Este artigo retoma um conjunto de interrogações formuladas no decurso de visitas a lojas de souvenirs do Mindelo, nos primeiros dias que passei nesta cidade, em maio de 2012, no âmbito de um projeto sobre turismo e identidade nacional em Cabo Verde, que ia encontrando na produção e comércio de artesanato o seu principal terreno de pesquisa. O dilúvio de questões que marca o início de uma investigação em um lugar que desconhecemos integra a memória e as notas desses primeiros dias de encanto com a luz e a largueza da baía do Mindelo, que me parecia proporcional à do tempo que tantos mindelenses dedicavam ao prazer da conversa. Nesses dias, parecia-me urgente perceber por que carga de água, em uma ilha tão árida, situada a sul do trópico de Câncer, a tapeçaria, feita em lã, era descrita como o ex-líbris do seu artesanato; por que motivo as tapeçarias, bem como tantos outros objetos expostos nas lojas, exibiam invariavelmente imagens de figuras humanas que me lembravam gravuras oitocentistas de “tipos populares”; e, por último, mas não menos importante, por que razão, nestas imagens, as figuras femininas estavam sempre a trabalhar e as masculinas quase sempre em atividades festivas ou de lazer.
Na semana seguinte, comecei a trabalhar no arquivo do Centro Nacional de Artesanato (CNA), instituição responsável pela introdução da tapeçaria em Cabo Verde no final da década de 1970. O rumo caleidoscópico que esta pesquisa viria a tomar, visando construir uma história das práticas e dos discursos sobre o artesanato cabo-verdiano e, simultaneamente, proceder a uma análise sincrónica em três ilhas, acabaria por desviar-me das interrogações iniciais. Dos resultados desta investigação, retenho aqui, pela influência no presente artigo, o facto de o artesanato mindelense ter sido marcado por uma contínua importação de técnicas e formatos do exterior, sendo muitos dos objetos resultantes destas importações, nacionalizados através de motivos visuais que remetem para temas da cabo-verdianidade (Rovisco 2018). Sendo estes motivos que, ao conferirem nacionalidade aos objetos, permitem que estes sejam considerados artesanato cabo-verdiano, pareceu-me imperativo retomar a pesquisa com o objetivo de analisar estas imagens. E se, como afirmam os tapeceiros, as imagens presentes em tantos objetos foram copiadas dos cartões da tapeçaria, importava colocá-la na linha de frente desta análise.
Com este artigo, volto de alguma forma ao meu ponto de partida, recuperando as interrogações dos primeiros dias de maio de 2012 e desenleando o novelo de nós resultante de uma análise, realizada em 2019, sobre as imagens de Cabo Verde patentes na tapeçaria e sobre a sua influência em outros itens do artesanato mindelense como os quadros com colagens aqui examinados.
Na primeira parte deste artigo são recenseadas as principais linhas e pontos de inflexão do percurso da tapeçaria na Europa, que conduziram à sua incorporação no CNA. Na segunda parte, são examinados os desenhos patentes nas 46 tapeçarias e nos 282 quadros com colagens, expostos em novembro de 2019 nas lojas de souvenirs do Mindelo. Na última parte, apresento um conjunto de pistas de análise resultantes de um primeiro exercício de articulação destas imagens com os principais enunciados sobre a cabo-verdianidade.1
Os fios da teia: dos panos de raz à tapeçaria cabo-verdiana
Num artigo sobre as tapeçarias flamengas em Portugal, abarcando um período que se estende de finais do século XV ao século XVIII, Roza Huylebrouck (1986: 165) define a tapeçaria tecida como um “pano para uso vertical, tecido à mão, onde o desenho é formado pelos fios da trama”, vincando assim como principais características destes objetos o uso vertical e o decorrente primado do desenho. Com efeito, a remissão da tapeçaria para o plano vertical da parede - que a contrapõe à horizontalidade táctil do tapete oriental destinado ao chão (Rita 2016: 95) - ao acentuar a componente visual do consumo, transformou-a numa variante tecida da “pintura mural” que aliava a portabilidade e o conforto térmico conferido pela lã às virtudes narrativas da pintura (Garcez e Makowiecky 2020).
A produção de tapeçarias, que terá tido o seu auge no período analisado por Huylebrouck,2 foi marcada por uma crescente subordinação da tecelagem à pintura, apreensível no processo de apuramento de técnicas de tecelagem e tingimento da lã com o propósito de reproduzir os cartões com rigor. Neste sentido, a tapeçaria constitui um terreno fértil para pensar o estabelecimento e a porosidade da fronteira entre arte e artesanato (Sennett 2015 [2008]: 86-96), mas também o exame da construção de iconografias nacionais. Note-se que as tapeçarias flamengas analisadas por Huylebrouck remetiam principalmente para narrativas mitológicas, bíblicas e nacionais, destacando-se, entre as alusivas à história de Portugal, os temas relacionados com a expansão marítima. A grande popularidade deste tema na Europa terá mesmo originado, na produção flamenga, um estilo de tapeçarias “à maneira de Portugal ou da Índia” com elementos exóticos relativos à flora, fauna, usos e costumes tanto da Índia como de África (Huylebrouck 1986: 177-184).3
A morosidade do processo produtivo resultante tanto da grande dimensão dos painéis como da minúcia dos desenhos elaborados por artistas como Rafael, aliada aos custos da mão-de-obra especializada, da matéria-prima e do transporte, conferiram um caráter sumptuário à tapeçaria. Símbolo de poder e recorrente objeto de “dádivas reais” (cf.Huylebrouck 1986: 166-168), compreende-se que estes objetos tenham sido desvalorizados e muitos até queimados na França revolucionária de finais do século XVIII (Huylebrouck 1986: 174; Garcez e Makowiecky 2020: 142).
