Onde estão as meninas? Essa foi uma das perguntas que ouvi constantemente na apresentação de meus trabalhos em diferentes momentos e contextos acadêmicos, em especial em eventos e encontros de antropologia e ciências sociais. A proposta desse artigo é levar esse questionamento a sério e pensar suas implicações. Assim, proponho uma discussão sobre a relação entre a categoria juventude e as questões de gênero. Para isso, volto-me, inicialmente, para as pesquisas que realizei entre 2002 e 2020 no âmbito do campo de estudos da juventude, repensando as relações de gênero que as constituíram. Em seguida, detenho-me mais longamente sobre um levantamento de como pesquisadoras e pesquisadores da temática das juventudes têm trabalhado com essa dupla perspectiva de gênero, a de quem pesquisa e a de seus interlocutores. Trata-se, portanto, de uma revisão narrativa da literatura a respeito da discussão sobre juventude, com maior destaque para a produção brasileira, bem como de uma proposta de meta-análise dessa intersecção entre juventude e gênero na trajetória de pesquisadoras e pesquisadores. Nessa revisão, o objetivo é refletir sobre as diferentes configurações da relação recíproca entre as representações de sexo e gênero1 de quem pesquisa e de quem é pesquisado, nas culturas juvenis, com maior foco nas investigações realizadas em contextos hegemonicamente masculinos.2
Nesse sentido, este é um ensaio de retomada do meu material de pesquisa - desde a pixação, passando pelas escolas, com as zoeiras 3 protagonizadas fundamentalmente pelos meninos, chegando ao meu atual projeto de pesquisa sobre práticas culturais juvenis em São Paulo, que procura investigar formas de ser e representar a juventude na contemporaneidade - com a finalidade de pensar as múltiplas questões de gênero que permeiam as experiências de pesquisa. Ainda que houvesse uma reflexão sobre a constituição de masculinidades em trabalhos anteriores, nas escolas e no funk ostentação, por exemplo (Pereira 2016, 2014), a ideia aqui é ir um pouco além nessa discussão, retomando o material empírico, em diálogo com a análise da revisão narrativa da literatura acadêmica, para indagar outros aspectos anteriormente não abordados.
Apesar de os estudos de gênero terem alcançado grande repercussão nas ciências sociais e na cena pública brasileira contemporânea, cabe ressaltar que essa não é uma pergunta tão nova no campo dos estudos de juventude. Nos anos 70, na clássica coletânea da Escola de Birmingham,4 Angela McRobbie e Jenny Garber (1991 [1977]) já questionavam a ausência das meninas nos estudos das chamadas subculturas, realizados no âmbito do Centre for Contemporary Cultural Studies, da Universidade de Birmingham, na Inglaterra. As autoras destacam não só a falta, mas também a presença estereotipada das garotas, como pouco participativas ou marginalmente representadas. Sendo assim, trata-se de entender se as meninas estariam realmente ausentes nas subculturas ou teriam sido invisibilizadas nas pesquisas realizadas por homens.
Os estudos das subculturas enfatizariam, simultaneamente, as relações de compartilhamento e de distinção de um grupo cultural particular em relação à cultura dominante. Dessa maneira, o conceito de subcultura seria uma forma importante de designar essa relação de aproximação e afastamento, de práticas e grupos juvenis, em relação às culturas dominantes de um determinado contexto, sejam essas culturas de classe, geracionais ou parentais. No entanto, como demonstra Mike Brake (1985), as subculturas apontariam, em grande medida, para as práticas desviantes e de delinquência. Portanto, apesar dessa perspectiva conceitual relevante, opto, em acordo com a posição de Carles Feixa (1993, 1998), pelo termo culturas juvenis, no plural, a fim de reforçar seu caráter heterogêneo e afastar-se de abordagens que enfatizariam essa dimensão do desvio, cuja implicação poderia ser a estigmatização de indivíduos e grupos pesquisados. Ademais, se a noção de subcultura aponta para uma relação de subordinação às culturas dominantes ou parentais, ainda que enfatizando uma má adaptação, que levaria aos atos desviantes, uma outra noção, a de contracultura, por sua vez, conforme a discussão de Theodore Roszak (1969), destacaria uma ruptura geracional mais evidente, afirmando uma forte recusa aos valores da sociedade adulta. A noção de culturas juvenis, ainda que possa designar movimentos de contraposição, também permite a abordagem de ações de caráter conservador ou de adesão aos valores da sociedade adulta, como é o caso das que afirmam posições contestadoras de aspectos da sociedade contemporânea, ao mesmo tempo que se pautam por valores machistas. Dessa maneira, o termo subcultura será utilizado aqui apenas quando se fizer referência às correntes acadêmicas e grupos de pesquisa que mobilizam teoricamente esse conceito. Para a referência às demais práticas e pesquisas não vinculadas a essa perspectiva mais específica, especialmente das investigações empíricas, adoto a denominação culturas juvenis.
