos proprietários de um estabelecimento familiar de compra e venda de animais, na zona norte de Porto Alegre, ativo há mais de 60 anos. Apesar do contato estreito e cotidiano com pais e mães-de-santo de toda Porto Alegre e região metropolitana, Alfredo e seu tio Galvão não se consideram “de religião”. Há cerca de 30 anos, a família compra cabras de Teodoro. As cabritas compradas em Palmas ficam hospedadas em Alvorada, cidade da região de Porto Alegre, onde Alfredo mora. Possuem clientes em Caxias, Canoas, Viamão e outras localidades.
Acompanhou-se também o babalorixá Pai Humberto de Bará Adague e seu filho de santo, o tamboreiro Gilmar de Ogum Avagã. Pai Humberto de Bará Adague é um homem negro de cerca de 50 anos, atualmente morador da Vila Quinta do Portal, na Lomba do Pinheiro, em Porto Alegre. Quando ele nasceu, sua mãe já era iniciada no batuque. Sua avó materna também. Ambas eram filhas de santo de Mãe Moça da Oxum, yalorixá da nação Oyó, que ficou muito conhecida em Porto Alegre - e que depois foi quem iniciou e aprontou Pai Humberto.
Gilmar é alabê (aquele que toca o tambor no terreiro) e aluno do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Nos conhecemos em uma oficina deliberativa sobre pluralismo religioso e relações étnico-raciais, promovida pela Fundação Joaquim Nabuco (PE), realizada em Porto Alegre com a colaboração do Núcleo de Estudos da Religião (UFRGS). Gilmar é um homem branco, tem cerca de 50 anos, e iniciou sua trajetória religiosa pela mão da falecida Mãe Jane de Oxum Pandá. Sua mãe biológica, sua avó e bisavó também eram de religião, de nação Oyó.9
A metodologia utilizada foi observação participante (Ingold 2014), com estadas no quilombo, visitas à empresa de venda de animais em Alvorada e Porto Alegre, uma viagem de caminhão com Alfredo entre esta cidade e Palmas, para o carregamento e transporte de cabras e carneiros. Além disso, realizaram-se entrevistas semiestruturadas com Pai Humberto de Bará Adague e Gilmar de Ogum Avagã, durante visitas de campo ao terreiro destes. Lançou-se mão, outrossim, de pesquisa bibliográfica em textos etnográficos e relatórios técnicos a respeito dos coletivos em questão.
Chibas, changueiros, orixás
A comunidade quilombola de Palmas é composta por cerca de 30 a 40 famílias, todas ligadas por vínculos comuns de ancestralidade. Uma ancestralidade assentada na relação com a terra, na ocupação territorial da região em questão, além de laços de parentesco, compadrio e matrimonialidade. As famílias que constituem a comunidade são descendentes de trabalhadores negros escravizados das estâncias de pecuária da região.10 A área cuja demarcação de terras de uso coletivo foi reivindicada pela Associação Quilombola de Palmas está situada ao norte do município de Bagé. O reconhecimento definitivo do território quilombola ocorreu em fevereiro de 2017, quando o INCRA publicou portaria no Diário Oficial da União, reconhecendo como território de remanescentes de quilombos a área de 837.984 hectares compostos pelas localidades Rincão da Pedreira, Rincão do Alves, Campo do Senhor Ourique e Rincão do Inferno.
Em Palmas, o relevo ondulado e fortemente ondulado, por “coxilhas” e “cerros”, com altitudes entre 200 e 300 metros, o solo composto por frequentes afloramentos rochosos, por “lajes de pedra”, “perais” e “paredões”, densa vegetação arbórea, os “matos”, são em linhas gerais descrições físico-geográficas e paisagísticas que se contrapõem à imagem hegemônica que se convencionou ter das regiões marcadas pela comarca pampiana, quais sejam, as vastidões de pastagens, várzeas e planícies, povoadas por extensos latifúndios, grandes rebanhos bovinos e seus pastores/caçadores, os gaúchos (Kosby, Lima e Rieth 2017).
A expressão “comarca pampiana” foi cunhada pelo pensador uruguaio Ángel Rama para descrever a região da fronteira Brasil/Uruguai como uma zona de compartilhamento cultural, sem dividi-la dicotomicamente em noções como fronteira geopolítica/fronteira cultural ou nação/região. Para Aldyr Schlee (2014), esse espaço fronteiriço é peculiar pela permanência de uma cultura periférica comum, dentro de limites nos quais os referenciais de delimitação territorial foram (e ainda são) definidos - cultural e linguisticamente - pelo processo decadente de exploração pecuária da criação extensiva de gado no pampa, mesmo processo em que está forjada (e sucumbida) a figura do gaúcho.
Atualmente, a criação de caprinos, a produção de mel, a feitura e venda de doces, o acesso a crédito rural, à aposentadoria e aos direitos vinculados ao estatuto de produtor rural - acessados principalmente a partir da formação da Associação Quilombola - apontam para outras possibilidades de sustento e manutenção da vida na localidade. As contendas fundiárias acirradas pelo reconhecimento das terras quilombolas fizeram com que muitos proprietários rurais brancos da região, que antes contratavam, ou melhor, solicitavam os serviços campeiros dos moradores do quilombo, deixassem de fazê-lo, como forma de retaliação. Assim, as famílias quilombolas adquiriram a possibilidade de usufruir de forma sustentável dos recursos naturais do território que habitam (e onde habitaram seus ancestrais), mas foram tendo suas relações de trabalho e sustento cerceadas pelos vizinhos, que também se organizaram, só que a partir de pautas “ruralistas”,11 para dar continuidade às investidas historicamente insistentes de capturar e submeter as possibilidades de criação de vida autônoma e digna dos coletivos negros aos paradigmas agropastoris latifundiários. Uma ocupação comum na região, vantajosa para os contratantes e não para os prestadores de serviço, é a chamada changa. O changueiro faz serviços gerais rápidos pelas estâncias da região (conserta arames, limpa algum campo, cuida de algum animal, esquila alguma ovelha, corta lenha, carneia, etc.), sem vínculo empregatício ou salarial, em troca de valores ínfimos em dinheiro ou de algum “pedaço de carne”.