Na segunda metade do século XIX, em sintonia com as tendências de exaltação das qualidades estéticas e modos de produção medievais, em que se insere o movimento arts and crafts, assiste-se a uma revalorização da tapeçaria, que sofrerá um novo ímpeto a partir de 1940. Entre inícios da década de 1940 e finais da de 1970, quando se inicia a produção destes objetos em Cabo Verde, a tapeçaria irá sofrer alterações profundas, vendo revolucionados os seus formatos, materiais e modos de produção. No início deste período, cunhado pela procura das “tendências primitivas” da tapeçaria e por inovações técnicas na elaboração de cartões, em que se destacou Jean Lurçat (Gradim 2018: 33), operou-se uma acelerada transformação destes objetos que, com cartões de pintores modernistas, se fixavam às paredes das galerias de arte, inserindo-se assim no campo artístico moderno. Esta fase deixa-se apreender em Portugal após a criação em 1946, na cidade de Portalegre, do primeiro projeto bem-sucedido no sector da manufatura de tapeçaria neste país.4 Para este sucesso terão concorrido vários fatores que se aliaram ao conhecido episódio que levou ao reconhecimento da qualidade da tecelagem de Portalegre por parte de Lurçat (Rita 2016: 110-117). Saliento a adesão de muitos artistas portugueses, bem como as múltiplas encomendas estatais que permitiram integrar estes objetos na decoração de espaços públicos nas últimas décadas do Estado Novo.
Contudo, a revolução operada no século XX no domínio da tapeçaria teve por palco as bienais de Lausanne realizadas a partir de 1962.5 Nestas bienais, começaram a ser expostas - ao lado da tapeçaria moderna, acima referida, tecida em manufaturas como as de Aubusson ou Portalegre -, novos objetos resultantes de propostas estéticas e conceptuais inovadoras (Rita 2016: 118). Alinhadas com a crescente importância dos têxteis na emergência da arte feminista (Gradim 2018: 35-45), estas novas propostas foram protagonizadas por artistas como Magdalena Abakanowicz, Jolanta Owidzka ou Jagoda Buić. Dilatando o leque de materiais e técnicas usadas, estes objetos, que exploravam a textura e a expressividade intrínseca do têxtil, superaram a cisão entre quem tece e quem desenha, libertando a tapeçaria não só da sua sujeição ao cartão (Rita 2016: 151) e, por conseguinte, à pintura, como, muitas vezes, do próprio plano bidimensional da parede, aproximando da escultura e da instalação muitas das obras que passaram a invadir o espaço. A denominação dada a estes objetos (relevos têxteis, formas tecidas, escultura ou instalação têxtil) revela bem o seu potencial de transgressão dos limites do que até então se entendia por tapeçaria (Gradim 2018: 47; Rita 2016: 118), doravante instituída como disciplina autónoma.6
Montra e motor da revolução operada na tapeçaria entre 1960 e 1980, as bienais terão desencadeado uma explosão de debates, exposições (Rita 2016: 145-148) e a constituição, em vários países, de associações de artistas têxteis. Em Portugal, foi criada, em 1975, a ARA - Cooperativa Portuguesa de Tapeçaria (1975-1977), integrando onze artistas tapeceiras. Segundo Ana Gonçalves (2015: 125), a ARA foi formada por iniciativa da artista plástica Maria Flávia Monsaraz, que terá decidido trabalhar nesta área depois de ter visto as obras expostas na segunda bienal de Lausanne. A dissolução da ARA em 1977 levou à constituição, no ano seguinte, do Grupo 3.4.5. Tapeçaria Contemporânea Portuguesa (1978-2002), liderado por Gisella Santi e formado inicialmente por nove mulheres, que terá organizado e/ou participado em 54 exposições (Gonçalves 2015: 190).7 A atividade destes dois coletivos, analisada por Ana Gonçalves, foi crucial na afirmação da arte têxtil em Portugal, país onde estudaram Manuel Figueira, Luísa Queirós e Bela Duarte, os três artistas plásticos envolvidos na introdução da tapeçaria em Cabo Verde.
A tapeçaria em Cabo Verde
A produção de tapeçaria em Cabo Verde foi iniciada no final da década de 1970 no Centro Nacional de Artesanato (CNA), não podendo ser desligada do clima de efervescência em torno da arte têxtil portuguesa neste período. Criado no final de 1977, o CNA resultou da conversão, em organismo estatal, da Cooperativa de Produção Artesanal Resistência (CR) fundada em 1976 no Mindelo. Tendo por objetivo investigar e fomentar a produção, o ensino e a divulgação do artesanato cabo-verdiano, o CNA foi dirigido por Manuel Figueira até 1989, integrando na sua equipa as artistas plásticas Luísa Queirós e Bela Duarte. Privilegiando o ramo têxtil, a produção do CNA do Mindelo começou por dar continuidade ao trabalho de revitalização da panaria cabo-verdiana realizada pela CR, e foi desenvolvida com a inserção de técnicas de tapeçaria e batik que rapidamente se transformaram nos dois sectores mais produtivos e emblemáticos do CNA e, por extensão, do artesanato mindelense.8 O grande entusiasmo com a produção de tapeçaria é apreensível logo no relatório de atividades referente a 1980, ano em que terão sido produzidas 42 tapeçarias:
“Como tinha ficado determinado no Programa de Acção elaborado para 1980, deu-se prioridade ao desenvolvimento da tapeçaria - técnica artística em que os elementos dinamizadores do CNA são autodidatas. […]. Fez-se a experiência de tapeçaria coletiva subordinada ao tema ‘Mar’ - ‘Pelourinho de Peixe’ em que todos participaram […]. Com base nos estudos de desenhos e pintura feitos ao natural, criaram-se tapeçarias já de grandes dimensões, subordinadas ao mesmo tema e também aplicando os novos temas geradores de 1980 - ‘Flora de Cabo Verde’ e ‘Crianças’ ”.9
A tapeçaria produzida no CNA, bidimensional e destinada à parede, caracteriza-se em termos técnicos pela predominância do ponto tafetá (entrelaçamento simples dos fios da teia e da trama) e pela execução em bandas verticais que, após finalizadas, são cosidas no sentido longitudinal. Mais do que o uso de bandas verticais, que encontramos em peças assinadas por tapeceiros de outras nacionalidades, foram os desenhos figurativos dos cartões, remetendo para temas relacionados com a identidade cabo-verdiana, que permitiram nacionalizar estes objetos. A eficácia desta fórmula de “cabo-verdianização” da tapeçaria, usada também no batik e, depois, em outras áreas do artesanato como os quadros, deixa-se, no presente, apreender na forma como estes objetos são exibidos e comercializados enquanto “tapeçaria tradicional cabo-verdiana” e na sua inclusão no saber-fazer artesanal mindelense que se quer preservar.