Uma importante questão exposta por McRobbie e Garber é a de que os pesquisadores homens, nessa perspectiva dos estudos subculturais, teriam se concentrado nas culturas espetaculares e desviantes, hegemonicamente dominadas pelos meninos, cujo controle dos pais seria menor e, por isso, com maior acesso aos espaços públicos. Talvez, afirmam as autoras, se os pesquisadores de Birmingham tivessem atentado mais para aspectos da vida juvenil ligados à vida privada, como os fã-clubes, eles encontrariam não apenas uma maior presença das meninas, como também o exercício do protagonismo delas. Para elas, a ausência das meninas nas descrições das subculturas pode ter levado à constituição de uma profecia autorrealizadora. Em outras palavras, ao não se falar das meninas estar-se-ia a reforçar a sua ausência, pois as representações das culturas juvenis seriam ainda mais marcadamente masculinas, excluindo-as como participantes efetivas. Essa ausência ocasionaria um empobrecimento da pesquisa sobre as culturas juvenis, por não se reconhecer os diferentes papéis de gênero.5
Um dos investigadores dos estudos de Birmingham criticado por McRobbie e Garber, Paul Willis, assim respondeu, em entrevista a Roger Martínez, às críticas por seu trabalho ter enfocado apenas os meninos das culturas dissidentes na escola, em especial no seu clássico e importante trabalho, Learning to Labour:
“Considero isso muito interessante. Sempre houve muita curiosidade em saber por que me concentrei em grupos de meninos e não nas meninas. Minha resposta é que um método etnográfico, para que seja bom e profundo, requer que se limite o objeto de estudo. Não o encarei como um enfoque sexista, antifeminista ou antigênero, porque creio que fui um dos primeiros a indicar a importância do gênero na formação dos jovens da classe operária.” (Martinez 2005: 310-311)
Paul Willis defende-se afirmando que estava interessado justamente em pensar como gênero e classe, no caso as masculinidades de determinada juventude operária inglesa, combinavam-se. Sendo assim, segundo ele, as questões teóricas de seu trabalho poderiam ser aplicadas em outros contextos empíricos constituídos hegemonicamente por meninas. “A crítica feminista é uma crítica empiricista a um estudo empírico, que consiste em dizer ‘Onde estão as meninas?’ ” (Martinez 2005: 311). Nesse sentido, um contraponto interessante é o trabalho de Shane Blackman (1998) sobre um grupo de garotas em uma escola inglesa, as “New Wave Girls”, que criavam táticas de resistência ao domínio masculino na escola. Segundo o autor, o fato de ser um pesquisador do sexo masculino levou-o, em um primeiro momento, a aproximar-se mais dos meninos, para logo em seguida atentar mais nas meninas, aproximando-se, assim, delas e de suas práticas de resistência.
No Brasil, Wivian Weller (2005), retomando a crítica que McRobbie e Garber fizeram aos estudos subculturais ingleses, realiza um duplo movimento. Por um lado, critica a ausência das meninas e de discussões sobre gênero e feminismo nas pesquisas sobre juventude e culturas juvenis. Por outro, também lamenta a ausência de discussão sobre as culturas juvenis nos estudos feministas. Uma das possíveis razões apontadas por Weller para essa ausência simultânea das culturas juvenis femininas dos campos de estudos da juventude e feminista estaria no fato de, muitas vezes, as culturas juvenis femininas serem tratadas de forma superficial e estereotipada, encarando-as como mais comerciais - distantes de formas de resistência ou protesto contra as desigualdades de gênero - como nas culturas de fã-clubes apontadas por McRobbie e Garber. Para Weller, as culturas populares juvenis seriam um campo promissor para os estudos feministas. Por isso, a importância de voltar-se também para essa condição juvenil e adolescente.
Pode-se afirmar, portanto, seguindo os caminhos propostos por Weller, que a discussão geracional e/ou do curso da vida - que inclui os estudos sobre as culturas juvenis, mas abrange também reflexões sobre a infância, a idade adulta e a velhice - tem sido pouco abordada na antropologia social brasileira de uma maneira geral. Muitas vezes a variável etária é também invisibilizada e, quando desponta, é apenas como uma constatação ou como um marco - quase acidental, porque pouco explorado ou aprofundado - para pensar questões consideradas mais importantes ou dignas de atenção, não apenas o gênero, mas também a orientação sexual, a questão racial, a adesão religiosa, entre outras. Essas, de fato, são questões fundamentais e fundacionais da experiência social contemporânea, mas também poderiam ser reveladoras das múltiplas formas como as categorias etárias particularizam-se ou modificariam essas demais categorias.6 Pensando com Latour (1994), uma das explicações para essa ausência do recorte geracional, do ciclo da vida ou da própria noção de juventude pode estar na constatação de que a antropologia sempre foi muito boa em falar do ciclo da vida dos “outros”, quando trata dos ritos de passagem, por exemplo, mas péssima para abordar essa temática ao olhar para a sua própria sociedade.
Uma outra explicação para o pouco interesse pelas culturas juvenis em alguns campos de estudo poderia situar-se na percepção de que seria mais fácil de reconhecer as desigualdades nas questões de gênero, de classe ou de raça, por exemplo, do que em recortes etários ou de fases da vida.7 Contudo, a idade, articulada com gênero, classe e raça, em muitos casos, pode influenciar a maior ou menor possibilidade de tornar-se vítima de uma morte violenta a depender do lugar do mundo onde se vive. Aqui na América Latina, por exemplo, a questão do juvenicídio é apontada por Rossana Reguillo (2015) e José Valenzuela Arce (2019) como um dado inquestionável de que algumas vulnerabilidades e violências incidem mais intensamente sobre determinados segmentos etários da população. Por isso, a pergunta sobre onde estão as juventudes nas pesquisas antropológicas não deve ser vista como um artifício para responder a uma questão com outra, mas sim como a proposição de um chamado para a necessidade de se articular ainda mais profunda e seriamente as questões próprias das culturas juvenis com as das discussões de gênero e sexualidade, além das raciais e de classe social. Por outro lado, em trabalho sobre as construções de gênero e das feminilidades nos clubs de música eletrônica, Bóia, Ferro e Lopes (2015) afirmam que as interseccionalidades não necessariamente apontariam apenas para opressões ou vulnerabilidades, mas poderiam também ressaltar possibilidades de emancipação. Da mesma forma, eles também defendem que não há necessariamente o privilégio a qualquer variável em relação às outras. Assim, conforme essa perspectiva, a depender do contexto de pesquisa, diferentes categorias poderiam ser tomadas como centrais em uma análise interseccional. De modo que, se há a importante questão sobre a presença das discussões de gênero e mesmo de uma perspectiva feminina/feminista nas pesquisas sobre juventude, mostra-se também relevante perguntar sobre como a questão etária, ou do ciclo da vida, tem sido abordada em campos outros que não o dos estudos de juventude.