Segundo o Relatório Sócio, Histórico e Antropológico da comunidade quilombola de Palmas, Bagé/RS, a itinerância é uma condição comum aos negros campesinos. As narrativas sobre os fundadores da comunidade de Palmas semantizam as noções de fronteira e escravidão: as fronteiras entre Brasil e Uruguai não estavam definidas durante os três primeiros quartos do século XIX, e a presença brasileira ao norte do Rio Negro era agropastoril e utilizadora de mão de obra escrava (INCRA; UFRGS 2007). Aqueles que escapavam criavam “quilombos em matos de difícil acesso”, e alguns criavam mais de um quilombo em matos diferentes, mudando-se de dias em dias para não serem presos. Há relatos de ranchos construídos por escravos fugidos dentro do mato, esconderijos em ilhas dentro do mato sobre o rio Camaquã.
Os constantes deslocamentos impostos por forças de opressão racial constituíram a comunidade de Palmas. O que era estratégia de aniquilação e exploração da presença negra na região, tornou-se a forma possível de existência da comunidade e de sua permanência no local:
“[…] os quilombolas da região de Palmas promoveram um processo de ocupação territorial gradativa, por meio da exploração de mão de obra escrava ou livre negra, denominado de ‘desterritorialização relativa’, uma vez que os quilombolas da região deslocam/migram, no período escravocrata, entre estâncias fugindo ou retornando de contexto de guerrilhas; trocando de campos como agregados; deslocando-se com as famílias entre trabalhos sazonais com as colheitas de trigo, arroz ou em atividades extrativistas, sobretudo na produção de lenha e carvão, paralelo à produção de roças.” (INCRA; UFRGS 2007)
A manutenção dos rebanhos de cabritas é uma das poucas atividades pecuárias viáveis para a comunidade quilombola de Palmas, justamente porque esses animais são profundos conhecedores dos matos e suas trilhas, das ervas comestíveis, e destros transeuntes nos perais. Por se alimentarem de brotos e do mato - pastando somente em casos de não haver alternativa - a necessidade de alimentá-las com milho ou ração se faz menos urgente. Dentre as plantas mais abundantes nos matos de Palmas, as cabritas comem folhas e brotos de pitangueira, cambará, aroeira branca, São João, embira. Esta última é venenosa em determinadas épocas do ano, e as cabritas sabem disso, comendo-as só quando possível. Teodoro Valente diz que estes animais são muito seletivos, pois, embora pareça que “comem tudo o que veem pela frente”, escolhem muito bem as ervas, sua idade e época do ano. Seu Alcíbio diz que a carne de cabrita é mais saudável do que as outras, pois tudo o que ela come é chá. Numa ida ao mato para chamar as cabritas com Ana Luísa e as crianças, percebi que estas vinham pelo caminho comendo as folhinhas das mesmas árvores que as cabritas comem, as mesmas com as quais Ana Luísa faz chá para acompanhar bolo ou torta frita, ou para curar enfermidades.
Por quase não pastarem, não comerem gramíneas próximas do chão, as cabritas evitam serem contaminadas por verminoses. Raramente morre uma cabrita por doença ou ataque de predadores, em Palmas. O mais comum de acontecer é morrerem filhotes durante grandes geadas. Andar pelos perais oferece solo seco, evitando a doença mais recorrente entre as cabritas: as frieiras nos cascos.
Segundo Leomar, as cabritas podem dar até três crias por ano - sendo comum o parto de gêmeos ou trigêmeos. Quinze dias depois de parir ela já pode emprenhar de novo, desde que esteja bem nutrida, ou seja, que haja espaço e alimento suficiente para todo o rebanho. Colocar muitos caprinos em um pequeno espaço significa menos reprodução dos mesmos. Nas cabritas não se percebe um cio periódico, podendo copular e emprenhar caso haja um bode por perto. A reprodução é controlada tirando-se os bodes do rebanho, em determinados períodos, e é controlada para que os recursos naturais de alimento não se esgotem. A venda dos animais para os terreiros fica dependendo de não estarem as cabritas com filhote “no pé”, ou seja, com filhotes recém-nascidos.
Com quatro meses de idade um cabritinho já pode “se governar”, ou seja, comer sem precisar da mãe e querer cobrir (copular com) as cabritas (que com cerca de seis meses já permitem cobertura). Quem me fala em cabrito “se governar” é o comerciante Alfredo, durante a viagem entre Alvorada e Palmas. Alfredo está entre mundos, traduz um universo pelo outro. No batuque do Rio Grande do Sul, outro campo pelo qual Alfredo circula, também há a expressão “se governar”. A pessoa pode se governar depois de pronta, de ter assentado todos os orixás no corpo e na pedra (acutá) e de ter recebido os axés de ifá e obé, búzios e faca, respectivamente. A pessoa que se governa pode “cortar” para si e para filhos e/ou afilhados de santo, ou seja, pode usar a faca para iniciar outras pessoas, vertendo o axorô (sangue sacralizado) do corpo de um animal para o corpo de um ser humano e para os objetos rituais. No ritual do “corte” ocorre um tipo de abate sacralizado, do qual as cabras (algumas ovelhas e carneiros) de Palmas participam depois de vendidas para os terreiros. Quando alguém “corta para seus pais” quer dizer que essa pessoa está atualizando a presença dos seus orixás pelo seu corpo, o seu axé.12 O “corte” é parte de uma “obrigação”, ritual no qual se “dá de comer ao(s) orixá(s)”. Logo após o “corte”, a pessoa vai para o “chão”, que é um período de resguardo, durante o qual o orixá come na cabeça, ao mesmo tempo em que no seu filho ou filha se nutre uma pessoa nova, renovada.
