Introdução
A temática sobre a profissionalização esportiva traduz-se como uma preocupação constante nos estudos internacionais e nacionais da sociologia do esporte. No Brasil, o esporte, mais especificamente o futebol, é encarado como um espaço sobrevalorizado para a construção da cidadania, como lugar de redenção social, mobilidade nas camadas desfavorecidas. O esporte é considerado pela sociedade brasileira como uma agência formadora, assim como a escola e as instituições religiosas. Devido a essa valorização, muitos jovens decidem ingressar nas mais variadas modalidades esportivas com a finalidade de praticar uma atividade física e, de acordo com as possibilidades e os incentivos, buscar a profissionalização (Epiphanio 2002).
Estudos internacionais indicam que, a depender do contexto de cada país, existe uma descontinuidade entre o projeto de profissionalização esportiva e outros projetos de vida (Guidotti, Cortis e Capranica 2015). Na maioria dos países europeus, nos EUA e na Austrália, a profissionalização esportiva é objeto de políticas públicas, sendo que nos países integrantes da União Europeia (UE) foi publicado o EU Guidelines on Dual Careers of Athletes Recommended Policy Actions in Support of Dual Careers in High-Performance Sport (Comissão Europeia 2012), que apresenta modelos e orientações para contornar as dificuldades de conciliação entre esporte, escolarização e inserção no mercado de trabalho.
No Brasil, os estudos de Damo (2007), Melo (2010), Soares (2013) e Correia (2014) indicam a extensa jornada de tempo dedicada pelos jovens às atividades ligadas ao futebol, desde a entrada nas categorias de base até o primeiro jogo profissional. Nessa trajetória de formação, Rocha (2017) e Paoli (2007) também apontaram as dificuldades de conciliação das atividades esportivas com outras, como a escola.
Tanto no contexto internacional quanto no nacional, os estudos assinalam, de forma tangencial, o lugar da família na gestão dos projetos esportivos dos jovens atletas. Genericamente, indicam a importância do apoio familiar e suas motivações, mas sem aprofundarem as lógicas e os significados atribuídos pelas famílias a esses projetos.
Esse cenário no Brasil causa impacto direto sobre as configurações familiares desses atletas, pois a busca pela profissionalização no futebol acaba se desenvolvendo por mecanismos construídos no espaço privado, no interior das famílias, uma vez que não há instituições e programas sociais, educacionais e esportivos na esfera pública. Diante disso, cada família precisa buscar a construção de mecanismos e estratégias específicos para seus filhos e parentes construírem carreiras no esporte, pois não existem expectativas de que o Estado forneça apoio neste setor.
Diante do exposto, o artigo analisa o papel das redes de sociabilidade no campo de possibilidades das famílias na profissionalização no futebol, procurando compreender a influência das redes na construção e na crença de exequibilidade dos projetos futebolísticos.1 O esquadrinhamento das redes de sociabilidade e dos laços sociais é importante para compreender elementos como: a inserção no esporte; as oportunidades obtidas; as chances de profissionalização; a construção da crença nas oportunidades; o alargamento do campo de possibilidades (dimensões objetivas e subjetivas); e, consequentemente, o desinvestimento em outros projetos.
É importante esclarecermos que nossa abordagem dialoga diretamente com o conceito de projeto apresentado por Velho (2003), que o entende como um tipo de conduta organizada com fins específicos, que se materializa em uma dimensão sociocultural a partir do campo de possibilidades.2 Ambas noções são propostas como caminhos para a análise de trajetórias construídas em um quadro sócio-histórico específico, oferecendo dinamicidade à interação entre o racionalismo individualista presente no projeto e os constrangimentos coletivos trazidos pelo campo de possibilidades. Os projetos não operam no vazio, ou seja, a realização dos projetos depende exatamente da natureza e dos resultados das interações entre os indivíduos nos cenários socioculturais em que as vivenciam.
Conforme demonstraremos, no caso específico das famílias aqui analisadas, os projetos familiares são desenvolvidos em circuitos de interação mais ou menos ampliados, a depender do tipo e da qualidade da inserção das famílias em redes sociais. É evidente que o talento futebolístico individual dos jovens é fundamental, mas, enquanto projeto, ele apenas se realiza a partir do momento em que o jovem ganha a possibilidade de ser percebido pelos pares como promessa no campo futebolístico, e isso depende diretamente da inserção das famílias nas redes sociais.
Abordagem teórico-metodológica
Metodologia
A pesquisa, cujo trabalho de campo ocorreu entre os anos 2015 e 2017, foi realizada com cinco atletas e suas respectivas famílias, tendo como base um clube de futebol no Rio de Janeiro,3 em disputa na série principal do campeonato brasileiro. Todos os atletas selecionados estavam inseridos nesse clube e suas famílias eram, de alguma forma, influenciadas pela rotina e gestão da vida destes jovens. O clube foi escolhido por ser um dos quatro que possui o certificado de clube formador no estado do Rio de Janeiro.4
A escolha por estudar somente os atletas de um mesmo clube deveu-se ao fato de estes apresentarem condições semelhantes de rotina de treino e formação esportiva. Os atletas selecionados estavam na categoria infanto-juvenil (15-16 anos) e juvenil (17-18 anos), pois nestas categorias definem-se as chances de profissionalização; e é quando os jovens e suas famílias devem decidir entre seguir a carreira futebolística ou outras carreiras não esportivas. Os jovens atletas em questão estavam na faixa etária entre 15 e 18 anos, o que, em tese, colocava-os também nos anos finais da educação básica. Como apontam os estudos, nessa idade há maior possibilidade de profissionalização esportiva (Soares 2013; Epiphanio 2002) e é também nesse momento que pode existir maior tensão, obstáculos ou conflitos entre os tempos da prática esportiva e da escolar (Melo 2010; Soares 2013).