Assim, além de investigar onde estariam as meninas e qual o tratamento dado a presença/ausência delas em diferentes contextos de pesquisa, há de se trazer outras interrogações, importantes para quem está no campo de estudos das culturas juvenis. Afinal, saber a idade dos nossos interlocutores faz sentido para a pesquisa? E a idade de quem pesquisa? O que muda na nossa forma de conduzir pesquisas de campo, por exemplo, a partir de nosso próprio curso da vida, com o nosso envelhecimento? Quais as implicações da influência recíproca entre as representações de sexo e gênero de quem pesquisa e de quem é pesquisado? Essas são algumas das perguntas das quais este artigo parte, ao abordar culturas juvenis hegemonicamente masculinas, sem a pretensão de responder plenamente a nenhuma delas. Por culturas juvenis hegemonicamente masculinas compreende-se aquelas que são dominadas pelos meninos, por serem a maioria e também por estabelecerem as regras, muitas vezes impondo obstáculos à participação mais ativa das meninas. Essas culturas juvenis hegemonicamente masculinas também tendem a valorizar padrões de certa masculinidade hegemônica, como o culto à virilidade, por exemplo, conforme será demonstrado a seguir. Deve-se deixar claro, inclusive, que o intuito aqui não é revelar onde estão as meninas nas culturas juvenis, nem apresentar uma proposta metodológica que permita essa descoberta, mas apresentar uma discussão, de caráter meta-analítico, com base nas investigações que realizei e no diálogo com outras pesquisas de campo, conforme o levantamento realizado, refletindo sobre ausências e presenças.
O pesquisador e as questões de masculinidade em campo
Como a inspiração para este artigo é a indagação que me fora direcionada em diferentes e importantes momentos de apresentação de minhas pesquisas em eventos acadêmicos nos Brasil e outros países da América do Sul a respeito da presença das meninas, trago, neste primeiro momento, as minhas experiências de campo com algumas culturas juvenis sob maior domínio dos meninos para começar a pensar a esse respeito. Trata-se, portanto, de abrir a discussão tentando caracterizar as especificidades do meu olhar masculino. Devo ressaltar que a participação nesses eventos acadêmicos e nos muitos debates mostrou-se fundamental em minha formação como pesquisador, permitindo-me aprofundar as reflexões sobre meus temas de pesquisa.
A primeira investigação que realizei em contexto dominado por rapazes foi com a “pixação” 8 em São Paulo (Pereira 2018). Iniciada em 2002 a partir de uma frequência regular do seu ponto de encontro em região central da cidade, o point do pixo, para onde se dirigiam jovens ligados a essa atividade, de toda a região metropolitana de São Paulo. Nesse espaço, estive desde o primeiro momento em contato quase exclusivo com homens. Pouquíssimas mulheres circulavam pelo point entre os anos 2002 e 2006, período em que concentrei a pesquisa de campo nesse local. Das centenas de jovens que se reuniam no chamado point da Vergueiro todas as terças-feiras, encontrei-me apenas com cinco meninas e em pouquíssimos momentos. Embora inicialmente não tivesse abordado essa prática a partir da dimensão de gênero, ao longo da pesquisa, que prosseguiu por alguns anos, surgiram-me questões próprias de determinado exercício de valores masculinos ou de um tipo de masculinidade hegemônica, conforme a discussão de Connell (1995), ao tratar do processo de construção de assimetrias em relação ao feminino e no interior das diferentes formas de performatização das masculinidades. Passei, então, a atentar mais para a pixação a partir de certa afirmação de si e de uma ideia de virilidade, que se apresentava por meio das proezas arriscadas, elemento central de uma competição pelos muros, que se estende por toda a cidade.9
Nesse início dos anos 2000, quando perguntava a alguns garotos sobre as meninas na pixação, muitos diziam que havia algumas a atuar no pixo, sim, mas que eram poucas. Outros negavam e diziam que as meninas não eram pixadoras de verdade, pois não sabiam escalar nos lugares altos, precisavam de ajuda dos meninos e acabavam atrapalhando o rolê.10 Esse tipo de comentário era acionado como uma barreira às mulheres em uma prática não apenas essencialmente masculina, mas também como afirmação e mesmo produção de um determinado tipo de masculinidade. Segundo afirma Nancy Macdonald (2001), a respeito do graffiti em Londres e Nova Iorque, apesar da presença de algumas mulheres, a arte de rua costuma ser produtora e produto de formas específicas de masculinidade. Para a autora, o graffiti seria “um modo de construir a masculinidade, comunicar independência e de deixar de ser um ‘ninguém’ para tornar-se um ‘alguém’ ” (Macdonald 2001: 6, tradução minha). Essa é uma perspectiva que pode ser plenamente aplicada à pixação brasileira, pois as performances de seus protagonistas anunciariam certa ideia de masculinidade viril.11 Há estudos em outros contextos, no entanto, que colocam em questão essa participação mais marginal das mulheres na prática do graffiti. Ligia Ferro (2016), por exemplo, demonstra em sua pesquisa sobre o graffiti em Portugal que, na área metropolitana de Lisboa, embora a maioria dos writers fossem do sexo masculino, havia muitas mulheres em atividade, que pertenciam ao mundo do graffiti de forma independente e com destaque, sem estarem associadas a um rapaz, de quem seriam amigas ou namoradas.