Em Aspectos Sócio-Jurídicos sobre Intolerância Religiosa, Laicidade do Estado e Direito ao Culto Frente às Tradições de Matriz Africana, Winnie Bueno (2015) traz uma pertinente descrição desses rituais no contexto da vida nos terreiros do Rio Grande do Sul:
“A imolação de animais nas expressões religiosas das tradições de matriz africana é a forma com que se estabelece a comunicação entre os adeptos e as divindades cultuadas, um fundamento sagrado com múltiplos significados míticos que se configuram enquanto pilares dessa religião. Não obstante, o abate sacrificial é uma forma de renovação das relações entre humanos e animais, em que ambas formas de vida são colocadas em continuidade e equidade. É um ritual de renascimento em que a importância da vida animal supera o princípio do consumo para a alimentação humana. Ao colocar animal e humano em extensão, implicados um no outro, esse ritual põe o homem em contato com potências complexas de sua existência enquanto ‘ser vivo’. Assim, o abate sacralizado de um animal também encerra o ciclo de uma vida humana, que se reinicia fortalecida pela nutrição dos deuses e da comunidade. Mas isso só é possível graças a uma cosmologia que enxerga a vida como fenômeno coletivo, prevista pela interdependência entre animais humanos e não humanos, plantas, matas, águas, solo, ventos, enfim a natureza e o meio ambiente.” (Bueno 2015: 43)
As cabritas são membros da comunidade de Palmas. Com as pessoas e com o lugar mantêm relações de vivência fundamentais para que as formas de socialidade que ali eclodem sejam intensidades capazes de criar fluxos de existência com aquele lugar. Ninguém soube ao certo me dizer quando as cabritas chegaram por lá, mas todas as pessoas com quem conversei me disseram que seus pais ou avós já criavam caprinos. Dona Maria Eva Alves, em entrevista aos pesquisadores da UFRGS (INCRA; UFRGS 2017), conta que conter os cabritos é muito difícil, que sempre passou trabalho com esses animais. A necessidade de contê-los tinha como principal objetivo evitar que destruíssem roças e lavouras ou fugissem. Faziam-se cercas de rama, de pau a pique, moirões e cercas de pedra.
Houve, em 2005, um incentivo do Programa RS Rural para diversos tipos de atividades produtivas que teriam a ver com a realidade da comunidade, dentre elas, a caprinocultura, a apicultura, a ovinocultura.13 Nessa ocasião, vários moradores optaram por criar cabritas porque são animais que “não dão muito trabalho”, quase não adoecem, não precisam de grande investimento para se reproduzirem, requerendo apenas uma certa atenção à manutenção do convívio com os humanos, para não se afastarem muito da casa de quem as cria. Enfim, os que optaram pelas cabritas já sabiam como conviver com estes animais. Aqueles que hesitaram em escolher “as cabritas do governo”, mas acabaram aceitando o desafio de criá-las, ao invés de optarem por outros subsídios estatais, no início tiveram dificuldade para lidar com a itinerância dos bandos. Seu Pedro, tio de Vanderlei e Leomar, se queixava de ter que andar “gastando o cavalo”, subindo e descendo cerro atrás de cabrita.
As cabritas, segundo Seu Alcíbio, gostam das pedras, que abundam em Palmas, e gostam de andar: “Para elas não tem campo… para elas é caminhar… nem sei como permanecem aí na volta…” (Bueno 2015: 115). Quando conheci Seu Biqui, cerca de dez anos depois da entrevista acima, ele já parecia saber o que fazia as cabritas não se afastarem definitivamente. Dizia-me: “não há bicho que a boia não amanse”. As cabritas de Palmas devem ser “amansadas” com mais frequência do que as ovelhas, por exemplo. Seu Biqui tem umas quatro ovelhas que aparecem de manhã na volta da casa para receberem comida, sem precisarem ser atraídas. Se fossem cabritas teriam que ser chamadas, ou ficariam devorando os brotos e folhinhas do mato - ou ainda a roça. Ele conta que tem uns cabritos “guaxos” na volta da casa (órfãos criados perto dos humanos), mas que os “araganos” (afastados do convívio humano, andarilhos), soltos mato adentro, são mais de 80 animais, assinalados na orelha, mas sem marcação no couro.14
Conforme Dona Zair, “as cabritas não têm paradeiro, são danadas”. A estratégia delas para se manterem alimentadas é a itinerância pelos matos e perais. Pode-se perceber que os matos mais fechados, mais densos, acabam por ficar “limpos” até certa altura, pois as cabritas vão comendo a vegetação que está ao seu alcance. E embora não haja necessidade de grandes investimentos financeiros na manutenção do rebanho, é fundamental que as cabritas sejam manejadas pelo menos uma ou duas vezes por semana, para que não fiquem “bagualas” (xucras, araganas, asselvajadas), já que sua condição de domesticadas, ou não, não é definitiva. Quando “bagualas”, custam para atender ao chamado com oferta de milhos. Entocam-se nos matos, ou saem a caminhar pelas pedras e não voltam para os locais de referência, onde costumavam encontrar-se com os humanos - criam outros locais de referência. Há uma certa autonomia com relação à subsistência e a constante necessidade de os humanos reforçarem os laços de convivência com os animais. Pode-se dizer de que as cabritas também esperam dos humanos que eles não se “asselvagem” em relação a elas.
