Introdução
A arte e a cultura têm assumido um papel essencial na transformação da cidade contemporânea. Neste artigo,1 tendo por base as suas ambivalências, limites e paradoxos, as complexas tensões existentes entre visões hegemónicas e de resistência, pretendemos analisar o modo como são mobilizadas e as funções que desempenham no âmbito de processos de transformação do espaço urbano. Por um lado, confrontamo-nos com um poder local que tem colocado em marcha políticas públicas ancoradas na arte e na cultura para estimular o mercado imobiliário, atividades económicas associadas ao turismo e regenerar os territórios, ao mesmo tempo que atrai a classe criativa e o turismo. Por outro, temos espaços artísticos e culturais alternativos que através das suas práticas fazem a crítica à ideia da cidade criativa e às políticas urbanas neoliberais, procurando construir relações socioespaciais diferentes das práticas mais comuns e produzir formas de diálogo que desafiem e contestem a hegemonia do urbanismo neoliberal, o discurso da cidade criativa e a apologia da cidade-mercadoria.
São aqui analisados três territórios da cidade de Lisboa onde a relação com a arte e a cultura se tem intensificado nos últimos anos. Por um lado, o largo do Intendente, integrado no bairro da Mouraria, anteriormente considerado degradado e marginal, que se tem tornado, progressivamente, um dos territórios mais cosmopolitas da cidade. Consideramos este território um caso de referência pelo impacto que as políticas públicas assentes na arte e na cultura tiveram na sua transformação. Este caso serve, assim, para fazer um enquadramento mais amplo aos dois outros casos apresentados, ampliando a reflexão apresentada. Na sua extensão, encontramos a Colina de Santana, um espaço projetado para o futuro, onde se desmantela e aliena património público para a construção de hotéis e apartamentos de luxo e onde eventos artísticos e culturais têm tido um papel essencial na abertura de portas de edifícios devolutos. Por outro lado, olhamos para Marvila-Beato, enquanto antigo território industrial e operário, que nos últimos anos tem sido palco de projetos imobiliários luxo e onde a presença de estruturas e espaços artísticos tem servido para atrair visitantes e alterar a dinâmica do espaço.
Desenvolvemos trabalho de campo entre 2018 e 2019. Durante esse período, levámos a cabo um levantamento dos espaços artísticos e culturais (coletividades, associações, galerias, espaços de concertos, teatros e outros espaços culturais de base coletiva). O trabalho de campo envolveu também a realização de dez entrevistas informais com artistas e outros atores envolvidos nos processos de transformação urbana examinados, momentos de observação participante no âmbito de iniciativas ocorridas, entre 2018 e 2019, nos territórios acima identificados, e análise documental.
Importa salientar que, pouco depois de termos concluído este trabalho, algumas das dinâmicas urbanas retratadas viriam a ser significativamente afetadas a partir de 2020 pelas perturbações causadas pela pandemia de Covid-19. Ao mesmo tempo que muitas das atividades desenvolvidas por movimentos sociais urbanos, organizações e coletivos culturais, artísticos e políticos ficaram suspensas, assistiu-se também a uma reinvenção do repertório de práticas que habitualmente mobilizam (Mendes 2020). No entanto, a compreensão e análise desse tipo de transformações fica para além do âmbito do presente artigo.
O texto encontra-se dividido em três partes distintas. Na primeira, leva-se a cabo uma breve revisão da literatura, colocando a tónica no modo como arte e cultura têm sido mobilizadas no âmbito de processos de transformação urbana. Na segunda parte, são abordados três estudos de caso: largo do Intendente - que consideramos o caso de referência -, Colina de Santana e Marvila-Beato, tendo como pano de fundo um conjunto de transformações verificadas na cidade de Lisboa ao longo das últimas duas décadas. Por fim, na terceira parte, discutimos o que resulta das transformações estudadas em cada um dos territórios, tendo em conta o quadro teórico-conceptual e analítico esboçado anteriormente.
A arte e a cultura e as suas tensões existentes na transformação dos territórios
Desde há muito sabemos que a arte e a cultura são ingredientes fundamentais para a transformação urbana (Grodach, Foster e Murdoch 2018). Num artigo pioneiro, tão instigante quanto controverso, David Ley (2003) debruçou-se sobre o papel desempenhado pela arte, pela cultura e pelos artistas nos processos de gentrificação, chamando a atenção para a importância das trajetórias históricas de desenvolvimento urbano e para as estruturas de contingência socioespacial no seio das quais os agentes transformadores do espaço urbano operam. Por outras palavras, para a importância de atribuir centralidade analítica aos contextos histórico-geográficos específicos que a cada momento ganham forma.
Por essa altura, os efeitos da cada vez mais influente e generalizada adoção de políticas urbanas neoliberais por parte dos poderes locais começavam a ser objeto de atenção. A natureza hegemónica e incontestada do pensamento e das propostas urbanas de Richard Florida (2002, 2005), assumindo-se enquanto expressão paradigmática do urbanismo neoliberal, bem como a influência que exerceram sobre os poderes públicos à escala local, são inegáveis. A sua transposição linear, mecânica e descontextualizada, senão mesmo a-contextual, assentou também, seguramente, na leitura atenta de uma obra - The Creative City: A Toolkit for Urban Innovators (Landry 2000) - que viria a assumir, para muitos decisores políticos, contornos de alguma ortodoxia e dogmatismo. À medida que os efeitos da sua implementação generalizada se foram fazendo sentir, tais como o desinvestimento em serviços públicos essenciais, o enfraquecimento das possibilidades de participação democrática dos cidadãos na definição do futuro das cidades em favor dos interesses privados, a ausência de uma preocupação com as manifestações de pobreza, desigualdade e exclusão social urbana, a mercantilização de um leque cada vez maior de espaços urbanos que, por isso, se tornam inacessíveis a muitos dos seus habitantes e, evidentemente, a relação existente entre estas políticas urbanas e o desencadear de dinâmicas de gentrificação que excluem as classes populares, as análises críticas não se fizeram esperar (Peck 2005; Peck e Tickell 2002). Ao mesmo tempo, privilegiava-se também a pesquisa em torno de movimentos, organizações ou coletivos de base local e/ou comunitária que procuravam construir alternativas, formas diferentes de existir e intervir no tecido urbano, assentes numa lógica de partilha e cooperação e/ou na defesa intransigente do direito à habitação e à cidade, distantes do reducionismo urbano-empreendedor associado às influentes teses de Florida.