Por outro lado, considerando o caráter relacional da categoria de gênero, havia algo curioso, que me fora afirmado mais de uma vez, por alguns jovens da pixação, como elemento motivador de seu ímpeto por arriscar-se para deixar uma marca em um muro ou no alto da fachada de um prédio, pois eles me diziam que pixavam para impressionar e obter admiração das meninas. Ou seja, se havia uma grande ausência das meninas em seus espaços de interação e mesmo obstáculos à presença delas, alguns pixadores relatavam que as garotas eram um dos fatores motivadores dessa prática de afirmação de sua masculinidade entre homens. Convém, entretanto, fazer a ressalva de que na virada da primeira para a segunda década deste século XXI a participação de meninas na pixação e nas artes de rua em São Paulo aumentou consideravelmente. O caso mais emblemático dessa mudança deu-se no ano de 2008, quando um grupo resolveu pixar as paredes de um espaço vazio em exposição no prédio da Bienal de Artes de São Paulo. A segurança privada do local e a polícia foram acionadas. A única pessoa detida nessa ação foi justamente uma garota, Caroline Pivetta, que ficou presa por 54 dias por conta de sua participação nesse evento. Ela acabou, inclusive, tornando-se símbolo de uma nova postura do pixo, que passou a inserir-se de modo provocativo no campo das artes, com uma série de ações de grande repercussão midiática. Além disso, algumas meninas do pixo passaram a recusar a performance de um comportamento mais masculino, afirmando valores que consideravam mais femininos. Nas redes sociais, por exemplo, há muitas meninas pixadoras que fazem questão de apresentarem-se com características marcadamente femininas, tanto no modo de vestir-se quanto nos seus traços artísticos. Entretanto, sua presença no point da pixação, em região central da cidade, continua bastante diminuta e invisibilizada.
Apesar de a pixação ter suscitado todas essas questões a respeito de sua configuração hegemonicamente formada por homens para homens, embora com certa proposta, implícita, de exibição de uma virilidade a ser reconhecida e admirada pelas mulheres, posso dizer que só comecei a pensar mais seriamente sobre as questões de gênero a partir da pesquisa que realizei nas escolas públicas de ensino médio, na periferia de São Paulo, quando observei as zoeiras dos estudantes protagonizadas fundamentalmente pelos meninos (Pereira 2016). Conforme pude observar em campo, esse tipo de atividade envolvia desde gozações constantes até uma infinidade de práticas lúdicas que eram acionadas nos mais diferentes contextos. O exemplo maior dessas interações lúdicas ocorreu numa escola em que o principal espaço de sociabilidade no intervalo para o recreio era a quadra esportiva, dominada pelos meninos a jogarem futebol, enquanto as meninas e os meninos que não praticavam o esporte apertavam-se nas laterais estreitas, atentos para protegerem-se de uma possível bolada acidental no rosto. Considero, inclusive, essa imagem bastante potente para aludir a como se estabelecem as diferentes masculinidades hegemônicas, tomando o domínio de certos espaços, mas, ao mesmo tempo, podendo atingir todas aquelas e aqueles que não se alinham a essas formas dominantes de masculinidade heterossexual.
As meninas, por sua vez, exerciam modos particulares de desestabilização do trabalho do professor na sala de aula, por intermédio de suas conversas incessantes, em pequenos grupos, que demonstravam uma recusa à atuação do docente à frente, mas sem a realização de performances mais individualizadas, com o objetivo de chamar a atenção para si, como os meninos costumavam mobilizar com mais frequência. Já entre garotos que performatizavam masculinidades classificadas, pelos outros meninos, como homossexuais ou não viris, pude perceber dois tipos de diferentes de comportamento. Em um contexto, a invisibilização de si, como forma de escapar às gozações e ofensas dos outros rapazes. Em outro, a participação na zoeira de modo até mais extremado, por meio da criação de um comportamento ainda mais conflituoso do que o exercido pelos rapazes que se apresentavam como heterossexuais, como observei com dois garotos de uma mesma turma.
No contexto escolar, portanto, meninos e meninas estavam presentes, mas ainda assim o meu enfoque de pesquisa deu-se em torno de uma prática que era hegemonicamente dominada pelos meninos: as zoeiras. Dessa maneira, mesmo que não desprezando a presença delas, e até enfatizando a forma como elas atuavam em sala de aula e outros espaços, a pesquisa cedeu maior espaço a uma prática de desestabilização da ordem escolar protagonizada fundamentalmente pelos rapazes. Questiono-me sobre o que me conduzira a, nesse outro contexto e momento de pesquisa, novamente abordar uma prática juvenil hegemonicamente dominada por homens. Muitos dos fatores apontados por McRobbie e Garber aos pesquisadores de Birmingham, e em especial ao trabalho de Paul Willis com rapazes que desafiavam a ordem escolar, de certa maneira, também influenciaram o direcionamento de meu olhar para os meninos e as formas de exercício de suas masculinidades.
O fato de eu ser um pesquisador homem cisgênero certamente me levou a uma aproximação mais facilitada das redes de sociabilidade dos rapazes. Contudo, essa condição pode, como afirmam as autoras, também ter influenciado o modo como observei e analisei meu campo de pesquisa. Além disso, devo confessar que a minha condição masculina me provocava alguns receios como o de, em algum momento, ser mal interpretado na aproximação com as meninas. Certa vez, ao conversar com uma estudante que queria saber mais sobre possibilidades de prosseguimento no ensino superior, outros meninos passaram a zoar e fazer insinuações de que pudesse estar a ocorrer algum flerte. Assim, a zoeira masculina serviu também para que os meninos exercessem um controle sobre minha aproximação das meninas em campo. Não que eu não tenha conversado com algumas delas e mesmo atentado para o modo como interagiam no cotidiano escolar, mas me cercava de maiores cuidados, evitando conversar com apenas uma menina isoladamente, priorizando as conversas em grupos.
