Introdução
Em 2019, a Time Out internacional anunciava Arroios, em Lisboa, como um dos bairros mais “cool” do mundo (Manara 2019). A revista de lazer destacava que, nesta área residencial no centro da cidade, se podia consumir cultura. De facto, no período pré-pandemia de Covid-19, seguindo uma tendência europeia, Lisboa testemunhou a emergência de muitos espaços públicos e multiculturais, onde se podia ir beber um copo, frequentar uma aula de dança, participar num debate ou ver uma exposição. Estes espaços comungavam de resto de uma mesma estética, que promovia a decoração com velhos móveis em garagens ou armazéns, por exemplo. O que não transparecia de imediato da observação destes espaços alternativos era a sua natureza como organizações, elas próprias “alternativas”. Na sua maioria não têm fins lucrativos, isto é, são associações privadas de adesão voluntária e cooperativas que, na prática, se constituem como alternativa à oferta institucional de museus, teatros, salas de espetáculo, etc. Acresce que são organizações sem qualquer financiamento público regular e que contribuem para uma visão específica da vida na cidade (Rego e Borges 2021).
Fazendo parte da freguesia de São Jorge de Arroios (Arroios), o que chamamos bairro dos Anjos em Lisboa, ou simplesmente os Anjos, pode ser considerado como a área circundante à estação de metropolitano com o mesmo nome. Trata-se de uma área residencial, bastante central na cidade capital. Administrativamente é contígua à freguesia da Penha de França e inclui o Intendente, onde houve investimento municipal para recuperar a degradação causada pelo consumo de droga e prostituição (Veiga-Gomes 2017; Estevens et al. 2019). Ao assumirmos a designação de bairro, não adotamos, pois, uma preocupação de rigor administrativo, mas um sentido sociológico.
Foi nos Anjos que identificámos o espaço cultural mais antigo, a Abril em Maio (1994-2005), mas estes espaços não são exclusivos deste bairro. É possível encontrá-los em outras partes da cidade, como na Baixa, o Bacalhoeiro (2006-); ou em Benfica, o Com Calma (2015-). No entanto, a invulgar concentração deste dinamismo de espaços culturais alternativos chama a atenção de quem visita o bairro dos Anjos, de quem o frequenta em saídas noturnas de lazer, ou de dia em busca de atividades lúdicas e culturais. Alguns estudos de geografia e urbanismo começaram a chamar a atenção para como o bairro dos Anjos, no período que vai da crise financeira (iniciada em 2007-8) à crise pandémica (iniciada em 2020), é uma das áreas de gentrificação da capital. A gentrificação, fenómeno estudado desde os anos 60 por diversas disciplinas (Lees e Phillips 2018), é aqui entendida como mudança, material e simbólica, de bairros cujos residentes e consumidores pertencem à classe trabalhadora para zonas dominadas pelas classes média e alta. De forma desafiadora, ao mesmo tempo que os Anjos sofrem um processo de gentrificação, vão-se tornando num dos eixos dos jovens consumidores à noite (Estevens et al. 2019).
Prosseguindo a análise iniciada anteriormente (Rego e Borges 2021), este artigo pretende mostrar que, a partir de uma análise indutiva etnograficamente sustentada (Jerolmack e Khan 2017), é possível identificar tipos de missões destes espaços, mutuamente exclusivos e distinguíveis do ponto de vista teórico: o tipo cultural-entretenimento e o tipo cultural-ativista. Destas novas ferramentas concetuais decorre, por exemplo, que a monitorização dos espaços culturais é agora possível de modo sistemático e sustentado, podendo assim revelarem-se tendências mais profundas da vida na cidade. Os tipos permitem ir para além da análise de casos, inclusivamente viabilizando a classificação dos mesmos para uma análise quantitativa e comparativa.
Este artigo tem três partes principais. Começa por fazer uma breve revisão bibliográfica, integrando a investigação no âmbito dos recentes debates sobre organizações culturais sem fins lucrativos e com participação cívica, onde se inclui a participação cultural informal como elemento da democracia cultural. Segundo, apresenta a metodologia da investigação empírica exploratória realizada em 2019 no que diz respeito à seleção do objeto, às técnicas de recolha de dados e à análise dos mesmos, onde se dá conta das três etapas de construção de ideais-tipo. Por fim, o artigo apresenta e discute os resultados, procurando inclusivamente verificar a aplicação dos dois ideais-tipo propostos, para concluir com uma reflexão sobre o uso dos ideais-tipo e as pistas que deixam para a investigação.