No Rincão do Inferno a topografia composta por cânions de pedra (que formam o vale do Rio Camaquã) e as matas densas, tornam muito árduo o trabalho de buscar as cabritas, estas se tornando “selvagens” pela vida no mato, “por aí”. Dona Onélia tem vontade de criar umas cabritas guaxas porque os guaxos quase não se dispersam. As cabritas enquanto muito próximas dos humanos, tais como guaxas, andam por cima das camas, das mesas, dos sofás, se deixam abraçar, beijar. No entanto, é só passarem alguns dias sem contato com as pessoas, ou sem receber comida, que já rumam para os matos, para as andanças, e logo se tornam tão bravias que só estratégias de caça são capazes de trazê-las de volta para o convívio humano. Às vezes, quando alguém aparece com arma, faz-se uma caçada e se consegue trazer um cabrito para casa, para comê-lo. Na caça alveja-se o animal à distância, já no abate doméstico, usa-se a faca.
É raro carnear e comer um guaxo, sendo bem mais comum abater cabritos - mais os machos do que as fêmeas - que ficam afastados do convívio humano. Essa aproximação/afastamento, como já foi visto, é negociada constantemente. Fabiani Franco lamenta ter tido que vender suas duas guaxinhas brancas para um caminhoneiro, que buscava por cabras desta cor para vender a uma casa de religião. Como eram as únicas brancas e a família de Fabiani estava precisando vender, foram-se as guaxas para um terreiro da cidade de Uruguaiana.
Na periferia de Porto Alegre, Pai Humberto de Bará Adague evita manter as cabritas, cabras, bodes, cabritos, ovelhas, carneiros, enfim os animais de quatro pés destinados aos orixás, perto de casa. Pede para o vendedor entregá-los no dia da obrigação, assim não se criam afetos mais profundos com esses animais - nem afetos de amizade e carinho entre humanos e aqueles espécimes mais dóceis, nem brigas e disputas corporais entre homens e bodes furiosos. No primeiro caso, evita-se que se tenha dó ou pena de matar o animal que o orixá vai comer, sob a possibilidade deste rejeitar a comida que lhe é ofertada e o animal não poder ser abatido; no segundo, evita-se que carneiros machuquem às cabeçadas aqueles que com eles lidam, e que bodes “sexualmente vorazes” e violentamente habilidosos nas disputas corporais contra a contenção, machuquem fêmeas e machos das demais espécies - seja pelas tentativas reiteradas de cópula forçada, inclusive com ovelhas e cabritos, seja pelos seus revides às ações humanas contentoras.
Para Pai Humberto, “o animal tem que se oferecer em sacrifício”. Assim, se ele não aceita comer o milho ou o pasto que lhe oferecem enquanto é encaminhado para o abate, já dentro do salão do terreiro, é porque o orixá também não quer comer, devendo-se suspender a imolação do animal. Se este se abaixa na frente do quarto de santo também deve-se suspender o abate; se a cabrita ou a ovelha berrarem, podem estar prenhas (observam-se as tetas, para ver se estão inchadas) e não se mata animal prenhe; se a ave bate as asas na hora do “corte” também não pode ser abatida. Todos esses são sinais de que o orixá rejeitou a oferta. Pai Humberto conta que pode acontecer de o cabrito ir sozinho, mas também de o pai de santo sentir na hora que não é para matar e mandar soltar.
Pai Humberto não abate animal que não tenha escolhido. Não encomenda bicho por telefone, não compra sem olhar. Para ele, o animal se torna “sagrado” no momento em que é escolhido, porque é quando ele se identifica com o animal e consegue encontrar correspondências entre este e o orixá do filho que fará a obrigação:
“Eu tenho que olhar para ele e ver que ele é para aquele determinado orixá […]. Digamos, o Fabrício é filho de Oxum. Em outubro ele vai cortar para seu orixá, como vários filhos meus vão fazer. Eu tenho que olhar e ver que aquela ali é a cabra que será para a Oxum dele […]. Eu tenho que saber que aquele ali tem a cor, o tamanho, ideal para cada orixá.” [Entrevista em 08/07/2017]
Desde o momento em que o comprador avisa Leomar e Fabiani que não devem capar os bodes, lá no quilombo, estes animais já podem ser vistos como para algum orixá - neste caso podem ser para Ogum, já são de Ogum, já são Ogum, aos olhos de quem é de axé. Na lista de compras de Alfredo constam, por exemplo: “duas cabritas amarelas para Oxum”, “uma cabrita mocha para Obá”.
Na casa de Pai Humberto, Oxum, Oxalá, Iansã, tem que comer cabrita “parideira”, que já tenha reproduzido. Isso porque Oxum e Iansã são mães e Oxalá tem parte na procriação. Ele é o único orixá homem que come cabrita e galinha, fêmeas e brancas. Como Oxalá e Oxum são os progenitores da maioria dos outros orixás, Oxalá come fêmea porque ele rege a fertilidade de Oxum. Iemanjá também é mãe, mas come ovelha branca. Xangô come carneiro branco com bastante chifre. Bará, Ogum e Ossanha comem cabrito com chifre, mas se o Ogum ou o Bará forem de rua (Avagã e Lodê), devem comer bode. Nenhum desses orixás pode comer filhotes. Mas os Ibeijis e o Bará agelu, que são orixás crianças, podem comer cabritos pequenos. Xangô e Oxum de Ibeji comem, respectivamente, carneiro e cabrita pequenos. A orixá Obá só come cabrita sem chifre, que não tenha tido cria e, de preferência, que sejam virgens; não pode nem ter esboçado chifre. Odé e Otim, que são um casal, devem comer um casal de leitões. Todos os machos devem ser inteiros, ou seja, não podem ter sido capados.