Outro elemento importante de ser apontado está na constatação de que as zoeiras alteravam profundamente a dinâmica escolar, o que corrobora alguns dos questionamentos feitos aos pesquisadores de Birmingham, sobre o maior interesse por práticas espetaculares e/ou desviantes. Certamente, a zoeira era uma dessas práticas e fui envolvido nela desde o meu primeiro dia, quando os estudantes começaram a zombar de minha barba ou calvície, dois sinais diacríticos de nossas diferenças de idade e geração. Além disso, a zoeira era uma pauta constante nas conversas com docentes. Assim, embora de modo não planejado, fui atraído por uma prática masculina e transgressora que mais impactava no cotidiano escolar e no ritmo das aulas.
Diferentes olhares para culturas juvenis dominadas por homens
Há muitas formas de se focalizar as práticas hegemonicamente masculinas e, certamente, a abordagem pode mudar a partir da posição de quem pesquisa nas estruturas de gênero. Por isso, a proposta é trazer outras contribuições que se voltaram para culturas juvenis hegemonicamente dominadas por homens nos mais diferentes contextos. Uma das principais constatações a serem feitas sobre práticas dominadas por meninos é a de perceber que, na maioria dos casos, esse domínio é o resultado das desigualdades de gênero, muitas vezes reforçadas por eles pela imposição de barreiras ao ingresso de mulheres. Assim, ainda que a participação delas aconteça, mesmo que em minoria, isso se dá por meio de um pesado investimento na superação desses obstáculos e no aprendizado de novas possibilidades de situar-se nesses contextos que lhes são hostis.
Esse é, por exemplo, o caso do mundo dos games. Em pesquisa realizada no Canadá, Sanford e Kurki (2012) perguntam justamente sobre onde estariam as meninas nesse universo. Apesar de sua importância para a juventude na contemporaneidade, esse ainda seria um espaço social juvenil profundamente dominado por meninos e por regras masculinas de relacionar-se. Segundo as autoras, isso ocorreria porque ainda haveria uma circulação intensa de visões estereotipadas sobre as mulheres, como resultado de um mundo hegemonicamente dominado por valores patriarcais, por um lado, e porque, por outro lado, esse espaço não é controlado por homens apenas no ato de jogar e articular-se em redes online, mas também na produção e design dos games. Assim, quando as meninas dele participam têm de enfrentar não apenas um ambiente com referenciais voltados à afirmação de valores hegemônicos de uma hipermasculinidade, como também um espaço social misógino e hostil, em que os meninos, para afastá-las ou barrarem sua entrada, dirigem-lhes ofensas e assédios. As autoras levantaram a trajetória de oito meninas gamers canadenses de classe média, que estavam entre o ensino médio e superior. As jovens, além de relatarem as barreiras que os meninos jogadores colocavam à entrada delas nesse espaço social, revelaram que mesmo quando havia games mais direcionados ao público feminino, esses eram baseados em estereótipos, com temáticas voltadas à moda ou à boneca Barbie, por exemplo, pelos quais elas demonstravam profundo desinteresse. Assim, as pesquisadoras concluem:
“Crescer como mulher ou homem pode ser uma experiência muito diferente; as crianças levam vidas paralelas, mas separadas, como homens ou mulheres. Enquanto as meninas são tradicionalmente recompensadas por valores como obediência, cuidado, conversar sobre seus problemas, desempenhar multitarefas e prover apoio emocional na vida familiar, é mais provável que os meninos sejam recompensados por assumir desafios e riscos, tomar atitudes e exercer um domínio dos espaços públicos (Stromquist 2007; Beal 1994). A vida dos meninos é visível, pública e aclamada, enquanto a vida das meninas é muitas vezes tornada não reconhecida e invisível - isso se manifesta nos videogames e em outros aspectos de suas vidas. As meninas experimentam o sucesso por obterem bom desempenho na escola, momento em que podem ser identificadas e reconhecidas por si mesmas, enquanto os meninos experimentam sucesso e reconhecimento em outros espaços - incluindo o mundo dos videogames. Como Holly comentou, ‘os videogames são o que meu namorado faz quando estou fazendo a lição de casa’.” (Sanford e Kurki 2012: 265, tradução minha)
Essas são constatações importantes feitas por mulheres que, ao pesquisarem em contextos masculinos, resolveram identificar e entender como se dava a participação das meninas em tais universos. Dessa maneira, elas revelam significativos dispositivos de exclusão de gênero e de afirmação de valores hipermasculinos, machistas e misóginos no mundo dos videogames. Esse é, portanto, um dos caminhos possíveis para pensar tais campos de pesquisa: o olhar de investigadoras mulheres para as mulheres que são excluídas ou invisibilizadas nas culturas juvenis. Contudo, pode-se discutir em que medida o fato de serem mulheres foi justamente o que lhes permitiu observar esses aspectos da exclusão e mesmo opressão dos meninos sobre as meninas nesse campo específico.
Outra possibilidade, no entanto, é a de pesquisadoras mulheres, ao adentrarem contextos dominados pela presença masculina, atentarem mais para como os homens constroem esses espaços como locais de afirmação de determinados valores. Um exemplo nesse sentido é a pesquisa de Fernanda Noronha (2007) com dançarinos de breakdancing em São Paulo, em meados dos anos 2000. Embora a questão que disparou os seus interesses de investigação tenha surgido, justamente, da curiosidade sobre onde estariam as meninas no breakdancing paulistano, a pesquisa acabou por situar-se em ambientes hegemonicamente masculinos ligados ao hip-hop. Isso fez com que a pesquisadora tentasse valer-se de algumas estratégias para garantir uma inserção segura e efetiva em campo. Uma das primeiras medidas adotadas foi a de angariar a companhia masculina de amigos e familiares para a pesquisa. Com o tempo, no entanto, ela percebeu que tal estratégia colocar-lhe-ia limitações, pois suas idas a campo dependeriam da agenda de seus auxiliares. Assim, Noronha descreve a descoberta de um espaço público de treinamento de b.boys próximo a uma estação do metrô. A intenção inicial da autora era de, a partir do contato com os b.boys, chegar às b.girls.