As organizações sem fins lucrativos como promotoras de democracia cultural
Nos últimos 15 anos tem havido um crescimento considerável no número de pequenas organizações culturais sem fins lucrativos com missões sociais relevantes na Europa, embora com variações entre países. Um relatório recente da Eurofound (2019) recolheu dados de Estados-membros europeus e demonstrou como as cooperativas, em particular, floresceram no período da crise financeira, e com taxas de sobrevivência semelhantes ou mesmo melhores do que as das empresas com fins lucrativos. Além disso, as cooperativas, empresas e outras organizações com uma missão social, que se agrupam numa mesma categoria de “empresas sociais”, na medida em que geram externalidades sociais e ambientais (Doherty, Haugh e Lyon 2014), desempenharam um papel importante nesse período. Trata-se de um período económica e socialmente difícil para as populações, nomeadamente em termos de criação de emprego e inclusão social, mas em que estas organizações forneceram soluções inovadoras e burocraticamente flexíveis para os desafios socioeconómicos (Eurofound 2019).
A informalidade e as redes sociais associadas a estas empresas sociais e organizações sem fins lucrativos surgem como um dos seus pontos fortes (Eurofound 2019). Como diz Brook (2016), a proximidade é relevante para criar uma norma social e envolver os outros, representando a socialização uma oportunidade para construir laços e práticas duradouras. Muito embora ainda escasseiem estudos que o demonstrem, a crise económica suscitada pela pandemia de Covid-19 parece ter confirmado esta tese.
Apesar do seu bom desempenho, a forma como estas organizações sobrevivem parece ser intrigante. Thelwall (2015) relata que o financiamento não diminuiu tanto como se esperava de 2009 a 2013. O autor explica que os dados escondem variações, em particular nas estratégias das organizações mais pequenas que, inclusivamente, procuraram equilibrar quebras de rendimento com receitas de cafés e de espaços de aluguer (2015: 85).
Tendo em conta que estas organizações dependem de atividades comerciais e têm baixos níveis de financiamento estatal, elas desenvolvem os seus próprios meios de angariação de fundos e acabam por se constituir como o ator mais híbrido e adaptável de todo o espectro do sistema artístico contemporâneo (Blessi, Sacco e Pilati 2011: 143). De facto, estas comunidades alternativas às instituições públicas ou apoiadas pelo Estado, como museus, teatros, salas de espetáculo, etc., lutam constantemente pela sobrevivência e dependem daqueles que estão mais empenhados em manter o respetivo projeto.
Parece claro que os espaços alternativos para a cultura, como o caso dos centros coletivos independentes geridos por artistas (Blessi, Sacco e Pilati 2011), já muito referenciados pela literatura científica, nomeadamente anglo-saxónica, desempenham um papel importante nas redes artísticas. Os centros culturais britânicos, por exemplo, que surgiram nos anos 70, num contexto urbano, proporcionaram “[…] new opportunities to cope with the physical, economic and cultural constraints that generally impede the professional development of artists” (Blessi, Sacco e Pilati 2011: 141). Como dizem Blessi, Sacco e Pilati (2011), trata-se de espaços acessíveis de experimentação e difusão de práticas artísticas inovadoras: “[…] they constitute the main circuit for the experimentation and diffusion of new languages and practices allowing artists to nurture and develop their own aesthetics and methods without having to conform in principle to market standards” (Blessi, Sacco e Pilati 2011: 142).