Para compreender como se efetivaram as escolhas e as estratégias coletivas das famílias e dos atletas individualmente, levantamos dados sobre suas rotinas de treinamento e competições; tempo de permanência e estudos na escola; atividades no tempo livre e composição familiar. Foram selecionados cinco núcleos familiares cuja escolha das famílias foi feita a partir dos contatos travados na fase exploratória no campo da pesquisa. Selecionamos as famílias que, durante as visitas ao clube, estavam mais “abertas” a conversar e a participar da pesquisa. Um estudo sobre trajetórias familiares demanda um acompanhamento próximo e, por esta razão, o número de famílias foi limitado para que pudéssemos conhecer melhor suas trajetórias.
Para obtenção dessas informações, foram empregadas a observação participante, a observação sem participação e as entrevistas semiestruturadas, sempre com a garantia do anonimato dos entrevistados, após explicação sobre os objetivos da pesquisa e a aceitação voluntária dos participantes. A partir das observações feitas no campo, elaborou-se um caderno de registro com informações e impressões acerca do contato com os indivíduos da pesquisa. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas com os jovens atletas e seus familiares a fim de entendermos como se dava a formação do projeto individual e coletivo de carreira dos mesmos. Com essas entrevistas, buscou-se refinar e ampliar questões trazidas pelas observações participantes e não participantes da pesquisa.
No interior das famílias, procurou-se entrevistar os parentes de primeira geração e segunda geração, além daqueles considerados como integrantes do núcleo familiar alargado, para compreender elementos relacionados ao nível socioeconômico e aos pertencimentos culturais das famílias. No tocante às entrevistas, o número foi definido utilizando a tática de saturação, ou seja, encerramos a busca de entrevistados no momento em que as respostas se tornaram repetidas. Além das entrevistas com os atletas e seus responsáveis, também foram realizadas entrevistas com as assistentes sociais e psicólogas do clube.
Das cinco famílias estudadas, quatro se situam entre as camadas médias e uma, a família Guimarães,5 que, apesar de atualmente integrar a classe média, vinha de um passado ligado às camadas populares. Com relação ao grau de instrução das famílias, os dados revelaram que das cinco famílias, quatro possuíam entre seus familiares uma predominância de indivíduos com, no mínimo, o ensino médio completo, ou seja, 12 anos de escolarização (famílias Marques, Moreira, Torres e Almeida). Somente na família Guimarães foi verificada uma predominância de indivíduos com ensino fundamental completo, ou sem estudo. Ainda que as famílias analisadas se desenhem como núcleos com realidades específicas e diversificadas, no que tange à educação, quase a totalidade (excluindo os Guimarães) apresenta membros com mais escolaridade do que a média da população brasileira, nove anos.
Acerca das atividades desempenhadas pelos pais, na família Marques, a mãe havia sido vendedora, mas, à época da pesquisa, estava desempregada. Nas famílias Moreira e Guimarães, as mães eram donas de casa e os pais trabalhavam como auxiliar administrativo e pedreiro, respectivamente. Na família Torres, a mãe era representante comercial e o pai funcionário público. Somente na família Almeida os pais desempenhavam funções ligadas à educação superior completa: a mãe era advogada e o pai professor de educação física.
Projeto, campo de possibilidades e redes sociais
Devemos entender o projeto como “uma conduta organizada para atingir finalidades específicas” (Schutz 1979: 32). Essa conduta pode ser elaborada por um indivíduo, um grupo social, qualquer outra categoria ou instituição. Projetar é antecipar uma situação idealizada e considerada possível, elaborando objetivos e estratégias que condizem com a finalidade proposta. O indivíduo não nasce com um projeto de vida estruturado, os elementos estruturantes deste surgem com o advento e a possibilidade de vinculação e socialização nos diferentes grupos sociais que se apresentam no contexto. É importante destacar que os projetos individuais também podem surgir em oposição ao que fora “predeterminado” pelas instituições de socialização primária.
Um projeto só é elaborado e implementado quando o indivíduo identifica oportunidades e reconhece nelas um campo de possibilidades para obter sucesso a partir de uma atividade ou carreira que deseja, valoriza ou se apresenta como uma opção viável. É necessário salientar que a formação do projeto individual depende do reconhecimento do contexto no qual as oportunidades são apresentadas, bem como o modo pelo qual os indivíduos agem diante desse campo de possibilidades. Dessa forma, o projeto individual é construído através de escolhas, nas quais os indivíduos operam com noção de custos e benefícios e/ou a partir dos desejos ou necessidades (Elster 1994). Ao longo do processo de socialização, diversas ações individuais, apesar da intenção de maximizar oportunidades, são realizadas por meio das disposições internalizadas nos indivíduos, de forma que a noção de custo-benefício nem sempre é levada em conta.
Para compreender a formação de um projeto individual, deve-se buscar entender como o projeto vivido se desenvolve na estrutura social disponível; qual o seu campo de possibilidades; e quais oportunidades lhe foram apresentadas/construídas. A ação prática é, em alguma medida, a expressão das relações de sentido de determinado esquema cultural.6 Gilberto Velho (1997, 2003) salienta que entender o campo de possibilidades do indivíduo é conhecer suas redes sociais, as influências que estas podem ter sobre algumas instituições sociais e o grau de afinidade entre o indivíduo e tais redes. Os laços de relacionamento entre os indivíduos não precisam ser necessariamente estreitos ou fortes, mas é primordial que eles existam.
As redes de sociabilidade constituem-se como uma importante ferramenta de análise porque auxiliam na compreensão dos núcleos de relações que se cruzam no interior de um dado sistema social (Both 1976). A noção de rede utilizada pode ser compreendida como um sistema de elos, uma estrutura sem fronteiras, uma comunidade não geográfica, ou um sistema físico que pareça com uma teia. Derivando desse conceito, a rede social passa a representar um conjunto de participantes autônomos, unindo ideias e recursos em torno de interesses e valores compartilhados (Marteleto 2010). Desse modo, a análise aqui também se apropria dos modelos de redes aplicados por Whyte (2005), criados a fim de representar as estruturas dos grupos com os quais trabalhou a natureza das relações e das ações desenvolvidas pelos membros das redes e a estrutura das organizações que faziam parte dos sujeitos de sua pesquisa.