Ao longo da pesquisa, Noronha descobre, entretanto, que o acesso às b.girls seria mais complicado do que pensara, não apenas porque a presença delas na cena do breakdancing em São Paulo era, até então, rara, mas também porque a participação delas ocorria de forma diferente da dos meninos. As meninas, segundo a autora, não participavam das batalhas de break, em que os rapazes competem entre si a fim de demonstrarem suas habilidades e afirmarem-se como o melhor dançarino. A partir disso, ela redefine seu recorte de pesquisa a partir dos rapazes do break. Assim, ao olhar para os meninos e acompanhá-los, enfim, descobre onde estavam as meninas no breakdancing em São Paulo. Elas estavam nas competições em eventos de hip-hop, nos quais ocorriam apresentações de coreografias de dança para jurados. Nesses momentos, a presença das meninas não apenas surgia, como era valorizada. Já nas rodas das batalhas de break, a competição dava-se quase que exclusivamente entre rapazes. Ao final, a pesquisadora afirma que sua condição de mulher, ao mesmo tempo em que trouxe alguns imprevistos em campo, também lhe possibilitou uma perspectiva privilegiada de acesso a um universo hegemonicamente masculino, que, talvez, um pesquisador homem não conseguisse alcançar.
Nancy Macdonald (2001) afirma algo semelhante ao exposto por Noronha, e vai além ao defender que as pesquisadoras feministas, que tantas contribuições já deram para a compreensão das experiências das mulheres, também deveriam voltar-se para as experiências dos homens. Ao refletir sobre sua posição de gênero em um contexto hegemonicamente masculino, o graffiti em Londres e Nova Iorque, a autora afirma que essa diferença cumpriu um papel fundamental para o modo como aproximou-se de seus interlocutores e pensou a respeito de suas questões no graffiti. “Meu gênero criou algumas restrições, mas também me proporcionou vantagens peculiares e altamente valorizadas” (Macdonald 2001: 60). Algumas informações reveladas pelos rapazes do graffiti certamente não seriam ditas a um pesquisador homem, afirma a autora, por trazer elementos que, talvez, identificassem como embaraçosos frente a um outro homem. Ou seja, em uma prática que se apresenta como um dispositivo de produção de masculinidades, os seus integrantes poderiam proteger o acesso de outros homens a aspectos que abririam flancos para fragilizar a imagem masculina ideal de si que se produz nesse contexto. Durante a pesquisa, Macdonald encontrou pouquíssimas garotas no graffiti e, a partir dessa constatação, chegou à seguinte conclusão:
“Nomeadamente, que as meninas ‘organizam sua vida social como uma alternativa aos tipos de riscos e qualificações envolvidos na entrada nos domínios principais da vida subcultural masculina’ (McRobbie e Garber 1991: 7), porque esses riscos e qualificações se oferecem como ferramentas para uma identidade tipicamente masculina, em oposição à feminina.” (Macdonald 2001: 127-128, tradução minha)
O que se mostra importante nesse posicionamento de Macdonald é a necessidade de reconhecimento, em alguns casos, de que se está a pesquisar, efetivamente, uma prática ou ambiente hegemonicamente masculino. Portanto, uma possibilidade é a de atentar para como os homens se comportam, entre si e em relação às mulheres, nesses espaços sociais em que exercem maior domínio. Em sua pesquisa sobre o graffiti em São Paulo, Gabriela Leal (2018: 28) também assume a postura de identificar-se como uma mulher que está a pesquisar uma prática masculina. Ela define seu trabalho como voltado para “procedimentos e experiências de homens nas práticas de graffiti de São Paulo, descritos e analisados aqui sob o ponto de vista de uma mulher”. Como são muitas as possibilidades de posicionamento na pesquisa, em outro trabalho também no campo da arte urbana, Thayanne Freitas (2019), por sua vez, em investigação com meninas do graffiti na cidade de Belém do Pará, no Norte do Brasil, afirma que a escolha por focalizar as mulheres ocorreu, justamente, pelo interesse em compreender a sua presença minoritária nessa prática. Como já apontado anteriormente, Lígia Ferro (2016), por sua vez, em Lisboa, descobre uma participação efetiva e autônoma das meninas, com grande reconhecimento na cena do graffiti.
Reconhecer essa especificidade de gênero de quem faz a pesquisa de campo é importante, pois, como enfatiza Daniela Leão (2017), a presença de uma pesquisadora mulher em campo, em contexto hegemonicamente masculino, também implica muitas vezes encontrar determinadas barreiras de gênero, tal como as impostas pelos gamers à entrada das meninas no universo por eles dominado, conforme demonstrado por Sanford e Kurki (2012). Leão fala das inseguranças que vivenciou por ser uma mulher a circular à noite pela cidade de Recife, no Nordeste brasileiro, e também por ter de, a todo momento, refletir sobre como se portar diante de um grupo predominantemente masculino. Revela, ao mesmo tempo, o medo da violência urbana e dos assédios masculinos. Durante a pesquisa de campo, ela afirma que sempre se encontrava diante de preocupações variadas a respeito de como se comportar, como e o que falar, qual roupa vestir e como circular de maneira segura por esses espaços masculinos.