Para além da sua relevância como iniciativas económicas, do interesse comercial que por vezes vem à tona, e das surpreendentes descobertas sobre a sua sobrevivência e longevidade, estas organizações combinam objetivos comerciais e culturais (DiMaggio 2006). É assim que podem ser rotuladas como “organizações híbridas”, pois não correspondem às categorias mais convencionais, como públicas ou privadas (Doherty, Haugh e Lyon 2014: 419). Na sequência do esbatimento das fronteiras entre a chamada cultura cultivada e a cultura popular ou, como diz DiMaggio, “the erosion of the hierarchical model of culture” (2006: 450), o setor não lucrativo também contribuiu para a criação de uma oferta mais ampla de géneros e estilos. Assim, as organizações culturais sem fins lucrativos parecem constituir um dos mais importantes instrumentos à disposição do paradigma da democracia cultural. Com efeito, segundo Evrard (1997), a democracia cultural incide sobre a liberdade de escolha individual e é caracterizada pelo ecletismo, multiculturalismo e convergência da cultura de massas com cultura de consumo, enquanto, pelo contrário, no paradigma de democratização da cultura, a intervenção do Estado tem um papel preponderante e corre-se o risco de algum elitismo, pois o esforço é de disseminação dos produtos culturais a uma audiência que não tem acesso a eles por falta de capital financeiro ou educativo. Deste modo, na democracia cultural a participação ativa e cívica dos cidadãos está associada a uma ênfase colocada no valor das decisões tomadas pelos coletivos de cidadãos (Duxbury e Jeannotte 2017; Bonet e Négrier 2018). Note-se que a participação cívica é aqui entendida em sentido amplo, como ação voluntária que desenvolve capacidades individuais, relacionando-se com a assunção de responsabilidades, quer no interesse individual quer no da comunidade e, por essa via, com a criação da própria comunidade e o exercício da democracia, sendo frequentemente enquadrada em associações voluntárias (Sckocpol e Fiorina 1999).
Podemos então afirmar que houve uma evolução da chamada economia criativa (e mesmo das indústrias criativas) para uma economia social criativa, para usarmos a expressão de Comunian, Rickmers e Nanetti (2020). Atualmente, a economia criativa (que é mais abrangente do que as indústrias criativas) incorpora questões consideradas como “pequenos problemas sociais” (Comunian, Rickmers e Nanetti 2020: 102). Alguns estudos recentes têm demonstrado justamente a convergência do social e do económico, especialmente após a crise financeira (Comunian, Rickmers e Nanetti 2020; Rich 2019; Carmo e Estevens 2017). Uma das dimensões mais relevantes da economia criativa é, por esta via, o seu impacto espacial. Com efeito, a cultura e a criatividade têm sido associadas aos bairros em transformação (Carmo e Estevens 2017; Rich 2019).
No entanto, o impacto espacial ou social da economia criativa tem produzido experiências díspares. Por um lado, Rich (2019), que analisou o caso de Nova Iorque, responsabiliza os artistas pela gentrificação na medida em que as suas atividades conduzem ao estabelecimento de parcerias público-privadas e à reestruturação de equipamentos históricos, como teatros, com consequente revalorização do preço dos solos e aumento das rendas e posterior abandono do bairro pelos artistas. Como diz o autor, os próprios artistas tornam-se vítimas do sucesso dos bairros (Rich 2019: 730) e acabam por abandoná-los por não conseguirem suportar a despesa. Por outro lado, Carmo e Estevens (2017), que analisaram o caso de Lisboa, mais propriamente da Mouraria, chamam a atenção para a implantação da cultura como um processo para os cidadãos que procuram reivindicar o seu direito à cidade. Face a políticas públicas claramente orientadas para o turismo, o velho bairro da Mouraria em Lisboa, por exemplo, acolheu um coletivo de criação artística e investigação que encenou atividades de resistência em conjunto com a população local. Os autores mostram assim que os artistas contribuem para o combate à gentrificação.
Em qualquer caso, vários destes estudos acabam por realçar as contribuições de contextos informais e dos diversos “estilos de participação” (Taylor 2016). No fundo, mostram que, como Miles (2016) observa, a participação cultural pode ser encontrada na vida quotidiana. Isto quer dizer que é possível reconstituir o consumo cultural através de narrativas individuais e identificar a emergência de uma forma de capital cultural cosmopolita e de lutas por pertença e identidade. Os indivíduos que dizem não ter ou ter um fraco envolvimento em atividades culturais promovidas pelo Estado, podem efetivamente envolver-se em atividades culturais informais e, por conseguinte, devem ser diferenciados dos indivíduos desinteressados da participação cultural. Nesta participação cultural, que poderíamos dizer mais livre, são, contudo, vislumbrados elementos diferenciadores que nos permitem ir para além da descrição de uma amálgama de ações informais.