Este contraste, que traduz dois ângulos distintos de observação e análise de uma realidade urbana em reconstrução, foi descrito por Grodach (2011). Por um lado, sugere este autor, existe um grande interesse em compreender os processos através dos quais os governos (sobretudo à escala local, acrescentamos nós) têm colocado a tónica nos hipotéticos ganhos para o desenvolvimento socioeconómico dos territórios decorrentes da aposta nas artes e nos artistas (Shaw 2015). O modo como, numa espécie de mimetização padronizada, um pouco por todo o lado, se multiplicam os centros culturais e artísticos, os quarteirões ou as ruas culturais, a uniformização estética dos espaços públicos, e um leque variado de serviços associados aos estilos de vida e aos hábitos de consumo da chamada classe criativa, boémios, hipsters e outros profissionais altamente qualificados, cosmopolitas e hipermóveis, tem sido objeto de atenção (Andron 2018; Le Grand 2020). Por outro lado, como já sugerimos anteriormente, existe um campo não menos relevante de investigação que incide sobre atividades, iniciativas e experiências culturais e artísticas alternativas de base comunitária ou operando numa lógica reticular, contestando e procurando resistir à hegemonia do urbanismo neoliberal, muitas vezes manifestando desconfiança e elegendo os poderes locais como alvos preferenciais, na medida em que estes atuam enquanto facilitadores/promotores de dinâmicas percebidas como sendo socialmente regressivas (Türeli e Al 2018; Ulmer 2017).
Apesar do evidente predomínio de uma certa racionalidade dicotómica, tanto em termos analíticos como normativos, na esteira de Gainza (2017), gostaríamos de explorar as possibilidades inerentes a uma abordagem dinâmica e contingente, focada nas ambivalências, limites e paradoxos de um processo urbano complexo que está ainda em desenvolvimento e que, como acima evidenciámos, não é indiferente aos contextos histórico-geográficos em que se manifesta. Como veremos mais adiante, as circunstâncias específicas que encontramos em Lisboa, particularmente nos três territórios analisados, sugerem que se trata de processos em curso que, por isso, exigem uma abordagem mais flexível.
Aumentar a competitividade urbana é, porventura, o objetivo mais habitualmente associado aos discursos e às práticas do urbanismo neoliberal (Mould 2015; Pratt 2011). David Harvey (2012), por exemplo, sugere que desde a década de 80 do século XX se tem assistido a uma reorientação nas políticas urbanas: passamos do primado da redistribuição ao da concentração, ou seja, ao enraizamento profundo de uma certa racionalidade trickle down, segundo a qual a criação de condições favoráveis ao investimento e à acumulação por parte dos atores mais dinâmicos da economia urbana, que deve ser estimulada, promovida e facilitada pelos poderes públicos, se traduziria em ganhos para todos, incluindo para as camadas sociais mais desfavorecidas. A criatividade artística e cultural tem-se tornado um elemento essencial de muitas políticas de cidade e um instrumento competitivo de crescimento económico, sendo muitas vezes considerado como se se tivesse descoberto a panaceia para todos os males provocados pelos problemas económicos causados pela desindustrialização, ou mais recentemente pela crise económica e financeira de 2008 (Carmo 2012; Estevens 2017). Assim, a planificação da cidade é feita olhando para os recursos culturais e artísticos como uma vantagem competitiva para a cidade, considerando que o território precisa de oferecer vantagens para o desenvolvimento de atividades produtivas (Cocola-Gant 2009).
Neste sentido, um leque diversificado de estratégias tem sido levado a cabo para afirmar o carácter distintivo de cada cidade, bairro ou lugar. Organização de festivais e megaeventos (Hall 2006; Lauermann 2019; Paulsson e Alm 2020), implementação de estratégias de marketing territorial ou city branding, entre outras, fazem parte do reportório de práticas habituais. Debruçando-se sobre esta problemática, Bonakdar e Audirac (2020) colocaram em evidência algumas das características mais importantes para a compreensão desta forma particular de “fazer cidade”. Por um lado, ao associarem este tipo de estratégias aos esforços levados a cabo para recriar a imagem da cidade e dotar os territórios de novos imaginários, representações e identidades mais atrativas para o investimento económico, os autores problematizam noções adquiridas de autenticidade, história e tradição que, muitas vezes, constituem os elementos mais decisivos para o desenvolvimento de processos de mercantilização urbana. Com efeito, a imbricação da arte e da cultura em processos de planeamento urbano cada vez mais flexíveis e dinâmicos, mais sensíveis às necessidades e exigências dos mercados do que às dos seus habitantes (Listerborn 2017), constitui um dos traços mais definidores da urbanização neoliberal. Particularmente relevante, a este respeito, é o modo como as estratégias de city branding promovem a desigualdade social e a exclusão. Por exemplo, a redinamização da economia urbana é invariavelmente acompanhada de uma escalada dos preços que torna o direito à habitação inacessível aos grupos sociais mais frágeis e vulneráveis, levando por vezes a situações de despejo (Lees 2003). Ao mesmo tempo, acentua-se a pressão securitária e higienista que visa remover da paisagem urbana mercantilizada fenómenos que obstaculizam a construção de uma imagem imaculada e glamorosa da cidade (como por exemplo, a pobreza, a prostituição ou a toxicodependência). Nas mais das vezes, aliás, o urbanismo neoliberal ignora ou negligencia as necessidades, sonhos e desejos da maior parte dos residentes locais, dado que ambiciona atrair elites com perfil económico mais elevado, maior sofisticação e estatuto social, eventualmente pertencentes à chamada “classe criativa” (Florida 2002, 2005), para além de investidores, empreendedores e turistas. Desta forma, uma parte não negligenciável dos habitantes da cidade são silenciados e/ou invisibilizados, frequentemente através do recurso a sofisticados mecanismos discursivos e/ou tangíveis de coerção (Davies 2014).