Inscrevendo-se na referida linha programática que preconizava o derrube das fronteiras entre quem tece e quem desenha, até 1989, a direção do CNA incentivou todos os tapeceiros a produzirem os seus próprios cartões, facultando aulas de desenho e pintura aos aprendizes. Porém, e conforme mencionado no relatório supracitado, os desenhos dos cartões deveriam ajustar-se a temas previamente selecionados. Todos os ex-funcionários do CNA entrevistados referiram a existência de “temas geradores” anuais, como o mar, as crianças ou a mulher cabo-verdiana. Atente-se na descrição do método de trabalho elaborada por um destes ex-funcionários:
“Nós fomos autodidatas, víamos nos livros e começámos a fazer experiências. […] Havia dias em que era para sair para desenhar. Tínhamos temas. Por exemplo, um dia íamos desenhar o Mercado de Peixe. E tirávamos apontamentos ao natural, ao nosso jeito, fazendo padrões, padronagens para tapeçaria e para tecelagem também. E depois é que íamos para os teares. […] Eram sempre temas do quotidiano da cidade do Mindelo e de Cabo Verde em geral. […] Cada aprendiz fazia o seu desenho e depois preparava as cores e executava no tear.” [Marcelino Santos, entrevista realizada em Mindelo, 2012]
Emergindo num período em que a tapeçaria havia já adquirido tridimensionalidade, tornando-se mais conceptual do que figurativa, a tapeçaria executada no CNA recuperou a bidimensionalidade e a componente figurativa dos antigos panos de raz, instituindo-se como veículo privilegiado de criação, fixação e difusão de um reportório visual cabo-verdiano. Também estes objetos eram inacessíveis à maioria da população, sendo em grande parte adquiridos pelo Estado, para decorar as novas instituições governamentais e para oferecer a instituições estrangeiras, mantendo assim tanto o cunho sumptuário da tapeçaria como os seus antigos usos enquanto “dádivas reais”.
O afastamento dos três artistas plásticos do CNA em 1989 produziu transformações na produção de tapeçaria. Entre 1989 e 1997, ano em que se decreta a extinção deste organismo, a produção de tapeçaria, embora pujante em termos quantitativos, começa a sofrer uma progressiva perda de diversidade ao nível dos motivos dos cartões. Ainda que neste período tenham sido realizadas várias ações de formação - uma das quais por Gisella Santi, em 1993 -, muitos dos novos alunos não aprenderam a desenhar, limitando-se a tecer cartões elaborados pelos seus formadores, ex-alunos dos três artistas plásticos, repondo-se assim, em parte, a cisão entre quem tece e quem desenha. Esta redução temática terá sido ainda amplificada nas duas últimas décadas. Com o crescimento do turismo, os poucos tapeceiros que mantiveram a atividade orientaram grande parte da sua produção para o mercado de souvenirs, reduzindo o tamanho e o tempo de produção das peças. Este processo de souvenirização da tapeçaria, conduzindo a uma simplificação dos desenhos, produziu um aumento assinalável do número de peças executadas a partir dos mesmos cartões, selecionados por possuírem motivos mais exóticos e facilmente identificáveis como cabo-verdianos. Estas novas peças, que voltam a colocar a tapeçaria ao serviço da exotização, contrastam com a tapeçaria produzida na década de 1980 que, a partir de 2008, passou a estar exposta ao público no edifício que albergou o CNA, reaberto nesse ano como Museu de Arte Tradicional (MAT).10
Os fios da trama: desenhos e difusão
Da tapeçaria
No final de 2019, apenas quatro tapeceiros declararam continuar a tecer de forma regular.11 As causas do progressivo abandono da tapeçaria, por vezes imputadas às dificuldades de aquisição de matéria-prima, foram sobretudo atribuídas à escassez da procura. Apesar da orientação da produção para o mercado turístico, o consumo destes objetos é reduzido devido ao elevado preço das peças mais cobiçadas, regra geral, de maiores dimensões e ao facto de as mais acessíveis rivalizaram, nas lojas, com uma miríade de objetos feitos a partir de materiais como coco, fibras de bananeira, chifre, pedra-pomes ou conchas, que correspondem de forma mais imediata à procura de exotismo por parte dos turistas.
Das 46 tapeçarias fotografadas,12 33 foram executadas por Cândida Rocha, oito por Marcelino Santos, quatro por Sota Coronel e uma por Hélder Santos.13 Salvo raras exceções, os desenhos consistem em figuras humanas envolvidas em ocupações ditas tradicionais e são considerados pelos seus produtores como retratos do quotidiano do povo cabo-verdiano. Na sua maioria, estes objetos possuem apenas uma ou duas bandas,14 exibindo uma única figura. Misturando com frequência fios de lã, acrílico e algodão, estas peças são muito coloridas, embora, em alguns casos, a paleta de cores obedeça mais à disponibilidade de fios no exíguo mercado mindelense do que a um plano cromático.