Metodologia
A seleção do objeto
Vários estudos sustentam que o urbanismo neoliberal remodelou a paisagem de Lisboa (Carmo e Estevens 2017; Cocola-Gant e Gago 2019; Estevens et al. 2019), tendo a crise financeira e as consequentes políticas de austeridade reforçado a gentrificação dos bairros populares e a intensa turistificação. Neste contexto, promoveu-se a “marca Lisboa” que se concentra num estilo de vida cosmopolita, celebrando simultaneamente as tradições e a diversidade cultural da cidade (Carmo e Estevens 2017; Oliveira 2019).
Neste âmbito, a cultura e as indústrias criativas fazem parte de um contexto favorável ao investimento privado e ao que alguns autores chamam narrativas e práticas hegemónicas relacionadas com processos de regeneração (Estevens et al. 2019: 9) ou um projeto urbano associado a uma nova ordem de representações (Veiga-Gomes 2017), ao mesmo tempo que os habitantes que conseguem permanecer nos bairros turistificados vivenciam uma perda de qualidade de vida (Cocola-Gant e Gago 2019).
É, pois, perante a perturbação do quotidiano trazida pela gentrificação e pelo turismo em Lisboa que grupos sociais e artistas têm usado a cultura como um meio de resistência e de práticas transformadoras (Estevens et al. 2019; Rego e Borges 2021). Estes cidadãos, que não têm visibilidade na comunicação social nem grandes orçamentos, parecem motivados pelo prazer e experiência intelectual, sustentando-se em grande parte numa dimensão relacional de proximidade, entre si e com o público.
A seleção que fizemos do nosso objeto fez-se, assim, quer pelo nosso próprio conhecimento prévio de alguns destes espaços, quer pela técnica “bola de neve”, em que o contacto ou pesquisa de uma organização deu a conhecer outra. A proximidade física das organizações e os laços fortes entre a rede social de participantes que as sustentam, de resto patente no mútuo conhecimento testemunhado em entrevista e nas inter-relações entre estas organizações registadas no Facebook, ajudaram-nos a melhor conhecer o nosso objeto.
Técnicas de recolha de dados
O trabalho de campo decorreu ao longo do segundo semestre de 2019. Alguns constrangimentos foram sentidos, pelo que, desde o início, foi indispensável cruzar fontes de dados. Entre os constrangimentos para abordar o nosso objeto destaca-se a dificuldade em identificar as organizações devido às reestruturações dos próprios espaços, designadamente com a coexistência de um nome comercial e de um nome estatutário da organização sem fins lucrativos (como sucede com a Sirigaita que é o nome público quando a associação é o Mob, sendo que o Mob já existiu como tal, ou seja, no espaço da Sirigaita), ou a mudança da localização de alguns espaços (como o Crew Hassan que costumava estar alojado no Mob mas entretanto tem espaço próprio noutra rua, ou o BUS que se instalou onde era o SOU e este mudou de sítio antes de encerrar, inicialmente entendendo-se que apenas tinha mudado de nome).
Recorremos a diversas técnicas de recolha de dados numa aproximação a uma abordagem etnográfica do terreno que emprega mais do que um estilo analítico (Jerolmack e Khan 2017), a saber:
utilizámos a observação participante, desenvolvida ao longo de múltiplas visitas ao bairro e a diversos destes espaços culturais em diferentes horas do dia e distintos dias da semana, pois os seus horários e agendas variam e, por conseguinte, as suas atividades e participantes;
fizemos entrevistas a dirigentes, voluntários, empregados e utilizadores dos espaços, num total de cinco entrevistas temáticas, tendo o guião compreendido missão organizacional, motivações fundadoras, desafios à sustentabilidade, perceções sobre o impacto, descrição das atividades, processo de agendamento, perfis de membros;
complementámos a informação obtida em entrevista por comunicação eletrónica (por exemplo, solicitando informação precisa sobre a organização, como ano de fundação ou membros antigos) e ainda com análise documental, quer de cartazes e panfletos no local, quer das páginas de Facebook e websites.
De notar que obtivemos o consentimento informado dos entrevistados, por escrito ou no início da entrevista e, muito embora não se identificassem riscos significativos para os dados pessoais, o estudo obteve o parecer da comissão de ética da instituição da autora (ref. 2019/22).