Os centros urbanos decadentes e deprimidos, muitos deles vazios urbanos resultantes de processos de desindustrialização, revelam-se um terreno particularmente propício ao desenvolvimento deste tipo de processos de transformação urbana, como a gentrificação, em que a economia, as artes e a cultura se articulam gerando novas paisagens urbanas que são, simultaneamente, de repulsão das classes populares e outros grupos sociais indesejados, e de atração da burguesia e de outras elites (Casellas, Dot-Jutgla e Pallares-Barbera 2012; Zukin 2010). O estudo desenvolvido por Chang (2016) em torno do papel das artes nos processos de gentrificação destaca dois aspetos particularmente relevantes para a nossa análise. Por um lado, o carácter fundamental daquilo a que chama estética da gentrificação, ou seja, a existência de uma multiplicidade de elementos (artísticos, arquitetónicos, gastronómicos, decorativos, etc.) que exibem, de forma mais ou menos subtil, o estatuto e as aspirações dos gentrifiers. Como vimos acima, o processo de gentrificação não pode prescindir da sua própria mitologia, das representações e das simbologias que lhe conferem sentido e legitimidade. Por outro lado, a necessidade de reconhecer a importância, muitas vezes negligenciada, do papel do Estado no desencadear de processos de gentrificação que estão longe de ser orgânicos e de se desenvolverem sem intervenção pública (Enright e McIntyre 2019; Mathews 2014). As políticas urbanas neoliberais subjacentes são, como vimos anteriormente, promovidas por poderes e autoridades locais ideologicamente motivadas.
Por exemplo, como sugerem Jover e Diáz-Parra (2020), a aposta feita por muitas cidades europeias no turismo cultural como instrumento de revitalização urbana não pode ser vista como independente dos processos de gentrificação que se têm desenvolvido. Efetivamente, a turistificação, resultante de uma economia política urbana monolítica e afunilada, tem vindo a ser vista como intimamente relacionada com novas dinâmicas de gentrificação. Com efeito, a arte e a cultura, inscritas no território através do seu património e de uma história que é tanto real quanto imaginária, desempenham um papel central no desenvolvimento e aprofundamento deste processo. Campos e Sequeira (2020), por exemplo, tendo por base a evolução da cidade de Lisboa, sublinham a crescente importância da arte urbana enquanto alavanca para a atividade turística de massas. De facto, afirmam estes autores, aquilo que era inicialmente uma expressão artística que, pelas suas características definidoras (centralidade da rua enquanto espacialidade de referência, importância da materialidade urbana para a composição artística, informalidade e imprevisibilidade e existência efémera), parecia ser avessa a quaisquer mecanismos de integração em circuitos formais e/ou institucionalização, fruto do seu papel valorizador do espaço urbano-mercadoria, tem-se vindo a tornar um elemento cada vez mais central no desenho de estratégias de desenvolvimento urbano de muitas cidades. A irreverência e sentido de transgressão inicialmente associados à arte urbana, muitas vezes no limiar da (i)legalidade, eventualmente até a sua natureza política, têm vindo a ser neutralizados à medida que se aprofunda um processo de embelezamento e mercantilização que agrada aos poderes públicos (Campos, Abalos Júnior e Raposo 2021).
Ao mesmo tempo, a reconfiguração do aparelho comercial dos centros históricos, tendo em conta os perfis dos turistas e consumidores com elevado poder de compra, traduz também um distanciamento, ainda que intermitente e/ou sazonal, dos poderes públicos relativamente aos cidadãos que representam. As profundas transformações socioespaciais verificadas traduzem-se, paradoxalmente, numa perda de autenticidade que, em última instância, constitui a pedra de toque do processo de turistificação e sem a qual este deixa de fazer sentido. Trata-se, pois, de um processo urbano potencialmente autodestrutivo, inclusive ao nível da saúde mental e psíquica das populações e comunidades envolvidas (Keitz e Proudfoot 2021), que tem sido promovido de forma irrefletida por muitos responsáveis políticos de âmbito local.
Mas as dinâmicas de imbricação territorial da arte e da cultura podem ter um sentido diferente, gerando experiências e vivências socioespaciais alternativas. Como sugere Grodach (2011), alguns espaços artísticos podem oferecer a determinados grupos sociais marginalizados a oportunidade de aceder e participar em atividades artísticas de que são, habitualmente, excluídos. Por outro lado, podem também funcionar como centros comunitários que transformam as sociabilidades e o próprio espaço urbano. Por vezes, até, constituem centros de oportunidades, na medida em que os seus dinamizadores se inserem numa rede de interações que propicia o trabalho coletivo e facilita o acesso a recursos de vária ordem.