Todos devem comer um espécime de maior tamanho possível, o que, segundo Pai Humberto, é uma característica da nação Oyó: “nós não somos feitos com animais pequenos, só os enormes, cabras, bodes”. E não importa o tamanho do corpo da pessoa, o importante é a fortaleza que se ganha ao alimentar o orixá com um animal viçoso.
No que diz respeito às cores dos animais, as definições vão ficando menos exatas. Parte-se de uma cor ou característica, e delas a definição vai variando: “um bode escuro para Ogum”, ou, “[para Obá] Eu procuro branca, cinza, que é mais o arquipélago de Obá. Até uma amarelinha, de repente.” Pai Humberto fala em arquipélago para designar o conjunto de domínios que o orixá abrange. A gestação e a reprodução, por exemplo, é um domínio por onde passa Oxum.
Para evitar que se abatam muitos animais e que “corra muito sangue”, o que exige controle dos vazamentos - assim como grandes demandas de dinheiro, tempo e gente - alguns orixás “comem juntos”. Por exemplo: Ogum, Ossaim e Xapanã comem juntos. Estão estes orixás muito presentes nos matos, nas folhas ou ervas, na cura e nos ferimentos.15 O bode de Ogum é “acinzentado, meio malhado, meio preto/meio branco”. Se a pessoa for cortar para Ogum, Ossaim e Xapanã comem este bode “acinzentado…”. Se for cortar para Ossaim, o bode é “meio branco”, e Ogum e Xapanã também comem. Se o corte é para Xapanã, o bode é “um pouco mais escuro, quase preto”, Ogum e Ossaim aceitam também. E pode acontecer de Oxalá comer a mesma cabrita que Oxum ou a ovelha de Iemanjá, pois “andam juntos”. Assim, quando Gilmar vai escolher o bode de seu Ogum de cabeça, evita que ele seja “mais branco do que preto”, porque branco é um domínio de Oxalá, e é como que um desrespeito invadir o domínio de outro orixá, ainda mais Oxalá, que é um orixá velho e especial na hierarquia do Orumalé.
As fronteiras entre os domínios dos orixás se interpenetram em muitos momentos. Há sempre um “meio”, “um quase”, “um pouco mais”, que permitem os vazamentos e as possibilidades de variação que os singularizam sem deixarem de estar junto com os demais. Mesmo a individuação supõe a composição com algo mais, esboçado na impossibilidade de definir a exatidão dos matizes sem que se perca uma alteridade que é fundante para esses seres múltiplos.16 Talvez por isso Pai Humberto enxergue o candomblé da Bahia não como outra religião, diferente do batuque, mas como outra nação, diferente das diversas existentes no Rio Grande do Sul.
A questão dos domínios, dos fluxos de intensidades e da canalização destes está também diretamente relacionada com os fluxos de axorô e as intensidades que atualizam. Nos rituais de abate sacralizado, a lógica do “arquipélago”, dos vazamentos, se inverte e as fronteiras entre domínios passam a ser bem delimitadas. É preciso saber fazer o corte do jeito específico para cada finalidade, ou seja, para alimentar o ser com quem se espera reforçar os laços, sob pena de a vida se desorganizar de forma drástica ou de o ritual não ter a eficácia esperada.17 Para Pai Humberto, não se pode deixar sangue “correndo por correr”. Não é possível matar um animal para comer no pátio de casa, pois o sangue escorrendo “chama outros seres” para comê-lo, caso não se faça o ritual de oferecer para um orixá ou entidade. Conta que, certa vez, estava em um sítio e precisou matar uma ovelha para fazer churrasco. Preferiu usar uma arma de fogo, pois a faca transmitiria axé, já que a sua mão tem axé.18
“O cabrito não pode pisar onde mija”: epistemes peregrinas
A “rusticidade”, a “plasticidade”, das cabritas - características enfatizadas no quilombo Palmas - não estão dadas pelos seus corpos desengajados do ambiente, principalmente do chão onde pisam. O contrário também pode ser dito delas, de não serem bichos fáceis de criar, o que muito se ouve dizer na cidade. Pai Humberto de Bará conta que antigamente havia yalorixás e babalorixás que tinham algum animal em casa, mas o crescimento da cidade acabou por confinar o espaço, tanto para os humanos quanto para os cabritos (no masculino, na cidade). Ele conta que cabritos são bichos difíceis de criar porque eles não podem pisar sobre a própria urina, o que desenvolve um tipo de verminose, que pode ser fatal - no quilombo fala-se em frieiras causadas pela umidade. Isso demanda muito espaço para deslocamento.
As descrições de Pai Humberto nos ensinam também sobre o quilombo e as controvérsias de se exigir que as cabritas lá fora fiquem em abrigos, pisando sobre serragem. Não há produção de cabritas para o mercado de carne (commodity) na comunidade quilombola de Palmas, tampouco a venda de cabrita para as religiões de matriz africana gera rendimentos que permitam investir em outras formas de manejo. Os padrões de produtividade e sanitários, exigidos pelos programas estatais de incentivo à produção rural e permanência no campo, são praticamente inalcançáveis para a comunidade quilombola, tanto pelo investimento de capital financeiro quanto pelas transformações na vida que causaria a sedentarização dos caprinos em mangueiras, a alimentação por comida comprada (ração, milho) e o uso de medicamentos. Isso implicaria em uma sedentarização das pessoas também, que passariam os dias em função de juntar cabritas, colocar no estábulo, alimentar, dar remédio, etc. Às cabritas que são consumidas domesticamente e pelas casas de religião, “o mato sempre deu tudo” que é preciso.