Análise dos dados
Procurando ir para além da descrição e dos significados múltiplos associados às missões destas organizações culturais (Rego e Borges 2021), e sabendo que a observação empírica pode sustentar a identificação de ferramentas concetuais mutuamente exclusivas e distinguíveis do ponto de vista teórico, procedemos a uma análise interpretativa sistemática na linha dos ideais-tipo de Max Weber (Gerhardt 1994).
Três questões estruturaram então a nossa análise: É pertinente identificar nestes espaços atributos que os distinguem? Se sim, quais são esses atributos indispensáveis para os diferenciar? E é possível de seguida verificar a justaposição entre esses atributos e realidade, ou, mais concretamente, confrontar os ideais-tipo com os múltiplos espaços? Ao respondermos a estas questões, adotámos uma metodologia de interpretação de dados qualitativos que se traduziu na criação de dois ideais-tipo por meio de três etapas: (a) recolha de dados empíricos que se revele pertinente teorizar; (b) a identificação de elementos indispensáveis e eliminação dos outros; (c) a verificação no confronto com a realidade (Gerardt 1994; Thornton e Ocasio 2008).
Resultados e discussão
Uma amálgama de espaços culturais
São conhecidos no bairro dos Anjos espaços culturais (Rego e Borges 2021) com várias semelhanças, numa abrangência de cerca de um quilómetro quadrado. Não tendo como objetivo sermos exaustivos, apresentamos no quadro 1, de forma breve, dez espaços que emergiram durante o período da chamada crise financeira e austeridade.
Ano de fundação | Nome | Até duas atividades principais |
2010 | RDA - Recreativa dos Anjos | Bar, debates. |
2012 | Crew Hassan | Bar, música. |
2012 | Casa Independente | Bar, música. |
2012 | Sirigaita | Bar, debates. |
2012 | Zona Franca | Restaurante. |
2013 | BUS-Paragem Cultural | Bar, música. |
2013 | Latoaria | Teatro. |
2014 | Desterro | Danceteria. |
2015 | Damas | Bar, música. |
2015 | DisGraça | Restaurante, música. |
Estes espaços são organizações que surgiram pouco depois do início do século e algumas sofrendo reestruturações (mudança de nome, de gestão, de localização). Este tecido associativo integra, portanto, espaços culturais que podem ser empresas, as chamadas empresas sociais (Eurofound 2019), como a Casa Independente, mas na sua maioria são associações de cidadãos, sem apoios financeiros públicos, conforme declarado em entrevista. Desempenhando um papel semelhante no bairro no que respeita a missão cultural e partilhando de resto uma estética decorativa e uma agenda de atividades, todas estas organizações se encontram fisicamente próximas. O mapa 1 ilustra justamente a sua concentração numa parte da cidade.
Os espaços culturais surgem-nos à primeira vista como semelhantes. O processo de concentração destes espaços no bairro dos Anjos parece ter beneficiado do mimetismo. A organização cultural ativa mais antiga, o Crew Hassan, data de 2004, mas só chegou ao bairro dos Anjos em 2012, tendo surgido no Bairro Alto e passado pela Baixa. Quando o Crew Hassan chega aos Anjos, as organizações próximas, RdA e SOU-Movimento e Arte, fundadas em 2010, já estavam instaladas. O Crew Hassan integra o Mob, partilhando o espaço, inicialmente, com outros grupos. Só anos depois se instala sozinho umas ruas acima do Mob, entretanto conhecido por Sirigaita. Os espaços culturais apareceram de forma progressiva, numa aparente tendência para o “isomorfismo organizacional”, ou seja, reprodução de um modelo (DiMaggio e Powell 1983). Surgem após o advento da crise financeira (2007-2008), mas o seu número cresce durante o período da chamada austeridade, quando o programa de resgate traz a Lisboa uma Troika composta pelo Fundo Monetário Internacional, pelo Banco Central Europeu e pela Comissão Europeia (2011-2014). O contexto sociopolítico de então não terá sido indiferente à emergência de algumas destas organizações, quer por via dos desafios que alguns participantes sofreram nas suas vidas pessoais, então mais fragilizadas, quer em razão dos desafios que se colocavam no bairro e na sociedade em geral. Entre 2011 e 2014, a Troika instala-se e permanece em Portugal para supervisionar a implementação do Memorando de Entendimento, assinado com o governo de centro-direita, e que estabelece medidas que empobreceram a população, nomeadamente por vias do aumento do desemprego e quebra nas ajudas sociais. A reação a este contexto por parte de alguns destes espaços é notória e surge-nos como um elemento heurístico que importa aprofundar.