Já em investigação realizada por um pesquisador homem em um contexto hegemonicamente masculino, embora não necessariamente juvenil, o boxe na cidade de São Paulo, Michel Soares (2018) destaca a presença de apenas uma mulher, Aline, em uma das equipes de boxe que acompanhou. Apesar de ser a única mulher, ela tinha de se submeter às regras estabelecidas para todos. Nesse contexto, os outros homens, ao verem Aline treinando duro, estabeleciam táticas para tornar a vida dela ainda mais difícil, impondo maior agressividade ao boxear com ela, pois apanhar de uma mulher no ringue poderia representar, nesse caso, uma vergonha a certa ideia de virilidade e honra masculina. “Ela é boa e rápida, e se me acertar, vou pra cima dela sem dó”, revelou um dos interlocutores da pesquisa de Soares (2018: 94). O que apresentei até aqui foram as muitas possibilidades de configuração da relação de pesquisadoras e pesquisadores com um campo hegemonicamente masculino. Ou seja, a pergunta sobre onde estão as meninas deve suscitar uma profunda reflexão sobre quem pesquisa e a partir de onde. Com base nessas diferentes combinações das perspectivas de gêneros de pesquisadoras e pesquisadores com suas interlocutoras e interlocutores, tentei ressaltar as diversificadas e ricas percepções particulares que cada uma dessas contribuições pode dar. Assim, mesmo que as mulheres e homens não estejam presentes no campo de pesquisa, homens investigadores e mulheres investigadoras devem atentar para a possibilidade relacional de constituição das muitas experiências do masculino e feminino.
Perspectivas relacionais sobre as culturas juvenis e as questões de gênero
Joan Scott (1995) conceitua o gênero como um campo de exercício de poder que não pode ser reduzido a um sinônimo de feminino ou masculino. Trata-se, portanto, de pensá-lo como uma categoria relacional, desconstruindo oposições binárias fixas, como entre masculino e feminino, associada, constante e respectivamente, ao par dominação/submissão. A partir da teoria feminista, Anne McClintock (1995) afirma que gênero diz respeito sempre a feminilidades e masculinidades. Dessa maneira, pensar gênero como uma categoria relacional e não binarizada implica compreender que há muitas e diversificadas maneiras de homens e mulheres, cis ou trans, vivenciarem suas experiências de masculinidade ou feminilidade, das mais às menos hegemônicas. Além disso, essa relacionalidade que constrói experiências singulares de gênero deve levar em consideração também, como afirmam Scott e McClintock, dimensões como a raça, a classe, a nacionalidade ou o território, entre outras.
Nesse sentido, como expõe Raewin Connell (2016), se as masculinidades costumam relacionar-se muito estreitamente à posição social dos homens, não se restringem a eles, pois as mulheres também podem associar-se a práticas classificadas socialmente como masculinas. Da mesma forma como o contrário pode ocorrer e constantemente ocorre. Sendo assim, as masculinidades nas culturas juvenis não necessariamente exercem-se ou devem ser vistas como atadas diretamente ao exercício de uma virilidade ou de um comportamento beligerante. Contudo, Connell (2016) também faz uma ressalva que demonstra a importância de não se desprezar a constatação de que as representações sociais essencializadas e estereotipadas de gênero, que se associam a uma concepção binária do sexo, são imposições de poder que produzem efeitos, muitas vezes nefastos, como a intimidação de estudantes gays e femininos nas escolas ou mesmo o assassinato de homens gays, mulheres lésbicas ou pessoas trans.
Por isso, atentar para os efeitos da hegemonização de certas masculinidades cis heteronormativas na vida dos jovens na contemporaneidade mostra-se como fundamental para a compreensão de processos de exclusão e produção de assimetrias. A questão do juvenicídio na América Latina é um aspecto a ser considerado também sob essa perspectiva. Dados mais específicos sobre o Brasil são reveladores de como o cruzamento de componentes como raça, classe, gênero e faixa etária geram consequências para uma maior ou menor possibilidade de ser vítima de um assassinato. Um jovem homem negro no Brasil é quem, disparadamente, conforme as pesquisas estatísticas, corre mais risco de sofrer uma morte violenta.12 Dessa forma, para retomar a análise de casos empíricos e, principalmente, etnográficos, que tratem dessa perspectiva mais relacional em suas abordagens, recorro a dois trabalhos brasileiros em que as questões de gênero articulam-se, em maior ou menor medida, com a questão racial, ainda que em ambos a questão da juventude e das culturas juvenis não seja efetivamente o foco, surgindo implicitamente ou apenas como recorte empírico e campo de ação do pesquisador.
Um desses trabalhos é a pesquisa de Mylene Mizrahi (2018) junto a rede de relações em torno de Mr. Catra, célebre cantor de funk carioca,13 falecido em 2018. Nesse contexto, Mizhrai propõe um olhar relacional para as categorias de gênero, ao discutir como a produção de uma cultura de masculinidade no funk não implica necessariamente um feminino submisso, mas que, na verdade, no funk carioca, a mulher não possui uma posição fixa e está constantemente mudando de lugar e subvertendo tentativas de subjugá-la. Assim, se, por um lado, os homens celebram as mulheres como uma de suas conquistas materiais, cultuando a ideia de se ter muitas amantes, por outro, cantoras de funk como Valesca Popuzada afirmam que as mulheres têm de encontrar um otário para sustentá-las financeiramente. Invertem, portanto, a ideia de que o macho provedor esteja em posição superior, e faz surgir a figura da mulher astuta, que tem o real domínio da situação. Para Mizrahi, as masculinidades no funk só podem ser vistas de uma perspectiva relacional. A autora chega a afirmar que enquanto os homens no funk necessitam da exibição de mulheres, ao lado de maços de dinheiro e objetos de valor, para mostrarem uma autoimagem poderosa, as mulheres não dependeriam dos homens para apresentarem uma imagem bem-sucedida de si. Elas demonstrariam, assim, uma construção de si por si mesmas.