Passando à análise dos desenhos, começo por referir que 16 tapeçarias exibem figuras femininas isoladas, 12 exibem figuras masculinas também isoladas e 18 remetem para outros motivos, como uma clave de sol, uma tartaruga ou, no caso das 15 tapeçarias de maiores dimensões, para composições mais complexas que, por vezes, agregam figuras femininas e masculinas. Das 16 tapeçarias com figuras femininas isoladas, apenas uma não foi desenhada com carga à cabeça (imagem 4). As restantes exibem sobre a cabeça: peixes (em 11 casos), fruta (em três casos) e ainda um balde. Em três tapeçarias, estas figuras carregam ainda uma criança às costas. No que concerne às 12 peças com figuras masculinas isoladas, estas foram desenhadas seis vezes a tocar instrumentos musicais (em quatro casos a tocar tambor e em dois a tocar guitarra), cinco vezes a transportar peixe e uma vez com uma enxada.
Quanto às 15 tapeçarias de maiores dimensões, oito remetem para temas relacionados com o mar e em especial com a pesca (imagem 6); tês aludem à festa de São João exibindo tamboreiros e mulheres a dançar (imagem 2) - sendo estes os únicos casos em que as mulheres não são representadas em situações de labor -; duas retratam mulheres a pilar milho; uma evoca as serenatas com homens a tocar violão (imagem 7); e a última exibe mulheres a venderem fruta no mercado.
Excluindo as tapeçarias que reúnem figuras femininas e masculinas, contabilizei 19 objetos com figuras femininas e 17 com figuras masculinas. As primeiras encontram-se sempre em atividades laborais, na sua maioria transportando carga à cabeça, mas também pilando milho ou vendendo no mercado. Por seu turno, as figuras masculinas encontram-se mais ligadas a situações conotadas com lazer, sobretudo associadas à música. Note-se que dez tapeçarias remetem para o tema da música, sete das quais para os tambores das festas de São João. É, contudo, o mar e não a música o tema mais presente nestas tapeçarias. Com efeito, 24 peças exibem cenas de pesca ou figuras masculinas e femininas desenhadas com peixes na mão ou sobre a cabeça. Neste sentido, detetam-se algumas continuidades entre os temas geradores dos cartões efetuados no CNA e os temas das tapeçarias produzidas no presente, em particular a prevalência da temática do mar e da “mulher cabo-verdiana”.
Dos quadros com colagens
Os quadros com colagens consistem numa prancha de platex, à qual são colados diferentes materiais de modo a compor um desenho e a sua moldura. Estes materiais são, na sua maioria, resíduos agrícolas, como troncos de bananeira, palha de milho ou flechas de cana-de-açúcar. Segundo Carlos Gomes, perito no uso destes materiais, esta prática terá derivado de experiências realizadas por dois artesãos santantonenses há cerca de três décadas, tendo por si sido trazida para São Vicente. Estes materiais e técnicas terão sido, pouco depois, introduzidos na oficina de artesanato da Cadeia Central de São Vicente, que se tornaria o maior centro de produção destes objetos no país.15 Em 2019, a maioria dos oito artesãos que produziam estes quadros de forma regular na cidade do Mindelo tinha iniciado a sua produção naquela cadeia.
Tal como na tapeçaria, os quadros exibem figuras humanas envolvidas em atividades ditas tradicionais. Estas figuras são na sua maioria recortadas em cartão, sendo as partes correspondentes ao vestuário e, amiúde, a restante superfície do quadro, revestidas com distintos materiais. Apesar de ter verificado uma grande constância nos motivos dos desenhos ao longo da última década, o leque de materiais usados tem sido expandido, incluindo, a par de fibras de bananeira e de milho, pasta de papel e até poliuretano extraído de equipamentos de refrigeração inutilizados. Porém, a inovação com maior repercussão no mercado mindelense ocorreu nos últimos dois anos, consistindo na substituição dos materiais monocromáticos, até então utilizados por coloridos retalhos de tecidos estampados. O artesão responsável por esta mutação era, em 2019, o maior abastecedor das lojas de souvenirs do Mindelo nesta área de produção, fornecendo ainda outros artesãos com figuras em cartão prontas a serem coladas. Desta forma, ainda que o reportório de figuras deste artesão ultrapassasse as duas dezenas, assistia-se, nesse ano, a uma assinalável repetição dos motivos dos quadros expostos nas lojas.
Estes quadros possuem dimensões compreendidas entre os formatos A0 e A7, embora o tamanho A6, equivalente aos cartões postais, fosse o mais comum nas lojas. Também nesta área, alguns artesãos abandonaram a atividade, neste caso devido ao aumento da concorrência e consequente queda de preço. Em 2019, os quadros com formato postal chegaram a ser vendidos ao consumidor por quatro euros, sendo adquiridos ao produtor por cerca de metade desse valor. Por serem bastante mais acessíveis do que a tapeçaria, estes objetos encontram-se expostos nas lojas em muito maior número, sendo ainda comercializados no mercado da praça Estrela e nas ruas do Mindelo.
Foram fotografados 282 quadros - na sua quase totalidade não assinados - 33 com mais de uma figura ou motivos não humanos16 e 249 com uma única figura. Centrando-me nestes últimos, foram contabilizadas 145 figuras femininas e 104 masculinas. Também nestes quadros todas as figuras femininas foram desenhadas em atividades de labor, em 24 casos carregando ainda crianças às costas. Estas atividades encontram-se sobretudo associadas ao mar, simbolizado pelos peixes (55), e ao milho, simbolizado pelo pilão (44). As restantes 46 figuras remetem para tarefas como cozinhar (25), transportar água (17) e lenha (quatro). Se juntarmos todas as atividades conotadas pelos artesãos como domésticas (pilar, cozinhar, transportar água ou lenha), somamos 80 quadros dentro desta categoria. Realço a insistente representação das mulheres executando tarefas que implicam esforço físico, como transportar filhos às costas (24) ou carga à cabeça (38).