De algum modo correspondendo ao contexto de empobrecimento e de gentrificação, a estética partilhada por estes espaços culturais reflete uma combinação de vintage e hippy. O mobiliário, por exemplo, ou é recolhido na rua ou doado durante as mudanças de casa. Os espaços culturais ocupam garagens e outras instalações praticamente subterrâneas, mas as políticas urbanas e económicas em curso dão ênfase à venda de propriedades e à especulação, deixando estes espaços em perigo real devido à possibilidade de venda dos edifícios.
Todas as organizações realizam atividades multidisciplinares, desde debates, danças tradicionais, sessões de improviso, afro-música, cinema ativista, performances, teatro amador, atividades e exibição de artes visuais, até aos bares e comida caseira. Torna-se, assim, muito difícil identificar uma única atividade central em cada organização, sendo que ela muda ao longo do dia e da semana. Daqui decorre que a informação constante do quadro 1 sobre atividades principais é puramente indicativa. A agenda depende das redes sociais de contactos próximos dos participantes, geralmente jovens adultos qualificados, por vezes cidadãos europeus que vieram estudar em Lisboa instalando-se aí depois, mas também potenciadas pela comunicação nas redes sociais.
Em muitos casos, os nomes das organizações envolvem “jogos de palavras” que se relacionam com a localização, como é o caso do Desterro, significando exílio e, ao mesmo tempo, sendo o nome da zona onde o espaço se situa. Particularmente relevante é um segundo aspeto relacionado com o nome das organizações. No âmbito do jogo de palavras, alguns assumem um sentido político. Muitos não explicitam a ideologia, como sucede com a Sirigaita, que se mostra apenas como irreverente. De facto, o termo sirigaita é aplicado a uma mulher jovem e atrevida que tem sempre uma resposta para tudo, o que se enquadra na natureza alternativa das atividades desenvolvidas neste espaço e de contestação, incluindo música, teatro e exposições, mas também reuniões de movimentos de protesto. Outros parecem ser, de algum modo, mais diretos na conotação ideológica, como é o caso do RdA, Recreativa dos Anjos, que é simultaneamente o acrónimo da rua onde se situa a associação, Regueirão dos Anjos (RdA), e a sigla portuguesa para a ex-Alemanha Oriental (República Democrática da Alemanha - RDA), sob regime comunista. Não há necessariamente a defesa da ideologia comunista, mas o nome deste espaço cultural assume um significado especial quando se considera que a associação defende uma ideologia de esquerda, especificamente antifascista, patente não só nos cartazes e graffiti afixados na sua porta principal, mas também facilmente identificável na sua página do Facebook.
Também no que diz respeito a participação cultural, estes espaços evidenciam um “estilo específico de participação”, na medida em que há um compromisso informal, uma abordagem feita por indivíduos que procuram fazer algo de forma mais independente e flexível, através de organizações sem fins lucrativos que não recebem qualquer apoio público e contam com a sua rede social de apoio, próxima do bairro, dos laços fortes entre os participantes. Os participantes e líderes revelam perfis tendencialmente qualificados mas ecléticos, cosmopolitas e urbanos.
Estas organizações culturais independentes sem fins lucrativos, com importantes níveis de integração local, que surgiram no âmbito da era digital e da crise financeira, tendem a ser invisíveis para as políticas culturais da cidade, contra o que alguns autores têm alertado (Taylor 2016). São espaços abertos ao convívio e à vivência da cultura, suscetíveis de representar espaços liminares, na medida em que o controlo social é menos forte e por isso a exploração de novos caminhos é facilitada (Costa e Lopes 2013). O espectro cultural das suas atividades, as suas relações com as autoridades locais e o perfil dos seus membros são diferentes dos das organizações tradicionais, como museus, teatros, salas de espetáculo, etc. Estes espaços culturais muito provavelmente ultrapassam o âmbito de todas as estatísticas oficiais. Na prática, são “organizações híbridas” com muito em comum, mas também com diferenças claras (DiMaggio 2006).
Podemos, em suma, afirmar que dispomos de evidência que nos oferece pistas para uma diferenciação que se consubstancie em ferramentas concetuais heurísticas.