Baseado em Hannerz (1986), tendo como referência as teses de Mitchell (1969), nosso estudo utilizou a noção de “rede parcial”, entendida como a construção de uma rede em torno de algum tipo particular de conteúdo de relações, no caso, o futebol e a escola. No sistema de redes, o indivíduo é pensado como um ponto, e as relações dentro da rede são conhecidas como laços, podendo ser de natureza forte ou fraca. Nas redes sociais de laços fortes, há uma grande proximidade entre os indivíduos, baseada em motivações geográficas de moradia, nível socioeconômico, entrelaçamento de parentesco, entre outros.
Nas redes de laços fracos, as relações entre os indivíduos são mais frágeis e efêmeras, com a possibilidade de que tais conexões se desfaçam com maior facilidade. Nelas, os indivíduos que participam normalmente são significativamente heterogêneos entre si e desenvolvem redes ramificadas com diversos grupos sociais, espaços geográficos e valores morais.
O projeto esportivo, mais especificamente futebolístico, estrutura-se a partir das experiências no campo do esporte, do capital (corporal), das percepções individuais e familiares sobre o sistema educacional e o esportivo, dos amigos e dos grupos de referência com o esporte, das possibilidades jurídicas e trabalhistas dadas para este tipo de atividade e do capital social relacionado às redes sociais que atuam em função do projeto idealizado.
Demonstraremos como essas redes influenciaram na formação das crenças, nas escolhas e nas estratégias das cinco famílias analisadas, argumentando como os laços fortes e fracos, no sentido proposto por Granovetter (1983), são fundamentais para a construção de trajetórias de sucesso no futebol, com tonalidades múltiplas que envolvem a família nuclear, a família extensa e outras instituições. Cada família analisada construiu a trajetória dos jovens futebolistas em interação com suas redes. A análise detalhada desses processos permitiu-nos desvelar regularidades e compará-las, ao mesmo tempo que identificamos singularidades em cada caso. Trata-se de um cenário multifacetado no qual ações individuais, escolhas, estratégias e metamorfoses em projetos estão presentes.7
A dinâmica dos projetos futebolísticos
A família é peça central na profissionalização de jovens no futebol e as ações dela dentro do próprio núcleo familiar se mostraram necessárias no entendimento e na condução social pelo campo de possibilidades. Tais ações, quando acompanhadas de relações e agenciamentos com indivíduos fora da família e com conexões diversas, ajudam a maximizar o campo de possibilidades dos jovens e a fortalecer as crenças das famílias no projeto de profissionalização no futebol.
Famílias, laços e campo de possibilidades
Na análise realizada sobre o papel das redes sociais no campo de possibilidades futebolístico dos jovens atletas, corrobora-se a tese de Granovetter (1983), para quem os laços fracos seriam importantes para a conquista de oportunidades de ascensão social, tanto quanto, e, às vezes, mais, os laços fortes. Contudo, por meio das observações realizadas nessa pesquisa, é preciso reforçar também o papel dos laços fortes em torno da família como forma de ampliar seus campos de possibilidades nessa fase de formação no futebol.
Os dados da pesquisa evidenciaram que as famílias analisadas eram heterogêneas em termos de sua formação, podendo ser classificadas da seguinte forma: uma era recomposta (família Moreira), duas eram do tipo alargada (Torres e Guimarães), uma era biparental (Almeida) e uma era monoparental (Marques). O fato de as configurações familiares acompanhadas nesta pesquisa não seguirem o modelo de família tradicional,8 não significou um afrouxamento ou enfraquecimento das relações de parentesco, mas sim a construção de novos arranjos familiares (Samara 2002).
As famílias pesquisadas dialogavam com quase todos os espaços nos quais os jovens estavam inseridos e foi percebido que os membros das famílias interagiam no clube, na escola, nos círculos de amizades e nos relacionamentos afetivos. A percepção da centralidade da família na elaboração de estratégias e na produção de suas habilidades esportivas torna possível utilizar para este trabalho a noção de famílias futebolísticas como ferramenta de análise das influências desta instituição sobre a formação esportiva desses jovens.
A existência de um projeto com ações coordenadas em torno do futebol constrói e reforça a ligação entre indivíduos dentro da família e outras pessoas que aderem ao projeto esportivo. O conceito de família futebolística emerge então a partir da ideia de “rede de malha estreita” (Both 1976), verificada em maior ou menor proporção nas famílias observadas. Essa rede remete àquela na qual existem muitas relações entre as unidades componentes e os espaços nos quais as pessoas interagem intensamente entre si. Desse modo, a partir de um núcleo mais definido normalmente dentro da família consanguínea (pais, mães, irmãos e tios), alarga-se a noção de pertencimento dentro desta instituição para indivíduos que possuam forte nível de engajamento na construção dos projetos futebolísticos desses jovens e que sejam considerados pela família como pertencentes a ela devido ao reconhecimento dos laços de reciprocidade (Spaggiari 2016).
No contexto do futebol, principalmente na sociedade brasileira, investir num filho atleta é um jogo de incertezas, portanto exige grande comprometimento de uma parcela considerável dos parentes em torno desse projeto. Alargar a família, construindo relações de lealdade para fora do círculo consanguíneo também é uma estratégia para lidar com a insegurança e com os custos desse tipo de investimento. No Brasil, especificamente, nas pesquisas realizadas sobre formação esportiva, as condições materiais de existência das famílias foram consideradas como uma variável fundamental para a compreensão do campo de possibilidades dos indivíduos e dos objetivos traçados por eles (Rocha 2017; Correia 2018; Rial 2008; Soares, Correia e Melo 2016).
