Introdução
Este dossiê resulta de um encontro feliz no âmbito do XII Congresso Português de Sociologia, ocor-rido em março de 2021, quando alguns comunicantes convergiram na apresentação de estudos desenvolvidos em torno de um mesmo fenómeno social, os espaços alternativos em Lisboa duran-te o período de austeridade que sucede à crise financeira de 2007-2008. Alargando-se, posteri-ormente, a investigadores de outras disciplinas científicas com o mesmo objeto de estudo, este dossiê assume um duplo intuito. Por um lado, compilar estudos sobre os espaços alternativos em Lisboa e sobre as dinâmicas urbanas que lhes estão associadas, permitindo, assim, uma mais pro-fícua acumulação e sistematização do conhecimento. Por outro lado, dar visibilidade a estes espa-ços na medida em que configuram um modelo de desenvolvimento urbano próprio, entretanto desafiado pela crise pandémica da Covid-19, iniciada em 2020, que de resto obrigou à reestrutu-ração e até ao encerramento de alguns deles.
Através do método qualitativo e, muito em particular, de uma abordagem etnográfica que combi-na estratégias de recolha de dados (Jerolmack e Khan 2017), como observação participante, en-trevistas, análise documental ou, ainda, investigação-ação ou colaborativa, todos os artigos ado-tam um olhar próximo do objeto, levando a cabo uma análise em profundidade que traz ao de cima o que já se conhece (Mauss 2002 [1926]). Todos os artigos se debruçam sobre o que Mauss (2002 [1926]) chamou formas secundárias de organização social, centrando-se num ou em vários espaços, comparando ou construindo teoricamente a partir do terreno. O objetivo transversal é compreender as dinâmicas internas destes espaços e a sua relação com o contexto, pois é ao con-tribuir para produzir práticas e valores alternativos ao modelo hegemónico que podemos dizer que estes espaços proporcionam um modelo de desenvolvimento próprio. Esta é uma tarefa emi-nentemente qualitativa e, como é próprio da etnografia, terá a ganhar ao ser encarada como uma construção colaborativa de conhecimento entre o investigador e o objeto de estudo (Campbell e Lassiter 2015), um conhecimento construído no diálogo e na imersão do investigador no terreno. Assim, a etnografia indutiva (Jerolmack e Khan 2017) permite-nos conhecer, com riqueza e nuan-ces, as dinâmicas de resistência e de criação de laços em comunidades que de outro modo estari-am invisibilizadas.
Este dossiê, dirigido à comunidade académica mas também a um público mais amplo, surge, as-sim, como oportuno. Têm sido publicados estudos em torno de temas contíguos, designadamente nesta mesma revista um dossiê duplo foi dedicado à etnografia urbana e às práticas artísticas (Ferro e Gonçalves 2018; Costa 2018) e diversos artigos têm vindo a lume sobre arte urbana e desenvolvimento territorial, salientando o papel dos apoios institucionais (Campos, Abalos Júnior e Raposo 2021; Veiga-Gomes 2017), ou a arte como produtora de uma geografia política na cidade neoliberal (Señorans 2021). Ora, se estes estudos incidem sobre casos nacionais e internacionais, o presente dossiê opta por se centrar num mesmo espaço urbano para melhor abarcar a diversi-dade e a complexidade que nele se encerra. Inovamos ao alertarmos para as mútuas influências entre arte, cidade e ativismo, em particular nas organizações sem fins lucrativos, sem apoio insti-tucional, e num mesmo espaço urbano.
Estas organizações são espaços alternativos, isto é, associações, cooperativas, coletivos, grupos, no fundo organizações mais ou menos formais, cujo principal fim não é o lucro e que são, muitas ve-zes, independentes de qualquer apoio dos poderes públicos, contrariando uma tendência nacional (Campos, Abalos Júnior e Raposo 2021; Veiga-Gomes 2017). Elas acolhem a experimentação artís-tica e alojam a ação política “subterrânea” na mobilização pelo direito à cidade. São espaços al-ternativos por três razões principais. Primeiro, promovem sociabilidades desmercantilizadas, não sendo nunca apenas de prestação de serviços, mas “organizações híbridas” (Doherty, Haugh e Lyon 2014). Segundo, apresentam agendas culturais e de participação cívico-política que se con-trapõem à oferta institucional, dominante e decidida de cima para baixo (top-down). Terceiro, tendem muitas vezes à autogestão: internamente são horizontais, democráticos e comuns (Dardot e Laval 2017). Estes espaços alternativos diferem, assim, dos espaços convencionais no tipo de motivações que atraem e mobilizam os seus participantes, por exemplo ao adotarem um foco mais comunitário e preocupado com a criação de laços de solidariedade e opondo-se à cidade neoliberal pautada pelo individualismo. Podemos dizer que neles perpassa uma maior fluidez en-tre “produtores” e “consumidores” dos bens e serviços a serem usufruídos.