A presença de mediadores estabelece uma distância entre os consumidores e os criadores. Tanto os religiosos quanto os quilombolas ficam à mercê dos preços estabelecidos pelos mediadores, e há por parte de alguns produtores brancos da região a intenção de apagar a origem das cabritas quando estas vêm do quilombo - misturam os animais dentro do caminhão e dizem não saber quais vêm do quilombo ou quais vêm de produtores brancos. Assim, justifica-se a frase dos técnicos estatais e ruralistas: “os negros de palmas não produzem nada” - mesmo que os próprios ruralistas estejam ganhando dinheiro com as cabritas da comunidade quilombola. Alfredo compra cabritas de Teodoro Valente para vender na região metropolitana. Teodoro compra dos moradores do quilombo por cerca de 130 reais e revende para o mercador por 200. O preço dos animais mais que triplica até chegar nas casas de religião: se no quilombo são vendidos por 130 reais cada um, na cidade eles podem chegar a 600 reais cada.19
Alfredo não traz muitos cabritos de uma só vez para seu terreno em Alvorada, por causa da umidade, quando em épocas de muita chuva - era necessário cobrir com serragem o chão do galpão onde os animais ficavam, no interim entre chegar de Palmas e irem para os terreiros. Essa característica não impede que o bode urine nas patas da frente e esfregue-as na barba para atrair as fêmeas quando estas estão no cio - daí seu famigerado mau cheiro. O que parece concatenar as análises etológicas de Pai Humberto e dos quilombolas e seus vizinhos é a constante desterritorialização (parcial) dos cabritos, que estão sempre em outro lugar (embora não deixem de estar “pela volta”).
Outra controvérsia que permeou a pesquisa advém do Projeto de Lei n.º 21/2015, proposto na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul pela deputada evangélica e ativista da proteção animal Regina Becker Fortunatti, que visava proibir o abate sacralizado de animais nas casas de religiões de matriz africana deste estado. O projeto de lei protocolado pela deputada Regina Becker não foi um fato isolado, nem no Rio Grande do Sul, nem na esfera nacional.20 Tais atitudes institucionais de perseguição contra as religiões de matriz africana no Rio Grande do Sul e no Brasil têm sido frequentes, pelo menos nos últimos dez anos (Oro 2005; Oro e Bem 2008; Goldman 2015b).
Nenhum dos interlocutores do quilombo diz possuir conhecimento sobre o que acontece nos terreiros para onde seus animais são vendidos. Dona Onélia, inclusive, tem certa proximidade com uma religião neopentecostal. Fabiani, por outro lado, traz uma perspectiva comparativa entre o abate nas casas de religião e a indústria frigorífica. Não tem dúvidas de que a demonização do abate nos terreiros é mais uma investida racista contra os modos de viver negros, já que é impossível acreditar que as pessoas que se mobilizam contra a presença de animais nos rituais afro-religiosos estejam mesmo indiferentes às origens sociais de quem pratica essas religiões. Diz que se tais movimentos de proteção dos animais fossem mesmo engajados pela manutenção da vida, e fora de qualquer semiótica conservadora racista, estariam investindo contra a barbárie da indústria frigorífica, que sacrifica animais e humanos.
Em Diez Gritos sobre la Campana contra las Religiones de Matriz Africana, Marcio Goldman (2015b) afirma a existência de duas semióticas, que sustentam tais campanhas, “uma reacionária (os evangélicos em geral, de todas as cores) e uma moderna (os ecologistas, em geral brancos)”. Para o autor, a primeira supõe que as religiões de matriz africana estão erradas porque acreditam e cultuam seres maléficos que, erroneamente, consideram benéficos. A segunda, que traz o discurso sobre os direitos dos animais, carrega neste a “certeza” de que as práticas sacrificiais das religiões de origem africana são “falsas”, no “sentido moderno de que eles não são direcionados a nada nem a ninguém - uma vez que seriam o resultado da ilusão, do erro”. A semiótica moderna “aceita” com condescendência as práticas que considera ilusórias, mas quando estas tocam suas verdades autoproclamadas universais, são combatidas com violência. Ambas, segundo Goldman, seriam as duas faces de uma mesma moeda de intolerância.
A yalorixá Sandrali De Oxum, em depoimento no documentário Tem Comida de Negro Aqui, enfatiza a relação que o povo de terreiro possui com os animais e as peculiaridades que isso traz para o abate e a produção de alimentos. Segundo a yalorixá, um negro “não mataria a pauladas o animal, que é uma extensão do seu corpo”. O abate de animais, conforme as práticas das tradições de matriz africana, deve ser por corte com faca das veias jugulares do pescoço e por sangria rápida.21
Percebe-se que as investidas racistas e discriminatórias de projetos que visam aniquilar a presença potente das religiões de matriz africana também atingem, direta e drasticamente, a vida de comunidades negras rurais das regiões sul-rio-grandenses de Porto Alegre-Viamão-Alvorada, Pelotas-Canguçu-Turuçu e Bagé-Uruguaina-São Gabriel. Porque, em muitos casos, os animais que participam dos rituais de iniciação no batuque são oriundos de comunidades negras rurais. A atualização da historicidade das raças nos corpos de animais e humanos coloca batuqueiros e quilombolas como expostos a um mesmo fluxo de experiência da violência colonial e, ao mesmo tempo, como cúmplices nas estratégias de resistência a tais violências. Cabras, quilombolas, batuqueiros em devir-negro.