No caso do futebol, Rial (2008) explicita que a modalidade exige dos jovens um significativo investimento financeiro para a compra do material necessário à sua prática, juntamente com o custeio de uma alimentação para o desenvolvimento corporal e atlético. Além disso, a profissionalização no futebol demanda tempo dos atletas e das famílias, que muitas vezes impele os pais a diminuírem suas cargas de trabalho, reduzindo também seus rendimentos. Os relatos familiares evidenciam isso:
“Bianca: Quando eu vim para o Rio de Janeiro, para conseguir me manter aqui e viver, minha mãe vendeu a casa que ela tinha lá em Ribeirão e me deu o dinheiro para eu comprar uma casinha aqui perto do clube para acompanhar o Bernardo.”9
“Roberto: Nessa loucura da rotina do futebol, eu tinha um filho que estudava numa escola muito boa, mas era muito longe daqui de casa e do clube. Eu perdia muito tempo levando-o para escola, para depois conseguir chegar e acompanhar o treino do Diego. Isso estava atrapalhando. Tive que optar por tirar o Diego dessa escola e colocar numa mais perto.”10
Os relatos familiares evidenciam a existência de ações e engajamentos, voluntários ou não, de diversos parentes em torno do projeto futebolístico do atleta. Essas ações promovidas pela família futebolística procuram superar as dificuldades financeiras e de tempo enfrentadas por todas elas. Nas cinco famílias analisadas, foi possível perceber uma redução de poder econômico, ligada à queda da renda familiar, perda do padrão de vida e, consequentemente, uma transformação em suas maneiras de consumo, normalmente trocando serviços privados de lazer, de educação, de transporte e de saúde, pela oferta dos serviços públicos. No Brasil, isso se torna um indicador de mobilidade social horizontal descendente e, nos casos observados, este tipo de mobilidade é assumido conscientemente pelos atores sociais envolvidos.
A necessidade de gerir recursos materiais escassos e administrar melhor o tempo demandava de todos os membros da família esportiva um maior ou menor grau de sacrifício. Em todas as famílias analisadas, existia pelo menos um adulto que não trabalhava e, por isso, era o responsável pelo acompanhamento da vida pessoal e profissional do jovem atleta. As mães, na maioria dos casos, assumiam a responsabilidade de acompanhar a rotina esportiva dos filhos.
A existência desses laços fortes e a configuração de uma rede de sociabilidade familiar, caracterizada pela malha estreita, auxiliam no alargamento do campo de possibilidades dos jovens aspirantes a futebolistas, pois permitem o suporte material e a disponibilidade de tempo para todo o tipo de apoio ao desenvolvimento da formação profissional. Nas famílias analisadas, pôde ser percebido que os parentes comprometidos com um “projeto futebolístico” não poupavam esforços para assegurar o sucesso esportivo dos “talentos da família”, inclusive canalizando os recursos dos outros irmãos, e deles mesmos, para o desenvolvimento do atleta, o que corrobora o que foi pontuado por Rial (2008).
O papel das redes e dos laços fracos na inserção no campo futebolístico
A concretização do projeto futebolístico tem na família seu principal sustentáculo financeiro para poder existir e sobreviver. Todavia, seu sucesso também reside na capacidade de obter oportunidades de formação profissional no futebol e igualmente conseguir se manter neste processo. Num mercado esportivo no qual há 160 candidatos para cada vaga profissional (CBF 2012), a existência de uma rede social com interpenetração no campo futebolístico pode fazer com que esta concorrência diminua sensivelmente. A entrada e a permanência na formação profissional foram elencadas pelos atletas e por suas famílias como sendo produto das redes sociais que construíram. Como disseram os familiares: “Você tem que conhecer as ‘pessoas certas’ ”.
Essa evocação da rede social é recorrente nas entrevistas em pesquisas da área, quando os atletas inevitavelmente mencionam a importância de terceiros na sua inserção no espaço do futebol de alto rendimento. Nas trajetórias das famílias, em todos os casos, vimos que os jovens chegaram a espaços esportivos, como escolas de esporte (escolinhas na linguagem popular) ou clubes, por meio da observação de alguém com entrada e credenciais no campo futebolístico. São essas pessoas que formam o grupo de mediadores deste campo: ex-atletas, amigos de ex-atletas ou dirigentes de futebol, empresários, treinadores etc. A partir da identificação do talento futebolístico de um determinado jovem, esses mediadores inseridos no campo estabelecem a ponte entre a família e a instituição esportiva. Isso pode ser visto no relato das famílias, como mostram os exemplos dos Guimarães e Torres:
“Henrique: O Paulo jogava bola na rua com os amiguinhos. Esse futebol de terra batida. Todo mundo dizia que ele jogava bem. Até brincavam dizendo que era de família, porque o irmão mais velho dele jogava bem. Eu pensei em levar ele quando estivesse mais velho para tentar alguma peneira num clube, mas nem precisou esperar. Um conhecido nosso, que morava perto da gente e que eu fazia uns trabalhos para ele, viu o Paulo jogando e perguntou se podia levar ele para fazer uns testes na escolinha do clube que ele trabalhava.”11
“Elisa: O Murilo chegou para jogar salão no primeiro clube dele ainda muito novo. Eu nem pensei nessa ideia de ele ser jogador de futebol. Mas o pessoal disse que ele jogava muito bem e que eu não ia ter trabalho nenhum, porque o Alberto (vizinho dela) cuidaria de tudo para mim.”12
Nos relatos, fica claro que todos se inseriram no campo futebolístico através de uma pessoa que orbitava o círculo de convivência deles, ou seja, pertencia à sua rede social, sem necessariamente pertencer à família. Essas pessoas, responsáveis por identificar e reconhecer o talento, configuraram-se como pontes (mediadores) entre os atletas/suas famílias e as escolinhas e/ou clubes de futebol. Cabe salientar que a intermediação inicial para entrada nos clubes esportivos, na maior parte dos casos analisados, não foi realizada por empresários profissionais, mas por indivíduos que mantinham algum tipo de relação (“conhecimento”, na fala popular), mesmo periférica e não profissional, com profissionais ou dirigentes atuantes em clubes de futebol.