Dois ideais-tipo
Um olhar mais objetivo e sistemático permite-nos ir para além da descrição e identificar teoricamente atributos diferenciadores e indispensáveis nas missões destes espaços culturais dos Anjos. Com efeito, alguns deles destacam-se por promover ações a que podemos chamar de “cultura política” 1 de participação em democracia, na medida em que há um posicionamento dos cidadãos perante o seu lugar no sistema político e na sociedade em geral, também chamado modelo ativista (Almond e Verba 1963). Com efeito, algumas destas organizações culturais são claramente estruturas de encontros, espaços de compromisso para intervenções sociais, culturais-artísticas e políticas. Neste domínio, saliente-se que, por vezes, albergam se não promovem debates políticos não institucionais, que partem dos cidadãos para a esfera pública, assim como exibem elementos simbólicos com posicionamento político. É assim possível identificar ações nomeadamente contra a Troika, a especulação imobiliária, as alterações climáticas, ou a favor da habitação para todos, a defesa das questões feministas, entre outras. De facto, estas associações podem representar grupos e mesmo movimentos ativistas ou pelo menos politizados, como o caso da Sirigaita com a sua história imbricada desde sempre com a dos Precários Inflexíveis-PI ou do movimento Habita. Importa ter presente que os PI são um coletivo que luta pelo fim dos chamados “falsos recibos verdes”, ou seja, pela regularização contratual dos “trabalhadores independentes economicamente dependentes”, e o Habita é um coletivo que emergiu com a crise da habitação durante a crise financeira prosseguindo na luta pelo direito à habitação já num contexto de pós-crise e de especulação imobiliária. Ambos organizam ações de protesto, associam-se a outros movimentos, inclusive participando em manifestações sindicais. Podemos, pois, concetualizar estes atributos indispensáveis designando um ideal-tipo de “missão cultural-ativista”.
Passando à etapa da verificação, considere-se, por exemplo, o caso da Sirigaita, da RdA, da Zona Franca e da DisGraça. Estes espaços culturais podem ser referenciados como prosseguindo o tipo de “missão cultural-ativista”. Isto não significa que, por exemplo, a Sirigaita se enquadre apenas neste tipo, mas, quando comparada com o BUS, por exemplo, reconhecemos claramente a participação cívica política como distintiva da sua missão. Estes espaços, caracterizados por uma participação cívica que não é estritamente cultural mas porventura sobretudo política, parecem de resto ter um segundo atributo indispensável, o de se observarem neles sinais de ideologia de extrema-esquerda, designadamente notórias nos seus cartazes de porta ou na informação sobre eventos. Estes espaços culturais são, pois, ilustrações do conceito de missão cultural-ativista, mas não se esgotam nele.
Um segundo ideal-tipo vislumbra-se a partir deste tecido organizacional. Sendo um caminho de sucesso para a democracia cultural em bairros multiculturais, estas organizações podem ser consideradas uma resposta às limitações impostas pela crise financeira, que empobreceu o país. Embora nos últimos anos muitas cidades tenham sofrido de gentrificação e especulação imobiliária, estas microestruturas podem ser vistas como pilares que desempenham um papel crucial de mediação e ligação na promoção da capacidade cultural e sustentabilidade social. Com efeito, nas organizações culturais do bairro dos Anjos encontramos trabalhadores do conhecimento que mudaram de profissão ou estão a expressar uma vocação artística durante a fase da austeridade ou na recuperação desse período. Ao desenvolverem artes performativas e a música em particular, parecem constituir uma prova da sobrevivência de experiências intelectuais longe da corrente dominante. De facto, estes espaços culturais tornaram-se “o” local de experimentação, uma vez que os locais convencionais de Lisboa se tornaram integrados em circuitos comerciais economicamente menos acessíveis.
As redes informais destes espaços culturais sobrepõem-se em alguns casos e os participantes são, muitas vezes, simultaneamente ativistas, artistas, vizinhos, etc. As ações de muitas destas organizações culturais de Lisboa parecem refletir como o setor sem fins lucrativos e o formato coletivo continuam a ser uma opção. Estes comportamentos resilientes e a tendência crescente para a participação local e o consumo cultural alternativo fazem parte da democracia cultural nos bairros de Lisboa (Bonet e Sastre 2016; Duxbury, Kangas e Beukelaer 2017). Algumas destas organizações, com uma composição social e atividades culturais semelhantes, não se mostram politicamente empenhadas e, quando questionadas, afirmam-se como neutras precisamente para se distinguirem. Identificamos, portanto, um segundo ideal-tipo, a “missão cultural-entretenimento”.