As figuras masculinas encontram-se vinculadas a três tipos de atividades: musicais (58), marítimas (37) e agrícolas (9). As primeiras foram desenhadas com tambores (22), violões (18), rabecas (17) e saxofone (uma). As segundas exibem peixes, elemento por vezes associado a uma cana de pesca (22) ou um remo (7). As últimas exibem instrumentos agrícolas, sendo o seu reduzido número justificado pelos artesãos pela pouca expressão da atividade agrícola nesta ilha. Deste modo, constata-se que mais de metade das figuras masculinas foram associadas à música, remetendo para o recreio festivo dos tambores da festa de São João e dos violões e rabecas da morna e da coladeira.
Tecer e colar Cabo Verde: tapeçaria vs. quadros
O cotejo dos desenhos das tapeçarias e dos quadros revela vários paralelismos. Sublinho que as figuras femininas são, em ambos os casos, maioritárias e desenhadas, na sua quase totalidade, em situações de labor. Embora a proporção de figuras desenhadas a carregar crianças às costas seja convergente na tapeçaria (19%) e nos quadros (17%), registam-se alguns desvios em relação à frequência com que surgem com carga sobre a cabeça (94% na tapeçaria e 26% nos quadros) ou a pilar (30% nos quadros e 7% na tapeçaria). Assinalo ainda que os quadros exibem mulheres em atividades domésticas como cozinhar, ausentes nas tapeçarias analisadas. Estas divergências poderão ser atribuídas à necessidade de adequação dos desenhos às dimensões dos objetos e às características dos materiais, e ao facto de a maioria das tapeçarias ter sido produzida por uma mulher, enquanto todos os quadros foram produzidos por homens. Apesar de a maioria dos cartões usados por esta tapeceira ser de autoria de colegas do sexo masculino, não podemos subestimar o seu papel na seleção destes cartões. Por último, estes desvios podem ainda ser articulados com a construção da imagem da mulher cabo-verdiana menos colada às tarefas domésticas no período revolucionário da I República em que se iniciou a produção de tapeçaria neste país.
O cotejo das figuras masculinas revela uma maior concordância entre a tapeçaria e os quadros. Note-se que 58% das figuras masculinas da tapeçaria e 56% das dos quadros foram desenhadas a tocar instrumentos musicais. Em ambos os casos, as atividades musicais são seguidas pelas marítimas e, por último, pelas agrícolas. Tanto nas imagens da tapeçaria como nas dos quadros, a música foi associada exclusivamente aos homens, o milho às mulheres e o mar a ambos, razão pela qual constitui o tema mais frequente, patente em 52% do total de tapeçarias e em 37% do total de quadros. Estas concordâncias indiciam que os cartões da tapeçaria podem ter sido importados para os quadros, tese reiteradamente defendida pelos tapeceiros e refutada pelos produtores de quadros.
As respostas dos artesãos às minhas questões sobre a escolha dos motivos dos desenhos foram, no geral, lacónicas, limitando-se a reiterar que tentavam retratar o povo cabo-verdiano, reproduzindo cenas do quotidiano mindelense passíveis de serem observadas na rua. Estas afirmações levaram-me muitas vezes a retorquir que nunca tinha visto mulheres a pilar no Mindelo, se bem que já as tivesse visto a tocar tambor e violão, ou ainda que os desenhos invisibilizam a esmagadora maioria das mindelenses que não circula com cargas à cabeça. Perante as minhas afirmações, alguns tapeceiros responderam que os seus cartões pretendiam chamar a atenção para o valor do trabalho das mulheres cabo-verdianas, e assim homenageá-las, ponderando redesenhar as figuras femininas, uma vez que algumas mindelenses tinham expressado o seu desconforto com estas imagens. Ao invés dos tapeceiros, os produtores de quadros revelaram-se surpreendidos com as minhas afirmações, contra-argumentando que os quadros possuíam e deveriam continuar a possuir “desenhos tradicionais de Cabo Verde”. A colocação do acento tónico na tradicionalidade dos próprios desenhos, tornando irrelevantes os meus argumentos sobre a não correspondência entre práticas e representações, evidenciava que a resposta à minha questão deveria ser procurada em outras imagens (textuais e visuais) e nos próprios processos que produziram a sua “tradicionalização” (Handler e Linnekin 1984).Sendo certo que a tapeçaria desempenhou um papel basilar nestes processos - desde logo pelo seu cariz sumptuário, por ser produzida por um organismo de Estado e, posteriormente, constituída como uma das principais coleções do Museu de Arte Tradicional e dos organismos que lhe sucederam -, passo a elencar outras pistas de análise resultantes de um primeiro exercício de ancoragem dos temas dos desenhos aos processos de imaginação da cabo-verdianidade.