Das cinco famílias analisadas, somente a Marques possui laços fortes com indivíduos do campo futebolístico, visto que a mãe frequentava as dependências de um clube no interior de São Paulo e o pai havia sido atleta. Em todas as outras, o núcleo familiar não possuía esse laço forte a fim de possibilitar uma entrada nas categorias de base dos clubes. Essa possibilidade foi conseguida através dos “conhecidos”, dos que possuíam “conhecimento”, que orbitavam as redes de sociabilidade deles.
Esses “conhecidos” são o que Granovetter (1983) chamou de laços fracos de uma rede social. Em seus estudos, é destacada a “força desses laços fracos” para a obtenção de oportunidades sociais, tais como empregos, enriquecimento financeiro e, em nosso caso, a entrada e a permanência no campo futebolístico. O autor evidenciou que os indivíduos que obtiveram oportunidades, principalmente de ascensão social ou mudanças profissionais, possuíam redes sociais de contatos com pessoas que tinham “conhecimentos” nos respectivos campos almejados. As abordagens de Granovetter (1983) ajudam a compreender como a existência de “conhecidos” ligados ao campo futebolístico permite dar a esses jovens entrada num espaço social que, para muitos outros, encontra-se quase fechado ou inacessível.
A partir do momento em que esses jovens foram levados por esses “conhecidos”, eles conseguiram se inserir no campo futebolístico e as configurações das suas redes sociais tornavam-se sensivelmente mais alargadas a partir dos laços fracos. A partir disso, passaram a ter contato com treinadores, comissões técnicas, outros atletas e empresários profissionais. Em alguns casos analisados na pesquisa, os técnicos desses jovens agiram como importantes mediadores deles na migração de um clube para o outro, ou para levá-los de uma escolinha para um clube de futebol. Nessa situação, temos o caso do atleta Bernardo, na família Marques, que, por meio de um dos seus técnicos, foi levado ao Botafogo de Ribeirão Preto; temos também Joel, que foi levado por um técnico para o Flamengo.
A importância dos laços fracos nessa situação reside na capacidade de superar o aprisionamento em determinados clusters.13 Apenas um laço fraco pode unir grandes clusters tendendo a diminuir os graus de separação entre eles e possibilitando a interconexão, por exemplo, das famílias analisadas nesta pesquisa com grandes clubes de futebol no país.
Os laços fracos construídos dentro das redes de sociabilidade dessas famílias permitiram a entrada e a permanência delas no campo futebolístico. Isso possui um impacto objetivo sobre a formação do campo de possibilidades dos jovens atletas, pois eles conseguiram pular uma das mais difíceis etapas na formação esportiva; a saber, os processos de seleção universalizados, conhecidos popularmente como “peneiras”. Cabe ressaltar que o futebol é uma carreira profissional com posições de destaque escassas, portanto a existência de uma rede social ramificada que permita superar as “peneiras” se torna um facilitador para entrada no processo de formação. Nas entrevistas, muitas vezes, esse alargamento do campo de possibilidades no futebol é genericamente visto como “a sorte de conhecer A ou B”, quando sociologicamente podemos entender que isso é resultado da inserção em determinadas redes sociais.
“Carolina: O Joel deu sorte de nós conhecermos gente que trabalhava no Flamengo. Isso ajudou muito ele. Talvez sem esse técnico do bairro aqui, as coisas podiam não acontecer. Esse cara foi o grande personagem nessa caminhada para se tornar um jogador. E estando no Flamengo, isso vai acontecer.” 14
“Bianca: Ter um preparador do Botafogo de Ribeirão Preto fazendo a preparação dele enquanto ele estava no ‘Peixinhos da Vila’ foi importante. Porque tivemos a sorte de ele conseguir inscrever o Bernardo num campeonato em Vinã Del Mar e ele arrebentou. A partir dali ele veio para o [nome do clube] e sagrou seu caminho no futebol. Clube grande é outra coisa. Muito mais chance.”15
Os relatos das duas mães ajudam a reforçar que a entrada dos filhos no campo futebolístico, principalmente em grandes clubes de futebol, deu-se através da formação de pontes entre suas famílias e os clubes por meio dos mediadores que formam as redes de laços fracos. A entrada nessas instituições é vista por essas mães e pela família como “sorte”, isto é, um alargamento do campo de possibilidades em função das redes construídas. A entrada em clubes considerados de grande visibilidade no mercado do futebol é limitada. Consequentemente, para essas famílias, um projeto familiar em torno do futebol passa a se tornar inteligível e possível a partir do momento que furam a barreira institucional dos grandes clubes.
A importância dos laços fracos e da construção de pontes também é vista pelas famílias como um fator preponderante para a continuidade dos jovens na carreira. Nesse sentido, os casos da família Moreira e da família Marques se destacam.
“Joel: Eu cheguei a jogar futebol de campo no Flamengo durante um tempo, mas não estava dando certo porque estava na reserva. No final do ano, acabei dispensado. Era o final da linha. Ia ter que começar tudo novamente. Aquilo de peneira, nervosismo… Mas, aí, Deus olhou por mim e uma chance apareceu. Meu pai foi jogador do Flamengo, jogou naquela geração do Felipe Melo. Jogou com eles na base e até se profissionalizou. Então, ele conhece alguém aqui ou ali. Quando me dispensaram, um cara que havia jogado com ele e ficou sabendo, falou com ele para eu vir tentar a sorte aqui no [nome do clube]. No início, eu fiquei meio “bolado” de sair do Flamengo, mas, depois, acabei indo também por influência de um empresário amigo do meu pai.”16
O trecho acima é um exemplo de como as redes sociais, que permitem o contato com mediadores, podem exercer uma ampliação das chances dos indivíduos. Joel estava prestes a abandonar o sonho de profissionalização no futebol após seu desligamento do Flamengo, mas o conhecimento do pai, e os laços, mesmo que fracos, de relacionamento dele com outros mediadores dentro do campo futebolístico, possibilitaram sua manutenção no processo de profissionalização no futebol em outro clube.