A arte e a cultura podem também desempenhar um papel relevante no desenvolvimento de dinâmicas de participação à escala local. Laister e Lipphardt (2015) colocam em evidência o modo como os artistas podem estabelecer ligações entre as pessoas, seja através da organização de exposições, projetos e outros momentos de encontro e partilha, seja através da sua intervenção na esfera pública enquanto sujeitos portadores de reconhecimento no seio das comunidades a que pertencem. Neste sentido, a influência da arte e da cultura nos processos de construção de lugares (place-making) vai para além da esfera artística num sentido estrito, articulando-se com pronunciamentos sociais e políticos mais vastos, reivindicações, denúncias, críticas e propostas urbanas alternativas. Frequentemente, como sugere Peters (2015), a produção cultural e artística desafia as normas estabelecidas e as estruturas culturais do senso comum neoliberal, interpela os membros da comunidade, gerando interrogações e despertando consciências. Zilberstein (2019), por sua vez, salienta o papel da arte na transformação do espaço urbano, na configuração de uma nova economia política urbana e na construção de práticas de resistência à lógica do urbanismo neoliberal.
Por outro lado, o papel da arte na construção de novos imaginários urbanos e na sua articulação com as diferentes texturas e materialidades socioespaciais da cidade foi abordado por Olsen (2019). A arte socialmente comprometida, sugere esta autora, oferece-nos a possibilidade de (re)configurar o espaço urbano, de (re)pensar aquilo que nos é apresentado como estável, perene e imutável, e de (re)enquadrar uma esfera particular da nossa existência coletiva - a experiência de vida quotidiana numa cidade. Sugere-se, assim, que a construção de espaços urbanos emancipatórios exige uma negociação constante entre os espaços realmente existentes e as possibilidades imaginárias alternativas, num contexto em que a arte parece estar particularmente bem equipada para revelar, denunciar e gerir esta tensão permanente. As contradições inscritas no tecido urbano oferecem um terreno fecundo para que a arte socialmente comprometida possa concretizar o seu potencial disruptivo das narrativas urbanas dominantes, os seus hábitos e rotinas instaladas. A arte socialmente comprometida constitui, também, um instrumento poderoso para expandir o horizonte de possibilidades urbanas, isto é, para repensar o modo como o urbanismo neoliberal se instituiu enquanto senso comum do pensamento urbano contemporâneo, e, por isso, como algo natural e invisível, sobretudo quando nos aproximamos do terreno da política formal, da governação e da gestão urbana à escala local.
Contudo, Bain e Landau (2019) chamam a nossa atenção para alguns dos limites subjacentes às dinâmicas de produção urbana associadas às artes. Com efeito, os artistas são frequentemente vistos como parceiros ativos e dotados dos recursos e competências necessárias (ex.: capacidade de comunicação, de gestão da incerteza, pensamento lateral e complexo) para desencadear e/ou participar em processos de place-making. Ainda assim, não raras vezes, os artistas não são envolvidos nos processos de conceção das estratégias de transformação urbana desde as suas etapas iniciais, condicionando assim a sua capacidade de intervenção. Efetivamente, ainda que os artistas possuam poder e autoridade no plano simbólico, ingredientes fundamentais para a transformação urbana, o seu papel é por vezes secundarizado, senão mesmo constrangido, por estruturas político-administrativas, burocráticas e formais, associadas ao exercício da governação política da cidade. Muitas vezes, o envolvimento dos artistas não passa de uma operação de cosmética urbana, legitimadora de factos consumados e decisões previamente estabelecidas pelos poderes fácticos da gestão urbanística.
Lisboa e a sua transformação: duas décadas de políticas urbanas neoliberais
Embora a primeira experiência contemporânea de articulação entre a cultura e as lógicas de city-branding e marketing territorial com vista à promoção da competitividade urbana remonte ao início da década de 1990, nomeadamente com a indicação de Lisboa como Capital Europeia da Cultura em 1994 (Ferreira 2002, 2010), foi em 1998, com a Exposição Mundial, que se iniciou um processo de reabilitação urbana mais profundo e abrangente que começou a modificar a imagem de um território anteriormente ocupado com infraestruturas portuárias, industriais e de armazenamento, onde residia uma população com baixos recursos (Pereira 2013). A cidade e o país apostaram na internacionalização com o objetivo de veicular uma imagem de centro turístico e cultural, procurando inserir-se num quadro estratégico mais alargado de reforço da atratividade e da competitividade. Desejava-se uma nova imagem da cidade baseada na articulação entre reabilitação urbana e turismo. Tratava-se, por um lado, de uma oportunidade de “pôr a cidade no mapa”, atraindo turistas e empresas (Barata-Salgueiro 2002) e, por outro, de uma forma de afirmação nacional (Pereira 2013). (figura 1)
Para alguns autores (Swyngedouw, Moulaert e Rodriguez 2002), a Expo 98 é um primeiro marco de viragem da cidade para uma política neoliberal. Transformou-se um território industrial numa área de serviços, lazer e habitação tendo em vista elevados padrões de qualidade de vida. Os recursos públicos foram utilizados para infraestruturar o território e requalificá-lo ambientalmente, abrindo a porta aos investimentos privados que se seguiram. É dentro desta lógica que a reabilitação urbana começa a ganhar maior importância na cidade. Foi o primeiro passo para o que se seguiu no resto da cidade em momentos diferenciados, mas com o mesmo modelo, assentando nas características que definem um padrão clássico de gentrificação (Slater 2011; Davidson e Lees 2005). Esta forma de produzir cidade transforma diretamente as relações de poder “to align local dynamics with the imagined, assumed, or real requirements of a deregulated international economic system, whose political elites were vigorously pursuing a neoliberal dogma” (Swyngedouw, Moulaert e Rodriguez 2002: 545). Levou-se a cabo uma estratégia de sedução com o objetivo de tornar a cidade internacionalmente mais competitiva, procurando encenar-se uma identidade singular de Lisboa, esvaziando-se o seu contexto social e económico e construindo-se uma nova retórica (Pereira 2018).