A trama dos desenhos e da cabo-verdianidade
A ubiquidade de imagens do mar, da música e do milho nos discursos visuais sobre Cabo Verde converte num truísmo qualquer afirmação relativa à magnitude destes temas na imaginação da cabo-verdianidade. Todavia, destecer os desenhos da tapeçaria e dos quadros requer uma referência aos processos de fixação destas imagens, nomeadamente pelo campo literário, aqui entendido enquanto tecnologia visual. Realço a importância de textos de autores ligados à revista Claridade (1936-1960) pelo seu papel na construção de um modelo identitário para o arquipélago e por o seu descritivismo (Gomes 2017: 137; Silveira 2017 [1963]: 175) ter contribuído para fixar muitas das imagens detetadas nos desenhos destes objetos.17
Presente já na fase pré-“claridosa” - em particular no mito hesperitano importado da épica camoniana -, o mar constitui um tema basilar da produção claridosa, bastante explícito na feição evasionista de tantos textos (Secco 1997). Veja-se, por exemplo, como na poesia de Jorge Barbosa o mar constitui o gatilho do seu evasionismo e um alvo de intenso descritivismo,18 flagrante no livro Romanceiro dos Pescadores (Barbosa 2002: 195-238) que, malgrado extemporâneo à fase claridosa, ilustra bem este pendor descritivista. Neste livro, Barbosa retrata o mar vizinho da “orla das ilhas” (2002: 197), sulcado por pequenos botes de pescadores por si convertidos em heróis da epopeia marítima cabo-verdiana. Este mar haliêutico - com o qual dialogará Corsino Fortes em “O pescador, o peixe e a sua península” (Fortes 2001: 139-150) - encontra-se povoado de figuras semelhantes às detetadas nos objetos atrás descritos. Atente-se, por exemplo, ao poema “As carregadeiras de peixe”: “Jovens carregadeiras / com cestos pesados / de peixe à cabeça / em equilíbrio certo / infatigáveis / trotais descalças / por longos percursos / dos portos de pesca” (Barbosa 2002: 213). E veja-se que, tal como nos desenhos analisados, as imagens de Barbosa instituem a linha de costa como fronteira entre dois espaços de representação: o cais das mulheres e o mar dos homens.
Constituindo o elemento da cultura popular mais celebrado em Cabo Verde, a música foi um tema central na produção literária pré-claridosa em parte devido à atenção conferida ao folclore neste período, mas também à circunstância de Eugénio Tavares, figura de proa da geração nativista, ser compositor de mornas. No que concerne à fase claridosa, a importância da música encontra-se atestada nas capas dos dois primeiros números da revista Claridade, que exibem dois motivos de finaçon e o poema de uma morna de Francisco Xavier da Cruz (B.Léza). Como foi visto, os desenhos das tapeçarias e dos quadros remetem para a música, sobretudo através dos tambores das festas de São João e dos violões das mornas, instrumentos expressivamente inscritos na obra de Jorge Barbosa, nos poemas “Tambores de São João” e “Violão” (2002: 263-267, 256-258). O maior número de desenhos de tamboreiros indicia que o tambor pode ser considerado um elemento mais adequado do que o violão da morna para simbolizar a cultura popular mindelense. Esta maior adequação pode derivar de a morna nem sempre ter sido entendida como um género popular e/ou de ter sido promovida pelo Estado colonial, contrapondo-se aos ritmos do colá de São João que, no presente, são por vezes descritos como uma forma de resistência ao poder colonial.19 Cabe ainda mencionar a força que a metáfora “tambor” adquiriu na escrita comprometida com o nacionalismo africano, manifesta, por exemplo, no seu uso reiterado por Corsino Fortes.
Tal como o tambor, o pilão, associado ao milho, que encontramos em postais ilustrados das primeiras décadas do século XX (Loureiro 1998: 113, 117, 121, 126; Zaugg 2012), tornou-se um elemento recorrente no discurso literário comprometido na luta de libertação. Valendo-me mais uma vez da obra de Corsino Fortes, destaco os poemas “Pilão” e “Milho”. Neste último, o milho é enunciado como “matriz do tempo” (Fortes 2001: 33), ideia secundada por Almada que o considera o “epicentro do ciclo de vida” cabo-verdiano (1998: 67) e, como tal, da resistência às adversidades naturais, sociais e políticas. Para Almada (1998: 78), a função “fundadora da nação” atribuída ao milho decorre do entrelaçamento dos processos de crioulização e de expansão do milho no arquipélago que, de alimento reservado a escravos, se converte em base alimentar de toda a população, expondo assim o processo de africanização e “corrosão” da elite branca (1998: 65).20
Voltando ao legado literário da geração claridosa, cabe assinalar que a sua influência na configuração de imagens do arquipélago pode ter sido amplificada pela escassez de produção iconográfica, resultante, em grande parte, da muito reduzida dimensão do campo das artes plásticas durante o período colonial (Almada 2008: 116, 117; Figueira 1998: 230, 231). A própria revista Claridade constitui um bom exemplo desta exiguidade, tendo publicado apenas duas imagens, ambas inseridas no seu último número.21 A primeira destas imagens, editada na capa, consiste num linóleo de Abílio Duarte intitulado “Carregadeiras” e parece ilustrar o texto “Beira do Cais” de Virgínio Melo, exibindo um grupo de cinco mulheres descalças no cais, recebendo volumes que colocam sobre a cabeça. Uma destas mulheres carrega uma criança às costas. A segunda imagem é um linóleo de Rogério Leitão com uma mulher a pilar, também descalça, ilustrando o poema “Cutchidêra lâ di fora” de Jorge Pedro. Ora, estas duas imagens com mulheres a pilar e a carregar fardos à cabeça e filhos às costas, recorrentes na representação de territórios africanos e presentes em alguns postais ilustrados de Cabo Verde das primeiras décadas do século XX,22 demonstram a pertinência de uma pesquisa sobre o papel da Claridade na ancoragem destes enunciados visuais ao arquipélago, imprescindível, de resto, para uma análise da ressignificação destas imagens operada na fase de luta de libertação ou no presente turístico.