Na família Marques, o reconhecimento das redes é mais claro e fica explícito em diversos momentos, como o destacado:
“Bianca: Ah! O futebol vai dar certo sim. Pode não ser aqui no [nome do clube], mesmo que eu tenha certeza de que aqui é o lugar certo. Mas eu conheço muita gente no futebol e o Wagner também é muito relacionado. Ele apresenta muita gente para mim e essas pessoas ficam loucas com o Bernardo. Já apareceu Flamengo, Palmeiras, Santos. Todo mundo quer o Bernardo. Eu sou uma pessoa cheia dos contatos no futebol. Até porque eu me dedico muito a esse mundo.”17
Bianca explicita o reconhecimento da importância de Wagner, empresário e amigo da família, enquanto um mediador nas relações com o campo futebolístico, principalmente na apresentação de novos possíveis mediadores. Essa fala é recorrente em todas as famílias investigadas, pois todas possuem clara consciência de que o sucesso ou fracasso na carreira, para além do capital futebolístico de seus filhos, depende das redes formadas com mediadores que atuam nos bastidores do futebol. De fato, os jovens atletas e as famílias consideram suas ações e seus méritos pessoais como algo importante na concretização da profissionalização, mas, ao mesmo tempo, sabem que precisam dialogar com as redes de sociabilidade.
No caso das famílias analisadas, foi possível identificar uma estrutura básica em comum sobre o desenho das suas redes de sociabilidade. Ressaltamos que o ponto principal da análise é a família enquanto instituição e que cada linha que relaciona a família com outros agentes - mediadores - constitui-se uma ponte, um laço.
A figura 1 mostra um esquema estrutural das redes observadas nas famílias analisadas na pesquisa. Essa estrutura evidencia um sistema de redes em primeiro nível, ou seja, as relações diretas que os membros das famílias possuem com indivíduos situados no espaço da vizinhança, do clube, da família futebolística e do bairro onde moram. Contudo, a inserção desses indivíduos em tais espaços aumenta a possibilidade de relações com indivíduos para além dos locais mais próximos de convivência. A figura mostra somente aqueles agentes com os quais as famílias possuem maior possibilidade de manter contatos, sendo que esta teia se expande à medida que eles conhecem mais pessoas nesses espaços sociais.
Na configuração das redes sociais, os indivíduos conhecidos como mediadores desempenham uma função importante para que a família do jovem atleta possa acessar a outros circuitos e a outras oportunidades sociais como, por exemplo, o campo futebolístico. Os casos das famílias Marques e Moreira ajudam a exemplificar o papel desses agentes sociais (figura 1).
No caso dos Marques, esse mediador é caracterizado por Wagner, que faz parte da família futebolística, mas também possui conexões com outras redes ligadas ao futebol. Na família Moreira, esse mediador pode ser identificado como sendo o pai de Joel, que foi atleta de futebol e manteve muitas amizades com agentes do campo futebolístico até o momento de nossa investigação. Em ambos os casos, a existência desses indivíduos na família futebolística, e em outros campos sociais, facilita tanto a inserção, quanto a permanência do jovem neste campo, colaborando para a manutenção do projeto.
Para as famílias, a importância desses indivíduos reside na capacidade de eles manterem relações, mesmo que tênues, com pessoas de outros campos sociais, com as quais os membros da família não teriam oportunidade. Retornando ao caso das famílias Marques e Moreira, é possível supor que o acesso às oportunidades no campo futebolístico poderia ocorrer sem a existência dos mediadores, mas isso demandaria mais tempo, esforço e um grau de imprevisibilidade maior do que o verificado na trajetória percorrida.
As redes sociais, com laços que permitem a troca de influências entre atletas, famílias e mediadores, aumentam as oportunidades de profissionalização no futebol e, como trunfos no campo esportivo, foram reafirmadas sistemática e explicitamente pelos indivíduos investigados. A construção dessas redes é dinâmica, logo, as oportunidades que elas agregam aos jovens e às suas famílias também passam por metamorfoses.
Metamorfoses dos projetos
Na análise dos dados sobre a trajetória esportiva das famílias, perceberam-se transformações e reinterpretações dos jovens e de suas famílias sobre a exequibilidade dos projetos e das ações empreendidas para tal. A partir de tais percepções, estabelece-se um nível de cálculo que ajusta demandas, expectativas e investimentos necessários para a consolidação dos projetos.
Em muitos casos, alguns elementos, como a assinatura do primeiro contrato profissional, a contratação de um empresário, a mudança de uma categoria, ou a aproximação com novos indivíduos no clube - alargamento da rede social - foram preponderantes para fortalecer a crença no projeto futebolístico familiar. Consequentemente, isso aprofundou as ações familiares sobre as atividades esportivas, pois, aos olhos daqueles indivíduos, as chances de profissionalização se mostravam maiores a partir desses marcadores.
A família Marques é um bom exemplo dessa situação. A confiança no sucesso por meio do esporte era tão forte em Bianca e Bernardo, que os dois vislumbravam a profissionalização como um processo natural que ocorreria em breve. Para confirmar sua percepção, Bianca constantemente reavivava em seus discursos as conquistas do filho no clube: o contrato de formação assinado em 2016 e a progressão tranquila dele entre as categorias. Além disso, ela creditava muito da sua confiança na profissionalização de Bernardo em função das conexões construídas no campo futebolístico. Reconhecendo sua rede no futebol como extensa, Bianca afirmava que mesmo que Bernardo não desse certo naquele clube, rapidamente achariam uma vaga em outro grande clube. Para ratificar essa crença, ela repetidamente dizia que chegavam muitas propostas de empresários.