Ao longo dos anos, os projetos para mudar a imagem da cidade foram-se sucedendo, a par de políticas públicas que fomentavam dinâmicas de mercadorização do território e de competitividade entre cidades. Os casos que aqui apresentamos encaixam neste processo. De um lado, encontramos coletivos artísticos e culturais que se foram instalando em áreas com rendas mais baixas e espaços mais amplos, criticando a forma de produzir cidade. A par das rendas baixas, também o ambiente dos bairros tradicionais atraiu artistas, uma população mais jovem e com elevado capital cultural. Do outro lado, estão os processos de regeneração top-down que utilizam as iniciativas artísticas e culturais como protagonistas. De “cara lavada” e com uma classe criativa muito presente (Florida 2002), rapidamente os territórios se transformam, passando de insalubres a cosmopolitas e alternativos. Estas iniciativas e as suas práticas são utilizadas enquanto elementos essenciais para as políticas urbanas, fomentando o crescimento económico, a competitividade e a mercadorização das cidades. Deste modo, as formas de pensamento alternativo e as práticas de resistência que estão presentes em muitos dos espaços artísticos e culturais são, paradoxalmente, um dos elementos que mais ativamente contribui para a valorização imobiliária e para os processos de regeneração liderados pelo mercado.
O Intendente cosmopolita
O largo do Intendente Pina Manique (largo do Intendente) localiza-se no bairro da Mouraria, na freguesia de Arroios, em pleno centro histórico lisboeta. Este bairro e o largo, em particular, foram muito marcados por estigmas, preconceitos e segregação social (Menezes 2012). Para além da imagem associada à prostituição, ao tráfico e ao consumo de droga, acresce o facto de ser um território com uma concentração de população com grandes carências socioeconómicas e uma dinâmica migratória já antiga (os censos de 2011 2 apontavam para que cerca de 16% da população tivesse nacionalidade estrangeira) (Mapril 2010; Malheiros 2008).
Em 2009 foi aprovado o Programa de Ação do Quadro de Referência Estratégica Nacional (PA-QREN), que visava, essencialmente, a reabilitação ao nível do espaço público. À reabilitação do espaço público associou-se uma estratégia de valorização sociocultural, das artes, da identidade e da memória, em que o fado e as marchas populares se destacaram, com o objetivo de auxiliar o processo de regeneração urbana e construir uma imagem que pudesse atrair um maior número de visitantes/turistas. Valorizaram-se também os imaginários exóticos e folclóricos associados aos imigrantes, mercadorizando-se esta diversidade e tornando-a em mais um elemento de atração nas políticas culturais. Os festivais culturais, como o Festival Todos, por exemplo, que teve as suas primeiras quatro edições (2009-2012) no bairro da Mouraria (Oliveira 2020; Oliveira e Padilla 2012), foram mais um meio para abrir aquele território, visto como degradado e estigmatizado, a atividades de lazer e de consumo para pessoas de fora do bairro. Pela Câmara Municipal de Lisboa e pela academia de produtores culturais, o festival foi alterando o seu território de intervenção como se descreve mais adiante.
As obras que estavam associadas ao PA-QREN tiveram início nos anos seguintes, coincidindo com uma séria de alterações legislativas propostas pela Troika (Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional) e aceites pelo governo de então. Aquela que teve um impacto mais direto na transformação do bairro foi a liberalização do mercado privado de arrendamento,3 que possibilitou a rescisão e o aumento do valor das rendas dos contractos anteriores a 1990, promovendo o despejo de muitas famílias do bairro. Ao mesmo tempo que os despejos se iam sucedendo, dava-se a reabilitação do edificado, impulsionada por grupos privados de investimento imobiliário.
O PA-QREN baseava-se em quatro elementos principais: (1) a transformação do espaço público e do ambiente urbano; (2) a reabilitação de um quarteirão de habitação degradado para dar lugar a um hub criativo, o Centro de Inovação da Mouraria; (3) a valorização das artes e ofícios; e (4) a revalorização do ambiente sociocultural, com especial ênfase na atração de turismo. O papel da cultura e dos novos espaços públicos era evidenciado em todo o plano. Assim, aquele território foi sofrendo transformações físicas e simbólicas que contribuíram para a mudança da imagem do bairro: o largo do Intendente (e toda a área em seu redor) foi-se tornando, progressivamente, numa área alternativa e trendy de Lisboa. Às políticas públicas seguiu-se o investimento privado com a criação de bares e restaurantes, hotéis, alojamento local e a reabilitação do património imobiliário.
Em paralelo a todo este processo, diversos projetos artísticos e culturais emergiram no território, abrindo também bares e espaços de consumo para poderem pagar a renda dos espaços, atraindo novos utilizadores, outros espaços comerciais e contribuindo para a mudança que se estava a verificar nas imediações do largo. O objetivo inicial de muitos destes projetos assentava numa lógica de pensamento crítico, de inclusão e de solidariedade. Acabou por se formar um cluster cultural e artístico underground (ver figura 2) que oferecia uma intensa agenda cultural para um público “alternativo” (Estevens et al. 2019), constituído, sobretudo, por jovens estudantes, muitos deles estrangeiros (Malet Calvo 2018). O largo do Intendente passou a fazer parte dos espaços mais cool da cidade e, algum tempo depois, o desaparecimento de alguns dos seus espaços mais emblemáticos começou a verificar-se. A Habita! - associação pelo direito à habitação e à cidade, é um dos exemplos de prática de resistência neste território, abrindo a sua porta para questões urgentes da vida quotidiana de muitos habitantes da cidade. Desde a sua formação que utiliza um dos espaços deste território, primeiro denominado Mob e, mais recentemente, Sirigaita, para fazer os seus atendimentos, assembleias e reuniões. Tal como a Habita!, também a Stop Despejos (plataforma contra os despejos e pelo direito à habitação), o Climáximo (grupo de ativistas movidos pela urgência do combate à crise climática e aos seus graves efeitos) ou a Livraria das Insurgentes (livraria/biblioteca feminista) partilham um espaço cultural que já foi palco de importantes encontros.