Mulheres que trabalham
Como referi, os desenhos revelam papéis de género que restringem as atividades conotadas com lazer festivo às figuras masculinas, vinculando as femininas ao trabalho. Estas últimas evocam os usos visuais dos corpos femininos nos projetos nacionais europeus no século XIX, não apenas como alegorias da nação (Cusack 2003) mas sobretudo como lugar privilegiado de enunciação do pitoresco do campesinato, detetável em imagens oitocentistas alusivas aos trajes populares ou aos trabalhos rústicos (cf.AA.VV. 1999: 172-227).Mas os vínculos entre mulheres e trabalho evocam ainda os regimes visuais imperiais que personificaram África como uma mulher virgem e fértil que urgia conquistar e explorar, plasmados em imagens tanto de corpos sexualizados (Carvalho 2008; Garraio 2016; Ponzanesi 2017; Vicente 2017) como do corpo maternal negro longamente construído como hiperfecundo e apto a aliar o trabalho produtivo ao reprodutivo com o propósito de legitimar o seu uso como mão-de-obra escrava (Morgan 1997). Nestas imagens que vincam a fertilidade e a maternidade podem, de alguma forma, ser inscritos os desenhos de mulheres a trabalhar com filhos às costas que encontramos não só no artesanato cabo-verdiano, como até em ilustrações de coletâneas da poesia africana anticolonial (Fonseca 2000: 228) que converteu o corpo materno negro numa metáfora das origens ancestrais a que se queria regressar, do martírio colonial ou da esperança nas almejadas ou recém-nascidas pátrias africanas (Daniel 1996; Fonseca 2000; Santos 2012).23
Por detrás das óbvias e hierarquizantes desigualdades detetadas no cotejo de imagens oitocentistas referentes a mulheres europeias representantes de “tipos populares” e a mulheres africanas representantes de “tipos raciais”, registam-se algumas afinidades. Destaco a mesma propensão para a sua representação em atividades de labor, em muitos casos descalças e com fardos à cabeça, e o mesmo recurso a objetos rústicos, peças de vestuário ou ornamentos como sinais diacríticos. Estas afinidades, decorrentes de uma possível aplicação de grelhas de inquirição etnográfica similares e de um cânone artístico comum, revelam a constante remissão das mulheres para o passado, denunciando o seu papel nos projetos nacionais como a face de Jano voltada para trás (Cusack 2000) e o seu uso recorrente como figura de expressão da tradição e do outro social e exótico.
Mas a vinculação das mulheres ao trabalho braçal deve ainda ser compreendida à luz de imagens específicas sobre as mulheres cabo-verdianas e sobre o seu papel na estruturação da crioulidade, entendida como um processo em que a figura do pai (escravo, escravocrata ou emigrante) se encontra ausente (Monteiro 2016). Note-se que a ideia de centralidade da mulher na sociedade e cultura crioulas foi, ao longo do trabalho de campo, continuamente verbalizada e ilustrada através do grande número de famílias monoparentais em que as mulheres asseguram sozinhas os encargos com a subsistência dos filhos e, muitas vezes, dos netos.
A profusão de imagens de mulheres em atividades laborais encontra-se plasmada no campo literário cabo-verdiano de meados do século XX. Ao procurar denunciar as estiagens, a fome e a emigração forçada, a literatura deste período transformou as mulheres do povo, duplamente abandonadas pelos homens e pelo Estado colonial, numa metonímia da miséria (Mata 2016: 181) e da orfandade do arquipélago, sendo comuns as descrições de mulheres a trabalhar e a transportar à cabeça pesadas cargas de água, lenha ou peixe, e ainda, no caso das mindelenses, carvão e todo o tipo de mercadorias que aportavam ao porto grande, onde encontravam trabalho como “carregadeiras”.
A analogia entre estas imagens e os usos reiterados da expressão “pilar da família” para caracterizar as mulheres cabo-verdianas na literatura ensaística contemporânea, induz, como referiu Pedro Prista numa conversa informal sobre este tema, a uma leitura destas figuras como “cariátides” da cabo-verdianidade. Com efeito, também elas podem ser vistas como escravas petrificadas para suportar eternamente o peso, não do templo, mas do próprio edifício nacional cabo-verdiano. Como é óbvio, as imagens de mulheres do povo com carga à cabeça, reproduzindo um cliché da escultura clássica, são ubíquas e, de resto, muito presentes nos discursos visuais sobre o povo português do século XIX e de grande parte do século XX. Veja-se como Lisboa encontrou na figura da varina um dos seus mais emblemáticos ícones (Cordeiro 2001) e como estas imagens foram ressignificadas e integradas no contradiscurso (Cabral 2017) feminista de Maria Lamas em As Mulheres do Meu País. Contudo, em Cabo Verde, o seu uso contemporâneo no artesanato como símbolo do país afigura-se, se não obsessivo, pelo menos excessivo.
Regressando às semelhanças nos modos de representar as mulheres das classes populares, europeias e africanas, faço notar que as analogias supracitadas foram, no caso cabo-verdiano, reforçadas pela conceção claridosa da cultura do arquipélago como um caso de regionalismo português onde a “herança africana” seria “residual” (Fernandes 2002). Todavia, a estruturação de diferença imagética que subjaz ao projeto regionalista fez-se através do recurso a sinais diacríticos provenientes dessa mesma “herança africana” que se queria residual, como o uso do pilão ou o transporte de crianças às costas. A partir da década de 1950, estes sinais serão mais ou menos intensificados em função da evolução de fórmulas identitárias que aproximaram ou distanciaram Cabo Verde do continente africano e de alterações no que respeita aos destinatários das imagens. A coincidência entre o arranque da era digital e do turismo em Cabo Verde a partir dos anos de 1990, originou um aumento exponencial de imagens do arquipélago que voltaram a encontrar nos europeus os seus principais destinatários. Contrariando esta tendência, o artesanato destinado ao mercado turístico, cada vez mais espartilhado entre a dupla demanda de exotismo e de autenticidade,24 acabou por comprimir esta diversidade imagética, reproduzindo um reduzido número de imagens exotizantes produzidas no período colonial, consensualmente aceites como tradicionais.