Bernardo também mostrava essa crença de fácil circulação pelos clubes de futebol do eixo Rio-São Paulo, alegando que, a todo momento, apareciam empresários ou jogadores de outros times convidando-o para ir para os clubes que eles representavam. Nesse ponto, com um fortalecimento da crença na profissionalização, após a assinatura do primeiro contrato, a família Marques passou a alimentar a concepção de que eram necessários ainda mais investimentos no futebol. Por isso, utilizava todas as estratégias possíveis para alcançá-los. Entre elas, destacam-se a flexibilização das rotinas escolares, o aumento do dinheiro gasto com produtos esportivos, com alimentação equilibrada e com o aumento do tempo de dedicação da mãe ao filho.
No caso da família Marques, a identificação externa do talento de Bernardo, ainda quando morava em Ribeirão Preto, e a crença cada vez mais consolidada pela família no futebol fizeram com que, pouco a pouco, o projeto de escolarização do jovem fosse secundarizado. Quando o futebol ainda era somente uma aposta, Bianca mantinha Bernardo numa escola particular de alto padrão em Ribeirão Preto e acompanhava sistematicamente as atividades escolares do filho. Contudo, a partir da chegada do jovem ao Rio de Janeiro, e dos acontecimentos positivos ocorridos no clube, a família futebolística passou a considerar o projeto escolar cada vez menos prioritário e, com isso, foram criando estratégias para flexibilizar, e mesmo secundarizar, sua vida escolar. O discurso da mãe apresenta tal perspectiva:
“Bianca: Quando eu o coloquei na escola pública, pensei numa menor cobrança, claro. Era o ano da decisão. Ser jogador ou não. Na escola particular a cobrança é muita. O problema maior mesmo é isso, eles não têm tempo pra fazer tanto trabalho, pra estudar tanto. Igual agora que deve ter viagem, eles ficam uma semana inteira viajando, como que faz numa escola particular? Na pública não tem problema, porque as coisas são muito mais conversadas.”18
A situação dos Marques indica que o projeto familiar futebolístico se transformou em prioritário. O projeto escolar pode ser secundarizado, ou adiado, porque, na visão dos envolvidos, possui pouca ou nenhuma conexão direta com o sucesso do projeto esportivo futebolístico. Os conhecimentos obtidos pelo indivíduo na escola não são necessários para a progressão no projeto de carreira no futebol. No melhor dos casos, o jovem e sua família enxergavam certos conteúdos da escola como possibilidades de desenvolvimento de habilidades de comunicação e conhecimento geral para serem utilizados nos contatos com a mídia na futura vida profissional.
No caso do projeto familiar futebolístico dos Moreira e de Joel, a crença sobre seu sucesso foi reforçada a partir dos fatos ocorridos entre 2015 e início de 2016. O convite para morar no alojamento do clube, o acerto com um empresário e a assinatura do contrato profissional ajudaram a avistar a possibilidade de profissionalização num clube da elite do futebol.
Com esses marcadores, as famílias passam a acreditar na possibilidade de mobilidade social ascendente. No momento em que os objetivos na carreira passam a ser alcançados e os trunfos obtidos começam a se tornar abundantes, os comportamentos e os investimentos são reprocessados e os projetos que não possuíam relação direta com o futebol acabam secundarizados, como demonstra o exemplo de Marcos:
“Marcos: Ele sempre gostou de jogar bola. A vida dele é jogar futebol e ele tá aí, realizando o sonho dele graças a Deus. Assinou o contratinho dele aí, esses dias, e isso vai ser um grande passo para a carreira dele. Ele agora já é profissional. Só falta ganhar os gramados do time profissional.”19
O ano de 2015 significou um momento de intensificação dos esforços para a concretização do projeto futebolístico com a mediação de Marcos, o pai de Joel, e outros familiares, pois, nesse momento, consideram que as chances e a profissionalização no futebol se tornam mais factíveis. O pai decide transferir Joel da casa em que morava, em Cordovil, para o centro de treinamento do clube. A escolha por albergá-lo pode ser encarada como uma decisão tomada a partir de um cálculo racional da família. Marcos, o pai, compreendeu que essa decisão impactaria as chances do filho no clube, pois estar albergado indica um tipo de investimento do clube no atleta e a redução dos custos familiares na manutenção do filho atleta.
As ações dessas famílias, mas também as das outras três analisadas, mostram que a noção de projeto de vida deve ser tratada como algo dinâmico, que sofre atualizações diante das novas oportunidades ou dos obstáculos que surgem nas trajetórias dos indivíduos. Para alguns, isso pode significar um desinvestimento na carreira escolar, para outros, pode significar abrir mão da moradia e dos laços familiares mais próximos. Nesses cenários, o projeto de carreira futebolística pode ganhar outras dimensões e/ou até mesmo ser abandonado. Na primeira situação, como veremos, no caso da família Almeida, a estratégia de mudar de clube, seguindo para um clube de menor status é cogitada como plausível no caso da manutenção do projeto futebolístico, mas avalia-se também a possibilidade de abandonar o projeto definitivamente, traçando outro, nesse caso, o de formação acadêmica em nível superior.
O jovem Diego, atleta da família Almeida, manteve-se em destaque durante as temporadas de 2014, 2015 e parte da 2016. Nesse período, foi titular no time e, por sua personalidade e competência técnica, era reconhecido como um líder na equipe. Nessas três temporadas, ganhou alguns campeonatos e se destacou, ganhando até mesmo prêmios no campeonato carioca de 2014 e 2015. Contudo, a situação de Diego na base do clube havia mudado bastante em consequência de uma lesão sofrida no joelho durante um jogo do campeonato carioca de 2016. A situação da lesão configurou-se como um momento muito difícil para Diego e para a família. Com o acidente, eles viram a possibilidade de o projeto futebolístico ruir, visto que o clube poderia desligá-lo do centro de treinamento por conta da lesão.
É importante destacar que a condição dos atletas em formação envolve esse tipo de risco e insegurança. Diego passou quatro meses em fisioterapia que, segundo ele, exigiram mais comprometimento e atenção do que a rotina comum dos treinos. Nesse momento, o pai, profissional de educação física, procurou ajudá-lo com sessões extra realizadas em casa sob sua supervisão.