Em julho de 2018, em entrevista, uma das responsáveis pela Anjos 70 4 não considerava estar em risco de despejo, apesar de conhecer os problemas existentes com as rendas no bairro. Contudo, esta associação, que abriu em abril de 2017 num dos espaços emblemáticos da cidade, teve de procurar um novo espaço, pois o edifício onde se localizavam foi vendido a um fundo de investimento francês. Em março de 2021, podia ler-se nas redes sociais desta associação: “infelizmente, e durante esta altura tão difícil para a Cultura, a nossa senhoria decidiu vender o nosso prédio e deixar-nos numa situação delicada e difícil de aceitar”. Em julho de 2020 esta associação mudou de nome, passando a chamar-se Núcleo A70, e a sua localização passou, forçosamente, para a rua do Açúcar no Beato (território de um dos estudos de caso que abordaremos neste artigo). Mas este não foi o primeiro espaço a ser despejado, primeiro foram duas das coletividades mais antigas daquele território: a Casa dos Amigos do Minho (teve de sair do espaço em 2017 para este ser transformado em edifício de habitação de luxo) e o Sport Clube Intendente (vendido a um fundo imobiliário em 2016).
Em maio de 2021, a Largo Residências escreve na sua newsletter mensal: “nós também mudaremos. E ainda na semana em que escrevemos este texto mais um passado deixou o Intendente. Esvaziou-se uma das centenárias lojas, a Viúva Lamego. E daqui por um ano, precisamente, seremos nós”. Em 2013, em entrevista, uma das responsáveis pela Largo Residências referiu-nos: “sentimos que também poderíamos ser uma ferramenta que ajudasse ao processo de transição integrada. Ou seja, que tentasse remar contra o movimento natural dos processos de mudança sociourbanística que é o que toda a gente fala de gentrificação”. Na atualidade, a dinâmica provocada por todo o processo de transformação do largo veio alterar este pressuposto inicial. Neste espaço do Intendente, também colidiram uma série de ações, debates e conversas com moradores e outros intervenientes no bairro com o objetivo de produzir uma cidade mais justa e de a transformar num lugar mais próspero e vital. A Largo Residências tem estado, provisoriamente, a utilizar as instalações de um antigo quartel da Guarda Nacional Republicana localizado no largo do Campo da Bola na Colina de Santana (um dos estudos de caso abordados).
Evidenciando o carácter trágico destes processos, associações que demonstraram preocupação com o seu papel no processo de transformação do território e com a sua capacidade para se manterem no local foram vítimas de uma paisagem urbana que ajudaram a produzir. A mudança foi tal que, na freguesia de Arroios, segundo dados da Confidencial Imobiliária (2020), o preço de venda/m2 aumentou 170,5% entre 2014 e 2020. É visível que os principais beneficiários das políticas de regeneração urbana têm sido os investidores imobiliários.
Colina de Santana, um futuro imobiliário de especulação
A Colina de Santana localiza-se entre duas das principais avenidas da cidade, a Av. da Liberdade e a Av. Almirante Reis. Consideramos que este caso é uma extensão do anterior. Assim, tal como acontece no largo do Intendente e no bairro da Mouraria, também aqui se vão multiplicando espaços artísticos e culturais (figura 2).
Este é um território rico do ponto de vista patrimonial onde se localizavam sete dos principais hospitais da cidade (hospital de São José, hospital de Santa Marta, hospital Dona Estefânia e hospital dos Capuchos, todos em funcionamento, e hospital Miguel Bombarda, hospital do Desterro e hospital de São Lázaro, todos desativados), instalados em antigos conventos e com edificações de valor patrimonial reconhecido. Por exemplo, o panóptico do hospital Miguel Bombarda, concebido para enfermaria-prisão e que esteve em funcionamento entre 1896 e 2000, foi classificado como imóvel de interesse público em 2001. Para este território de 16 hectares está projetado um programa de ação territorial (2014) que tem como um dos principais objetivos “promover a valorização do turismo cultural”. Contudo, antes é preciso encerrar todos os hospitais, processo que está em curso. Em 2007, o hospital do Desterro foi vendido à Estamo - Participações Imobiliárias, SA, e desmantelado. Nos anos que se seguiram, este “desmantelamento e alienação viriam a incluir a totalidade dos hospitais da colina de Santana” (Mendes e Jara 2018: 782).
As políticas públicas foram abrindo um quadro legal que permitiu a privatização de bens e de serviços públicos, através da sua venda a fundos de investimento imobiliários criados pelo próprio Estado. Neste caso, o Estado vendeu todo o património do hospital da Colina de Santana à Estamo que, segundo se pode ler no seu site, tem como missão: “criar valor para o acionista último, o Estado, através da gestão de ativos imobiliários não estratégicos adquiridos a este ou a outras entidades públicas, arrendando-os ou alienando-os em condições concorrenciais de mercado, em regra na sequência de processos de reconversão e/ou maximização do respetivo valor”.
Ora, considerar o património hospitalar da Colina de Santana um “ativo imobiliário não estratégico” é algo que levanta desde logo dúvidas. Para além disso, pretende-se transformar todos os hospitais em estabelecimentos hoteleiros ou em apartamentos de luxo: hospital Miguel Bombarda - um hotel, seis edifícios de habitação com 192 fogos e 964 lugares de estacionamento; hospital de São José - três edifícios de habitação com 223 fogos e 982 lugares de estacionamento; hospital de Santa Marta - um hotel, dois edifícios de habitação e 135 lugares de estacionamento; e hospital dos Capuchos - um hotel, cinco edifícios de habitação e 377 lugares de estacionamento.