Já em outra pesquisa, realizada com jovens de um loteamento popular em São Gonçalo, município da região metropolitana do Rio de Janeiro, Osmundo Pinho (2007) adota uma perspectiva relacional em um duplo sentido, pois cruza as múltiplas percepções de moças e rapazes sobre suas condições de gênero, mas também analisa como essa categoria intersecciona-se com raça. Durante a pesquisa de campo, ele demonstra como garotas e garotos estão tanto a reafirmar como a contestar determinadas performances de gênero. Assim, o autor afirma ter encontrado uma “verdadeira guerra dos sexos” (Pinho 2007: 134) ao descrever como as garotas reconheciam claramente as desigualdades e opressões de gênero que sofriam. Pinho conclui que, se é possível afirmar uma dominação masculina e assimetrias nas relações de gênero, as meninas não se resignam a essas condições que lhes são impostas, criando tensões nas representações estereotipadas e mesmo opressoras elaboradas pelos garotos. Essas representações estereotipadas ocorreriam por meio de uma série de classificações sobre as mulheres, como a da “mina de fé” ou garota de família, remetendo a determinados padrões de comportamento feminino, que se contrapõem à figura da amante. Em todos esses cenários, os homens construir-se-iam como machos sedutores.
Essas duas possibilidades de abordagem sobre a questão de gênero nas culturas juvenis, que Mizrahi e Pinho proporcionam, não aludem diretamente a uma reflexão sobre questões de juventude. No primeiro caso, embora o funk seja um espaço privilegiado de atuação das culturas juvenis que se expandiu do Rio de Janeiro para todo o Brasil, Mizrahi não traz essa como uma questão central para o artigo. Já no segundo caso, embora a juventude apareça como o recorte empírico, a reflexão de Pinho não aprofunda as implicações dessa especificidade. Em sua pesquisa no loteamento popular, a juventude desponta muito mais como um pretexto para uma reflexão sobre questões de raça e gênero ou até mesmo como um campo de atuação de políticas públicas de saúde sexual e reprodutiva, como o autor mesmo destaca. Não há, portanto, uma indagação mais explícita sobre como, ao mesmo tempo, as experiências particulares de raça e gênero propiciam vivências singulares da juventude e também são modificadas pelas experiências de ser jovem. Entretanto, mesmo que a questão da juventude não tenha centralidade, em ambas as pesquisas há perspectivas muito ricas sobre como pensar, nas culturas juvenis, as possibilidades de performatização das experiências de gênero de maneira relacional e não reducionista. Embora, há que se fazer outra ressalva, nos dois campos de pesquisa não se está em contextos exclusiva e/ou marcadamente masculinos.
Considerações finais
Gostaria de encerrar reafirmando a importância de estabelecer conexões entre as reflexões sobre as culturas juvenis e as questões de gênero. Contudo, já que iniciei com uma pergunta, finalizo ainda com questionamentos, pois, afinal, como abordar as culturas juvenis hegemonicamente masculinas e quais as implicações das representações de gênero de quem pesquisa nesse contexto? Certamente não há uma resposta única, mas essas deveriam ser as primeiras perguntas a serem feitas quando nos confrontamos com pesquisas em cenários desse tipo. As masculinidades hegemônicas, como as juventudes, afirma Connell (1995), são sempre plurais e, não necessariamente, remetem a um modelo de homem essencial ou universal, mas muito mais a um repertório de práticas e discursos que podem e são acionados situacionalmente. Assim, algumas considerações devem ser feitas. Afinal, se por um lado não invisibilizar as mulheres e nem construir visões estereotipadas sobre os papéis de gênero são tarefas fundamentais, por outro, abordar as atividades dominadas por homens ou que expressem aspectos de certas concepções de masculinidades hegemônicas, reconhecendo os processos de dominação, também se mostra imprescindível.
Dessa maneira, além de voltar-me para a necessidade de um maior diálogo entre o campo de estudos da juventude e de gênero e sexualidade, devo também dizer que um dos aprendizados que tive com o questionamento sobre as meninas foi o de compreender a importância da multiplicação de pontos de vista sobre um mesmo campo de pesquisa. Assim, embora não haja uma conclusão às muitas questões aqui expostas, considero que seja fundamental compreender que é preciso que pessoas com biografias e perspectivas diversificadas possam pesquisar e refletir sobre os mais diferentes campos e temas de estudo, dos mais próximos aos mais distantes. A multiplicação de olhares somente tende a enriquecer o entendimento a respeito das singulares experiências de gênero, de juventude e de vida, considerando-se que, no caso específico da etnografia, trata-se sempre de uma relação intersubjetiva (Fabian 2002).
Sendo assim, talvez a questão epistemológica mais urgente seja a abertura para novos olhares, com mais pesquisadoras e pesquisadores, cis ou transgêneros, homo ou heterossexuais, a tratarem das temáticas das juventudes, a partir de pontos de partida variados, mas também olhando para campos de pesquisa diversificados. Além disso, a indagação sobre onde estão e o que fazem as meninas nas culturas juvenis deve levar inevitavelmente a outra: onde estão e o que fazem os meninos? Trata-se, portanto, de tentar compreender como constroem eles as pluralidades do que é ser menino. Aprofundar-se mais sobre as diferentes masculinidades que se produzem relacionalmente, entre si e com as feminilidades e os feminismos, em variados contextos, revela-se tão importante quanto discutir e evidenciar outras questões como a branquitude, conforme defende Bell Hooks (1992), entre outras autoras.
Afinal, se por um lado, como demonstra Connell (2016: 158), as masculinidades juvenis dizem respeito muito mais às masculinidades adultas do que às dos próprios jovens, por outro lado, não se trata apenas dos jovens copiando modelos adultos, mas sim de processos contraditórios que se situam entre a resignação, a negociação e a recusa. Talvez estejam aí, sugere a autora, oportunidades para o despontar de “novas possibilidades históricas”. Por fim, embora certamente não tenha conseguido responder ao questionamento que me fora feito algumas vezes e que serviu de mote para este artigo, penso que ao menos consegui expor um pouco do que aprendi ao refletir sobre ele.