A volta aos gramados em 2017 foi feita de forma muito vagarosa e os resultados de Diego não eram mais aqueles vistos antes da lesão. O atleta alçou à categoria sub-17 por tudo que havia feito pelo clube, todavia, entre os corredores, cogitava-se seu desligado ao final de 2017, já que a comissão técnica não via condições de ele atuar novamente em nível de alto rendimento. Sem saber dessa informação, a família ainda alimentava uma esperança de que os impactos da lesão diminuíssem e que Diego pudesse voltar a atuar com boa performance. A confiança, no entanto, contrastava com as atuações do jovem, que estavam muito abaixo daquilo que produzira antes da lesão. Em julho de 2017, Diego passou para a reserva, com poucas oportunidades de atuação junto à equipe principal, mesmo durante os treinos semanais.
O medo do encerramento do projeto futebolístico, ainda nesse início de carreira, preocupava, em maior ou menor proporção, a todos dentro da família Almeida. Sem dúvidas, aqueles com maior adesão ao projeto futebolístico familiar eram os mesmos que demonstravam maior apreensão com o futuro da carreira de Diego. Quando perguntados sobre a possibilidade de um fim prematuro da carreira e uma possível chance de fracasso, todos falaram a partir do mesmo roteiro:
“Diego: Se o futebol não der certo, eu vou tentar outra coisa que dê. Estou estudando e posso seguir outro caminho com faculdade. Posso fazer educação física como meu pai. Mas não gosto nem de pensar nisso. Futebol vai dar certo sim. Eu cheguei longe, tenho um caminho bom se você enxergar lá atrás. Para mim, fracasso é não estar no futebol. Claro que estar num clube grande é um sucesso, mas se eu continuar no futebol, mesmo que num clube menor, não é fracasso,” 20
“Mauro: Acho que o Diego tem chance de conseguir o que ele quiser, mesmo que ele não avance no futebol. Meu irmão sempre deu para ele muita base, muita estrutura. Ele pode fazer muitas outras coisas pelo caminho da escola mesmo. Olhando para trás, não acho que sair do futebol pela situação que ele passou seja um fracasso. Lesão nunca é mole, se jogador profissional todo estabelecido sofre muito com isso, imagina menino em formação?! Acho que fracasso seria se ele não conseguisse avançar na carreira por incapacidade técnica e isso ele já provou que tem.”21
O acontecimento da lesão impactou na estruturação do projeto futebolístico familiar. Alguns indivíduos dentro da família futebolística, tal como o pai, começaram a não ter mais tanta certeza na concretização da profissionalização do jovem. Nesse sentido, vimos aparecer falas que antes não eram proferidas, tal como a possibilidade de um investimento prioritário na escola, mesmo sem abandonar a possibilidade de profissionalização. Além disso, observamos racionalizações sobre a possibilidade de exclusão do centro de treinamento e reflexões sobre o que seria ou não o fracasso na trajetória de Diego.
A aparição dessas falas e uma inclinação a investir novamente seu tempo e esforço na escola podem ser vistas como reorientações estratégicas dos projetos familiares e dos indivíduos, metamorfoses, dentro do jogo social. O surgimento de obstáculos pode ser o momento de reorientar decisões e vislumbrar outros campos de possibilidades para além da carreira no futebol. No caso da família Almeida, os contatos e as conexões no campo futebolístico não eram extensos, restringindo-se basicamente ao empresário de alcance regional. Nesse cenário, pode-se perceber que o campo de possibilidades da família Almeida diminuiu sensível e claramente, quando passou a enxergar outras possibilidades de carreira, reorganizando a narrativa sobre o projeto de vida de Diego.
As mudanças de orientação, no entanto, só ocorrem para caminhos e alvos considerados minimamente inteligíveis dentro do campo de possibilidades dos indivíduos que formulam seus projetos. Desse modo, a possível reorganização das ações e das estratégias para um reinvestimento na escolarização dialoga com um conjunto de crenças e um campo de possibilidades no qual consideravam possuir alguma chance.
As análises sobre as transformações dos projetos de vida, seja na direção do incremento de práticas que visam à profissionalização esportiva, ou, ao contrário, na sua relativização, reforçam as observações de que o cenário metropolitano e sua diversidade social permitem sincronismos, interseções e deslocamentos entre eventos, acasos, pessoas, instituições e campos de possibilidades. Foi essa oportunidade de articulação e mudança de projetos individuais que Velho (2003) chamou de metamorfose. Ele pontuou que o acionamento de códigos vinculados a contextos e domínios específicos, portanto, a universos simbólicos diferenciados, permite aos indivíduos que se apropriem, reorientem e reconstruam permanentemente seus projetos de vida.
Conclusões
A partir dos resultados, concluímos que as possibilidades de permanência e a insistência no campo futebolístico, pelo menos para os atletas entrevistados e suas famílias, dependem das redes sociais que dão suportes material e simbólico para o desenvolvimento do projeto futebolístico. Nos estudos sobre a relação das redes sociais com as oportunidades alcançadas pelos indivíduos em determinado campo social, destaca-se a importância dos laços fracos na potencialização destas oportunidades. Essa tese se confirma pela análise que empreendemos neste estudo junto às famílias e aos atletas, mas é necessário salientar também a relevância dos laços fortes nessa fase do processo de formação profissional de jovens atletas; o suporte da rede restrita é fundamental nos primeiros passos da carreira. Os laços que exigem maiores relações de reciprocidade permitem coesão e superação de obstáculos ligados à carestia de recursos materiais e financeiros na fase inicial da formação esportiva.
Podemos concluir que as questões relacionadas à rede social possuem importância para além da acumulação de capital social dentro do campo. Enquanto os estudos da sociologia e da antropologia do esporte sobre a profissionalização no futebol afirmam que a posse dos capitais futebolísticos é o elemento balizador para a entrada e a permanência dos jovens nos centros de formação (Damo 2007), as análises realizadas neste estudo evidenciam que as redes sociais construídas pelas famílias e a própria estrutura de tais redes são igualmente fundamentais.