O hospital do Desterro era, segundo o programa de ação territorial, para ser transformado num centro de incubação de empresas, um novo polo da economia criativa da cidade. Contudo, no início de janeiro de 2022, os principais jornais portugueses noticiaram a sua venda para transformação num hotel de quatro ou cinco estrelas.
Estes estabelecimentos hoteleiros vêm somar-se aos dez estabelecimentos (1227 camas) já existentes neste território da cidade (CML-DMPRGU 2014: 166). Este é um projeto que já está em discussão desde 2013 e ainda não teve uma conclusão. Contudo, e em paralelo, têm-se desenvolvido alguns processos no sentido da valorização do solo, como a definição de áreas de reabilitação urbana para a rua de São Lázaro ou para a rua das Barracas, a par de obras de reabilitação de edifícios apalaçados no campo dos Mártires da Pátria.
Há neste puzzle uma peça que não deve ser desvalorizada: o Festival Todos. Com início no largo do Intendente e no bairro da Mouraria, entre 2009 e 2011, passou para o Poço dos Negros, entre 2012 e 2014, e a partir de 2015 até 2017 realizou-se na Colina de Santana - campo dos Mártires da Pátria. A atividade do festival tem estado a par dos novos espaços ou projetos urbanos para a cidade: Mouraria (plano de ação da Mouraria), Poço dos Negros (transformação do mercado da Ribeira e da área adjacente) e Colina de Santana (projeto de ação territorial para a Colina de Santana). Este facto não é mera coincidência e a CML (Câmara Municipal de Lisboa) assume-o nos seus documentos, referindo que “paralelamente à execução deste Plano de Ação Territorial, e com vista à dinamização desta área e à sua regeneração, a CML entendeu realizar a próxima edição do Festival Todos, em 2015, na Colina de Santana”. Assim, e tal como refere Nuno Oliveira, convém “ter presente que, contrariamente ao que um certo interculturalismo benigno quer fazer crer, este campo de interpretações não é politicamente inocente” (Oliveira 2013: 602). Atualmente, o Festival Todos decorre em Santa Engrácia onde se pode observar um grande dinamismo imobiliário em grandes projetos hoteleiros, tais como o antigo hospital da Marinha, o antigo edifício da GNR e a antiga cadeia das Mónicas.
Marvila e Beato, ou quando os territórios industriais se tornam trendy
Marvila é um território onde a indústria e o operariado tiveram um peso muito importante na produção de toda a dinâmica socioeconómica e cultural. As suas marcas físicas são bastante visíveis na arquitetura do edificado industrial que ainda se mantém, sendo esta uma área da cidade de Lisboa com uma intensa vida urbana. Contudo, e em consequência do fecho e da deslocalização das indústrias que aí existiam, entrou em decadência a partir da década de 1980. Mais recentemente, o cenário tem-se alterado e este território voltado ao Tejo começou a ganhar outra importância no contexto da cidade. Em postais gratuitos distribuídos pela cidade em 2019, já se podia ler o seguinte sobre o hub criativo do Beato: “using the city’s history to create a bright future. Hub Criativo do Beato preserves the architectural and industrial heritage of the site to build a dynamic new community designed for the pioneers of contemporary creative thinking”.
De um lado existe um território regenerado, o Parque das Nações, que em 1998 foi palco da Exposição Mundial e hoje é local de residência de uma classe média-alta e de localização de equipamentos e infraestruturas de qualidade, do outro, há uma extensa margem portuária cheia de contentores e de difícil acesso. Apesar de este território se localizar muito próximo do centro da cidade, encontra-se simbolicamente afastado, tanto pelas infraestruturas rodoviárias e ferroviárias que marcam profundamente o espaço, como pelo seu distanciamento socioeconómico.
Marvila e o Beato ficam encaixados num espaço em que as memórias persistem materialmente nos edifícios, existindo uma forte presença da indústria que, apesar de desmantelada, continua a fazer parte da sua imagem territorial. Esta “Lisbon’s new geography”, como se designa nos postais do hub criativo do Beato, mantém a estrutura física associada à sua trajetória histórica, económica e social, que é aproveitada e, eventualmente, subvertida pelas políticas públicas, mas vai-se desligando de um sentido político de resistência. Os novos espaços de empreendedorismo e inovação da cidade passam a fazer-se nos lugares, com uma história e uma memória fortes, mas dissociados do seu tecido associativo e local de base. (figura 3)
Mais recentemente, esta área da cidade tem vindo a sofrer pressões imobiliárias, exercidas sobre espaços vazios e obsoletos que foram deixados ao abandono, processo a que não foi alheia a indústria criativa (Falanga e Nunes 2021), o cenário perfeito para a construção de núcleos habitacionais de luxo, como os Jardins do Braço de Prata, do arquiteto Renzo Piano, onde o apartamento mais barato custava 550 mil euros e os mais caros 2,5 milhões. Ao mesmo tempo, os grandes espaços industriais abandonados são ocupados por estúdios de gravação, agências de marketing e publicidade, espaços de coworking, ganhando as indústrias criativas grande destaque (ex.: o hub criativo do Beato, que está em plena construção). Todas estas mudanças colidem com o contexto socioeconómico do território, forçando muitos dos seus habitantes a abandonar a área (Braga 2018).
Considerações finais
A análise dos três estudos de caso permite identificar algumas linhas de continuidade que importa colocar em evidência. Apesar de se tratar de três territórios cujos processos de transformação estão inacabados, permitem-nos compreender qual o sentido da mudança, os seus atributos fundamentais e quais as principais forças em presença e o papel que desempenham. A presença de património edificado classificado e de estruturas e eventos artísticos e culturais tem um papel-chave na valorização e na mudança da imagem dos espaços, fomentando a sua mercantilização e contribuindo para a competitividade urbana. Resulta claro que apenas um olhar crítico e atento sobre as especificidades de cada um dos contextos geográficos permite vislumbrar qual será o seu futuro próximo. Contudo, tendo por base o que já aconteceu no largo do Intendente, é possível antecipar o que se avizinha para os outros dois territórios.