Este modelo teórico pode ser encontrado na etapa de verificação em múltiplas organizações dos Anjos. Trata-se dos espaços orientados para a música, como é o caso do BUS ou do Crew Hassan, mas também das empresas sociais Casa Independente e Damas, que promovem o bar restaurante ao mesmo tempo que ganham reconhecimento por fornecerem atividades de entretenimento e culturais. Estas organizações culturais concebem e fornecem as suas atividades culturais aos habitantes do bairro e não só, integram uma agenda cultural alternativa, de periferia e experimentação. De novo, importa referir que estas organizações não se esgotam num ideal-tipo, ou seja, podemos encontrar nelas também eventos políticos ou genericamente com propósitos ideológicos, mas esses atributos não os diferenciam de forma sistemática.
Notas conclusivas
A partir da excecional concentração de espaços culturais no bairro dos Anjos, em Lisboa, o objetivo deste artigo era procurar ir para além da descrição do tecido associativo, partilhando uma mesma estética e proporcionando atividades multidisciplinares de forma informal, baseada em redes pessoais e locais (Rego e Borges 2021). Estes espaços cruzam, de forma excecional, democracia cultural, participação cívica e resistência à gentrificação, mas dois ideais-tipo podem ser concebidos a partir de atributos distintivos, por um lado ações e simbologia de natureza política, por outro lado de natureza estritamente de entretenimento. Quer a partir da nomenclatura dos espaços, quer das atividades que promovem e dos próprios discursos e perfis dos participantes, consideramos, assim, dois ideais-tipo de missões destes espaços: o cultural-ativista e o cultural-entretenimento. O papel transformador destes espaços culturais do bairro dos Anjos e da cidade foi demonstrado noutro momento (Rego e Borges 2021), mas importava aprofundar o conhecimento através de uma análise interpretativa sistemática e objetiva, mostrando a utilidade das propostas construções heurísticas resultantes da abordagem etnográfica.
À primeira vista, estes espaços culturais, que compõem o novo eixo noturno da cidade de Lisboa (Estevens et al. 2019) em período pré-pandemia, podem ser vistos como uma tendência comercial sob os auspícios da “marca Lisboa”, mas importa atentar que eles não são todos iguais, o mesmo é dizer que não contribuem do mesmo modo para a reconfiguração urbana. Sendo espaços híbridos (DiMaggio 2006; Blessi, Sacco e Pilati 2011), através dos quais se implementa a democracia cultural, eles são também espaços de promoção da resiliência e resistência do bairro. Ora, essa ação decorre de missões diferenciadas: uma estritamente cultural e outra onde o envolvimento político intervém. Podemos dizer, em suma, que o papel transformador dos espaços culturais dos Anjos, do ponto de vista teórico, bifurca em missões distintas. Enquanto um tipo apela à participação cívica associada à participação cultural e ao entretenimento, mobilizando artistas que se iniciam, se exercitam, fora da corrente dominante, o outro promove a participação cívica associada a uma participação política, albergando grupos de protesto, promovendo debates e exibindo símbolos de contestação do sistema político.
A identificação destes dois tipos de missões dos espaços culturais deverá, pois, permitir uma agenda de investigação que monitorize no terreno a evolução das próprias organizações, nomeadamente em número, para se perceber se tendem mais para o entretenimento ou o ativismo, proporcionando assim a avaliação do dinamismo associativo na sua relação com o contexto sociopolítico e cultural em que se inserem. Estes tipos deverão consentir que se perceba em que condições estes espaços se podem manter, crescer, transformar ou encerrar, sendo porventura agora mais fácil de compreender e até de antecipar, atendendo à natureza da sua missão descortinada. Espera-se, portanto, que estudos futuros possam implementar a proposta tipológica neste e noutros contextos urbanos, classificando, quantificando, comparando espaços culturais alternativos. O uso destes tipos permitirá inclusivamente o diálogo com a recente literatura sobre “prefiguração” que, segundo Yates (2015), envolve experimentação coletiva de relações sociais alternativas por via da produção e circulação de significados políticos, criação de novas normas e difusão de ideias.