Estes espaços questionam, por conseguinte, o padrão de participação cívica fraca no qual Portugal era enquadrado no advento do século XXI, nomeadamente quando comparada a sua participação associativa com a de outros países europeus (Eurostat 2005). As taxas de participação sindical e de mobilização para greves e manifestações são comparativamente baixas neste país, como revelam diversas bases de dados internacionais (European Social Survey, Poldem, V-Dem, etc.). Mas, ao longo de quase 50 anos de regime democrático, a participação cívica e política sofreu variações que complexificam a análise do padrão em que Portugal foi inserido: desde o dinamismo das co-missões de moradores do pós-25 de Abril de 1974 (Pinto 2013) às mobilizações da chamada “ge-ração à rasca” na oposição às medidas de austeridade impostas pela Troika (composta pelo Fundo Monetário Internacional, Banco Central Europeu e Comissão Europeia) para resgate financeiro do país, entre 2011 e 2014. Neste sentido, alguns estudos mostram as ações de protesto no país de “brandos costumes” e o surgimento de novos sujeitos políticos (Accornero e Pinto 2015; Lima e Martin Artiles 2018). No entanto, poucos estudos adotam uma análise micro destas ações, per-dendo de vista a forma como elas se diluem na informalidade e em dinâmicas de liminaridade associadas à estetização do quotidiano (Costa 2018). Este dossiê pretende justamente contribuir para colmatar essa lacuna.
Ao nos focarmos na cidade de Lisboa, detemo-nos no epicentro destas ações. A capital tem passa-do por diversas transformações que se refletem na forma como o espaço urbano está a ser apro-priado e mercantilizado. Os espaços alternativos são um bom exemplo para percebermos estas mudanças. Começando por se instalar em áreas urbanas maioritariamente degradadas e com rendas mais baratas, eles atraíram estudantes, turistas e novos utilizadores, contribuindo para a mudança da imagem destes lugares (Estevens 2017; Veiga-Gomes 2017). Esta nova imagem influ-enciou o mercado imobiliário e estimulou a abertura de novos estabelecimentos comerciais, que se adaptaram rapidamente a um novo público e a novas preferências de consumo. Torna-se, as-sim, evidente o contributo, mesmo que não intencionado, destes espaços alternativos para a rege-neração dos lugares e para processos de gentrificação. Se num primeiro momento se assiste a uma fase de gentrificação marginal, em que há uma mistura social, emancipação, criatividade e solidariedade comunitária (Caulfield 1989), rapidamente se passa para outra fase, na qual os pro-jetos públicos de regeneração urbana e/ou as iniciativas privadas de reabilitação, quer imobiliá-ria, quer comercial e de serviços, se apropriam do que foi produzido na fase anterior e incentivam práticas alternativas. O valor dos imóveis aumenta e estes passam a ser vendidos a uma classe social com maior poder económico, com outro estilo de vida e com habitus e práticas culturais distintos dos anteriores residentes, fenómeno a que alguns autores chamaram de supergentrifica-ção (Atkinson et al. 2017; Mendes e Jara 2018). Os espaços alternativos são, então, rapidamente capturados e comercializados, tornando o processo perverso, pois acabam por ser expulsos peran-te o aumento das rendas e da pressão exercida pelos proprietários imobiliários (Ley 1996; Zukin 1982) após terem contribuído para regenerar o território. Estes espaços contribuem, portanto, para processos de gentrificação, mas desempenham ao mesmo tempo um papel importante na construção de dinâmicas de resistência coletiva. A luta pelo “direito à cidade” (Lefebvre 1967), um confronto que os mobiliza mas também os fragiliza e desgasta, inscreve-os na ideia de uma “outra” cidade (Marcuse 2009), feita para fruição de todos.
Este dossiê compreende, assim, quatro artigos com material empírico recolhido entre 2018 e 2020. O primeiro intitula-se “Arte e cultura, hegemonia e resistência: uma leitura comparada de diferentes territórios de Lisboa”. Nele, Ana Estevens e André Carmo, na sequência de vários estu-dos feitos ao longo dos últimos anos no campo da geografia e do urbanismo, destacam a impor-tância da arte e da cultura como elementos de transformação da cidade contemporânea e as ten-sões entre visões hegemónicas e de resistência a partir de três territórios: o largo do Intendente, a Colina de Santana e Marvila-Beato. O segundo artigo, “Associações e democracia cultural: propos-ta de dois ideais-tipo”, é de Raquel Rego. A autora parte do conhecimento dos espaços culturais do bairro dos Anjos para uma proposta teórica em dois tipos que depuram as suas missões, a sa-ber: o cultural entretenimento e o cultural ativista. O terceiro artigo, de Mateus Sadock, centra-se no Covil, nome fictício de um espaço alternativo de Lisboa. “Construindo resistência: etnografia de um centro social autogerido em Lisboa” incide sobre um espaço de tipo “cultural ativista”, para se usar a tipologia de Rego no artigo precedente. O Covil é um espaço anarquista e promotor da re-sistência à gentrificação, inclusive por via da estética punk. O último artigo, de João Braga Lopes e Joana Marques, intitulado “Comuns urbanos em Lisboa: formas de trabalho não mercantilizado em espaços alternativos”, analisa vários espaços comunitários na cidade de Lisboa com o objetivo de compreender as motivações dos seus participantes e as condições em que realizam o seu tra-balho, procurando também contribuir para o debate sobre este último conceito.
Ao reunir estes quatro artigos sobre espaços alternativos em Lisboa durante o período de austeri-dade que sucedeu à crise financeira, este dossiê pretende registar para memória futura a diversi-dade social e a análise das alternativas que emergem mesmo em tempos adversos.