Mesmo os intervalos entre o quilombo e o mercador, entre Palmas e os terreiros, são preenchidos pelos movimentos de corpos em cuja historicidade irrompem como negros. O intervalo por onde transita o mercador, dono do aviário que faz o comércio dos animais para as terreiras, é carregado de intensidades transformadoras muito potentes para as cabritas - lugar de tensões, de imobilidade forçada e de desterritorialização. Quando as cabritas, cujo modo de fazer conhecimento no mundo é um modo peregrino, são transportadas como passageiras, encerradas na boleia do caminhão, seus corpos operam uma grande virada no sentido de seu confinamento, de seu “encolhimento”. Isso se dá menos pelo transporte em si do que pelas variações nos motivos pelos quais elas viajam.
Quando são encomendadas por alguma casa de religião podem ser carregadas e entregues no mesmo dia, o que não acarreta grandes danos para seus corpos. O problema é quando Teodoro está precisando de dinheiro e liga para Alfredo para oferecer cabritas sem que este tenha um destino imediato para elas que não o galpão e o pátio na cidade. A questão crítica é a conversão em mercadoria, em moeda de troca. A sedentarização imposta pela condição de “estoque” com que Teodoro e o caminhoneiro lidam com os animais. Entre Palmas e os terreiros elas devem ficar o menor intervalo de tempo possível com o mercador, para que seus corpos não se deteriorem. Entre estar na casa de religião e ser abatido, o intervalo também deve ser mínimo, para que seus corpos não se deteriorem ou deteriorem outros corpos.
Aquilo que se diz das cabritas no quilombo, de que sua docilidade e domesticidade dependem do contato cotidiano com os humanos, se inverte na cidade. A imposição de um ambiente “doméstico”, sob o olhar vigilante dos humanos, desenha a “selvageria” de outra forma, agressiva e frágil. No quilombo, tornar-se selvagem era sumir, não voltar, por falta de contato com os humanos. Na cidade, os bodes, principalmente, dão fama aos caprinos de “bichos brabos” - ou melhor, embrabecidos. Se no quilombo eles eram tirados dos rebanhos para não copularem com as fêmeas, na cidade não há esta opção. Tanto para Alfredo quanto para Pai Humberto, os bodes entram em cio quando colocados junto com as cabras e ficam agressivos porque são impedidos de copular.
Os corpos das cabritas, dos cabritos, dos bodes, encarnam pelas feridas a racialização como acontecimento. As feridas nas patas são as mais comuns, as frieiras de não andarem ou de andarem sobre o mesmo chão. Mas qualquer ferida ou sangramento é repudiado pelos orixás. O animal a ser abatido para os orixás deve ter tido uma vida saudável, uma vida boa, não pode ter sido maltratado, deve estar bonito e bem alimentado. Segundo Gilmar de Ogum Avagã, o animal não pode ter nenhuma mácula no corpo. Para Gilmar, mácula é qualquer ferimento que sangre. O sangue escorrendo abre precedentes para que outros seres (espíritos, eguns) já estejam “comendo naquele corpo”. Gilmar compara este sangue ao sangue de uma mulher menstruada, que também deve ser afastada de todo e qualquer objeto ou lugar de axé.22
Quando Leomar me diz que “o mato deixa a gente todo arranhado”, pede que se observem os braços de Ana Luísa, porque ela tem a pele mais clara, e veja os arranhões que trazem dos espinhos de São João, por ela ter que se embrenhar no mato com as cabritas. Isso reporta à metáfora que Frantz Fanon (2008) faz da pele negra como “hemorragia que coagula sangue negro sobre todo o corpo”.
Assim, quando Gilmar do Ogum diz que um corpo maculado é um corpo com sangue à mostra, pensa-se que quando se oferta um animal “imaculado” a um orixá, o desejo primeiro é de que na vida não se tenha um corpo ferido, um corpo com dor - o que oferecemos aos nossos orixás é o que queremos para nós. Poder-se-ia dizer que qualquer pessoa, negra ou não, deseja não ter dor. Mas o desejo de quem oferta axorô para um orixá que mora no seu corpo, vem de corpos marcados pelos rastros históricos da escravidão - mesmo que o filho de santo seja branco, seu orixá é negro e este habita, compõe, o corpo daquele. Novamente, aquilo que Paul Gilroy descreve como “a condição do ser em estado de dor”, que seria um estado correlato à presença da morte derivada da escravidão, a qual não existe separada da impressionante criatividade negra em construir relações de persistência da vida apesar da violência que ronda. Os orixás, o axé, são essa possibilidade de criação de vida desde potências de morte. O corpo do animal sem mácula seria a possibilidade de um corpo negro sem mácula, sem feridas? Talvez a atualização de um.
Anjos (2001), focando na condição de “nascimento” das obrigações do batuque, afirma que o ritual de iniciação é uma forma de marcar a passagem da cultura pelo corpo, como destino. Sendo o “chão” vivido como gestação de uma nova pessoa e o “corte” como o parto do orixá, pode-se pensar nesses rituais como de recomposição dos corpos negros, cujo esquema corporal, segundo Fanon (2008), desmoronara para dar lugar a um esquema epidérmico racial.