Parece evidente que a força transformadora das teses de Florida, com todas as declinações e variações que posteriormente viriam a verificar-se, preserva atualidade. Ao longo das duas últimas décadas, a transformação da cidade de Lisboa tem vindo a seguir os passos que muitas outras cidades haviam dado. A aposta na competitividade internacional da cidade, a valorização de um discurso criativo, empreendedor, onde não faltam os anglicismos cosmopolitas que, afinal, revelam uma atitude provinciana e paroquial, a centralidade da inovação e o foco na necessidade de atrair pessoas altamente qualificadas, com estilos de vida onde o consumo ocupa um lugar central, entre outras tendências já conhecidas, têm-se vindo a desenrolar em Lisboa de forma nítida. Apesar dos ritmos diferenciados e das diferentes espacialidades, os três territórios analisados são peças importantes do puzzle de uma Lisboa neoliberal. As estruturas artísticas e culturais, apesar do seu pendor muitas vezes crítico e de resistência, ajudaram a valorizar estas áreas e a mudar a sua imagem, influenciando as políticas de regeneração urbana e fomentando a mercantilização dos territórios.
Por outro lado, a incapacidade para gerir as consequências resultantes da trajetória seguida, designadamente ao nível da necessidade de cuidar dos mais frágeis e vulneráveis, das classes populares, dos imigrantes e dos mais pobres, para não os deixar entregues à voracidade especulativa e gentrificadora, acelerada pela turistificação recente, parece ser também um dos traços que mais bem define a transformação urbana de Lisboa que retratámos. As classes populares têm sido excluídas de processos participativos consequentes e significativos e a sua voz não é ouvida pelos decisores públicos que preferem prestar atenção à volatilidade maviosa do mercado e da especulação que transforma, por exemplo, a habitação num ativo financeiro, alterando completamente a sua função social.
Com efeito, arte e cultura são em Lisboa um recurso fundamental para a construção da competitividade urbana. A CML tem sido um dos agentes mais relevantes em todo este processo, seja porque procura aproveitar os ganhos económicos decorrentes destas novas dinâmicas, seja porque não tem prestado suficiente atenção às inúmeras externalidades negativas geradas por um processo que desumaniza a cidade e os seus bairros populares. Os despejos sem alternativa verificados nos territórios investigados são um dos retratos mais vívidos da brutalidade social da urbanização neoliberal. O caso do largo do Intendente é só mais um exemplo e um caso de referência para se compreender de que modo os modelos neoliberais de produção de cidade se aplicam a um conjunto de processos urbanos que, através das suas ações, transformam o espaço numa mercadoria desejável. Através desta intervenção urbana, que mudou a imagem de um bairro marginal para cosmopolita, incrementaram-se processos de desigualdade e de exclusão. Parte do património imobiliário que se encontrava em elevado estado de degradação foi transformado em hotéis e alojamento local, passando a servir o turismo, eixo estratégico de desenvolvimento da cidade, e expulsando quem o habitava.
O Festival Todos, enquanto exemplo de uma prática artística inserida numa estratégia de intervenção urbana mais ampla, deve aqui ser identificado como uma ação que impulsionou a construção de uma imagem de cidade cosmopolita e intercultural, que atrai pessoas para os espaços e abre a porta à valorização do património imobiliário, traduzindo claramente a potencialidade económico-financeira dos lugares. A solidariedade tão necessária para reforçar a luta e a resistência desaparece (Hooks 2020). Reforça-se uma utopia neoliberal na qual o mercado puro e perfeito supõe a destruição de todas as resistências coletivas e conduz a um mundo darwiniano onde todos lutam contra todos (Bourdieu 1998).
As marcas da mudança inscrevem-se no tecido urbano lisboeta, seja através das alterações de usos e funções, pensadas em função dos interesses das classes mais ricas, dos turistas e viajantes ocasionais, seja através da reconfiguração da materialidade da cidade. Mas também das suas representações, imagem e identidade, muitas vezes através da reconstrução das suas memórias históricas e do seu património material e imaterial. No Intendente, a recriação dos imaginários urbanos, indutora de novos usos, consumos e práticas de lazer, é um indicador claro. Ademais, a forma como a arte urbana é hoje um elemento-chave da mudança em Lisboa mostra também, mais uma vez, como aquilo que antes era marginal e periférico pode ser recuperado para um lugar central, no quadro da mercantilização do espaço urbano em curso.
Por fim, em nenhum dos territórios estudados a existência de comunidades, coletivos e movimentos sociais alternativos tem demonstrado a arte e o engenho para resistir à avalanche transformadora que se tem desenrolado na cidade de Lisboa ao longo das últimas décadas. Assiste-se sim a uma resistência de baixa intensidade, com pouca capacidade operativa, demasiado fragmentada e que não consegue resistir à onda transformadora. Lisboa é uma cidade que abdicou de pensar nos seus residentes, que vira as costas às classes populares e vive permanentemente ao sabor das dinâmicas do mercado imobiliário, dos investidores e da especulação. A cidade tem apostado em requalificar o seu território, entregando-o posteriormente ao capital privado para que este acumule a mais-valia das transformações implementadas. A justiça espacial e o direito à cidade não passam de chavões desprovidos de substância para os responsáveis políticos que a gerem. Por outro lado, os movimentos alternativos não foram ainda capazes de mostrar a sua força, assistindo impotentes à neoliberalização de Lisboa e à desvalorização social da cultura.