Estes desenhos reproduzem um conjunto de clichés oitocentistas sobre o outro, seja esse outro o “povo” das nações europeias, aqui entendido como o outro social da elite letrada que o inventou, ou as populações racializadas das colónias africanas. Em ambos os casos, o género constituiu uma categoria basilar na construção e exibição de diferenças. A utilização destes clichés nos souvenirs cabo-verdianos como símbolos da cultura crioula, revelando a persistência do reportório de representação visual da diferença construído pelas nações imperiais europeias, decorre, em grande parte, da sua capacidade para se instituírem como o pidgin (Ben-Amos 1977) que viabiliza a comunicação entre turistas e artesãos. Se nesta comunicação se perdem muitos dos significados atribuídos a estas imagens nos processos de construção da cabo-verdianidade, outros foram granjeados. Sendo a produção de significado dialógica (Bakhtin inHall 1997: 235), o diálogo turístico acarretou uma ressemantização destas imagens, transformando os cabo-verdianos não só no outro do turista, mas no outro que serve o turista, ou seja, numa figura de hospitalidade, com os homens a assegurar a diversão e as mulheres a alimentação.
Resta referir que a perceção da excessiva ligação das mulheres ao trabalho nos desenhos analisados é amplificada pelo jogo de espelhos produzido pelo seu confronto com a abundância de figuras masculinas desenhadas em situações que aludem ao lazer ou ao recreio festivo. Neste sentido, caberá ainda recensear representações sobre a suposta ociosidade masculina cabo-verdiana e suas relações com: (a) a gramática racista imperial que estereotipou o homem negro como preguiçoso, irresponsável, infantil e inapto para exercer o poder paternal; (b) as representações do Mindelo enquanto cidade de pasá sab, i.e., de diversão e de festa (Santos 2018: 23, 29-31); (c) a projeção do trabalho masculino para fora dos limites das ilhas e sua ancoragem no mar e na terra longe da emigração.
Os fios por rematar
Introduzida em Cabo Verde no CNA no período revolucionário que se seguiu à independência, pela mão de um dos mais notáveis artistas plásticos cabo-verdianos, a tapeçaria converteu-se numa das bandeiras do artesanato mindelense, passando a ser citada como prova na refutação da ideia, forjada no período colonial, de que a população do arquipélago seria destituída de vocação para as artes visuais, eruditas ou populares (Rovisco 2017: 6-7; 2018: 716-717). A adequação das características e usos da tapeçaria convencional - bidimensional e figurativa - ao desígnio de construção de uma narrativa visual épica para o novo país tornou-a num veículo privilegiado de enunciação do povo enquanto herói nacional da resistência ao colonialismo, detetável numa das tapeçarias mais emblemáticas da I República, assinada por Manuel Figueira, dedicada à revolta mindelense de 1934.
A qualidade estética dos cartões, a dimensão das peças e a diversidade de temas e subtemas da tapeçaria produzida na década de 1980 ver-se-á, nas décadas seguintes, minorada em parte pela sua gradual inserção no mercado turístico. Embora a tapeçaria, tal como os quadros e outras novas áreas do artesanato cabo-verdiano surgidas nas últimas três décadas, tenha continuado a constituir um suporte para divulgar imagens do “povo”, este é hoje revelado através de figuras mais pitorescas do que revolucionárias. A maioria dos 328 objetos fotografados em 2019 exibe desenhos de figuras isoladas, ou melhor, atomizadas, reproduzindo estereótipos de género articulados aos principais temas que alicerçaram a construção da cabo-verdianidade desde o período colonial. Foram estas imagens do povo que permitiram inserir os novos objetos produzidos depois da independência, a partir de técnicas importadas, na categoria de artesanato, ao conferirem-lhes “funções de signo” (Durand 2006). Neste sentido, a suposta tradicionalidade que a noção de artesanato carrega encontra-se aqui subordinada aos desenhos e não tanto aos modos de produção ou aos materiais dos objetos; sendo o processo de tradicionalização destas imagens e a sua plasticidade, que permite moldá-las ao presente, que importará continuar a investigar e que explica o descarte das imagens revolucionárias da I República e os assinaláveis paralelismos entre os atuais desenhos da tapeçaria e dos quadros.
Enquanto suportes de imagens destinadas ao mercado turístico, estes objetos poderão ser ainda analisados como postais ilustrados artesanais de Cabo Verde. Note-se que o modelo de quadros mais vendido possui um formato postal e que esta preferência dos consumidores poderá não derivar apenas da sua maior portabilidade ou acessibilidade. Com efeito, a tapeçaria e os quadros possuem muitas das propriedades atribuídas aos postais ilustrados por vários investigadores que os elegeram como objetos de análise (Burns 2004; Harrison 2015; Pritchard e Morgan 2003; Thurlow, Jaworski e Ylänne-McEwen 2005), de que destaco o pendor exotizante das imagens e o seu destino migrante. Porém, deve ser notado que os desenhos analisados revelam-se muito mais ágeis e eficazes a tipificar, estereotipar e exotizar do que a fotografia usada nos postais, dada a aptidão do desenho para generalizar, neutralizando a singularização inerente à fotografia (Carvalho 2018: 311). Deste modo, os desenhos da tapeçaria e dos quadros constituem um campo fecundo de pesquisa para o estudo da reconstrução, provocada pelo turismo, do discurso visual sobre Cabo Verde e sobre os cabo-verdianos, que agora podem ser percebidos como atrações turísticas e dóceis figuras de hospitalidade (Thurlow, Jaworski e Ylänne-McEwen 2005) ao serviço dos turistas, seja carregando alimentos à cabeça ou tocando tambores e violões, reavivando assim muitos das traços do legado visual do período colonial.