A lógica das “trocas de saúde” - quando um órgão animal (um rim, por exemplo) é oferecido aos orixás para que o mesmo órgão humano (um rim) seja curado. São lógicas de criação de corpos que comportam o diverso. Opostas a dos frigoríficos, onde as pessoas se cortam ao passo que cortam os corpos dos bichos e já não sabem qual sangue é de quem. Diferente da lógica dos campos de extermínio do holocausto, lógica de dessensibilização da morte, lógica do extermínio da juventude negra brasileira, lógica dos linchamentos de jovens negros, de “punições exemplares”. É contra essa maquinação da destruição do outro que opera a lógica do sacrifício nas religiões de matriz africana, como o batuque. Uma lógica que comporta a (e é ocupada pela) diferença, ao invés de exterminá-la.
Segundo o Atlas da Violência 2017, publicação do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e o pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, homens, jovens, negros e de baixa escolaridade são as principais vítimas de mortes violentas no país, sendo a população negra a maioria (78,9%) dos 10% dos indivíduos com mais chances de serem vítimas de homicídios. De cada 100 pessoas assassinadas no Brasil, 71 são negras. Conforme o estudo, “Jovens e negros do sexo masculino continuam sendo assassinados todos os anos como se vivessem em situação de guerra” (IPEA/FBSP 2017: 30). A persistência da relação entre o recorte racial e a violência no Brasil pode ser percebida também na comparação entre a mortalidade de não negras (brancas, amarelas e indígenas), que caiu 7,4% entre 2005 e 2015, e a das mulheres negras, que subiu para 22%.
Últimas considerações
Embora estejam comunidades de terreiros e comunidades remanescentes de quilombos agrupadas enquanto comunidades tradicionais negras (Almeida 2006; O’Dwyer 2002), por serem territórios de resistência construídos por africanos e seus descendentes a partir da experiência de diáspora forçada propiciada pela expansão colonialista do capitalismo (Anjos 2003; Goldman 2005), pouco se conhece das vidas e materiais que sustentam o coexistir longamente (Ingold 2015) desses coletivos. Em quilombos urbanos, como é o caso do quilombo Brotas, em Campinas, São Paulo (Ormaneze 2008), ou do quilombo do Alpes, em Porto Alegre, terreiros e comunidade quilombola trazem laços de coexistência e engajamento afirmativo já bastante evidenciados. No que diz respeito às comunidades quilombolas rurais, parece haver uma maior dificuldade de localizar referências a respeito de tais relações.23
Muitos estudos atribuem tal “distanciamento” à contundente presença de referências religiosas neopentecostais nas comunidades de remanescentes de quilombos (Campos 2012; Abib e Nascimento 2016) e suas políticas de demonização das religiões de matriz africana. Há também pesquisas que se atêm à aproximação das comunidades quilombolas com igrejas protestantes de confissão luterana (Oliveira, Loner e Santos 2008) e católica (Almeida 1989) como limites para sua interação com coletivos negros como os terreiros.
Outras referências (Dalmaso 2012) trazem dados que supõem que muitos quilombolas praticam as religiões de matriz africana, mas não revelam que o fazem por um certo medo do estigma que elas carregam, de “barbarismo” ou “primitivismo”, fato que não facilitaria sua luta por inclusão em projetos estatais de desenvolvimento rural pautados por lógicas sanitárias modernas de produção de alimentos, por exemplo.
Há ainda estudos que conseguem encontrar em um mesmo território negro o reconhecimento de sua remanescência quilombola e a presença de praticantes de religiões de matriz africana (Campos 2012; Ramos 2016).
A busca, muitas vezes frustrada, pela presença das práticas de religiões de matriz africana na vida das comunidades negras rurais leva a que muitas antropólogas e antropólogos abordem tais domínios como isolados por suas diferenças cosmológicas e identitárias, postura que colabora para a reprodução dos ideais segregacionistas do Estado com relação às populações negras. Isso acontece numa tentativa de se transplantar as estruturas cosmológicas das religiões de matriz africana para os quilombos, como se elas representassem em suas divindades, rituais e liturgias emblemas identitários de um “ser ideal” afro-brasileiro, que seriam vivenciados da mesma forma em qualquer comunidade negra brasileira, não fossem interceptadas pela presença universalista e discriminatória das igrejas neopentecostais e outras religiões cristãs. Assim, esbarra-se na tendência a manter, epistemológica e metodologicamente, a religiosidade branca e suas matrizes culturais como majoritárias, não atentando para as trilhas que se desenvolvem em paralelo, por dentro dos matos, no passo das cabras, por exemplo, no zunido das colmeias de abelhas. É nessas trilhas multiespecíficas, nesses caminhos, que terreiros e comunidades negras rurais vivenciam cosmoecologias comuns.
Neste artigo, pretendeu-se adotar tal atitude epistemológica, com o intuito de não atribuir mais potência epistêmica ao caráter totalizador e racista do Estado brasileiro (e este em relação promíscua com algumas religiosidades neopentecostais) do que à criatividade das comunidades negras em questão em criar e subverter suas próprias fronteiras (Anjos 2017; Goldman 2015a).
Cabras, seres humanos - quilombolas e batuqueiros - e orixás “comendo juntos” não param de criar laços de reciprocidade pragmática (Despret 2016). Reciprocidades cosmoecológicas eclodidas de modos inventivos de viver (Barbosa 2012), zonas de passagem do devir-negro comum quilombola-batuqueiro-cabra. Trilhas de sangue e mel, que seguimos não em busca de zonas de comunicação ou de fusão, unificação das vidas, mas de atenção aos acontecimentos que destacam a diferença e a multiplicidade nos corpos-lugares negros implicados nas peregrinações aqui experimentadas.